Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
881/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. SERRA BAPTISTA
Descritores: EXPECTATIVAS JURÍDICAS
PROCURAÇÃO IRREVOGÁVEL
Data do Acordão: 04/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: ART. 427.º N.º 1 C.P.C.
Sumário:

1. São também passíveis de arrolamento - embora não mencionados na lei - os direitos de conteúdo não patrimonial.
2. Pode ser requerida providência adequada a proteger o perigo de lesão de uma expectativa juridicamente tutelada.
3. A procuração irrevogável não implica a transmissão da posição jurídica do dominus, mantendo-se este como seu respectivo titular (mesmo que seja outorgada no interesse exclusivo do procurador).
4. A procuração irrevogável não é um negócio jurídico inextinguível, podendo antes extinguir-se pela verificação de um termo, quer o mesmo seja suspensivo (inicial), quer seja resolutivo (final). Assinalando este (o dies ad quem) o momento em que o negócio deixa de produzir efeitos.
Decisão Texto Integral:


Agravo nº 881/04

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


BB veio, como preliminar de acção de divórcio, requerer providência cautelar de arrolamento contra seu marido CC, pedindo, além do mais, o arrolamento de um prédio urbano que melhor identifica no seu requerimento inicial, alegado bem comum do casal.
Por despacho de fls 46 e 47 destes autos, foi decretado o requerido arrolamento.
Veio o requerido deduzir oposição, alegando que tal imóvel não faz parte dos bens comuns do casal.
Tendo o mesmo, diz ainda, sido dado em dação em pagamento à sociedade "DD", pelo valor de 14.250.000$00, tendo sido passada procuração irrevogável ao requerido.
A requerente apenas poderia ter pedido o arrolamento da quota que o casal possui na dita sociedade.
Respondeu a requerente, mantendo a sua pretensão originária.
Produzidas as provas, proferiu a senhora Juíza o seu despacho, no qual, julgando procedente a oposição, determinou a exclusão do prédio do ordenado arrolamento.
Inconformada, veio a requerente interpor o presente recurso de agravo, formulando, na sua alegação, as seguintes conclusões:
1ª - A providência cautelar de arrolamento, requerida nos termos do art. 427º, nº 1 do CPC, pressupõe que os bens cujo arrolamento se requer sejam património comum do casal;
2ª - O conceito de "bens " a que se alude na referida disposição legal, abrange não só os bens materiais ou físicos, como as expectativas jurídicas relativas ao direito de propriedade comum do casal, sobre bens dessa natureza, móveis ou imóveis;
3ª - No caso dos autos, atenta a natureza da providência requerida, e o teor da prova documental junta, há que concluir que o casal constituído pela agravante e pelo agravado, não é, por ora, titular de um direito de propriedade sobre o prédio urbano arrolado, mas sim de uma expectativa jurídica sobre tal direito de propriedade comum do casal, e, como tal, merecedora da protecção jurídica que a requerida providência confere à requerente;
4ª - Tanto mais que, considerando o teor do contrato de "Cessão da posição contratual" e da procuração, juntos aos autos, a concretização de tal expectativa jurídica está exclusivamente dependente da actuação do agravado, sem possibilidade de qualquer controle por parte da requerente, o que de todo justifica a manutenção do arrolamento que incide sobre o referido prédio;
5ª - Violou a senhora Juíza a quo o disposto no art. 427º, nº 1 do CPC, por errada interpretação do mesmo.
O agravado veio contra-alegar, pugnando pala manutenção do decidido.
A senhora Juíza a quo sustentou, tabularmente, o seu despacho.
Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

Vem dado como provado da 1ª instância:

Desde Janeiro de 1995 que a sociedade "DD", de que o requerido é o único sócio gerente, era arrendatária de um imóvel composto por casa térrea com a superfície coberta de 139,80 m2 e logradouro com 1.555,70 m2, sido em Ourém, freguesia de Nª Senhora da Piedade, a confrontar do norte com Rua Carvalho Araújo, sul e poente com os proprietários e nascente com Rua Barjona de Freitas, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 917, conforme escritura de arrendamento celebrada no 2º Cartório Notarial de Tomar, em 6 de Janeiro de 1995, exarada de fls 85 a 86º vº do Lº de Notas de Escrituras Diversas nº 2-G;
Tal prédio era pertença de EE e mulher FF;
GG, pretendendo adquirir a EE e mulher o aludido prédio, e pretendendo que o mesmo lhe fosse entregue livre e devoluto, negociou com a sua inquilina, na pessoa do seu sócio e gerente, o ora requerido, a indemnização pela desocupação;
Assim, em 28/9/2000, a dita sociedade DD e GG, celebraram um contrato que intitularam de "Cessão de posição contratual", nos termos do qual " a contrapartida da cessão da posição contratu-
al referida da primeira outorgante para o segundo outorgante, será a transferência por parte deste, e a favor da primeira outorgante ou a quem ela venha a indicar, da titularidade do prédio sito em Vale da Aveleira ou Ribeirinho, freguesia de Nª Senhora da Piedade, inscrito na matriz sob o artigo 28, descrito e com registo de aquisição a favor do segundo na Conservatória de Ourém sob o número cento e setenta e seis, daquela freguesia, o qual é propriedade do segundo outorgante (cláusula 4ª do referido contrato);
Mais se referindo nesse contrato, na cláusula 6ª que "A entrega em pagamento à Primeira por parte do Segundo, do prédio urbano referido na cláusula Quarta, através de uma escritura de dação em cumprimento, permuta ou compra e venda no valor de 14.250.000$00 ... deverá ocorrer no prazo máximo de um ano (365 dias) a contar da presente data, devendo, no mesmo prazo, a primeira retirar do interior do prédio todo e qualquer pertence, objecto ou produto da sua propriedade, deixando o arrendado completamente limpo e desocupado e em condições de ser ocupado pelo segundo outorgante, comprometendo-se igualmen-
te a, nesse mesmo prazo, fazer cessar no arrendado a actividade de comércio de peças e acessórios para viaturas automóveis, reparação e assistência eléctrica, ou qualquer outra que nesta data desenvolva no prédio arrendado, bem como a dali transferir a sua sede social";
Tendo ficado bastante doente e na impossibilidade de celebrar o contrato prometido, em 26/2/2002, GG, acompanhado de sua mulher HH, outorgaram procuração a favor do ora requerido, onde lhe conferiram os poderes para vender, incluindo a si próprio, pelo preço máximo de setenta e nove mil oitocentos e oito euros, o prédio urbano atrás aludido;
A viúva de GG declarou que o referido prédio não é pertença da herança de que é cabeça de casal aberta por óbito de seu marido.

Dando-se como NÃO PROVADO, no despacho recorrido, que o dito imóvel seja pertença do património comum do casal consti-
tuído pela requerente e requerido.

Mais se podendo dar como PROVADO tendo em conta os docu-
mentos juntos aos autos, a seguir melhor referenciados, e o disposto no art. 659º, nº 3 do CPC:

Na procuração atrás referenciada, consta ainda "Que o constituído procurador, ora agravado, podia "receber os preços outorgados e assinar a respectiva escritura, o contrato promessa de compra de venda, proceder a quaisquer actos de Registo Predial, provisórios e definitivos, averbamentos e cancelamentos, e ainda junto de quaisquer Repartições Públicas ou Privadas, nomeadamente na Repartição de Finanças, requerer, praticar e assinar tudo o mais que for preciso aos indicados fins".
Mais se encontrando nela exarado que "Em virtude desta procuração ser passada no interesse do mandatário que poderá efectuar o negócio consigo com ele próprio é IRREVOGÁVEL nos termos do número 3, do artigo 265 e do número 2, do artigo 1170 do Código Civil e não caduca por morte nos termos do artigo 1175 do mesmo Código.
ASSIM O OUTORGARAM.
Foi lida esta procuração e feita a explicação do seu conteúdo em voz alta aos outorgantes, na presença simultânea de ambos, ficando o mandatário dispensado da prestação de custas de execução do mandato, no entanto o presente mandato deverá ser exercido no período dois anos a contar da presente data" - fls 44 e 45.

CC e BB contraíram casamento entre si em 3 de Agosto de 1969, sem convenção antenupcial - certidão de fls 43.

No denominado contrato de cessão da posição contratual celebrado entre a "DD", como primeiro outorgante e GG, como segundo outorgante, ficou, ainda, consignado, na cláusula 3ª:
"Através do presente contrato a primeira outorgante cede a partir de hoje ao segundo a sua posição (de arrendatária) no aludido contrato de arrendamento, transferindo implícita e inequivocamente para o cessionário todos os direitos e obrigações inerentes ou derivados do aludido contrato de arrendamento".

Mais se tendo exarado na cláusula 5ª:
"A primeira e a segunda outorgantes aceitam a cessão da posição contratual da primeira a favor do segundo nos termos ora convencionados e exarados, nomeadamente, aceitando o segundo a transmissão para si da posição contratual da primeira mediante a entrega a esta e em pagamento da cessão, do prédio de sua propriedade referido na cláusula anterior e, aceitando a primeira a transmissão a favor do segundo da sua posição contratual mediante o recebimento em pagamento do prédio urbano propriedade do segundo e descrito na cláusula anterior".

Assim se dizendo na cláusula 9ª:
"Ambos os outorgantes aceitam submeter o presente contrato ao regime da execução específica dos contratos previsto nos arts 830º e ss do Código Civil".

A sociedade DD está matriculada na C. R. Comercial de Ourém sob o nº 01.252/950202, originariamente com três sócios, com uma quota cada um deles, tendo aí sido inscrita, em 24/01/96, a aquisição de uma quota
por banda do ora requerido, no estado de casado com a requeren-
te - a única que, então, ainda não lhe pertencia - , que, por isso ficou seu único sócio e gerente. Tendo a mesma sociedade, em tal inscrição, a sua sede na Rua carvalho Araújo, nº 57, em Ourém - fls 77.

Por termo lavrado em 4/6/2003 foi arrolado o imóvel melhor identificado nos autos, descrito na CRP de Ourém sob o nº 176, tendo-se aí declarado ter sido o mesmo entregue ao depositário nomeado, "Leilões, XXI, Lda" - fls 48.

Em 6/6/03 foi apresentado ao registo o referido arrolamento, tendo sido lavrado, em 13/6/2003, o seguinte despacho:
"Provisório por dúvidas.
Motivos: O prédio encontra-se inscrito a favor de pessoa diferente (G2); não consta a menção do trânsito em julgado do despacho que ordenou o arrolamento." - fls 56.

Por requerimento de fls 53 e 54 veio a ora agravante requerer a citação dos herdeiros de Mário Pinheiro nos termos e para os efeitos do disposto no art. 119º do CRP aplicável ex vi do nº 5 do art. 424º do CPC.

Efectuada a requerida citação (fls 57), veio a viúva de Mário Pinheiro, na qualidade de cabeça de casal, declarar que o prédio questionado não é pertença da herança - fls 58.

*

A senhora Juíza a quo, por não ter ficado factualmente provado que o imóvel cujo arrolamento é requerido integrasse o património comum do casal, indeferiu a providência cautelar.
Tendo, na realidade, na fundamentação de facto, dado como NÃO PROVADO que o dito imóvel seja pertença do património comum do casal constituído pela requerente e requerido.

Mas as coisas, salvo o devido respeito - independentemente da boa ou da errada decisão de direito - não podem ser vistas com esta simplicidade linear.
Pois, e desde logo, não poderia a senhora Juíza, na sua decisão da matéria de facto controvertida, dar como não provado (ou provado) que o imóvel em questão integra o património comum do casal.
Essa é uma conclusão (de direito ou pelo menos de facto) que retirará da factualidade apurada, mas que não deve consub-
stanciar, ela mesma, a resposta à própria matéria de facto controvertida.
Na verdade, o saber se o imóvel é ou não bem comum do casal é uma pura conclusão, é aquilo que se pretende demonstrar.
Como é bom de ver, sem necessidade de mais explanações.

Ora bem, pretende a requerente, ora agravante, e como preliminar da acção de divórcio que diz ir intentar, o arrola-
mento do questionado imóvel, arrogado bem comum do casal, que, segundo mais alega, foi, em Fevereiro de 2002, dado a este em pagamento de uma indemnização acordada com os seus anteriores proprietários, contrapartida da desocupação e entrega de outro imóvel do qual uma "oficina" do requerido era arrendatária.
E, embora o requerido esteja já na posse do mesmo imóvel, a dação em pagamento ainda não foi formalizada por escritura pública, encontrando-se o requerido munido de uma procuração irrevogável, válida mesmo após a morte dos mandantes, a qual lhe confere, apenas a ele requerido, poderes para o vender, inclusive a si próprio.
O prédio, pode, pois, ser vendido sem a intervenção da requerente, assim dissipando o requerido bens comuns do casal, em seu prejuízo.

Mas, a propósito, provado ficou que as coisas também não serão bem assim.
Com efeito, o requerido é o único sócio e gerente de uma sociedade denominada "DD", a qual era (ou é) arrendatária de um imóvel melhor discriminado na matéria de facto atrás explanada, então pertença de EE e mulher.
Mário Pinheiro, pretendendo adquirir tal imóvel, mas livre e desocupado, negociou com a aludida inquilina sociedade, em 28/9/2000, através do seu sócio gerente, o ora requerido e agravado, a cessão do contrato de arrendamento que havia sido celebrado, transferindo para a mesma, em contrapartida, a favor dela ou a quem a mesma venha a indicar, a titularidade do ora questionado imóvel, através de uma escritura de dação em cumprimento, permuta ou compra e venda no valor de 14.250.000$00, a realizar no prazo máximo de um ano desde a data de tal acordo.
E, encontrando-se doente e sem possibilidade de cumprir o contrato prometido, em 26/2/2002, o aludido Mário Pinheiro e sua mulher, outorgaram uma procuração a favor do requerido (que nela aparece, intencional ou não intencionalmente, como pessoa meramente singular e não como representante da dita sociedade, bem podendo até suceder, em cumprimento da anterior promessa, que fosse a pessoa que a mesma viesse a indicar como beneficiário da pretendida transferência da propriedade do imóvel), na qual lhe conferem poderes para vender, incluindo a si próprio, pelo preço máximo de setenta e nove mil oitocentos e oito euros, o prédio urbano atrás aludido.
Mais podendo, por via da referida procuração, "receber os os preços outorgados e assinar a respectiva escritura, o contrato promessa de compra de venda, proceder a quaisquer actos de Registo Predial, provisórios e definitivos, averbamen-
tos e cancelamentos, e ainda junto de quaisquer Repartições Públicas ou Privadas, nomeadamente na Repartição de Finanças, requerer, praticar e assinar tudo o mais que for preciso aos indicados fins".
E que, em virtude dessa procuração ser passada no interesse do mandatário que poderá efectuar o negócio com ele próprio é a mesma IRREVOGÁVEL nos termos do número 3 do artigo 265º e do número 2 do artigo 1170º, ambos do Código Civil e não caduca por morte nos termos do artigo 1175º do mesmo Código.
Devendo tal mandato ser exercido no período de dois anos a contar da data da sua outorga.

Estando-se aqui perante um negócio complexo e atípico.
De facto, a promessa da cessão do arrendamento - o contra-
to celebrado não passa de um contrato-promessa sujeito ao regime da execução específica - do imóvel onde se encontrava instalada a "DD, de que o requerido é único sócio e gerente e da transmissão da propriedade do outro imóvel, pertença do aludido Mário Ferreira e mulher, para ela ou para quem a mesma indicar, como contra-
partida de tal cessão, é outorgado entre a sociedade e o mesmo GG.
Devendo, em princípio, até para não defraudar direitos de eventuais credores e para não contrariar o disposto no art. 34º do CSC, nomeadamente, tal património vir a integrar o da sociedade aludida, já que seria a contrapartida da cessão do arrendamento de que a mesma era titular, com inegável valor económico.
Contudo, e largamente excedido o prazo convencionado para a celebração do contrato prometido, o referido Mário Pinheiro e mulher outorgam procuração irrevogável a favor do requerido, permitindo-lhe vender, mesmo a si próprio, o imóvel em questão e assinar o que for necessário para os fins que tiveram em vista - a transferência da respectiva propriedade.

E, sendo certo que a sociedade comercial começa por ser, em regra, uma entidade composta por dois ou mais sujeitos (normalmente pessoas, singulares ou colectivas) - art. 7º, nº 2 do CSC - tal como in casu e com a ora citada sucedeu (cfr. certidão de matrícula de fls 76 e 77) - vem hoje o direito, no que aqui importa, admitindo a figura de sociedades supervenien-
temente unipessoais (sociedades reduzidas a um sócio embora hajam sido constituídas por dois ou mais), embora a título transitório (art. 270º-A do mesmo CSC) - Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, vol. II, p. 6, 64 e 65.
Sucedendo que, de qualquer forma, até por desconhecimento de eventuais alterações que a sociedade em causa tenha entre-
tanto sofrido, é a mesma unicamente representada pelo seu sócio e gerente, ora requerido e agravado.
Tendo personalidade jurídica desde a data do registo definitivo do acto constitutivo e capacidade jurídica, tal como consta dos arts 5º e 6º do aludido CSC.
Sendo a mesma, indubitavelmente, pessoa jurídica distinta da do requerido.
Situando-se os actos gratuitos, em regra, como bem se compreende face ao seu escopo lucrativo, fora da capacidade jurídica das sociedades - citado art. 6º, nº 2, a contrario.

Ora - e prossigamos na análise do pedido em questão - no processo para decretamento da providência solicitada, tem a requerente que fazer prova sumária do direito relativo ao bem em causa, que fundamenta o receio da sua dissipação, bem como, se tal direito depender de acção proposta ou a propor, conven-
cer o Tribunal da provável procedência do pedido correspondente - art. 423º do CPC, sendo deste diploma legal todas as disposi-
ções citadas sem referência expressa.
Podendo qualquer dos cônjuges requerer o arrolamento de bens comuns, como preliminar de acção de divórcio, sem necessidade de alegar e provar o justo receio de extravio, ocultação ou dissipação daqueles - art. 427º, nºs 1 e 3.
Pois o pedido de divórcio, só por si, justifica o interesse do respectivo requerente, justifica o receio de extravio ou de dissipação dos bens.
Tendo, no entanto, a requerente de fazer prova sumária do seu arrogado direito, identificando o seu alegado direito ameaçado.
Destinando-se o arrolamento a evitar o extravio ou a dissipação de bens. Visando a mesma providência a conservação dos mesmos que, para esse efeito, são descritos, avaliados e depositados (arts 412º, nº 1 e 424º, nº 1).

E falamos aqui desta providência cautelar como preliminar da acção de divórcio - com o atrás aludido regime específico quanto á alegação e prova do justo receio do extravio ou dissipação de bens - já que é dela que curamos, por ter sido aquela que a requerente pretende usar.
Pois, podendo o arrolamento ser também dependência de outra acção à qual interesse a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arrola-
das - art. 421º, nº 2 - a verdade é que, em tal caso, já a parte que dele se pretende aproveitar tem de fazer a prova daquele essencial requisito (o do justo receio).
Podendo, contudo, o interesse do requerente fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a pro-
ferir em acção constitutiva já proposta ou a propor - citado
art. 381º, nº 2 ex vi do disposto no art. 392º, nº 1.

Ora, e por regra, as providências cautelares relacionam-se com o risco de lesão de direitos subjectivos - arts 381º, nº 1 e 423º, nº 1.
Podendo o arrolamento incidir tanto sobre bens imóveis como sobre bens móveis - art. 421º, nº 1.
E, ainda que não mencionados expressamente na lei, serão também passíveis de arrolamento, alem do mais, direitos de conteúdo patrimonial. É o que resulta, nomeadamente, do art. 424º, nº 5, ao determinar a aplicação remissiva das normas sobre a penhora, sem exclusão das reportadas aos direitos - A. Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV vol., p. 260.
Afastando, porém, a referência da lei a direitos a defesa de simples expectativas jurídicas não tuteladas.
O que não significa que não possa ser intentado procedimento cautelar que se revele adequado a proteger o perigo de lesão de uma expectativa jurídica que seja tutelada - A. Geraldes, ob. cit., vol. III, p. 73 e 74.

Expostos estes princípios, nestas breves pinceladas, os quais nos pareceram interessantes para a solução que o caso merece, regressemos à pretensão da requerente, ora agravante.
Pretende a mesma - não o olvidemos - como preliminar da acção de divórcio que diz ir instaurar, não tendo, assim, como também refere que fazer a prova do "justo receio" fundamento da providência, que seja decretado o arrolamento do prédio urbano que melhor descreve, o qual terá sido "dado ao casal em pagamento de uma indemnização acordada com o requerido e os seus anteriores proprietários, GG e mulher, HH, em Fevereiro de 2002".
Sucedendo que o "negócio - que é de dação em pagamento - ainda não foi formalizado por escritura pública" (sublinhado dela).
Não obstante, diz ainda, o requerido já estar na posse efectiva do imóvel, considerando-o sua propriedade, para aí tendo transferido a sua oficina de reparações auto.

Uma coisa sendo certa: a transferência da propriedade do imóvel, em cumprimento do contrato prometido, como contraparti-
da da aludida cessão da posição contratual que a sociedade atrás falada detinha em relação ao imóvel que antes ocupava por contrato de arrendamento, ainda não ocorreu formalmente, não tendo sido celebrada qualquer escritura pública que a lei exige para a validade do negócio, seja ele, como parece, um contrato de troca (arts 939º, 875º e 364º, nº 1 do CC), de compra e venda (?) ou uma dação em cumprimento ou em pagamento (não se entendendo como desta causa de obrigações se poderá vir a tratar já que não se vislumbra, por via de tal transferência de propriedade, uma causa de extinção de obrigação pela qual se preste coisa diversa da que for devida - art. 837º do CC).
Não havendo notícia da respectiva propriedade do imóvel cujo arrolamento se pretende ter sido transferida, por qualquer outra causa, quer para a aludida sociedade, quer para o requerido.
Pertencendo o mesmo, ainda, não obstante a declaração da cabeça de casal, ao património hereditário do falecido Mário Pinheiro.
Já que deste ainda não saiu, ao que se saiba, por qualquer título válido.
E, assim, dúvidas não restarão que o dito imóvel não faz parte do património comum do casal constituído por requerente e requerido.
Como tal não podendo ser objecto do pretendido arrolamen-
to.

Não podendo justificar a requerida providência cautelar - como agora é defendido em sede de recurso - qualquer eventual expectativa jurídica que a requerente, por ser casada com o requerido no regime de comunhão de adquiridos, tenha sobre o dito imóvel. Desde logo, por falta da necessária tutela jurídica.
De facto, encarada a sua posição sobre o ponto de vista do eventual exercício do direito de execução específica por banda da dita sociedade - que aqui não é parte e caso ainda não tenha sido dissolvida face á sua falada superveniência unipessoal - ou do cumprimento voluntário do acordado por parte da herança do falecido Mário Pinheiro terá a mesma, em princípio, na partilha que venha a ter lugar a seguir ao divórcio (caso venha a ser decretado), direito a receber metade do valor daquela, sendo o arrolamento - que não foi pedido - o procedimento adequado a evitar que o seu marido se aproprie dos valores que lhe cabem na dita sociedade comercial, e bem assim para precaver a alienação de bens e quota social - Ac. do STJ de 23/5/75, Bol. 247, p. 133.
E se o dito imóvel entrar no património da sociedade - como tudo leva a crer que suceda, não deixando, por certo, quer os eventuais credores, quer até a própria requerente, permitir que assim não seja através de expedientes que legalmente julguem adequados - naturalmente que o seu valor aumentará.
Bem podendo ainda a ora requerente, se assim não suceder, intentar a providência que julgue também adequada, não apenas como preliminar do divórcio, mas antes como preliminar da acção que vise intentar para conseguir a tutela do seu eventual direito ou de expectativa juridicamente tutelada.
A qual já não gozará, porém, e desde logo, da dispensa de prova do fundamento a que alude o art. 421º.

E vista a posição da requerente na perspectiva da eventual actuação do requerido como pessoa singular - aquela que aqui poderá interessar face á forma como a providência é proposta - sempre se dirá o seguinte:
A procuração irrevogável outorgada a favor daquele - não como sócio e gerente da sociedade - crendo-se até que no seu interesse exclusivo, por o dominus ter visto, ao que tudo leva a crer, os seus fins já plenamente realizados, teve a ela subjacente um contrato atípico - cremos que de troca.
Não implicando a mesma, ainda que nessa circunstância, a transmissão da posição jurídica do dominus, mantendo-se este, como titular da posição jurídica, agindo o procurador em seu nome - Pedro Pais de Vasconcelos, Procuração Irrevogável, p. 109.
Solucionando Pessoa Jorge esta questão em idêntico sentido. Considerando que a procuração in rem proprium ou suam "dá ao agente o poder de praticar um acto jurídico alheio, mas autorizando-o a ficar com o resultado económico desse acto". Nunca causando a mesma, diz ainda, a transmissão propriamente dita, limitando-se a conceder o poder de representação - "O Mandato sem Representação", p. 181.
E, se a relação subjacente for anterior à outorga da procuração, constituirá esta um acto de execução ou de cumprimento daquela, o qual, sem acarretar o cumprimento definitivo e completo, se traduzirá na entrega ao procurador dos poderes representativos necessários para que ele possa, por si só, e sem necessidade do concurso do representado, assegurar e executar os actos de cumprimento - Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, p. 307.
Donde concluir também se pode que, mesmo que outorgada no interesse exclusivo do procurador, o ora agravado, a dita procuração não lhe transmitiu o direito de propriedade que o dominus detinha sobre o questionado imóvel.

Sendo ainda certo que a procuração irrevogável não é um negócio inextinguível. Mantendo-se em relação a ela todas as causas de extinção previstas no art. 265º do CC, com excepção do regime específico da revogação a que o seu nº 3 expressamen-
te alude.
Podendo a mesma procuração extinguir-se, alem do mais, pela verificação de um termo, quer seja suspensivo (inicial), quer seja resolutivo (final) a que esteja sujeita - art. 278º do CC. Assinalando o termo final (dies ad quem) o momento em que o negócio deixa de produzir efeitos. Cessando, pois, os efeitos do negócio quando se verificar o termo, que é um acontecimento certo, que pode ainda ser determinado, sabendo-se com certeza que chegará e quando chegará (dies certus an et certus quando) - Heinrich Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, p. 495.
Sendo que o termo essencial - assim se dizendo, alem do mais, quando a prestação deva ser efectuada até à data estipu-
lada pelas partes - determina que a prestação, não sendo cumprida no momento devido, já não se pode cumprir - Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, p. 576.

Ora, a procuração em apreço, apesar de não caducar por morte, estipula ainda que "o presente mandato deve ser exercido no período de dois anos a contar da presente data" (26 de Fevereiro de 2002).
Pelo que se extinguiu a mesma, deixando de produzir efeitos.
Já não podendo, de qualquer modo, com base nela, advir qualquer eventual direito á ora agravante. Nem qualquer expectativa juridicamente tutelada.

Com tudo isto, não estamos a esquecer que o Tribunal não está adstrito á providência concretamente requerida, ao princípio do pedido, gozando antes de amplos poderes para decretar aquela(s) que tiver por adequada(s) - art. 392º, nº 3, aplicável, por via do seu nº 1, não apenas ao procedimento cau-
telar comum mas também às demais formas procedimentais.
Não estando, pois, o tribunal, na altura em que profere a decisão, vinculado á concessão da medida cautelar individuali-
zada pelo requerente, tendo antes liberdade para integrar na decisão a medida que entender mais adequada a tutelar a situação e determinar aquilo que melhor favoreça a conservação do direito do requerente.
Estando, porém, tal liberdade de adequação limitada à relação jurídica invocada e representada pelo conjunto de factos alegados pelas partes nos articulados, pelos factos essenciais que resultem da instrução e discussão e cujo aproveitamento seja requerido, por serem complementares ou concretizadores de outros alegados e ainda pelos factos instrumentais também derivados da instrução e discussão da causa e oficiosamente recolhidos pelo Juiz para fundar a decisão - arts 664º e 264º, nºs 2 e 3, bem como A. Geraldes, ob. cit., vol. III, p. 277 e Teixeira de Sousa, ob. cit., p. 248.
Ora, tendo em conta a matéria alegada e provada, não se vê que outra providência possa ser decretada e que seja aqui ade-
quada à garantia da realização do direito ou da mera expectati-
va jurídica a que a requerente se arroga.

*

Face a todo o exposto, acorda-se nesta Relação em se negar provimento ao agravo, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela agravante.