Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1888/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME FERREIRA
Descritores: EXCEPÇÃO DO CASO JULGADO
NATUREZA DESSA EXCEPÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE DO ACTUAL ART.º 494º
AL.I)
DO CPC; TIPO DE RECURSO ADMISSÍVEL RELATIVO A ESSA APRECIAÇÃO - AGRAVO
Data do Acordão: 10/19/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA MÊDA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 487º, Nº 2 ; E 494º, AL. I), DO CPC .
Sumário: I – Até à reforma de 1995 do CPC ( levada a cabo pelo DL nº 329-A/95, de 12/12 ) entendia-se que a figura jurídica do chamado “ caso julgado “ configurava uma excepção peremptória, conforme dispunha o então artº 496º, al. a), do CPC .
II – Tal entendimento veio a ser modificado com a citada reforma, em consequência da qual a excepção do “ caso julgado “ passou a integrar expressamente as chamadas "excepções dilatórias", ao lado da litispendência – a actual al. i) do artº 494º do CPC .
III – Não é inconstitucional a actual redacção da al. i) do artº 494º do CPC .
IV- A verificação desse tipo de excepção dá lugar à absolvição da instância, pelo que o recurso ordinário admissível a uma decisão dessa natureza será da espécie “agravo “ .
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra :
I
No Tribunal Judicial da Comarca da Mêda, A..., residente em Quinta Pêro de Sousa, Mêda, instaurou contra B... e C..., residentes em Rabaçal, Mêda, a presente acção declarativa, com processo ordinário, pedindo a condenação dos R.R. no pagamento ao A. do montante de todos os prejuízos pelos R.R. causados ao A. em consequência de incumprimento ou cumprimento defeituoso e atraso dos trabalhos a que o R. marido se obrigou perante o A., no montante global de € 108.011,75 , quantia esta acrescida de juros de mora, desde a citação até efectivo pagamento .
Alegou, muito em resumo, que contratou com o R. marido, em 6/05/96, o fornecimento, por este, da mão de obra para uma empreitada em Alijó, com vista à construção de um entreposto de engarrafamento no lugar da Giesteira, cujos trabalhos a realizar eram descritos no contrato celebrado entre ambos .
Que o prazo de execução desses trabalhos foi fixado em 90 dias, com início em 15/05/1996, ficando o R. marido responsável pelo atraso por culpa própria, assim como de outros prejuízos consequentes .
Que o A. pagou ao R. o valor dessa subempreitada, no montante de € 11.500.000$00 .
Que à medida que foram decorrendo os trabalhos de execução da obra verificou-se a necessidade de se alargar o seu âmbito, tendo sido acordada entre as partes o prolongamento da subempreitada por parte do R .
Que o R. marido não cumpriu o prazo de execução acordado e executou mal parte dos trabalhos realizados, o que não reparou .
Que o A. necessitou de mandar proceder às reparações impostas por essa má execução, no que gastou Esc. 4.045.000$00 , mais IVA respectivo.
Que a dona dessa obra exigiu do A., pelo atraso no cumprimento da empreitada, o montante de Esc. 15.838.453$00, quantia que o A. pagou em 12/10/2000, pelo que tem direito de regresso contra o R. .
Que o facto de o A. ter tido necessidade de efectuar as reparações na obra realizada pelo R. marido causou ao A. danos, que avalia em € 5.000,00 .
Que o R. é responsável por todos esses prejuízos, como se pede na acção .
II
Contestaram os R.R. alegando, muito em resumo, que existe caso julgado em relação à presente acção decorrente da acção nº 62/97, que correu termos no Tribunal da Mêda e cuja sentença transitou em julgado e está em processo de execução .
Terminaram pedindo a improcedência da acção e a condenação do A. como litigante de má fé, com fixação de indemnização a favor dos R.R.
III
Respondeu o A. à excepção deduzida pelos R.R., defendendo, muito em resumo, que deve improceder a dita excepção .
IV
Terminados os articulados foi proferido despacho saneador, no qual foi considerada como processualmente regular a tramitação da causa, tendo-se tomado conhecimento da excepção de caso julgado invocada ( em relação à acção com o nº 62/97, do mesmo Tribunal ), em cuja apreciação foi decidido reconhecer estarem verificados os pressupostos dessa dita excepção, com a consequente absolvição dos R.R. da instância .
Foi, também, o A. absolvido do pedido de condenação como litigante de má fé .

V
Dessa decisão interpôs recurso o A., o qual foi admitido como agravo, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo .

Notificado o Recorrente do despacho de admissão desse recurso, por ofício de 13/11/2003, conforme fls. 254, apenas em 16/12/2003 veio o Recorrente apresentar alegações escritas, e como sendo reportadas a um recurso de apelação, ao abrigo do disposto no artº 698º, nº 2, do CPC – fls. 256 .

Na sequência dessa apresentação foi proferido o despacho de fls. 280, no qual foi julgado deserto o recurso antes interposto e admitido como agravo, dado que o Recorrente não apresentou as respectivas alegações em tempo e uma vez que o prazo fixado na lei para esse efeito é um prazo peremptório .
VI
Deste último recurso voltou a recorrer o A., recurso este que foi admitido como agravo, com subida imediata e com efeito suspensivo, e nos próprios autos, conforme foi decidido no despacho inicial proferido já nesta Relação acerca do modo de subida deste recurso .

Nas alegações que apresentou relativas a este Agravo, o Agravante formulou as seguintes conclusões :
1ª - O caso julgado, mau grado a panóplia vertiginosa das várias alterações que se vêm registando desde o D.L. nº 329-A/95, de 12/12, e outros vários diplomas citados nas alegações, até se chegar aos Dec. Leis nºs 38/2003, de 8/03, e 199/2003, de 10/09, continua a ter, estruturalmente, a dupla faceta de caso julgado formal e caso julgado material .
2ª - Nenhumas razões sérias e fundadas existem para confundir como um todo a excepção do caso julgado, fundindo num só o formal e o material e aplicando o mesmo regime, passando a integrá-lo, sem qualquer reserva, como excepção dilatória e não também peremptória .
3ª - Os ancestrais e doutos conceitos e ensinamentos proclamados pelos insignes mestres do nosso Direito, designadamente o Prof. Manuel de Andrade e o Prof. Alberto dos Reis, entre muitos outros, vertidos acerca da excepção do caso julgado, mormente nas suas lições vertidas e publicadas in “ Noções Elementares de Processo Civil “ e no “ Código de Processo Civil Anotado “, na sua dupla vertente de caso julgado formal e material, bebidos e assimilados por gerações e gerações de professores, estudiosos do direito, técnicos e magistrados, não podem ser postergados por uma infeliz redacção, dada sem qualquer nota prévia ou explicativa, que permita aferir da lógica da sua implementação, introduzida na al. i) do artº 494º do CPC, considerando a excepção do caso julgado como excepção dilatória .
4ª - Só o caso julgado formal, que se traduz no fenómeno da preclusão, tal como assim se refere o Prof. Alberto dos Reis, in “ Código de Processo Civil Anotado “ ,
basilares do nosso ordenamento jurídico – normativo, doutrinário e jurisprudencial – há muito consagrados à excepção do caso julgado, a qual, tratando-se de caso julgado material, como sucede com o que é formado pela prolação de sentença final, após audiência de julgamento, julgando em definitivo da procedência ou improcedência da acção, se converte em excepção verdadeiramente peremptória, que impede, modifica ou extingue o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor, fazendo, pois, uma errada aplicação do disposto na al. i) do artº 494º, e no artº 691º, nºs 1 e 2, ambos do CPC .
18ª - Termos em que deve dar-se provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido e substituindo-o por outro que declare a tempestividade das alegações apresentadas pelo Recorrente, já que o recurso próprio do despacho que conhece da procedência ou improcedência da peremptória excepção do caso julgado material é o de Apelação e não o de Agravo, já que este só se aplica à excepção dilatória do caso julgado formal, isto caso improceda a alegada nulidade e ineficácia do despacho recorrido, já que apoiado na redacção dada à al. i) do artº 494º do CPC, que é inconstitucional, por força do disposto nos artºs 1º a 10º da Lei nº 33/95, de 18/08, e do nº 2 do artº 165º da Constituição da República .
VII
Não foi apresentada contra-alegação ao Agravo interposto .

Foi proferido despacho de sustentação, com remissão para os termos do despacho recorrido .
VIII
Nesta Relação foram colhidos os “ vistos “ inerentes ao processamento do Agravo admitido e aceite, nada obstando ao conhecimento do respectivo objecto, o qual, face às conclusões apresentadas pelo Agravante, se resume à apreciação das duas seguintes questões :
A – A excepção do “ caso julgado “, prevista no actual ordenamento processual civil, deverá ser entendida como uma excepção de natureza dilatória ou de natureza peremptória ?
B- Ou poderá entender-se que tal excepção configura essas duas naturezas, em função da sua abrangência cognitiva ?
C – Face ao entendimento que daí resulte, como qualificar um recurso interposto a uma decisão que aprecie e decida de uma tal excepção ?
D – Deve ou não ser entendida como inconstitucional a alteração introduzida no artº 494º, al. i), do CPC, pela reforma de 1985, segundo o entendimento de que a excepção do “ caso julgado “ constitui sempre uma excepção dilatória ?


Como elementos de facto a considerar na apreciação a fazer, salientam-se os seguintes, todos eles emergentes dos autos :
1 – A... instaurou a presente acção declarativa condenatória, com processo ordinário, contra B... e mulher C..., em 31/10/2002 , no Tribunal Judicial da Comarca da Mêda .
2 – Contestaram os R.R. em 16/12/2002, alegando, além do mais, a existência da excepção de “ caso julgado entre as partes “, reportada à acção declarativa nº 62/97, do dito Tribunal, com decisão já transitada em julgado .
3 – Replicou o A., defendendo a improcedência dessa dita excepção .
4 – Em 15/07/2003 foi proferido o despacho de fls. 228 e segs., no qual foi reconhecida a regularidade adjectiva da causa, e apreciando a invocada excepção reconheceu verificar-se a dita excepção, com a consequente decisão no sentido da absolvição dos R.R. da instância .
5 – Em 21/07/2003 foi expedido ofício às partes a notificá-las da sobredita decisão ( fls. 248 e 249 ) .
6 – Em 24/09/2003 foi pelo A. interposto recurso dessa decisão, a que chamou de “ Apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo “– fls. 250 .
7 – Em 12/11/2003 foi proferido despacho a admitir o recurso interposto, mas como “ agravo, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, nos termos dos artºs 733º ; 734º, nº 1, al. a) ;736º e 740º, nº 1, todos do CPC “ – fls. 253 .
8 – Por ofícios de 13/11/2003 foram as partes notificadas do despacho que admitiu o recurso interposto – fls. 254 e 255 .
9 – Em 16/12/2003 apresentou o A. as alegações respeitantes ao recurso antes interposto e admitido, denominando-as de “ Alegações em Recurso de Apelação“, conforme fls. 256 e segs. .
10 – Por despacho de 9/02/2004 foi considerado que tais alegações foram apresentadas para além do prazo de 15 dias previsto no artº 743º, nº 1, do CPC, em consequência do que foi julgado deserto o recurso antes interposto e admitido, ao abrigo do artº 291º, nº 2, do CPC .

Assentes e enunciados os factos a considerar, passemos à análise da primeira das questões enunciadas, ou seja à definição da actual natureza da excepção do caso julgado.
A expressão “ excepção “ usada em direito processual, pretende abranger uma forma de defesa do demandado que se traduz na alegação ou invocação de factos que possam obstar ou prejudicar a apreciação do fundo da causa, assim impedindo o conhecimento do seu mérito ou substância, ou que, traduzindo-se em situações impeditivas, modificativas ou extintivas do direito invocado pelo demandante, conduzem à directa e imediata improcedência da pretensão deduzida ou de parte dela, com o que se obsta, igualmente, à apreciação do fundo da causa – é o que bem resulta do disposto no artº 487º, nº 2, do CPC .
Se esta forma de defesa se reporta a uma ou mais faltas de pressupostos processuais ou condições de procedimento jurisdicional ( condições relativas às partes, ao tribunal, ao objecto do processo ou à relação entre as partes e o objecto ), exigíveis para que o tribunal se possa ocupar do mérito da causa, então estamos perante “ excepções dilatórias “ .
Se essa defesa se revela pela alegação de factos ditos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pelo demandante como causa de pedir, portanto já de natureza substantiva ou material e não meramente adjectiva, então situamo-nos perante a chamada “excepção peremptória “ – neste sentido podem ver-se, entre outros autores, José Lebre de Freitas, in “ Código Proc. Civil anotado “, vol. 2º, pg. 287/288.
Enquanto as primeiras , se não forem suprimidas, podendo sê-lo, dão apenas lugar à absolvição da instância ( ou à remessa do processo para outro tribunal ), pelo que não obstam a que se possa demandar de novo e já de forma processualmente correcta ou “ limpa “, já as segundas conduzem a uma decisão de mérito sobre o objecto da lide ( ou de parte dele ), o que fazendo caso julgado impede que se possa demandar o mesmo demandado e com os mesmos fundamentos e para se lograr o mesmo efeito .
Daí que no artº 494º do CPC se tenha procurado elencar os pressupostos processuais mais comuns e tidos como necessários a um normal e regular desenvolvimento processual, como sucede no que respeita à competência dos tribunais, à correcção da petição, à adequação formal do processo à demanda, à necessidade da citação do réu, à verificação da personalidade e da capacidade judiciária das partes, ao interesse em agir das mesmas, etc...
Também é considerado como pressuposto processual necessário ao bom processamento de uma causa a inexistência de litispendência, isto é, há que assegurar não existirem pendentes duas acções com o mesmo objecto e entre as mesmas partes .
Até à reforma de 1995 ( levada a cabo pelo DL nº 329-A/95, de 12/12, e pelo DL nº 180/96, de 25/9 ) entendia-se que a figura jurídica do chamado “caso julgado “ ( ou repetição da mesma causa já anteriormente decidida por sentença com trânsito em julgado) configurava uma excepção peremptória, conforme dispunha o então artº 496º, al. a), do CPC .
Este entendimento veio a ser modificado com a citada reforma, em consequência da qual a excepção do “ caso julgado “ passou a integrar expressamente as chamadas excepções dilatórias, ao lado da “ litispendência “ – a actual al. i) do artº 494º - , o que se entende, pois ambas estas excepções contemplam situações de repetição da mesma causa , embora na sua apreciação e constatação não possa deixar de se ter em conta o direito substantivo para efeitos de carácter processual – a preclusão em relação à discussão do tema que constitui causa de pedir e pedido entre as mesmas partes, isto é , proíbe-se a repetição da mesma causa para não haver lugar à possibilidade de o tribunal vir a ser colocado na posição de contradizer ou de reproduzir uma anterior decisão já transitada em julgado – artºs 497º, nº 2; e 498º, do CPC - , já que transitada em julgado uma dada sentença, a decisão proferida sobre a relação material discutida fica tendo força obrigatória dentro e fora do processo, sem prejuízo de eventual recurso de revisão – artº 671º, nº 1, do CPC - . Trata-se de uma questão de salvaguarda do prestígio dos tribunais e de necessidade de certeza ou segurança jurídica , prevenindo o risco de decisões inúteis e tornando indiscutível o resultado da aplicação do direito ao caso concreto, com o que se assegura a paz social .
Veja-se, no sentido exposto, José Lebre de Freitas, loc. cit. , pgs. 316 a 326 ; o Prof. Anselmo de Castro in “ Direito Processual Civil Declaratório “, vol. III, pg. 221/222 , onde escreve : « Como excepções designadas na lei por excepções peremptórias, o artº 496º apenas referiu exemplificativamente o caso julgado e a prescrição. Mas em rigor o caso julgado não importa o efeito próprio das excepções substanciais ou materiais – a absolvição total do pedido - , nem constitui facto impeditivo, modificativo ou extintivo do efeito jurídico dos factos articulados pelo autor, reportando-se à própria definição que a lei dá dessas excepções. Antes lhe corresponde a natureza de excepção processual, isto é, de excepção processual que obsta ao conhecimento do mérito da causa. Na verdade, em consequência do caso julgado, o juiz não entrará no exame do mérito da causa de que deverá abster-se ... Do caso julgado conhece, aliás, oficiosamente o tribunal, de harmonia com a sua natureza eminentemente processual, e portanto independentemente da sua alegação por qualquer das partes, nisso se distinguindo ainda das excepções peremptórias ou substanciais, entre as quais está, pois, deslocado » ( sublinhado nosso ) .

Diferente da abordagem anteriormente exposta é o chamado “ caso julgado formal “, que diz apenas respeito à força ou consequências intraprocessuais dos despachos e sentenças que respeitem apenas à tramitação processual concreta, desde que já não passíveis de recurso de agravo – artº 672º do CPC .
Ou, por outras palavras, enquanto que a excepção do caso julgado que nos interessa e que antes procurámos abordar, consiste na alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por decisão de mérito, que não admite recurso ordinário – é o chamado caso julgado material , porque a decisão que lhe serve de base recai sobre a relação material ou substantiva litigada - , sendo susceptível de valer noutro processo distinto daquele onde foi proferida a decisão transitada, já a referida excepção de caso julgado formal apenas respeita a decisões anteriores proferidas na mesma relação processual ou processo judicial propriamente dito, pressupondo a repetição de qualquer questão sobre a relação processual dentro do mesmo processo ( pelo que estas excepções são denominadas como excepções processuais ou de rito , visando apenas irregularidades ou vícios de natureza processual) – vejam-se, neste sentido, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “ Manual de Proc. Civil“, pgs. 284 e 295/296 ; e Prof. Manuel A. Domingues de Andrade, in “ Noções Elementares de Proc. Civil “ , pgs. 127 e segs. e 303 e segs. .
Veja-se também , e para uma abordagem mais completa desta questão, o Prof. Miguel Teixeira de Sousa, in “ O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material ( O estudo sobre a funcionalidade processual ) “ , especialmente a pgs. 115, 151 e 204/205, onde escreve : « A natureza adjectiva da excepção de caso julgado coloca o problema da sua integração nas condições processuais da acção, isto é, nas condições suficientes e necessárias para poder recair sobre a acção uma decisão de mérito ... Doutrinariamente, a excepção de caso julgado é, aliás como a aproximada excepção de litispendência, uma excepção dilatória .Diferente é a solução do direito positivo ( isto antes da reforma de 1995 ) , o qual qualifica a excepção de caso julgado como excepção peremptória. Porém, esta qualificação é metodologicamente inconveniente e sistematicamente incoerente . Metodologicamente, a qualificação da excepção de caso julgado como excepção peremptória contraria a natureza adjectiva que doutrinariamente lhe é atribuída, pois, além da sua origem ser identificada com a génese substantiva das excepções materiais, a sua eficácia na causa posterior tem um sentido material, a absolvição do pedido, e não um sentido processual, a absolvição da instância; sistematicamente, a qualificação da excepção de caso julgado como excepção peremptória contraria a proibição de contradição e de repetição que legalmente lhe é concedida, pois, além do proferimento de uma decisão de mérito ser identificada com a abstenção de decisão, a absolvição do pedido na causa subsequente ou contradiz a condenação no pedido da acção antecedente ou repete a absolvição do pedido da causa antecedente » .
O mesmo autor escreve em “Estudos Sobre o Novo Processo Civil “ , a pgs. 574/575 : « Se o objecto da decisão transitada for idêntico ao do processo subsequente, isto é, se ambas as acções possuírem a mesma causa de pedir e nelas for formulado o mesmo pedido, o caso julgado vale, no processo posterior, como excepção de caso julgado ... Coerentemente com a dupla proibição de contradição e de repetição, o tribunal da acção posterior deve abster-se de qualquer pronúncia sobre o mérito . Ou seja, a excepção de caso julgado constitui, tal como a litispendência, um pressuposto processual negativo e, portanto , uma excepção dilatória ( artº 494º, al. i) ) » .
Também Lopes do Rego, in “ Comentários ao Código de Processo Civil “, vol. I, 2ª ed., pg. 418, nota III, defende que “ em conformidade com a tese há muito sustentada por Castro Mendes ... , qualifica-se a excepção de caso julgado como dilatória : deste modo, verificando-se a repetição de uma causa objectiva e subjectivamente idêntica a outra já definitivamente julgada, deve o juiz abster-se de conhecer do respectivo mérito, já que só por esta forma se evita que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior “ .
Donde a conclusão de que a apontada excepção do “ caso julgado material “ tem natureza adjectiva ou processual, mas tendo como conteúdo uma necessária apreciação material ou substantiva das causas em que se coloque tal questão, pelo que é sempre uma questão de “ caso julgado material adjectivo “ .
Donde se ter de concluir que o “caso julgado “ a que se reporta a al. i) do actual artº 494º do CPC, é necessariamente o chamado caso julgado material, embora seja também necessariamente formal, mas não só, o qual passou a ser considerado como uma excepção dilatória no direito constituído, desde a reforma de 1995 .
Como escreve José Lebre de Freitas, in loc. cit. , pg. 678, “ Quando ( a sentença) se torna definitiva, por já não ser susceptível de reclamação nem de recurso ordinário, quer nenhuma impugnação tenha tido lugar nos prazos legais, quer se tenham esgotado os meios de impugnação efectivamente utilizados, transita em julgado e extingue a instância. Forma-se então o caso julgado, só formal ( com efeitos apenas no processo concreto ) quando a sentença tenha sido de absolvição da instância, e simultaneamente formal e material ( com efeitos dentro e fora do processo ) quando tenha sido de mérito “ .
E sendo assim, a verificação desse tipo de excepção dá lugar à absolvição da instância, sem conhecimento do mérito da causa – artº 493º, nº 2, do CPC - , pelo que os recursos ordinários deduzidos a esse tipo de decisão serão da espécie “ agravo “, nos termos dos artºs 676º, nºs 1 e 2 ; 691º, nºs 1 e 2, à contrário ; e 733º, todos do CPC .
E não se olvide que já o anterior artº 691º, nº 2, do CPC dispunha que o conhecimento da excepção do caso julgado não implicada conhecimento do mérito da causa, apesar de então se entender tal excepção como de natureza peremptória ( dispunha esse dito preceito : « A sentença ou o despacho saneador que decidem sobre a procedência de alguma excepção peremptória, que não seja o caso julgado , conhecem do mérito da causa » ) .
Resumindo e concluindo no que respeita à questão abordada, a excepção ( processual ) do “ caso julgado “ tem apenas e tão só natureza dilatória, para todos os efeitos processuais possíveis .
***
Donde estarem também respondidas , dessa forma, as segunda e terceira das questões suscitada pelas conclusões do Agravante, elencadas sob as alíneas B e C anteriores .
E sendo assim, e uma vez que ao Juiz não cabe indeferir a interposição de um recurso com fundamento em erro na espécie de recurso interposto, cabendo-lhe mandar seguir os termos do recurso que se julgue apropriado, conforme dispõe o artº 687º, nº 3, 2ª parte, do CPC, bem andou o Senhor Juiz “ a quo “ ao proferir o despacho de admissão do recurso interposto à decisão que apreciou e reconheceu a existência da excepção do “ caso julgado “ ( decisão essa que não está aqui em apreciação ou discussão, pois esse tema seria próprio desse recurso, caso houvesse de prosseguir os seus regulares termos ), qualificando a sua espécie como “ agravo, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo, nos termos dos artºs ... “ – facto supra nº 7 .
Isto apesar de o então Recorrente, no seu requerimento de interposição desse recurso, haver apelidado o dito de “ apelação, ... , com efeito suspensivo “ – facto supra nº 6 .
Uma vez notificado o Recorrente do despacho supra referido, cabia-lhe acatar os respectivos efeitos e consequências processuais, até porque só lhe era lícito impugnar tal decisão nas alegações a apresentar a esse recurso, dado que o referido despacho não vincula o tribunal superior – artº 687º, nº 4, do CPC .
O que não podia era atribuir efeitos processuais ao seu próprio requerimento de interposição de recurso, pois é apenas ao Juiz que cabe o poder de direcção do processo, não às partes – artº 265º, nº1, do CPC .
Logo, tendo o Recorrente sido correctamente notificado do despacho de admissão desse recurso, cumpria-lhe prestar a atenção devida ao dito despacho e proceder em conformidade com o que nele se dispunha, designadamente para efeitos de contagem de prazo de apresentação das alegações correspondentes, para o que dispunha de 15 dias, nos termos do artº 743º, nº 1, do CPC .
Ou seja, o prazo para esse efeito findou em 2/12/2003, eventualmente em 5/12/2003, fazendo uso do disposto no artº 145º, nºs 5 e 6, do CPC .
Ora, tendo-se apresentado a alegar apenas em 16/12/2003, manifesto é que excedeu o prazo para o efeito, pelo que se tem de entender que se extinguiu o direito de alegar nesse recurso, nos termos do artº 145º, nº 3, do CPC, cuja consequência é a resultante do disposto nos artºs 291º, nº 2; e 690º, nº 3, do CPC – julgar-se deserto o recurso interposto e admitido .
Logo, bem andou a 1ª Instância ao decidir nesses termos, conforme despacho de 9/02/2004, proferido a fls. 280 – ponto 10 supra - , o que importa confirmar com a presente apreciação .
***
Resta, por último, a apreciação da alegada inconstitucionalidade decorrente da sobredita alteração legislativa ao artº 494º, al. i), do CPC – questão D .
Pretende o Recorrente, quanto a esta questão, que se reconheça uma alegada inconstitucionalidade da norma supra referida, na interpretação de com essa norma também se abrange o caso julgado material, com base no disposto nos artºs 1º a 10º da Lei nº 33/95, de 18/08, e no disposto no nº 2 do artº 165º da Constituição da República Portuguesa .
Sem prejuízo do eventual juízo a ser formulado sobre esta questão pelo Tribunal vocacionado para o efeito – o Tribunal Constitucional - , cumpre que nos pronunciemos, desde já, sobre tal questão, no convencimento de que não ocorre tal inconstitucionalidade .
Com efeito, pela Lei nº 33/95, de 18/08, a Assembleia da República autorizou o Governo a rever o Código do Processo Civil, o Código Civil e as leis de organização judiciária, mas apenas quanto às matérias da exclusiva competência da Assembleia que decorrem dos artºs 164º, al. e) ; 168º, al. q) ; e 169º, nº 3, do texto da Constituição em vigor à data.
Por outras palavras, essa autorização abrangia as matérias relativas à organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto dos respectivos magistrados, bem como das entidades não jurisdicionais de composição de conflitos, uma vez que apenas cabe à Assembleia da República legislar sobre matéria de organização e competência dos tribunais e do Ministério Público .
O que significa que no que respeita a outras matérias que já não sejam da exclusiva competência legislativa da Assembleia da República e façam parte da competência legislativa do Governo, não era nem é necessário que hajam, evidentemente, leis a conferir autorizações legislativas ao Governo .
Acontece que competia e compete ao Governo, no exercício de funções legislativas, fazer decretos-lei em matérias não reservadas à assembleia da República, conforme bem decorria do artº 201º, nº 1, al. a), da Constituição ( na redacção desta vigente à data de 1995 ) , e hoje do artº 198º, nº 1, al. a ) , da mesma Constituição, o que se traduz no reconhecimento de um poder legislativo constitucional autónomo e normal ao órgão Governo .
Ora, fora daquela reserva legislativa da Assembleia da República, era e é da competência do Governo legislar, pelo que se tem de entender que a alteração legislativa levada a cabo na qualificação processual da excepção do “caso julgado “, passando de excepção peremptória a excepção dilatória, como resulta do D.L. nº 329-A/95, de 12/12 – alterações então introduzidas nos artºs 494º, al. i) , e 496º - , era e é da competência governamental, não carecendo, para o efeito, de autorização legislativa da Assembleia da República .
O que o Governo então fez, mediante essa referida alteração ao C.P.C., não foi mais do que atender à doutrina publicada sobre tal matéria, como já antes deixamos referido, adequando a lei processual a tais correntes doutrinárias, com as consequências processuais daí decorrentes e vigentes desde então, o que nem o agora Recorrente pode alegar desconhecer, já que conhece muito bem a lei, designadamente a referida alteração legislativa, e bem assim a decisão proferida em 1ª instância sobre a apreciação dessa questão, tendo o recurso por ele oportunamente interposto sido devidamente recebido em função dessa qualificação normativa e doutrinária, apenas lhe cabendo proceder em conformidade com o assim tramitado e não devendo insistir “ teimosamente “ , numa tese sem qualquer tipo de apoio legal e jurisprudencial, o que levou a ter ficado deserto o recurso que oportunamente interpôs, por exclusiva responsabilidade sua .
E não se afigura que a dita excepção dilatória do caso julgado possa , por outras razões, ser entendida como inconstitucional, como bem decorre do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 1144/96, publicado no DR – IIª série, de 11/02/1997, reportado à excepção da litispendência ( por não violar o direito à tutela judicial efectiva ), entendimento esse que aqui damos como reproduzido para o caso presente .
Donde a nossa apreciação sobre a constitucionalidade decorrente das citadas alterações legislativas, em função do que também improcedem as conclusões apresentadas no presente recurso relativas à arguição de uma inconstitucionalidade na aplicação jurisprudencial efectuada .

Concluindo, improcede, em absoluto, o presente recurso de agravo .
IX
Decisão :
Face ao exposto, acorda-se em negar provimento ao presente recurso de agravo, mantendo incólume o despacho recorrido – de fls. 280 - , no sentido de que se considera deserto o recurso antes interposto pelo agora também Recorrente e então admitido como agravo, dado que o Recorrente não apresentou as respectivas alegações em tempo oportuno .

Custas pelo Agravante .
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Tribunal da Relação de Coimbra, em / /