Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
11/21.2T8CDN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: CONSUMO FRAUDULENTO DE ENERGIA ELÉCTRICA
RESPONSABILIDADE CIVIL POR FACTOS ILÍCITOS
MEDIDA DA INDEMNIZAÇÃO EM DINHEIRO
CULPA DO LESADO
Data do Acordão: 12/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CONDEIXA-A-NOVA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 1.º, N.º 2, E 6.º, DO DECRETO-LEI N.º 328/90, DE 22-10, E ARTIGOS 483.º, 562.º, 566.º, N.ºS 1 E 3, E 570.º, TODOS DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - O regime legal previsto no Decreto-Lei n.º 328/90, de 22-10, tem como campo de aplicação as situações de violação do contrato de fornecimento de energia elétrica, por fuga do cliente ao pagamento devido, em resultado de comportamento fraudulento do consumidor.

II - Por isso, esse regime legal, designadamente quanto a presunção de responsabilidade do lesante, não colhe aplicação direta num caso em que inexiste relação contratual entre o distribuidor de energia elétrica e o proprietário do imóvel onde, ao tempo de um anterior contrato de fornecimento extinto, foram instalados – e não retirados – o contador e o dispositivo de controlo de potência.

III - Sabendo-se quem violou/adulterou tais equipamentos (a ré), em seu benefício como proprietário do imóvel, usufruindo de energia elétrica sem contrato e sem pagamento, tem a ação indemnizatória de proceder, com ressarcimento integral dos danos causados, à luz do regime da responsabilidade extracontratual.

IV - Na impossibilidade de quantificação da energia elétrica assim apropriada e consumida, por motivo imputável ao lesante, o cálculo da indemnização respetiva pode ser obtido com base nos critérios facultados pelo lugar paralelo do disposto no art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22-10.

V - Em tal caso, sendo fraudulenta a conduta do lesante, inexiste concorrência de culpa do lesado, se este, extinto o contrato de fornecimento de energia elétrica, deixando permanecer instalado no local o seu equipamento necessário ao fornecimento, o fez na perspetiva de celebração de futuros contratos de fornecimento para o mesmo imóvel e sem que se mostre ter ocorrido qualquer solicitação do respetivo proprietário para retirada desse equipamento.  

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


***

I – Relatório

“EDP DISTRIBUIÇÃO - ENERGIA, S. A.”, com os sinais dos autos,

intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra

AA, também com os sinais dos autos,

pedindo a condenação da R.:

«(…) a pagar à Autora, a título de indemnização por factos ilícitos, a quantia de € 6.844,50 (seis mil, oitocentos e quarenta e quatro euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros vencidos e vincendos, calculados à taxa legal em vigor, contados desde a data da citação da Ré até efectivo e integral pagamento» (cfr. fls. 9 v.º do processo físico).

Alegou, para tanto, no essencial:

- residir a R. no local de consumo n.º 1382720, correspondente à instalação de consumo de energia elétrica sita em ..., ..., ..., ..., desde, pelo menos, 30/09/2007, uma vez que foi titular ali de um contrato de fornecimento de energia elétrica que teve início em 30/07/2007 e cessou em 08/09/2011;

- tal instalação é atualmente abastecida de energia elétrica por força de um contrato de fornecimento – com início em 16/10/2014 e que ainda se mantém em vigor – celebrado entre o comercializador a operar no mercado livre “EDP Comercial - Comercialização de Energia, S. A.” e a R.;

- Em 16/09/2014 foi efetuada uma vistoria – numa altura em que a R. não era titular de qualquer contrato de fornecimento de energia elétrica para o local –, através de equipa técnica da A., tendo os técnicos verificado que o contador estava ligado sem contrato (isto é, auto-ligado), o que consubstancia um crime de furto, por ter ocorrido procedimento voluntário destinado a possibilitar a fruição de energia elétrica de forma ilimitada e sem qualquer medição (o contador foi violado, mediante manipulação das ligações);

- o DCP (dispositivo de controlo de potência) é um equipamento pertença da A., destinado a controlar e limitar a potência que é disponibilizada à instalação, sendo que o facto de o mesmo se encontrar fora de serviço permitia à R. consumir energia sem controlo ao nível de potência, usufruindo-a de forma ilimitada;

- a manipulação e adulteração do contador, permitiu a ilícita apropriação de energia elétrica, contra a vontade da A., sem qualquer pagamento, prejudicando esta e enriquecendo a R., a qual, por si só ou com a ajuda de outrem, efetuou a ligação direta da rede pública de distribuição à sua instalação particular, usando a energia consumida em seu proveito;

- o processo-crime movido contra a R. foi arquivado, subsistindo, porém, os danos decorrentes da conduta ilícita da R., correspondentes a um período de utilização abusiva, perfazendo o montante peticionado, que a R. não pagou, apesar de interpelada para o efeito, sendo que se encontram preenchidos os requisitos da responsabilidade civil a que alude o art.º 483.º, n.º 1, do CCiv..

A R. contestou, invocando a prescrição e defendendo-se por impugnação, âmbito em que alegou:

- já ter decorrido o prazo prescricional;

- desconhecer, ou não ser verdadeira, no essencial, a factualidade alegada pela A.;

- ser proprietária de uma casa na ..., que não é sua primeira habitação, sendo que nunca procedeu a qualquer violação ou adulteração, tanto mais que a casa não é habitada – apenas a R. se desloca ali, esporadicamente, para passar fins de semana –, e sendo ainda que o processo-crime resultou arquivado.

Pugnou pela total improcedência da ação.

Respondeu a A., em matéria de exceção, concluindo pela sua total improcedência.

Dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, em que se considerou nada obstar ao conhecimento de meritis, com relegação para final do conhecimento da deduzida matéria de exceção e com dispensa de definição do objeto do litígio e dos temas da prova.

Procedeu-se à realização da audiência final, com produção das provas, seguida da prolação de sentença, na qual a ação foi julgada totalmente improcedente, com a consequente absolvição da R. do pedido.

Da sentença vem a A., inconformada, interpor o presente recurso, incidente sobre a decisão da matéria de facto e de direito, apresentando alegação e as seguintes

Conclusões ([1]):

«1. Desde logo, a Autora, aqui Recorrente, não se conforma com a decisão que versou sobre a matéria de facto, porquanto, foi dado como provado um facto que não deveria ser assim considerado e não foram dados como provados factos que o deveriam ter sido.

2. Nos presentes autos foi decidido dispensar a elaboração de despacho nos termos e para os efeitos do art.º 596º, n.º 1 do CPC, tal como resulta da própria sentença.

Dos factos que deveriam ter sido dados como provados e não o foram

3. É entendimento da Recorrente que, fazendo uma criteriosa análise e conjugação da prova documental e testemunhal carreadas para os autos deveria ter-se considerado também como provado, na sentença proferida, os seguintes factos:

1) que a energia electrica se encontrava ligada na instalação através de uma auto-religação ilícita no cabo de rede aérea;

2) e que os equipamentos de contagem são deixados no local de consumo com o propósito de despistar comportamentos fraudulentos.

4. Sendo que, a especificidade do procedimento fraudulento que despoletou estes autos, ou seja, que ocorreu uma auto-religação ilícita no cabo da rede aérea que fornecia energia para a instalação sita na ..., deverá dar-se por provada pela conjugação dos depoimentos credíveis e irrepreensíveis de todas as testemunhas da Autora/Recorrente acima transcritos (em concreto dos técnicos que executaram a vistoria), com o documento junto sob o doc. n.º 3 (o auto de vistoria).

5. Não só, como foi genericamente dado como provado, pelo Tribunal a quo, que ocorreu uma fraude nos equipamentos da instalação.

6. Para além disto, também o Tribunal deveria ter considerado como provado que os equipamentos de contagem (contador, DCP, etc.) são deixados nos locais de consumo com o propósito de despistar comportamentos fraudulentos,

7. pois assim foi concretamente explicado pela testemunha BB aquando do seu depoimento.

Do facto que foi dado como provado e não o deveria ter sido

8. Acresce que, o Tribunal a quo deu como provado que a casa da ... não é habitada.

9. Ora, com o devido respeito, este facto não deveria ter sido dado como provado,

10. porquanto o Tribunal firmou a sua convicção, para assim decidir, nos depoimentos de CC e de DD e no facto de ser a posição processual da Ré/Recorrida.

11. Mas, na verdade, dos depoimentos das testemunhas indicadas resulta algo diferente, ou seja, que ainda que a referida habitação não seja habitada de forma permanente, desde data não concretamente apurada, a mesma é habitada/frequentada ainda que esporadicamente, como habitação de fim-de-semana/férias pela Ré/Recorrida, o que até é confessado por esta, como melhor concretizaremos mais adiante.

Dos factos dados como não provados que mereciam decisão diversa da acolhida na sentença aqui em sindicância

12. Por sua vez, entende a Recorrente, mais uma vez em resultado da conjugação de prova documental (documento n.º 1 junto com a petição inicial), com prova testemunhal (nomeadamente dos depoimentos de EE e de CC, cujos excertos acima transcritos),

13. bem como da confissão da Recorrida, em sede de contestação (artigo 8º),

14. que, para além do facto provado em 7 (dos factos provados) - de a Ré/Recorrida ter sido titular de um contrato de fornecimento de electricidade, para a instalação aqui em crise, entre 30.07.2007 e 08.09.2011

15. terá que ser dado como provado que celebrou, também para esta instalação, em 16.10.2014, um novo contrato de fornecimento de energia electrica, com o comercializador Goldenergy, que se encontra actualmente em vigor.

16. Já no que, em concreto, diz respeito ao facto de ter sido considerado como não provado que a Ré/Recorrida, só por si ou com a ajuda de outrem, ou de alguém a seu mando, efetuou a ligação direta da rede pública de distribuição à instalação particular identificada no facto provado supra sob o no 5, apropriando-se de energia elétrica que consumiu em seu proveito,

17. E sem nos perdermos aqui com o que se afigurará por interpretação e aplicação correcta da respectiva legislação,

18. Entende a Recorrente que mal andou o Tribunal a quo, e que o mesmo tem que ser dado como provado,

19. em face do que decorre do n.º 2 do art.º 1º do Decreto-Lei n.º 328/90 de 22 de Outubro: “2 - Qualquer procedimento fraudulento detectado no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia eléctrica presume-se, salvo prova em contrário, imputável ao respectivo consumidor. “ – negrito e sublinhado nosso – e porque a Ré/Recorrida não logrou afastar a presunção.

20. Mas também porque, resulta confessado pela Recorrida (artigos 3º e 12º da sua contestação), ficou apurado no processo-crime, que contra a mesma correu termos e foi corroborado pela testemunha CC, que aquela é a proprietária do imóvel correspondente à instalação aqui em crise,

21. E ainda porque, resulta provado, pelos depoimentos de BB e do técnico FF que a ligação abusiva fornecida energia exclusivamente, para o indicado imóvel (propriedade da Ré/Recorrida.

22. Veja-se, a título de exemplo, que o entendimento da Recorrente é o que consta do Acórdão proferido no proc. n.º 558/19.0T8ETR.P1, em 08.06.2021, pelo Tribunal da Relação do Porto, in www.dgsi.pt, bem como do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 27.03.2017, também in www.dgsi.pt.

23. Por fim, como acima já mencionado pela Recorrente, foi dado, a nosso ver erradamente, como provado que a casa da ... (onde foram apurados os factos) não é habitada, tendo sido ainda dado como não provado que a Ré se desloca ao imóvel onde foram detectados os factos ilícitos, ainda que esporadicamente, para ali passar fins-de-semana ou “efectuar limpezas”.

24. Ora, antes de mais, haverá que referir aqui novamente que, no artigo 12º da contestação a ali Ré, aqui Recorrida expressamente refere: “Apenas se desloca esporadicamente ali para passar fins de semana, ou efectuar limpezas, contando-se pelos dedos de uma mão as vezes que ali se desloca por ano.”

25. Também aqui a testemunha CC, apesar de, novamente, não conseguir situar-nos no tempo, tentando sempre desviar-nos do período que mais importa aos autos, mas acabando por se deixar “fugir” para a verdade, acaba por confirmar o que vem confessado pela Recorrida,

26. Por sua vez, as testemunhas BB e GG, afirmaram, sem lhes assistir quaisquer dúvidas, que esta instalação registou consumos no aparelho de contagem, desde que terminou o contrato em 2011 e antes do novo contrato celebrado em 2014.

27. Consumos que aliás estão retratados no documento junto aos autos pela Recorrente com a petição inicial sob o doc. n.º 4.

28. Ora, uma instalação desabitada não regista consumos!

29. Portanto, ainda que não se retire, da conjugação destes testemunhos, o que a Recorrente entende ter que se considerar provado, o que só por mero dever de patrocínio se admite,

30. Uma vez mais estamos aqui perante um facto que foi confessado pela Recorrida.

31. Confissão que foi aceite, nos termos do art.º 465º, n.º 2 do CPC pela Recorrente e que, portanto, não mais poderá ser retirada.

32. Tratando-se também de um facto de conhecimento pessoal da Recorrida, que aproveita à Recorrente, tem que ser dado como assente/provado que a “Ré desloca-se esporadicamente ao imóvel sito na ..., onde foram apurados os factos vertidos nos autos, para passar fins de semana e/ou efectuar limpezas”.

Portanto,

33. No que à matéria de facto acima impugnada diz respeito, deverão, então, ser dados como provados os seguintes factos:

i) a energia electrica encontrava-se ligada na instalação particular identificada no facto provado supra sob o n.º 5 através de uma auto-religação ilícita no cabo de rede aérea;

ii) os equipamentos de contagem são deixados no local de consumo com o propósito de despistar comportamentos fraudulentos;

iii) desde 16.10.2014 e até esta data, a instalação particular identificada no facto provado supra sob o n.º 5 é abastecida através de um contrato de fornecimento de energia electrica celebrado entre a Ré/Recorrida e a Goldenergy.

iv) a Ré, só por si ou com a ajuda de outrem, ou de alguém a seu mando, efetuou a ligação direta da rede pública de distribuição à instalação particular identificada no facto provado supra sob o n.º 5, apropriando-se de energia elétrica que consumiu em seu proveito;

v) a Ré desloca-se esporadicamente ao imóvel correspondente à instalação particular identificada no facto provado supra sob o n.º 5, para passar fins de semana e/ou efectuar limpezas”.

A acrescer a tudo isto,

34. A acção acabou por ser julgada improcedente, porque, por um lado, no entendimento do Tribunal a quo, não obstante se ter provado que ocorreu um procedimento fraudulento e que através do mesmo houve uma apropriação de energia electrica da qual a Autora/Recorrente ficou desapossada, não se aplica nos autos o DL 328/90 de 22/10.

35. Logo, não se pode presumir a culpa da Ré/Recorrida, de acordo com o disposto no art.º 1º n.º 2 do citado Diploma,

36. isto porque a Ré não é consumidora à luz do n.º 1 do mesmo art.º 1 e, refazendo a repartição do ónus da prova, de acordo com os termos gerais (art.º 487º, n.º 1 e art.º 342º, n.º 1, ambos do CC), a Autora/Recorrente não logrou provar a culpa da Ré/Recorrida.

37. Ora, como se mostra evidente, até pelo que acima já foi referido, a Recorrente não pode concordar com a interpretação do DL 328/90 de 22/10.

38. Nem a mesma pode ser juridicamente sustentada, senão vejamos:

39. Resulta taxativamente do Preâmbulo do citado DL 328/90 de 22 de Outubro que o legislador, quando aprovou este Diploma quis, sem margem para quaisquer dúvidas, incluir todos os procedimentos fraudulentos verificados em instalações de fornecimento de electricidade, quer na mesma exista ou não, naquela altura, um contrato de fornecimento activo.

40. Pois até refere expressamente quer no preâmbulo quer no clausulado (transcrito na própria sentença) que “São exemplo disso a captação de energia sem aparelhos de medição ou a montante destes e a viciação desses aparelhos ou dos dispositivos de segurança e de controlo.”

41. Que é, nada mais, nada menos, o procedimento fraudulento/facto ilícito verificado no local de em causa nos autos

42. Com efeito, tal como acima já se indicou, resulta da conjugação do documento junto sob o n.º 3 e os testemunhos de BB, GG e dos técnicos que levaram a cabo a vistoria/inspecção, no local de consumo aqui em crise foi apurada uma auto-religação na rede aérea, ou seja, a montante do aparelho de medição vulgo contador.

43. Mas, se dúvidas existissem quanto à intenção do legislador, as mesmas teriam que ficar completamente dissipadas quando, precisamente no início do n.º 2 deste mesmo artigo 1º, (onde se faz operra a presunção legal de culpa), o legislador volta a fazer referência inequívoca ao facto de de englobar aqui “Qualquer procedimento fraudulento detectado no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia electrica (…).

44. Não se falando aqui da necessidade da pré-existência de um contrato em vigor no referido recinto ou local!

45. Por conseguinte, ainda que no início do supra citado n.º 1 do art.º 1º se articule que “Constitui violação do contrato de fornecimento de energia electrica” e que, mais à frente, no n.º 2 do mesmo artigo 1º, se fale em “consumidor”,

46. ao contrário do que, infundadamente, é o entendimento do Tribunal a quo, mesmo não havendo, no período dos factos, um contrato de fornecimento de electricidade celebrado com um qualquer comercializador, tem que se aplicar ao caso vertente o DL 328/90 de 22 de Outubro, e as suas presunções legais.

47. Pois, haverá sempre que atender a ratio legis do Diploma.

48. E, retiramos de forma bem evidente do seu preâmbulo que, o pensamento do legislador foi, com esta legislação, abranger toda e qualquer situação (procedimento fraudulento) que permita o consumo abusivo de electricidade.

49. Ora, fazer uma interpretação literal e restritiva das passagens do Diploma, identificadas acima, retirando-as do contexto global - como é feito na sentença - como argumento para defender que o operador da rede de distribuição – a aqui Recorrente – só pode lançar mão das presunções legais ali previstas quando existe, na instalação, um contrato de fornecimento de electricidade activo, pois só assim estaríamos perante um consumidor, seria desvirtuar o propósito/a intenção do legislador.

50. As presunções e cominações legais ali previstas têm como intento tornar possível ao distribuidor, a aqui Recorrente, fazer a imputação da culpa, havendo um qualquer procedimento fraudulento, o que se tornaria manifestamente impossível nos termos regais da repartição do ónus da prova.

51. Pois, é manifestamente impossível ao operador da rede de distribuição “apanhar o prevaricador no acto”, ainda que tenha uma presença muito assídua nas instalações!

52. A colher-se o entendimento veiculado na sentença em sindicância estaríamos perante uma prova impossível para a Autora/Recorrente o que teria o efeito contrário ao pretendido com este Diploma, ou seja, a desresponsabilização de todos os procedimentos fraudulentos em que não há contrato activo na instalação (os chamados gatos) que, bem sabemos, são recorrentes.

53. Portanto, ao ter-se decidido como se decidiu violou-se o disposto tanto no n.º 1, como no n.º 2 do artigo primeiro do Diploma (DL 328/90 de 22 de Outubro).

54. Tendo-se violado ainda o disposto no art. 3º, números 1 e 2 do mesmo Diploma.

55. Visto que, de acordo com o n.º 2 do art.º 3, ainda que o consumidor (sempre entendido em sentido lato) não seja o autor do procedimento fraudulento ou por ele responsável, mesmo assim, o operador da rede de distribuição, a aqui Recorrente, tem direito a ser ressarcida do valor dos consumos irregularmente feitos.

56. Significa tudo isto que, para responsabilizar o consumidor (entendido em sentido lato – repete-se), o distribuidor, a aqui Recorrente, só tem de demonstrar que o equipamento de contagem que serve aquele “consumidor” foi objecto de uma intervenção fraudulenta, o que logrou fazer.

57. Portanto, só nos resta concluir que, ou por uma forma ou pela outra, a Ré/Recorrida é sempre a responsável pelo pagamento à Recorrente, do valor dos prejuízos por esta sofridos (também considerados como provados nos autos), ainda que, na segunda situação, o ressarcimento exclua os “encargos administrativos” com a detecção e reparação da anomalia.

58. Nesta confluência de circunstâncias, ou seja:

- tendo sido considerado provado que ocorreu este procedimento fraudulento neste local de consumo;

- imputando-se o mesmo à Ré/Recorrida por determinação legal, indubitavelmente aplicável in casu;

- tendo sido considerados provados os prejuízos sofridos pela Recorrente;

- e que os mesmos decorrem da identificada fraude.

59. Resulta evidente que na sentença proferida não se fez uma acertada valoração e interpretação da prova produzida e uma adequada aplicação da lei ao caso concreto, tendo sido violado o disposto nos artigos 1º e 3º do Decreto-Lei n.º 328/90 de 22/10 e os artigos 483º n.º 1 e 487º, n.º 1 do CC..

Se tudo isto não bastasse,

60. Por outro lado, entendeu – mal - o Tribunal a quo, que sempre seria de absolver a Ré/Recorrida, nos termos do art.º 570º, n.º 2 do CC.

61. Pois, de acordo com o que ali vem dito, mesmo que operasse a presunção de culpa da Ré/Recorrida, ainda assim aquela teria que ser absolvida do pedido, porquanto a culpa da eclosão do procedimento fraudulenta é exclusiva da Autora/Recorrente, que não retirou do local de consumo o equipamento/aparelho de contagem!

62. Este entendimento não podia estar mais errado, salvo o devido respeito.

Visto que,

63. Conforme já se alegou, aquando da impugnação da matéria de facto, resulta provado nos autos, que o procedimento fraudulento que foi apurado na instalação aqui em crise não aconteceu no aparelho de contagem, aconteceu sim no cabo da rede aérea, que foi religado ilicitamente, após ter sido desligado pelo distribuidor e que se encontra a montante do contador.

64. Como tal, haverá que referir que, ao contrário do que é mencionado na sentença, o certo é que, o facto de o contador se encontrar na instalação em nada contribuiu para a eclosão deste procedimento fraudulento, dada a sua especificidade.

65. Esta fraude poderia ser realizada, como foi, mesmo que o equipamento de contagem tivesse sido removido da instalação.

66. A prova produzida em audiência deita por terra este falacioso argumento do Tribunal a quo e até nos permite perceber a finalidade de serem deixados nas instalações.

67. Se bem recordamos, tal como inequívoca e espontaneamente referiu a testemunha BB (passagens do seu testemunho acima já transcritas aquando da impugnação da matéria de facto), estes equipamentos muitas das vezes ficam nas instalações precisamente para ajudar a despistar e confirmar que ocorreu uma apropriação ilícita de energia electrica e em que quantidades.

68. Ou seja, os equipamentos de contagem são deixados nos locais de consumo para ajudar na obtenção de provas de que existe ou existiu, uma fraude - os consumos!

69. Como precisamente aqui aconteceu.

70. Não podendo deixar de se mencionar que neste específico caso, como ficou também demonstrado nos autos, o contador encontra-se no interior da Quinta, ou seja, em local inacessível aos técnicos da Autora/Recorrente.

71. Assim, também devido a isto e ao contrário do que se defende na sentença, nenhum juízo de censura pode ser imputado à conduta do “lesado”, a aqui Recorrente, e mesmo que se entendesse que a sua conduta seria censurável, o que só por mera hipótese de raciocínio se admite, sempre a Ré/Recorrente teria que ser condenada a indemnizar a Autora/Recorrente na totalidade do pedido, conforme defende Antunes Varela in Obrigações, Vol. I, 10ª ed., pág. 668: “É de manter toda a indemnização se a culpa do agente for de tal modo grave em confronto com a actuação do lesado que não justifique a redução.”

72. Tem aqui que se concluir como defende Antunes Varela, visto que, bem sabendo a Ré/Recorrida que não tinha qualquer contrato de fornecimento de electricidade para o período aqui em causa, que lhe permitisse usufruiu da mesma licitamente, não podia tomá-la.

73. Porque, se formos a ver, como é referido na sentença, não retirando os equipamentos a conduta da Autora/Recorrente poderia enquadra-se, na mais pesada das hipóteses, num comportamento negligente, mas, a conduta da Ré/Recorrida integra-se na prática de um ilícito criminal, o furto de energia electrica.

74. Somos então forçados a concluir, pelo que acima é alegado, que a sentença violou o disposto no art.º 570º, n. 2 do CC..

75. Logo, também por isso deverá ser revogada e substituída por outra que julgue a acção procedente por provada e condene a Ré/Recorrida no pedido.

Nestes termos e nos mais que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, concedendo provimento ao presente recurso e, em consequência, revogando a sentença proferida pelo Tribunal a quo, farão, como sempre, inteira e sã

JUSTIÇA.».

A Recorrida contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.


***

O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime fixado.

Nada obstando, na legal tramitação recursiva, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito do recurso

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([2]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, importa saber (em matéria de facto e de direito):

1. - Se deve proceder a impugnação da decisão de facto, com alteração do quadro fáctico da sentença (cfr. conclusões 3.ª a 33.ª dos Apelantes);

2. - Se estão verificados os pressupostos do peticionado direito indemnizatório (ao abrigo do regime da responsabilidade civil extracontratual, conjugando os art.ºs 483.º, n.º 1, e segs. do CCiv., com o DLei n.º 328/90, de 22-10).


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III – Fundamentação

A) Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto

1. - Começa a Apelante por expressar inconformismo perante a decisão da matéria de facto, centrando-se nas aludidas conclusões 3.ª a 33.ª, contemplando diversas latitudes da decisão de facto, quanto a factos dados como provados e outros dados como não provados.

Apreciando.

A Recorrente pede (nas suas conclusões 3.ª a 7.ª) que se dê como provada a seguinte factualidade:

1) Que a energia elétrica se encontrava ligada na instalação através de uma auto-religação ilícita no cabo de rede aérea; e

2) Que os equipamentos de contagem são deixados no local de consumo com o propósito de despistar comportamentos fraudulentos.

Porém, tais factos não constam, que se veja, alegados (nem na petição inicial, nem no articulado de resposta em matéria de exceção); nem constam do elenco dos factos julgados não provados.

Isto é, para além do que já consta dos factos provados – e com os quais se conforma, neste âmbito, a Recorrente –, não houve pronúncia a respeito na 1.ª instância.

Ora, não cabe à Relação a reapreciação recursiva quanto a matéria de facto sobre que não se pronunciou o Tribunal recorrido. Com efeito, como entendido no acórdão desta Relação de 10/05/2022 ([3]), e consta do respetivo sumário:

«I- O dever de reapreciação, pela Relação, da prova produzida, sindicando a decisão de facto, só existe em relação aos factos objeto de pronúncia pelo tribunal recorrido.

II- Se o tribunal de 1.ª instância não se pronunciou sobre uma determinada questão de facto, cuja resposta seja indispensável para a decisão da causa, a consequência de tal omissão é a da anulação da decisão recorrida, seguida da repetição do julgamento sobre tal questão.

III- Esta é a solução que resulta da conjugação das als. c) do n.º 2 e c) do n.º 3 do art. 662.º do CPCiv., só assim não sendo se a matéria em questão estiver admitida por acordo, provada (plenamente) por documentos ou por confissão reduzida a escrito.».

Isto é, por regra, não pode a Relação, no âmbito da impugnação da decisão de facto, proceder, por si mesma, à ampliação da matéria de facto, apenas podendo – a mais da sindicância do juízo proferido quanto a factos dados como provados ou não provados (âmbito de efetiva pronúncia da decisão recorrida) – anular, a requerimento ou oficiosamente, a decisão impugnada para que o Tribunal a quo proceda, após baixa do processo para esse efeito, à dita ampliação do quadro fáctico relevante.

No caso, todavia, nem a parte recorrente pediu a anulação da sentença para baixa do processo e ampliação, nem esta Relação, por sua vez, vista a natureza dos autos, a factualidade apurada e os interesses em jogo, bem como os contornos da questão decidenda e os critérios decisórios a convocar, entende ser necessária tal anulação (art.º 662.º, n.º 2, citado).

Assim, não se tratando agora de matéria que esteja provada por documentos (com força probatória plena), tanto mais que a Recorrente convoca, para tanto, diversos depoimentos testemunhais, improcede esta parte da impugnação.

2. - Passando às conclusões 8.ª a 11.ª da Apelante:

Nesta parte, quanto ao ponto 38 dos factos dados como provados, haverá de reconhecer-se alguma razão à Recorrente.

É que desse facto consta como verdadeiro, simplesmente, que a casa da ... não é habitada. Ora, a própria R./Apelada, na sua contestação, admite/reconhece/aceita que a casa, de que é a proprietária, não é a sua primeira habitação (art.º 3.º), posto viver com o seu agregado familiar em ... (art.º 4.º), embora se desloque «esporadicamente ali para passar fins de semana, ou efectuar limpezas (…)» (art.º 12.º).

Assim sendo, tem de ser alterado em conformidade aquele ponto 38, que passará a ter a seguinte redação:

«38. A casa da ..., de que a R. é proprietária, não é habitada em permanência, não sendo a sua primeira habitação, embora aquela ali se desloque para passar fins de semana ou efetuar limpezas.».

No que não há contradição com o último dos pontos dados como não provados – a dever persistir ([4]), apesar de também objeto de impugnação recursiva –, já que ali se considerou não provado que a R. apenas se desloca a esse local esporadicamente, somente para passar fins de semana ou efetuar limpezas.

Isto é, deu-se como não provado que a utilização da habitação se reduza, apenas, a isso.

3. - Quanto ao aduzido na conclusão 15.ª, por referência ao facto dado como não provado «a Ré é abastecida na casa da ... pela Goldenergy», é certo que, sob o art.º 8.º da contestação, a R./Recorrida reconhece/confessa que «é ali abastecida pela Goldenergy», juntando documentação a respeito (faturas referentes a setembro, outubro e novembro de 2020), bem como faturas da EDP (estas referentes a dezembro de 2015, a 1 de março a 3 de novembro de 2016, novembro/dezembro de 2016 e dezembro/janeiro de 2017, como consta de fls. 28 e segs. do processo físico), tudo evidenciando relação contratual.

Já quanto ao invocado documento n.º 1 junto com a petição, é certo tratar-se de folha branca, sem qualquer assinatura ou menção de origem ou emitente, com texto de reduzidos carateres, objeto de impugnação pela contraparte, como consta exarado no final da contestação.

Assim sendo, aquele facto dado como não provado tem – com inerente supressão ([5]) – de ser transposto para o elenco dos factos provados, com o seguinte teor:

«41. A Ré é abastecida, mediante contrato, na casa da ... pela Goldenergy, tendo, anteriormente, sido abastecida pela EDP desde, pelo menos, dezembro de 2015.».

4. - Relativamente ao que consta das conclusões 16.ª a 22.ª, diga-se que já resulta dado como provado que se trata de imóvel pertença da R., como consta da nova redação do ponto 38.

Por outro lado, se, no caso, opera (como pretende a Recorrente), ou não (como defende a sentença), a presunção legal a que alude o art.º 1.º, n.º 2, do DLei n.º 328/90, de 22-10 – «Qualquer procedimento fraudulento detectado no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia eléctrica presume-se, salvo prova em contrário, imputável ao respectivo consumidor» –, é já matéria de direito (não de facto), a ter de ser tratada na fundamentação jurídica da decisão, como o fez a sentença recorrida, restando saber, então, se é correto o entendimento, vertido nesta, no sentido de as «presunções legais de culpa ali elencadas, te[re]m como pressuposto essencial de natureza objetiva a existência de um contrato de fornecimento de eletricidade válido e em vigor».

Invoca a Recorrente, neste ponto, a jurisprudência, entre outros, do Ac. TRP de 08/60/2021, Proc. 558/19.0T8ETR.P1 (Rel. Anabela Dias da Silva), disponível em www.dgsi, cujo caso se reporta, todavia, a situação em que estava em vigor um contrato de fornecimento de energia elétrica ao tempo dos factos, ao contrário do caso dos autos em que inexistia qualquer contrato em vigor aquando da invocada inspeção/vistoria (datada de 16/09/2014) e mais latamente, quanto ao tempo dos imputados consumos, entre 09/09/2011 e 15/10/2014 (cfr. art.ºs 6.º a 9.º da petição inicial).

Como, in casu, inexistia contrato de fornecimento de energia elétrica, é pertinente a questão levantada na sentença, no sentido de a R. não dever ser tida como consumidora (deste tipo de bens/serviços) e da não aplicabilidade, por conseguinte, da presunção legal daquele art.º 1.º, n.º 2, do DLei n.º 328/90, matéria a poder ser retomada em sede de fundamentação de direito ([6]).

Porém, não podem, salvo o respeito devido, deixar de ser ponderadas diversas críticas que a A. endereça à decisão da matéria de facto quanto a ter sido dado como não provado que «- a Ré, só por si ou com a ajuda de outrem, ou de alguém a seu mando, efetuou a ligação direta da rede pública de distribuição à instalação particular identificada no facto provado supra sob o nº 5, apropriando-se de energia elétrica que consumiu em seu proveito;».

É certo, como dito na sentença, não ter sido efetuada prova direta sobre a identidade de quem, concretamente, procedeu (por ato humano) à manipulação e adulteração do contador e do DCP, a que alude o ponto 19 dos factos provados ([7]), apenas se sabendo que os mesmos foram encontrados nesse estado.

Mas sabe-se que tal determinou, por ato voluntário, a apropriação de energia elétrica, que foi consumida na dita casa pertença da R. e por ela usada, por isso, em seu proveito.

Efetivamente, como já consta dos pontos 20 e 21 provados:

«20. Energia eléctrica e potência que, consequentemente, não foram pagas.

21. Beneficiando desse abastecimento ilegítimo e enriquecendo na medida dos consumos efectuados e não pagos bem como da potência tomada e não paga.».

Ora, considerando o conjunto dos dados probatórios e circunstanciais dos autos, é possível formar convicção segura/consistente, em termos de elevado grau de probabilidade de aderência à realidade fáctica, no sentido de que o facto em discussão foi praticado pela R. ou por outrem a seu mando.

Para tanto, cabe ponderar, em sede de fundamentação da decisão de facto, que:

- a R. é a proprietária do imóvel, que está na sua disponibilidade;

- é ela quem usa a casa de habitação, passando ali fins de semana e fazendo as respetivas limpezas;

- a manipulação/viciação/alteração levada a cabo foi efetuada no seu interesse, pois é ela (R.) quem consome (e vem consumindo) a energia elétrica que, assim, abastece a sua casa, sem nada pagar em troca, sendo ela quem ali tem acesso (agora, como antes, também ao tempo dos factos);

- ela não indicou outrem que tivesse praticado o facto, designadamente, pessoa estranha, que, todavia, nenhum interesse teria em proceder a uma tal conduta (proibida/ilícita) para proveito da R., através do abastecimento da casa desta;

- por isso, forçoso é concluir, à luz das regras da lógica, do normal acontecer em sociedade e da experiência comum, que o facto só pode, razoavelmente, ter sido praticado pela pessoa que nisso tinha interesse direto, por disso tirar vantagem económica, e que detinha o uso/disponibilidade do espaço, a aqui R./Recorrida, ou por outrem a seu mando.

Com efeito, é bem sabido que os acontecimentos humanos, no campo do viver em sociedade (na relação com os outros e com os bens com dimensão económica), ocorrem com sujeição a uma determinada racionalidade e intencionalidade.

Em condições de normalidade, ninguém vai proceder a uma tal conduta, arriscando as inerentes consequências legais, no interesse/benefício de outrem, a não ser que daí também derive algum benefício para si próprio, como no caso de a R. ter contratado alguém para praticar o facto, em troca de vantagem/pagamento.

Não faria sentido que fosse um estranho, sem interesse algum seu, a praticar o facto, para a casa da R. e em benefício desta.

E, se tal acontecesse, a R. não deixaria de o dizer, na sua defesa nos autos, nem deixaria de ter notado que esta sua casa, sem contrato de fornecimento de energia elétrica (e, por isso, sem pagamento respetivo), passou a dispor de energia fornecida indevidamente, o que a levaria a indagar/verificar quanto a tão estranha situação.

Quer dizer, a não ter sido a R., por si ou por outrem a seu mando, a proceder ao facto, então ela teria de ter notado, em tal lapso alargado de tempo, a anormalidade do que estava a acontecer, o que, razoavelmente, a levaria a indagar o ocorrido e a tomar as providências adequadas, em conformidade.

Tudo ponderado, a convicção a formar nesta Relação é a de o facto ser, assim, imputável à R., levado a cabo por si própria ou por outrem a seu mando, com as inerentes implicações em termos de alteração da decisão de facto da 1.ª instância.

Assim, de acordo com as regras da lógica, do normal acontecer e da experiência comum, transpõe-se para a factualidade provada – com supressão do âmbito dos factos dados como não provados – o seguinte factualismo:

«42. A R., por si ou por outrem a seu mando, procedeu à alteração a que aludem os pontos 9, 11, 12 e 19 dos factos provados, apropriando-se de energia elétrica que consumiu;

43. A R., enquanto proprietária da habitação, foi beneficiária do abastecimento de energia elétrica a que aludem os pontos 20 e 21 dos factos provados.».

Procede, pois, em parte a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, com as inerentes alterações em conformidade, no local próprio.

B) Matéria de facto

1. - Sindicada pela Relação a decisão de facto da 1.ª instância, é a seguinte a factualidade provada a considerar para decisão do recurso:

«1. A Autora exerce, em regime de concessão de serviço público, a actividade de distribuição de energia eléctrica em alta e média tensão, sendo ainda concessionária da rede de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão no concelho ... (conforme resulta do disposto nos artigos 31.º, 35.º, 70.º e 71.º do Decreto-Lei n.º 29/2006, de 15 de Fevereiro - com a redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 215-A/2012, de 8 de Outubro - nos artigos 38.º e 42.º do Decreto-Lei n.º 172/2006, de 23 de Agosto - com a redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 215-B/2012, de 8 de Outubro – no artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 182/95, de 27 de Julho e no artigo n.º 1º do Decreto-Lei n.º 344-B/82, de 1 de Setembro).

2. Sendo nessa qualidade de concessionária da rede de distribuição de energia eléctrica que a Autora procede à ligação à rede eléctrica pública das instalações de consumo que, para tanto, tenham celebrado os respectivos contratos de fornecimento de energia eléctrica com os comercializadores que operam no mercado livre ou no mercado regulado.

3. Os equipamentos de contagem aplicados nos diversos locais de consumo fazem parte integrante da rede de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão de serviço público, pelo que são considerados de utilidade pública.

4. Por essa razão, a Autora efectua habituais rondas de leitura e através de técnicos habilitados, procede a vistorias dos contadores e à fiscalização das instalações de consumo, tendo em vista despistar a existência de eventuais ligações abusivas ou manipuladas à rede eléctrica.

5. O local de consumo com o n.º 1382720, corresponde à instalação de consumo sita em ..., ..., ..., em ....

6. Na data da vistoria (ou seja, 16.09.2014), a Ré não era titular de qualquer contrato de fornecimento de energia eléctrica para este local de consumo.

7. A Ré foi titular de um contrato de fornecimento de energia elétrica no local de consumo referido em 5. destes factos provados que iniciou efeitos em 30.07.2007 e cessou em 08.09.2011.

8. No dia 16.09.2014, no cumprimento de uma ordem de serviço de revisão de equipamento, à qual foi atribuído o n.º ...04, a Autora enviou uma equipa técnica ao local de consumo supra referido em 5. dos factos provados.

9. Chegados ao local, os técnicos da Autora verificaram que o contador estava ligado sem contrato, ou seja, estava auto ligado.

10. Tais factos ficaram registados no Auto de Vistoria lavrado para o efeito na data e local da inspeção.

11. O contador foi violado.

12. A adulteração do mecanismo de contagem é um acto voluntário e implica a execução de uma determinada operação material, designadamente, a manipulação das ligações.

13. O DCP (dispositivo de controlo de potência) é um equipamento propriedade da Autora e que se destina a controlar e limitar a potência que é disponibilizada à instalação.

14. O DCP além de limitar a potência contratada, assegura também a protecção geral contra sobreintensidades da instalação de utilização e deve ter calibre em conformidade com a potência contratada.

15. A potência contratada é definida por escalões e as instalações possuem um dispositivo de controlo de potência que limita o consumo instantâneo da instalação ao valor máximo definido pela potência contratada.

16. A potência contratada define o valor instantâneo máximo de energia eléctrica que uma instalação de consumo pode receber.

17. O valor da potência contratada e o dimensionamento da instalação eléctrica estão intimamente ligados.

18. Ter o DCP fora de serviço permitia igualmente consumir energia sem qualquer controlo ao nível de potência, usufruindo-a de forma ilimitada.

19. Ocorreu uma apropriação ilícita e contra a vontade da Autora de energia eléctrica e de potência, por intermédio da manipulação e adulteração do contador e do DCP.

20. Energia eléctrica e potência que, consequentemente, não foram pagas.

21. Beneficiando desse abastecimento ilegítimo e enriquecendo na medida dos consumos efectuados e não pagos bem como da potência tomada e não paga.

22. Correu termos contra a Ré, um processo crime com o n.º 329/14.0GACDN, no seguimento de queixa apresentada pela aqui Autora, que foi arquivado, por despacho de 09.02.2017, nos termos do art.º 277, n.º 2 do CPP.

23. A Autora foi desapossada do valor da energia consumida e do valor da potência tomada e não pagas, contra a sua vontade e autorização.

24. A Autora procedeu ao cálculo do prejuízo emergente nele se incluindo:

a) a energia eléctrica;

b) os encargos de potência;

c) os encargos administrativos emergentes da detecção e tratamento das adulterações;

25. Neste caso concreto, a Autora considerou um período de utilização ilícita compreendido entre 13.09.2011 e 16.09.2014, ou seja, os 3 anos (36 meses) anteriores à deteção do procedimento fraudulento.

26. No cálculo efectuado, a Autora teve em conta os consumos reais registados pelo contador no referido período (compreendido entre 13.09.2011 e 16.09.2014).

27. O valor económico atribuído a cada kWh resulta do tarifário de venda a clientes finais aprovado pela ERSE para os anos de 2011 a 2014, fixando-se o preço em € 0,1587, em horas de vazio, € 0,1587 em horas de fora de vazio.

28. Os encargos de potência correspondem ao escalão de potência que a Ré beneficiava em virtude do não funcionamento do DCP (6,9 KVA).

29. O valor económico atribuído a cada KVA resulta do tarifário de venda a clientes finais aprovado pela ERSE para os anos de 2011 a 2014, fixando-se o preço em € 0,2962.

30. No que concerne aos encargos de potência, a utilização de potência é inerente à utilização de energia, pelo que sempre são devidos os respectivos encargos, cujo valor aquela deixou de receber.

31.Os encargos administrativos correspondem às démarches realizadas pelos técnicos para efeitos de inspecção e regularização da instalação, designadamente correcção das ligações e regulação do DCP, com respectiva selagem.

32. Este valor é devido e constituiu prejuízo do operador de rede, aqui Autora.

33. Atentas estas variáveis, a Autora apurou os seguintes valores:

a) 40.630 KWH de energia, no valor de € 6.447,98;

b) Encargos de potência, no valor de € 325,82;

c) Encargos administrativos com a detecção e tratamento da anomalia, no valor de €70,70;

33. Consta a fls. 13 dos autos, uma comunicação escrita tendo como remetente a EDP distribuição, ora Autora e como destinatário a ora Ré, cujo teor aqui se reproduz.

34. A energia elétrica e a potência são bens pagos e correspondem a um encargo mensal de qualquer empresa ou particular.

35. O contador e o DCP são equipamentos propriedade da aqui Autora e que só podem ser intervencionados por técnicos ao seu serviço.

36. A Ré é proprietária de uma casa na ..., a qual não é a sua primeira habitação.

37. A Ré vive com o seu agregado familiar em ... na Rua ..., fracção ..., Quinta ..., ... ....».

38. A casa da ..., de que a R. é proprietária, não é habitada em permanência, não sendo a sua primeira habitação, embora aquela ali se desloque para passar fins de semana ou efetuar limpezas [ALTERADO].

«39. A presente ação deu entrada em Juízo no dia 14-01-2021.

40. A Ré foi citada para os termos da presente ação no dia 09-04-2021.».

41. A Ré é abastecida, mediante contrato, na casa da ... pela Goldenergy, tendo, anteriormente, sido abastecida pela EDP desde, pelo menos, dezembro de 2015 [ADITADO].

42. A R., por si ou por outrem a seu mando, procedeu à alteração a que aludem os pontos 9, 11, 12 e 19 dos factos provados, apropriando-se de energia elétrica que consumiu [ADITADO].

43. A R., enquanto proprietária da habitação, foi beneficiária do abastecimento de energia elétrica a que aludem os pontos 20 e 21 dos factos provados [ADITADO].

2. - E são os seguintes os factos julgados agora não provados:

- o atual contrato de fornecimento de energia eléctrica, celebrado entre o comercializador a operar no mercado livre EDP Comercial - Comercialização Energia, S. A. e a Ré iniciou os seus efeitos no dia 16.10.2014 [REFORMULADO];

- a Ré já residia no imóvel servido pela instalação referida no facto provado supra sob o nº 5 pelo menos desde 30.09.2007;

- a Ré pagou em 2021, 2013 e nos demais anos à EDP;

- a Ré apenas se desloca esporadicamente ao imóvel para passar fins de semana, ou efetuar limpezas, contando-se pelos dedos de uma mão as vezes que ali se desloca por ano.


***

C) O Direito

1. - Dos pressupostos do direito a indemnização

Na sentença teve-se por certa a inaplicabilidade ao caso do disposto no DLei n.º 328/90, de 22-10, e respetivo regime, desde logo em matéria de presunção a que alude o respetivo art.º 1.º, n.º 2, já anteriormente mencionado, mas também quanto a critérios de ressarcimento dos danos (art.º 3.º, n.ºs 1 e 2).

Assim, pode ler-se na fundamentação de direito da decisão apelada:

«Da conjugação dos referidos preceitos legais, entendemos que a aplicabilidade de tal regime, e desde logo, do funcionamento das presunções legais de culpa ali elencadas, tem como pressuposto essencial de natureza objetiva a existência de um contrato de fornecimento de eletricidade válido e em vigor. Aliás, tal decorre de forma impressiva da própria letra da lei no nº 1 do artº 1 citado do D.L. 328/90, 22 de outubro quando se começa por dizer: «Constitui violação do contrato de fornecimento de energia eléctrica…». Ora, por uma questão de evidência lógica só pode ser violado um contrato se este for válido e estiver em vigor.

Como decorre dos factos provados e da posição processual assumida pela A. nos autos, é incontroverso que durante o período temporal, a que respeita o pedido de indemnização formulado nos autos, e em que houve apropriação ilícita da eletricidade a partir do local de consumo instalado no imóvel da Ré inexistiu contrato de fornecimento de energia elétrica válido e em vigor entre ambos, encontrando-se o contador inativo.

Ora, tal desiderato fáctico impede, a nosso ver, a aplicação da presunção legal constante do nº 2 do artº 1 do DL 328/90, de 22 de outubro, bem como, no limite, da cominação legal prevista no nº 2 do artº 3 do referido diploma legal, pois que, dada a ausência de contrato de fornecimento de eletricidade durante o período temporal reportado pela A. em que houve apropriação indevida de eletricidade, a Ré não pode ser considerada consumidora.

O que acarreta a reformulação da repartição do ónus da prova, passando a caber à A. o ónus de demonstrar a culpa da Ré, nos termos gerais do artº 487º, nº 1 do Código Civil, para além, da prova dos restantes pressupostos da obrigação de indemnizar previstos no artº 483º do Código Civil, que enquanto factos constitutivos do direito cabem também a A., em conformidade com o disposto no artº 342º, nº 1 do Código Civil.

Aqui chegados, retornando ao caso concreto, e compulsando o elenco dos factos provados e não provados, concluímos, sem peias, que a A. não logrou provar, como lhe competia a culpa da Ré na eclosão do facto ilícito, isto é, não logrou imputar subjetivamente e de forma culposa ter sido a Ré, ou alguém a seu mando, a autora (moral e/ou material) da apropriação indevida da eletricidade em causa nos autos. Apenas se sabe que o contador foi violado e que houve apropriação fraudulenta de energia elétrica no período temporal e com os custos dados como provados, desconhecendo-se, porém, a identidade do respetivo autor ou autores.

O que determina a absolvição da Ré do pedido, a final.».

A Apelante pugna, ao invés, pela aplicabilidade daquele regime legal do DLei n.º 328/90, quer haja contrato vigente, quer não. Entende que esse regime legal colhe aplicação, na intenção do legislador, em qualquer caso de apropriação ilícita de energia elétrica, ainda que inexista contrato de fornecimento, não sendo, pois, necessária, a existência de uma relação contratual atual entre fornecedor e consumidor.

Assim, quando o legislador se refere a «consumidor» naquele DLei, tal deveria ser interpretado em termos genéricos (interpretação ampla ou abrangente), como reportado a toda e qualquer pessoa que proceda a «práticas fraudulentas», em termos de «falsear a medição da energia eléctrica consumida ou da potência tomada, designadamente a captação de energia a montante do equipamento de medida, a viciação, por qualquer meio, do funcionamento normal dos aparelhos de medida ou de controlo da potência, bem como a alteração dos dispositivos de segurança, levada a cabo através da quebra dos selos ou por violação dos fechos ou fechaduras» (cfr. art.º 1.º desse diploma legal).

Sobre esta matéria, cabe dizer que o mesmo legislador tem-se debruçado reiteradamente sobre o consumidor e os seus direitos, designadamente através da Lei n.º 24/96, de 31-07 (Lei de Defesa do Consumidor), em cujo art.º 2.º (quanto a «Definição e âmbito») originariamente dispunha assim:

«1 - Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios» (destaque aditado).

Isto é, o consumidor, nesta perspetiva, é sempre alguém em relação contratual, recebendo bens, beneficiando de serviços ou adquirindo direitos, fornecidos/prestados/transmitidos pela contraparte nessa relação contratual (um profissional, no âmbito da sua atividade, na busca do lucro).

Pode, pois, dizer-se que fora de uma tal relação contratual não haverá um consumidor.

Porém, o escopo do aludido DLei n.º 329/90 não é propriamente o de defesa dos consumidores de energia elétrica, mas antes da contraparte, os distribuidores (em plano de combate à fraude), podendo ler-se no preâmbulo do diploma legal:

«A medida e controlo dos consumos de energia eléctrica e da potência tomada são alvo de práticas fraudulentas assaz generalizadas a nível internacional, visando a redução dos valores facturados, com a consequente fuga ao pagamento dos consumos reais.

São exemplo disso a captação de energia sem aparelhos de medição ou a montante destes e a viciação desses aparelhos ou dos dispositivos de segurança e de controlo.

O caso português não é excepção, apesar das medidas que vêm sendo tomadas, mediante a montagem de aparelhagem e de dispositivos cada vez mais sofisticados e do acompanhamento, cada vez mais rigoroso, das leituras e da facturação, tendo em vista revelar a existência de situações fraudulentas.

Acresce que a regulamentação existente sobre a matéria não só não abrange todas as situações de fraude, como se tem mostrado pouco eficaz na reparação e prevenção das mesmas.

Além disso, estando em causa um bem essencial - a energia eléctrica - e o serviço público da sua distribuição, as práticas referidas, além de constituírem uma violação do contrato de fornecimento de energia eléctrica, por fuga ao pagamento devido, configuram ainda um ilícito social.

Parece, pois, indispensável e urgente tomar medidas que sejam adequadas à erradicação de tais práticas e, ao mesmo tempo, permitir que os distribuidores se possam ressarcir do valor dos consumos verificados durante a existência da fraude e das despesas dela emergentes.» (destaques aditados).

Trata-se, pois, de um regime de proteção dos distribuidores (fornecedores de energia elétrica) perante a contraparte (consumidores) em caso de conduta fraudulenta desta última, traduzida em violação do contrato de fornecimento de energia eléctrica, por fuga ao pagamento devido.

E, se dúvidas ainda houvesse, o art.º 1.º parece vir dissipá-las:

«1- Constitui violação do contrato de fornecimento de energia eléctrica qualquer procedimento fraudulento susceptível de falsear a medição da energia eléctrica consumida ou da potência tomada, designadamente a captação de energia a montante do equipamento de medida, a viciação, por qualquer meio, do funcionamento normal dos aparelhos de medida ou de controlo da potência, bem como a alteração dos dispositivos de segurança, levada a cabo através da quebra dos selos ou por violação dos fechos ou fechaduras.

2- Qualquer procedimento fraudulento detectado no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia eléctrica presume-se, salvo prova em contrário, imputável ao respectivo consumidor.» (destaques aditados).

Estamos, pois, no campo da violação do contrato de fornecimento de energia elétrica, em plena relação contratual, entre distribuidor/fornecedor e, por outro lado, consumidor/adquirente/cliente.

Por isso, o campo de aplicação do diploma não abrange – assim também consideramos, e salvo sempre o devido respeito pela posição da Apelante – o caso dos autos, em que inexistia, ao tempo dos factos, qualquer relação contratual entre distribuidor e consumidor.

Concorda-se, pois, com o Julgador a quo quando afasta a aplicação ao caso do dito DLei n.º 329/90, para encontrar, assim, a solução do litígio à luz das normas da responsabilidade civil extracontratual (art.ºs 483.º e segs. do CCiv.), cujos pressupostos – facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade entre facto e dano – têm, então, de ser concretamente indagados e haverão de ser provados pela parte demandante/lesada (art.º 342.º, n.º 1, do CCiv.).

O facto ilícito (e culposo) supõe um autor/lesante, uma pessoa concreta a quem seja atribuído (como tal, o causador do dano), a quem possa ser imputado. Doutro modo, se o autor/agente é desconhecido, ainda que haja lesado, este não logra responsabilizar ninguém no campo da responsabilidade aquiliana.

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, o «elemento básico da responsabilidade é o facto do agente», «um facto da pessoa obrigada a indemnizar» ([8]).

A questão que se colocava, então, a esta luz, era a de saber se é possível considerar ser a R. lesante, mesmo a não se ter apurado quem procedeu, em concreto, ao facto ilícito, sabido também que o mesmo foi deliberado (doloso), o facto da aludida adulteração do contador e do DCP.

Porém, tal questão mostra-se agora ultrapassada, perante a procedência – após sindicância recursiva –, em parte, da impugnação da decisão da matéria de facto.

É que, como visto, se antes – na sentença – resultava não provada a imputada autoria dos factos por parte da R., quanto à adulteração de equipamentos – constava da factualidade não provada que «a Ré, só por si ou com a ajuda de outrem, ou de alguém a seu mando, efetuou a ligação direta da rede pública de distribuição à instalação particular identificada no facto provado supra sob o nº 5, apropriando-se de energia elétrica que consumiu em seu proveito» –, agora mostra-se provado, ao invés, sem deixar margem para dúvidas, que a R., por si ou por outrem a seu mando, procedeu à alteração a que aludem os pontos 9, 11, 12 e 19 dos factos provados, apropriando-se de energia elétrica que consumiu [ponto 42], sendo ela, enquanto proprietária da habitação, a beneficiária do abastecimento da energia elétrica indevidamente captada [ponto 43] e não paga [cfr. pontos 19 a 21 provados].

É, pois, insofismável que estamos perante um facto ilícito e que o mesmo é imputável à aqui R., quer tenha atuado por si própria, quer o tenha feito através de outrem (alguém a seu mando), isto é, em autoria imediata ou mediata, mas sempre com o domínio do facto ilícito, e em seu proveito/benefício.

Também é indubitável que se trata de facto culposo, decorrente de uma conduta deliberada (dolo), como tal gerador de prejuízos na esfera jurídica da A., pelo que também se demonstra o nexo de causalidade entre o facto da A. e os danos ocorridos, seja quanto ao não pagamento do preço correspondente à energia assim obtida e consumida, seja quanto ao mais invocado pela demandante.

Existe, assim, responsabilidade extracontratual, à luz do disposto no art.º 483.º, n.º 1, do CCiv., estando demonstrados todos os pressupostos da responsabilidade civil e decorrente obrigação de indemnizar, termos em que procedem, nesta parte, as razões da Apelante, não podendo subsistir o juízo absolutório veiculado na sentença em crise.

Ademais, também não pode colher, com todo o respeito devido, a posição da sentença no sentido de haver culpa (concorrente) da A./lesada.

A este propósito, pode ler-se na decisão recorrida:

«(…) os factos provados demonstram, outrossim, que até deve ser imputada à própria A. a culpa exclusiva pela eclosão do facto ilícito comprovado nos autos. Com efeito, inexistindo contrato de fornecimento, cabia à A., como proprietária do contador e demais equipamentos no local de consumo, o dever de vigiar, manter e obstar a que o mesmo fosse alvo de tentativas de utilização fraudulenta, o que a A. não poderia ignorar dada a frequência do tipo de condutas similares à que se discute nos autos, e como é do conhecimento geral. A A. tinha várias alternativas/meios ao seu dispor para impedir ou prevenir eventuais abusos, desde logo, e em tese, não só nesta situação como noutras, que era prover à desinstalação do equipamento, o que não fez – e que no caso concreto merece especial censura dado o longo hiato temporal em que houve apropriação indevida de eletricidade – podendo dizer-se que a A. concorreu para a produção e agravamento dos danos, para além do risco da perda, deterioração ou de utilização fraudulenta do contador que necessariamente correu por conta da A., no caso concreto. Não podendo, pois, assacar-se qualquer culpa ou responsabilidade à Ré, já que sobre esta não impe[n]dia qualquer dever contratual de zelar e/ou manter em bom funcionamento o equipamento instalado no local de consumo, propriedade da A.

Ora, tendo a A. lesada concorrido, por omissão, para a produção e agravamento dos danos, em termos que reputamos de culpa exclusiva, e uma vez que a responsabilidade da Ré se baseou na presunção de culpa contida no nº 2 do artº 1 do DL 328/90, de 22 de outubro, inaplicável ao caso concreto, o certo é que também com este fundamento, sempre ficaria excluído o eventual dever de indemnizar por parte da Ré, nos termos do artº 570º, nº 2 do Código Civil.».

Ora, como dito, o que vem apurado, após sindicância da decisão de facto pela Relação, é que se tratou de uma conduta deliberada da R./lesante, no intuito, conseguido, de se apropriar, de forma fraudulenta, de energia elétrica alheia, a cujo pagamento (do preço) desse modo se logrou eximir, causando, como não poderia ignorar, o correspondente prejuízo.

Não foi a permanência de equipamentos da A. no local que contribuiu para a dita conduta fraudulenta e danosa, tanto mais que tais equipamentos de contagem fazem parte – como provado – da rede de distribuição de energia elétrica em baixa tensão de serviço público, pelo que são considerados de utilidade pública.

Também não se mostra que a R. tenha solicitado a retirada desses equipamentos, os quais, por outro lado, haviam sido necessários na vigência do contrato de fornecimento anterior e voltariam a sê-lo quando fosse celebrado um novo contrato, sendo sabido que posteriormente a R. voltou a ser cliente da EDP [ponto 41].

Dispõe o art.º 570.º, referente à culpa do lesado, no seu n.º 1, do CCiv. que, havendo facto culposo do lesado concorrente para a produção ou agravamento do dano, o tribunal determinará, com base na gravidade das culpas concorrentes e, bem assim, nas consequências delas resultantes, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou excluída.

No caso, no horizonte de conduta deliberada e fraudulenta da R./lesante, não se vê que ocorra concorrência de culpa da A./lesada, designadamente por via de não ter retirado os ditos equipamentos do local, não desconhecendo os utentes (proprietários dos prédios onde se situam os locais de consumo) que não deve ocorrer manipulação de tais equipamentos nessas circunstâncias (vistos até os riscos que tal pode comportar para a saúde e a vida das pessoas).

Na verdade, nem a R. – reitera-se – mostra ter solicitado tal retirada de equipamentos, nem se perspetiva que os mesmos não fossem de considerar como necessários para o caso de possíveis futuros contratos de fornecimento de energia elétrica para o mesmo local/imóvel.

Afastada fica, pois, a culpa concorrente da lesada.

2. - Da medida da obrigação indemnizatória

Resta o apuramento do montante indemnizatório, tarefa não empreendida na sentença, por ali se ter considerado inexistir obrigação indemnizatória, mas que agora tem de ser levada a cabo, vista a diversa perspetiva desta Relação quanto à responsabilidade civil.

Na ação de reparação por facto ilícito visa-se o ressarcimento do dano e ressarcimento integral (cfr. art.ºs 483.º, n.º 1, 562.º e 566.º, n.ºs 1 a 3, todos do CCiv.).

Assim, a R. deve à A. a reparação pela totalidade dos danos sofridos.

Vem provado que:

 19. Ocorreu uma apropriação ilícita e contra a vontade da A. de energia eléctrica e de potência, por intermédio da manipulação e adulteração do contador e do DCP.

20. Energia elétrica e potência que, consequentemente, não foram pagas.

21. Beneficiando [a R.] desse abastecimento ilegítimo e enriquecendo na medida dos consumos efetuados e não pagos bem como da potência tomada e não paga.

23. A A. foi desapossada do valor da energia consumida e do valor da potência tomada e não pagas, contra a sua vontade e autorização.

24. A A. procedeu ao cálculo do prejuízo emergente nele se incluindo:

a) a energia elétrica;

b) os encargos de potência;

c) os encargos administrativos emergentes da deteção e tratamento das adulterações;

25. Assim, a A. considerou um período de utilização ilícita compreendido entre 13.09.2011 e 16.09.2014, ou seja, os 3 anos anteriores à deteção do procedimento fraudulento.

26. No cálculo efetuado, a A. teve em conta os consumos reais registados pelo contador no referido período (compreendido entre 13.09.2011 e 16.09.2014).

27. O valor económico atribuído a cada kWh resulta do tarifário de venda a clientes finais aprovado pela ERSE para os anos de 2011 a 2014, fixando-se o preço em € 0,1587, em horas de vazio, € 0,1587 em horas de fora de vazio.

28. Os encargos de potência correspondem ao escalão de potência que a R. beneficiava em virtude do não funcionamento do DCP (6,9 KVA).

29. O valor económico atribuído a cada KVA resulta do tarifário de venda a clientes finais aprovado pela ERSE para os anos de 2011 a 2014, fixando-se o preço em € 0,2962.

30. No que concerne aos encargos de potência, a utilização de potência é inerente à utilização de energia, pelo que são devidos os respetivos encargos, cujo valor aquela deixou de receber.

31.Os encargos administrativos correspondem às tarefas realizadas pelos técnicos para efeitos de inspeção e regularização da instalação, designadamente correção das ligações e regulação do DCP, com respetiva selagem.

32. Este valor também constituiu prejuízo do operador de rede, aqui A..

33. Atentas estas variáveis, a A. apurou os seguintes valores:

a) 40.630 KWH de energia, no valor de € 6.447,98;

b) Encargos de potência, no valor de € 325,82;

c) Encargos administrativos com a deteção e tratamento da anomalia, no valor de € 70,70;

34. A energia elétrica e a potência são bens pagos e correspondem a um encargo mensal de qualquer empresa ou particular.

35. O contador e o DCP são equipamentos propriedade da A. e que só podem ser intervencionados por técnicos ao seu serviço.

Esta factualidade ilustra as diversas vertentes do dano a indemnizar.

Os montantes a que chegou a A., na impossibilidade de contagem, por motivo imputável à R., do quantum de energia elétrica apropriada e consumida no período temporal a considerar, são de ter por equilibrados e adequados, perante as circunstâncias do caso, logo, equitativos, também à luz do disposto no art.º 566.º, n.º 3, do CCiv..

Ademais, também poderemos ter como boa a estimativa da A., permitindo a condenação em indemnização líquida em conformidade, visto o lugar paralelo do art.º 6.º do DLei n.º 328/90, de 22-10 (tomado aqui como contributo/subsídio, embora não diretamente aplicável), apelando para os seguintes critérios:

«Artigo 6.º

1 - Para a determinação do valor do consumo irregularmente feito ter-se-á em conta o tarifário aplicável, bem como todos os factos relevantes para a estimativa do consumo real durante o período em que o acto fraudulento se manteve, designadamente as características da instalação de utilização, o seu regime de funcionamento, as leituras antecedentes, se as houver, e as leituras posteriores, sempre que necessário.

2 - Para a determinação das despesas inerentes à verificação e eliminação da fraude, designadamente à reparação ou substituição dos aparelhos danificados, ter-se-ão em conta os respectivos custos directos associados à operação, acrescidos dos gastos gerais correspondentes.».

Assim sendo, por se afigurar justa e fundamentada, deverá a indemnização ascender ao quantum peticionado, tal como ilustrado no quadro dos factos provados.   

Em suma, procede a apelação, devendo ser revogada a sentença absolutória, a ser substituída por decisão condenatória – desta Relação ([9]) – no pedido formulado na ação, assim julgada procedente, por provada.


***
(…)
V – Decisão
Pelo exposto, na procedência da apelação, acorda-se em:
a) Revogar a sentença absolutória recorrida;
b) Que se substitui por acórdão condenatório, desta Relação, no pedido formulado na ação, assim julgada esta procedente, por provada.

Custas da ação e da apelação pela R./Apelada, por ser a parte vencida nas duas instâncias (cfr. art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Coimbra, 13/12/2022

Vítor Amaral (Relator)

Luís Cravo

Fernando Monteiro



([1]) Que se deixam transcritas, com destaques retirados.
([2]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([3]) Proc. 1932/19.8T8FIG.C1 (Rel. Emídio Francisco Santos), disponível em www.dgsi.pt.
([4]) Apresenta o seguinte teor: «- a Ré apenas se desloca esporadicamente ali para passar fins de semana, ou efectuar limpezas, contando-se pelos dedos de uma mão as vezes que ali se desloca por ano;».
([5]) Também havendo de ser suprimido, mutatis mutandis, o ponto fáctico, julgado não provado na sentença, com a seguinte redação: «- a instalação referida no facto provado supra sob o nº 5 é, atualmente, abastecida de energia eléctrica por força de um contrato de fornecimento de energia eléctrica, celebrado entre o comercializador a operar no mercado livre EDP Comercial – Comercialização Energia, S.A. e a Ré;».
([6]) Aliás, diga-se desde já que se concorda com o expendido na fundamentação do Ac. TRP de 13/05/2021, Proc. 2422/19.4T8AGD.P1 (Rel. Aristides Rodrigues de Almeida), em www.dgsi.pt, nos seguintes termos:
«Afigura-se-nos ainda que o n.º 2 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22.10, não contém uma presunção de facto, como é suposto na motivação, contém sim uma presunção de responsabilidade.
Ao estabelecer que «qualquer procedimento fraudulento detectado no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia eléctrica presume-se, salvo prova em contrário, imputável ao respectivo consumidor», a norma não presume que o consumidor foi o autor do procedimento fraudulento, a norma presume que o consumidor que recebe energia através do equipamento falseado responde perante o distribuidor pelas consequências desse procedimento, excepto se provar que o mesmo não se deve a culpa sua.
O que significa que para responsabilizar o consumidor, o distribuidor só tem de demonstrar que o equipamento de contagem que serve aquele consumidor foi objecto de uma intervenção fraudulenta, cabendo ao consumidor fazer a prova de que essa intervenção não resultou de culpa sua, designadamente por ser devido a caso de força maior ou motivo estranho à sua vontade, como o ter sido praticado por terceiro.».
([7]) É consabida a extrema dificuldade em se lograr efetuar tal prova direta, a não ser que o agente seja surpreendido em “flagrante” (se em local que o permita, em condições de acesso/visibilidade), posto ser notório que atos dessa natureza não são, comummente, executados à vista de quem quer que seja.
([8]) Cfr. Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, ps. 471 e seg.. No mesmo sentido, por todos, cfr. M. J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, ps. 558 e segs..
([9]) Regra da substituição, a que alude o art.º 665.º, n.º 2, do NCPCiv., sendo desnecessário o cumprimento do contraditório, a que se reporta o n.º 3 do mesmo art.º, por toda a discussão a respeito já ter sido empreendida, manifestamente, seja em sede de articulados, seja de instrução e discussão em 1.ª instância, seja de peças recursivas.