Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
541/09.4TBSEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: COMPRA E VENDA
ANULABILIDADE
ERRO VÍCIO
Data do Acordão: 06/21/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.247, 251 CC
Sumário: 1. Ao contrário do que ocorre com o “erro na declaração”, no “erro-motivo” ou “erro-vício”, previsto no artigo 251.º do Código Civil, verifica-se a conformidade entre a vontade real e a vontade declarada, tendo-se no entanto a vontade real formado em consequência do erro sofrido pelo declarante, erro esse essencial, na medida em que, se não tivesse ocorrido o declarante não teria pretendido realizar o negócio, pelo menos nos termos em que o efectuou.

2. Tendo-se provado que o autor declarou comprar o prédio por se tratar de um terreno para construção urbana, fazendo-o exclusivamente com a finalidade de nele edificar uma habitação, que antes da data da escritura os réus tiveram conhecimento desse facto, que posteriormente o autor constatou a inviabilidade de construção por condicionalismos urbanísticos, e que os réus nunca comunicaram ao autor a impossibilidade de edificar uma habitação no prédio, o negócio revela-se anulável nos termos do artigo 247.º, ex vi artigo 251.º, ambos do Código Civil.

3. A lei não exige que os declaratários (neste caso, os réus), tivessem conhecimento do facto de não ser viável a construção no lote que venderam ao autor, bastando-se com o seu conhecimento da essencialidade para o autor (declarante), da possibilidade de construção no local, e de o mesmo apenas realizar o negócio, por estar convicto dessa possibilidade.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
A (…) veio propor a presente acção declarativa sob a forma de processo sumário, contra AM (…) e MM (…), peticionando a declaração de anulação do negócio de compra e venda titulado pela escritura pública lavrada em 23 de Dezembro de 2008, no Cartório Notarial de Seia, exarada de folhas 31 e 32, do Livro 31-P, relativa ao prédio urbano inscrito na matriz urbana da freguesia de S. Romão, sob o artigo 2.446, bem como a condenação dos réus a restituir-lhe o montante do preço recebido no valor de € 16.500,00 (dezasseis mil e quinhentos euros), acrescido dos juros à taxa legal a contar da citação e a pagar-lhe a quantia de € 3.951,15 (três mil novecentos e cinquenta e um euros e quinze cêntimos), sendo € 1.451,15 (mil quatrocentos e cinquenta e um euros e quinze cêntimos) de despesas com a escritura e I.M.T. e € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), a título de danos morais.
Como fundamento da sua pretensão, alegou o autor em síntese: por escritura de compra e venda, outorgada em 23 de Dezembro de 2008, comprou aos réus o prédio urbano composto de terreno para construção urbana, sito em Costeiras, na freguesia de S. Romão, inscrito na matriz urbana daquela freguesia sob o artigo 2466, pelo preço de € 16.500,00 (dezasseis mil e quinhentos euros), que pagou; tal prédio tem uma área de 500 m², estando descrito como urbano, mais concretamente como lote de terreno destinado a construção urbana com a área de 500m²; adquiriu-o com a finalidade de nele edificar uma habitação; se não fosse a natureza de urbano e a possibilidade de ali poder construir um edifício jamais adquiria aquele prédio; apresentou de imediato junto da Câmara Municipal de Seia um pedido de viabilidade de construção, tendo recebido, como resposta, que o local em referência nos termos do PDM em vigor está classificado como espaço florestal, onde a construção só é permitida em unidade com área mínima de 30.000m²; os réus nunca lhe transmitiram que o prédio se encontrava incluído em zona que o PDM classifica como reserva florestal e que, consequentemente, atendendo à sua área, não era possível edificar; só adquiriu o terreno porquanto se tratava de lote para construção urbana e com a finalidade dali poder dar início à construção de uma moradia, pretensão essa que transmitiu aos réus e estes conheciam; foi determinante para celebrar o negócio de compra e venda, a natureza urbana do prédio e a consequente possibilidade dali edificar a sua habitação, facto que os réus não ignoravam e do qual tinham conhecimento; a determinação do preço teve unicamente como referência aquela mesma factualidade e características; sem possibilidade de edificação, o terreno não tem valor económico sequer aproximado daquele que foi efectivamente liquidado; com aquelas características, o terreno não lhe interessa por preço nenhum; contratou e negociou com base em erro quanto ao objecto do negócio, erro esse determinante da vontade e que o levou a adquirir o prédio; dirigiu-se aos réus e confrontou-os com a situação, remetendo-se os mesmos ao silêncio; por força de tal negócio, que ora pretende anular, efectuou despesas de cujo ressarcimento os réus são responsáveis, pois liquidou o correspondente I.M.T., no montante de € 1.072,50 (mil e setenta e dois euros e cinquenta cêntimos) e pagou o preço da escritura de compra e venda no valor de € 378,65 (trezentos e setenta e oito euros e sessenta e cinco cêntimos); sentiu-se defraudado, desiludido, frustrado e enganado, porquanto os réus, conhecedores do fim para que tinha projectado o dito terreno, venderam-no sabendo que não podia ter tal finalidade.
Regularmente citados, os réus contestaram, defendendo-se por impugnação, alegando, em suma, que: venderam o dito terreno ao autor, através de um agente imobiliário, tendo sido este que encontrou um comprador interessado; nunca souberam qual era a intenção do autor ao querer adquiri-la; durante todo o processo negocial que levou à venda do terreno, nunca tiveram qualquer contacto pessoal com o autor; não o conheciam sequer, nem sequer no dia da escritura pública da venda; é falso que o autor lhes tenham transmitido qual a sua intenção ou interesse na compra do terreno; quando compraram para si o referido prédio, tinham intenção de ali construir a sua casa de habitação; nunca o fizeram, porque acabaram por comprar um outro terreno numa outra localidade; durante mais de 20 anos, mantiveram a convicção de que o prédio que possuíam era urbano, com um lote de terreno para construção, aliás, tendo por base documentos oficiais; nunca tiveram intenção de enganar ninguém; a ser verdade o alegado pelo autor, também se encontravam em erro sobre o objecto do negócio no momento da realização da venda.
Foi proferido despacho saneador, onde se procedeu à condensação da factualidade considerada relevante para a boa decisão da causa, discriminando-se os factos assentes e organizando-se a base instrutória com os factos controvertidos, sem reclamações.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferido o despacho exarado na acta de fls. 92, no qual se decidiu a matéria de facto, sem reclamações.
Foi proferida sentença (fls. 101 a 126 dos autos), com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedente, por parcialmente provada a acção, e consequentemente:

1) Declarar a anulabilidade do negócio de compra e venda titulado pela escritura pública lavrada em 23 de Dezembro de 2008, no Cartório Notarial de Seia, exarada a folhas 31 e 32 do Livro 31-P, relativo ao prédio urbano inscrito na matriz urbana da freguesia de S. Romão, sob o artigo 2.446.º, ficando o mesmo sem efeito;

2) Condenar os réus AM (…) e MM (…) a restituir ao autor A (…)o montante do preço recebido por força do negócio referido em 1), no valor de € 16.500,00 (dezasseis mil e quinhentos euros), acrescido de juros civis à taxa legal de 4% [sem prejuízo de outras taxas de juros legais civis que entretanto entrem em vigor – cfr. artigo 559.º, do Código Civil e Portaria n.º 291/03, de 08 de Abril] a contar desde a citação dos réus para a presente demanda e até efectivo e integral pagamento;

3) Absolver os réus AM (…) e MM (…) do demais peticionado pelo autor A (…).
Inconformados, apelaram os réus, apresentando alegações, nas quais formulam as seguintes conclusões:

I - Devem ser alteradas as respostas aos pontos 10.º, 11.º e 12.º da matéria que constitui a base instrutória.

II - Tendo em conta o risco que os negócios envolvem, bem como a diligência prévia que se exige a qualquer contraente, o Recorrido devia, para que o fim, relevasse juridicamente, ter incluído o mesmo no contrato devendo esse motivo fazer parte do contrato de compra e venda.

III - Para que o fim de edificação de habitação no prédio relevasse juridicamente e não valer como mero motivo devia o mesmo ter sido incluído no contrato celebrado pelos Recorrentes e Recorrido, porque os Recorrentes venderam ao Recorrido abstraindo-se da destinação que o mesmo pretendia dar ao prédio.

IV - Não fazendo parte do contrato qualquer condição ou uma cláusula resolutiva no caso de impossibilidade de destinação do bem ao fim que pretendia, não se pode concluir, mesmo estando perante um contrato de compra e venda e de o prédio em questão ser urbano, que exista declaração expressa da vontade do Recorrido.

V - O pedido de viabilidade de construção entregue pelo aqui Recorrido na Câmara Municipal de Seia, salvo melhor opinião, não prova por si só, a intenção de o mesmo edificar uma construção no referido prédio.

VI - Se o Recorrido pretendia realmente edificar uma habitação no referido prédio, teria já para si uma idealização da mesma, tendo já para si uma realização da mesma, impunha-se que, quer junto da Agência Imobiliária quer junto da Câmara Municipal de Seia, o Recorrido averiguasse a viabilidade da edificação, não até admitimos, da sua possibilidade ou impossibilidade, mas das suas características, nomeadamente quanto à área de implantação permitida.

VII - Assim, é razoável afirmar que quem se propõe celebrar um contrato de compra e venda para aquisição de um prédio para nele edificar uma construção, não ignore que deve ter certas cautelas, como a de, a título de exemplo saber qual a área de implantação da construção permitida no terreno.

VIII - O facto de o prédio estar classificado, de acordo com o Plano Director Municipal em vigor, como “Espaço Florestal”, onde a construção só é permitida com a área mínima de 30.000 m², não impossibilita de modo definitivo e ad eternum a construção de uma edificação no mesmo.

IX - Não é um Plano Director Municipal que foi alterado em 1994 e que classificou o prédio como inserido num espaço florestal que inviabiliza uma futura edificação no mesmo.

X - Impunha-se para a aplicação do regime da anulabilidade o Recorrido estar munido de um indeferimento de um pedido de alteração parcial do Plano Director Municipal.

XI - Só aí sim, o Recorrido demonstraria a incapacidade construtiva no referido prédio.

XII - Encontrando-se então esgotadas todas as vias, por diligência do Recorrido, sendo legítimo o mesmo invocar a anulabilidade do negócio por erro.

XIII - A sentença recorrida, salvo melhor opinião, não podia ter ligado à essencialidade invocada pelo Recorrido uma eficácia anulatória total.

XIV - Não se encontrando assim reunidos os requisitos para aplicação do regime da anulabilidade do caso em apreço.

XV - Salvo o devido respeito, a sentença recorrida não aplicou correctamente os artigos 252.º e 437.º a 439.º do Código Civil.

XVI - O artigo 437.º do Código Civil não contempla a anulabilidade mas sim a resolução ou a modificação do contrato segundo juízos de equidade, e, sempre que as alterações das circunstâncias ocorram em momento posterior à celebração do contrato.!

XVII - A sentença recorrida violou assim as disposições legais insertas nos artigos 236.º, 251.º, 252 e 437.º do Código Civil.
O autor apresentou contra-alegações, nas quais preconiza a manutenção do julgado, concluindo:

A – A sentença recorrida não sofre dos vícios que os recorrentes lhe apresentam ou quaisquer outros.

B – Se os recorrentes pretendem também recorrer da matéria de facto, o recurso não se encontra adequadamente formalizado nem motivado.

C – Não existem quaisquer contradições entre a matéria de facto dada como provada e a fundamentação de direito ou a própria decisão.

D – Carece de qualquer sentido pretender que a possibilidade de anulação de negócio por erro (nos termos dos artigos 247 e 251 do C. C.) tem de constar clausulada contratualmente.

E – Os recorrentes litigam de má-fé invocando factos e fundamentos de direito que têm por obrigação saber não terem qualquer correspondência com a realidade nem com as normas jurídicas em vigor.

F – Litigam apenas com vista a entorpecer a Justiça, o normal funcionamento dos Tribunais e causar incómodos e despesas ao recorrido.

G – A sentença recorrida não viola as disposições legais que os recorrentes invocam ou quaisquer outras.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se nas seguintes questões: i) averiguação sobre se estão ou não presentes os requisitos que permitem a reapreciação da matéria de facto; ii) apreciação dos pressupostos da anulabilidade do negócio jurídico celebrado entre as partes.

2. Recurso da matéria de facto – falta de concretização dos pontos de facto e completa omissão nas conclusões
Os apelantes, no artigo 4.º das suas alegações descrevem a factualidade considerada provada, nos artigos 5.º a 13.º repetem o que alegaram na contestação[1], e concluem no artigo 14.ª “Devem então dar-se como não provados os pontos 10.º, 11.º e 12.º da base instrutória”.
Nos artigos seguintes (15.º a 65.º), os apelantes repetem e desenvolvem a argumentação já expendida na contestação, reservando para a impugnação da matéria de facto, apenas o primeiro ponto das conclusões: “I - Devem ser alteradas as respostas aos pontos 10.º, 11.º e 12.º da matéria que constitui a base instrutória.”
Impõe o n.º 1 do artigo 685.º-B do Código de Processo Civil, na redacção pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24/08, que, quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente obrigatoriamente especifique, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
De acordo com o n.º 2 do citado normativo, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.
Nas alegações não há uma única referência aos «concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida» (alínea a) do n.º 1 do art. 685.º-B do CPC).
Nas conclusões, como se referiu, reservaram os recorrentes, um único ponto para a impugnação da matéria de facto, limitando-se, laconicamente, e sem qualquer fundamentação inserta neste segmento, ou no corpo das alegações, a preconizar “I - Devem ser alteradas as respostas aos pontos 10.º, 11.º e 12.º da matéria que constitui a base instrutória.”
Como refere António Santos Abrantes Geraldes, a relação entre as conclusões e as alegações que as suportam, é idêntica à relação entre a petição e o pedido[2]: «Constitui entendimento corrente e uniforme que, em resultado do que se encontra previsto no art. 685.º-A, as conclusões delimitam a área de intervenção do tribunal ad quem. Relativamente ao recurso, as conclusões acabam por exercer uma função semelhante à do pedido na petição inicial ou à das excepções na contestação. Salvo quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que, além disso, não se encontrem cobertas pelo caso julgado, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal, sob cominação de nulidade, nos termos dos arts. 716.º e 668.º, n.º 1, al. d). […] A redução do objecto do processo pode resultar, inclusive do facto de não existir plena correspondência entre a motivação e as alegações, se modo que eventuais questões suscitadas na motivação deverão ser ignoradas se acaso não estiverem contidas em algumas das conclusões[3]».
No mesmo sentido, veja-se a posição do Conselheiro Fernando Amâncio Ferreira[4]: «Se o recorrente, ao explanar os fundamentos da sua alegação, defender que determinada decisão deve ser revogada ou alterada, mas nas conclusões omitir a referência a essa decisão, o objecto do recurso deve considerar-se restringido ao que estiver incluído nas conclusões…»[5].
Privilegiando o princípio da verdade material, temos aderido à posição mais abrangente e flexível do Supremo Tribunal de Justiça, expressa no acórdão de 27.10.2009[6], onde se defende que o dever de levar às conclusões da alegação a indicação, mesmo resumida, dos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, pode ser suprido pelo tribunal, mas apenas se se verificar esta condição: «[…] não se justifica a rejeição do recurso com fundamento na omissão indicada em I se o recorrente especificar inequivocamente no corpo das alegações os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios que no seu entender impõem uma decisão diversa[7]
Ora, no caso presente, os apelantes, para além de não fazerem constar nas conclusões uma única referência aos «concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida», omitem também tal especificação no corpo das alegações, onde se limitam a afirmar, sem fundamentar: “Devem então dar-se como não provados os pontos 10.º, 11.º e 12.º da base instrutória”. (artigo 14.º).
Tal como defende Abrantes Geraldes[8], numa situação como a que se nos depara nestes autos, não é viável a apreciação do recurso no segmento referente à impugnação da matéria de facto, devendo considerar-se provados os factos inscritos na sentença.
Esta conclusão não fere minimamente o princípio constitucional da efectiva tutela jurisdicional, como se refere na fundamentação do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 259/2002, de 18-07-2002, publicado no DR, II Série, de 13-12-2002[9], onde se diz que os ónus impostos ao recorrente, na impugnação da matéria de facto não revestem natureza puramente secundária ou formal, antes se conexionam com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
De acordo com o entendimento, consignado no referido acórdão, quando o recorrente se limita a, de uma forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre a matéria de facto, não cumpre minimamente o ónus de impugnação da decisão da matéria de facto[10].
Considera-se no referido aresto, que o ónus imposto ao recorrente não é desprovido de qualquer utilidade, na medida em que está funcionalmente dirigido à delimitação da matéria sobre a qual o tribunal ad quem se há-de pronunciar.
E conclui-se, que a decisão da matéria de facto é cindível, na medida em que «existem tantos julgamentos quantos os pontos de facto submetidos à consideração do tribunal a quo», daí decorrendo que o incumprimento, por parte do recorrente, das especificações que a lei impõe, não permite ao tribunal ad quem conhecer a vontade do recorrente, podendo levá-lo a pronunciar-se sobre um objecto da sua própria escolha, o que frontalmente contraria a própria ideia de recurso.
Finalmente, entende o Tribunal Constitucional, no citado aresto, que, pretendendo o recorrente impugnar a decisão da matéria de facto, forçosamente há-de saber o que nesta decisão concretamente quer ver modificado, e os motivos para tal modificação, podendo portanto, e devendo, expressá-lo na motivação.
Com os fundamentos invocados, não se aprecia o recurso no segmento referente à impugnação da matéria de facto, declarando-se provados os factos inscritos na sentença recorrida.

3. Fundamentos de facto
1] Na Conservatória do Registo Predial de Seia encontra-se descrito, sob o n.º 1469/20020726, da freguesia de S. Romão, o prédio urbano denominado por “Costeiras”, com a área de 500m², composto por “terreno para construção urbana”, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 2466.º;
2] O prédio referido em 1.º encontra-se inscrito a favor do autor, mediante a apresentação n.º 4, de 28 de Dezembro de 2008, por motivo de compra;
3] Por escritura pública outorgada no dia 23 de Dezembro de 2008 no Cartório Notarial de Seia, exarada de folhas 31 a 32, do Livro 31-P, intitulada “Compra e Venda”, o autor, representado no acto por J (…), declarou comprar aos réus que, por seu turno, declararam vender ao autor, o prédio referido em 1.º, livre de quaisquer ónus ou encargos, pelo preço de € 16.500,00 (dezasseis mil e quinhentos euros);
4] O autor pagou aos réus, que receberam, o preço referido;
5] O local onde se situa o prédio referido em 1.º está classificado, de acordo com o Plano Director Municipal em vigor, como “Espaço Florestal”, onde a construção só é permitida em unidade com a área mínima de 30.000m²;
6] Após a data referida em 3.º, o autor apresentou junto da Câmara Municipal de Seia um pedido de viabilidade de construção, com vista a indagar aquilo que, concretamente, poderia edificar no prédio aludido em 1.º;
7] A Câmara Municipal de Seia comunicou ao autor o referido em 5.º, o que causou surpresa ao autor (que o local onde se situa o prédio referido em 1.º está classificado, de acordo com o Plano Director Municipal em vigor, como “Espaço Florestal”, onde a construção só é permitida em unidade com a área mínima de 30.000m²);
8] Os réus nunca comunicaram ao autor o referido em 5.º, nem a impossibilidade de edificar uma habitação no prédio;
9] O autor declarou comprar o prédio, nos termos referidos em 3.º, por se tratar de um terreno para a construção urbana, fazendo-o exclusivamente com a finalidade de nele edificar uma habitação;
10] Antes da data referida em 3.º, os réus tiveram conhecimento do mencionado em 9.º;
11] O acordo quanto ao preço de compra e venda do prédio mencionado em 1.º, nos termos referidos em 3.º, teve unicamente como referência a natureza urbana do prédio e a finalidade construtiva nos termos aludidos em 9.º;
12] Em virtude da declaração de compra e venda nos termos referidos em 3.º, o autor liquidou o correspondente I.M.T. no valor de € 1.072,50 (mil e setenta e dois euros e cinquenta cêntimos) e pagou ao Cartório Notarial de Seia o montante de € 378,65 (trezentos e setenta e oito euros e sessenta e cinco cêntimos);
13] Em virtude do referido em 5.º, 8.º, 9.º e 10.º, o autor sentiu-se defraudado, desiludido e frustrado.

4. Fundamentos de direito
A única questão jurídica que se coloca no presente recurso resume-se a saber se, face à factualidade provada, se deverão considerar reunidos os pressupostos da anulabilidade do negócio jurídico, requerida pelo autor e decretada pelo tribunal a quo.
Dispõe o artigo 251.º do Código Civil: O erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247º.
Prescreve o artigo 247.º do mesmo diploma legal: Quando, em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.
O erro como vício da vontade, enunciado no artigo 251.º do Código Civil é denominado pela doutrina como “erro-motivo” ou “erro-vício”, distinguindo-se do “erro na declaração”, porquanto, como referem Pires de Lima e Antunes Varela[11]: «[n]o caso do erro-motivo ou erro-vício há conformidade entre a vontade real e a vontade declarada. Somente, a vontade real formou-se em consequência do erro sofrido pelo declarante. Se não fosse ele, a pessoa não teria pretendido realizar o negócio, pelo menos nos termos em que o efectuou».
Dito de outra forma, pelo Professor Mota Pinto[12], o erro-vício traduz-se numa representação inexacta ou na ignorância de uma qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efectuar o negócio. Se estivesse esclarecido acerca dessa circunstância - se tivesse exacto conhecimento da realidade - o declarante não teria realizado qualquer negócio ou não teria realizado o negócio nos termos em que o celebrou. Trata-se, pois, de um erro nos motivos de terminantes da vontade - daí que a doutrina alemã lhe chame erro-motivo.
Inocêncio Galvão Telles[13], refere o conceito de “falsa ideia” determinante da manifestação de vontade do declarante: «A pessoa foi levada a fazer um contrato, que quis em si e no seu conteúdo, porque tinha uma falsa ideia acerca da existência de certos factos ou normas jurídicas. Essa falsa ideia terá sido decisiva na formação da sua vontade, de tal maneira que, se a pessoa estivesse esclarecida, conhecendo o verdadeiro estado das coisas, não teria querido o negócio, ou, pelo menos, não o teria querido como o fez.»[14]
Regressando à factualidade provada, concluímos que integra claramente a previsão legal do artigo 251.º do Código Civil, considerando que se provaram todos os seus pressupostos: i) o autor comprou o prédio, por se tratar de um terreno para a construção urbana, fazendo-o exclusivamente com a finalidade de nele edificar uma habitação (facto 9); ii) o acordo quanto ao preço do teve unicamente como referência a natureza urbana do prédio e a finalidade construtiva (facto 11); iii) a Câmara Municipal de Seia comunicou ao autor que o local onde se situa o prédio referido em 1.º está classificado, de acordo com o Plano Director Municipal em vigor, como “Espaço Florestal”, onde a construção só é permitida em unidade com a área mínima de 30.000m², o que causou surpresa ao autor (facto 7)[15].
O artigo 251.º do Código Civil estabelece como condição de anulabilidade, a verificação dos pressupostos enunciados no artigo 247.º do mesmo diploma legal: desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.
Como refere Inocêncio Galvão Telles[16], fala-se de essencialidade do erro «para significar o seu carácter determinante, como ilusória representação da realidade que se interpõe no processo volitivo e o transvia do seu rumo normal».
Em acórdão de 19.04.1994[17], o Supremo Tribunal de Justiça sintetiza os pressupostos da anulabilidade do negócio cuja celebração foi determinada por erro-vício do declarante, nestes termos: «O erro sobre o objecto do negócio nas suas qualidades pressupõe: 1) Que a vontade declarada esteja viciada por erro sobre o objecto do negócio ou as suas qualidades, e, por isso, seja divergente da vontade que o declarante teria tido sem tal erro; 2) Que para o declarante seja essencial o elemento sobre que recaíu o seu erro, de tal modo que ele não teria celebrado o negócio se se tivesse apercebido do erro; e 3) Que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade acima referida.»
Há que averiguar se a factualidade provada nos autos integra a previsão legal do citado artigo 247.º do Código Civil, que estabelece como condição de anulabilidade do negócio, que o declaratário conheça a essencialidade para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro, ou, pelo menos, que não a deva ignorar.
Tais pressupostos revelam-se claramente preenchidos, face aos seguintes factos provados: i) o autor declarou comprar o prédio, por se tratar de um terreno para a construção urbana, fazendo-o exclusivamente com a finalidade de nele edificar uma habitação (facto 9); ii) antes da data da escritura, os réus tiveram conhecimento desse facto (facto 10); iii) os réus nunca comunicaram ao autor a impossibilidade de edificar uma habitação no prédio (facto 8).
Registe-se, com Mota Pinto[18], que a lei não exige que os declaratários (neste caso, os réus), tivessem conhecimento do facto de não ser viável a construção no lote que venderam ao autor, bastando-se com o seu conhecimento da essencialidade para o autor (declarante), da possibilidade de construção no local, e de o mesmo apenas realizar o negócio, por estar convicto dessa possibilidade.
Insurge-se o Professor citado, contra a solução legal, por considerar que fragiliza a posição contratual dos declaratários, nestes termos: «A lei não exige, porém, o conhecimento ou a cognoscibilidade do erro, admitindo a anulabilidade em termos excessivamente fáceis e gravosos para a confiança do declaratário e para a segurança do tráfico jurídico. Contenta-se com o conhecimento ou a cognoscibilidade da essencialidade do elemento sobre que incidiu o erro, embora este conhecimento, como se referiu, possa não ter suscitado ao declaratário qualquer suspeita ou dúvida acerca da correspondência entre a vontade real e a declarada. Nalguns casos em que a aplicação do critério do artigo 247.º lese com extrema injustiça os interesses do declaratário, só se poderá obstar à anulação por força do princípio do artigo 334.º (abuso do direito de anular)».[19]
Perante a factualidade provada, concluímos, em síntese, que: i) a vontade declarada pelo autor estava viciada por erro sobre o objecto do negócio, divergindo por isso da vontade que o autor teria declarado sem tal erro; ii) para o autor era absolutamente essencial o elemento sobre que recaiu o seu erro, de tal modo que não teria celebrado o negócio se se tivesse apercebido do erro; e iii) os réus (declaratários) conheciam a essencialidade referida.
O circunstancialismo descrito fere o negócio de anulabilidade.
No sentido preconizado, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21.06.2007[20], onde se decidiu que a venda de um lote para construção com área inferior à convencionada, com a consequência de o comprador não poder nele implantar “o tipo de vivenda pretendida”, torna o contrato anulável, por o comprador ter outorgado o contrato de compra e venda “na errada convicção de que o lote de terreno tinha determinada área e conhecendo o vendedor a essencialidade dela para o primeiro”.
Verificados todos os pressupostos enunciados nos artigos 251.º e 247.º do Código Civil, torna-se incontornável a solução jurídica acolhida na douta sentença proferida em 1.ª instância, que não merece qualquer censura.
Decorre de todo o exposto, a total improcedência do recurso, devendo manter-se na íntegra a decisão recorrida.

III. Decisão
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso, ao qual negam provimento, confirmando assim a douta decisão recorrida.
Custas do recurso pelos Apelantes.
                                                         *
O presente acórdão compõe-se de dezasseis folhas com os versos não impressos e foi elaborado em processador de texto pelo relator, primeiro signatário.
                                                          *
Coimbra, 21 de Junho de 2011

Carlos Querido ( Relator )
Pedro Martins
Virgílio Mateus


[1] Alegam, nomeadamente, que todo o processo negocial foi conduzido por uma imobiliária, que não tiveram contactos com o autor, nem conhecimento “da essencialidade … de edificação de uma habitação no referido prédio”, e negam a existência de dolo.
[2] Recursos em Processo Civil, Novo Regime, pág. 91
[3] Sublinhado nosso
[4] Manual dos Recursos em Processo Civil, pág. 151
[5] Não pode também o tribunal ad quem conhecer da matéria de uma conclusão que não foi versada no contexto da alegação (STJ, 6.06.1991, BMJ408, 431).
[6] Proferido no Processo n.º 1877/03.3TBCBR.C1.S1, acessível em http://www.dgsi.pt.
[7] Sublinhado nosso.
[8] Obra citada, páginas146 e 147, e acórdão relatado por este autor, que constitui o Anexo n.º 10 da referida obra.
[9] Também acessível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020259.html
[10] O que muitas vezes se verifica nos tribunais, é a manifestação de vontade genérica de recorrer da decisão da matéria de facto, para ampliação do prazo de apresentação da motivação, deixando depois o recorrente “cair” o recurso na parte referente à impugnação factual.
[11] Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição, Coimbra Editora, página 235.
[12] Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição actualizada, página 505.
[13] Manual dos Contratos em Geral, Coimbra Editora, 2002, pág. 83.

[14] Como se refere no acórdão do STJ, de 25-03-2009, proferido no Processo n.º 09B0551, acessível em http://www.dgsi.pt: “No erro-motivo ou erro-vício há uma situação de conformidade entre a vontade real e a declarada, mas em que esta se formou sob erro do declarante. Ocorre uma falta de representação exacta ou uma representação inexacta do declarante sobre circunstância decisiva na formação da sua vontade, de modo que se conhecesse o verdadeiro estado de coisas não teria querido o negócio, ou, pelo menos, não o teria querido nos precisos termos em que o concluiu.”
[15] A inviabilidade de construção deriva do facto de o prédio ter apenas 500m² de área (facto 1)
[16] Manual dos Contratos em Geral, Coimbra Editora, 2002, pág. 84.
[17] Proferido no Processo n.º 084940, acessível em http://www.dgsi.pt.
[18] Obra citada, pág. 497.

[19] Na sentença recorrida, a M.ª Juíza produziu uma exaustiva fundamentação jurídica, no sentido de, muito correctamente, afastar in casu a verificação dos pressupostos de abuso de direito por parte do autor, apesar de não ter sido invocado tal instituto. Com efeito, de acordo com o entendimento pacífico dos tribunais superiores, verificando-se os pressupostos do instituto do abuso de direito (art. 334.º CC), ainda que o mesmo não tenha sido invocado pela parte que dele se pode prevalecer, por estar em causa um interesse de ordem pública, o mesmo é de conhecimento oficioso. Nesse sentido, vejam-se os seguintes acórdãos: Ac. STJ, de 25 de Novembro de 1999, CJ, Acs. STJ, Ano VII, Tomo 3, 1999, pág. 124, e acórdão deste tribunal, de 22.01.2008, Proc. 665/1998.C1, acessível em http://www.dgsi.pt.
[20] Proferido no Processo n.º 07B1815, acessível em http://www.dgsi.pt