Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4343/10.7 TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
RESOLUÇÃO
NÃO USO
RESIDÊNCIA PERMANENTE
ÓNUS DA PROVA
SENHORIO
Data do Acordão: 02/19/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 5.º JUÍZO CÍVEL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 1072.º, AL. D) DO N.º 2 DO ART.º 1083.º E ART.º 342.º, N.º 1 DO CC
Sumário: I. O art.º 1072.º impõe ao arrendatário que faça uso efectivo do arrendado para o fim contratado, assumindo-se como ilícito contratual o não uso por período superior a um ano, conforme resulta claramente do confronto deste n.º 1 com a norma de exclusão que se lhe segue.

II. Tal violação do dever que, para o inquilino, decorre do contrato -e que encontra a sua justificação no facto da não utilização do imóvel implicar a sua desvalorização- é susceptível de fazer nascer na esfera jurídica do senhorio o correspondente direito de resolver o acordo celebrado, como decorre do disposto na al. d) do n.º 2 do art.º 1083.º.
III. Não tendo embora correspondência no anterior texto, deverá entender-se que, impondo o n.º 1 do art.º 1072.º que o arrendatário use efectivamente o arrendado, uso que terá de ser aferido atendendo ao fim contratualmente previsto, tratando-se de arrendamento para habitação, o dever aqui consagrado se reconduz a final ao velho conceito de residência permanente, impondo ao arrendatário que tenha no locado, com carácter de habitualidade e estabilidade, o seu centro de vida.
IV. Erigindo-se o não uso por mais de um ano em facto constitutivo do direito a resolver o contrato, sobre o senhorio recai o ónus da respectiva prova (vide art.º 342.º, n.º 1).
Decisão Texto Integral: I. Relatório

A..., casado, residente na ..., em Coimbra, veio instaurar contra

 B..., solteira, maior, residente na ..., Coimbra, acção declarativa de condenação, a seguir a forma sumária do processo comum, pedindo a final seja declarado resolvido o contrato de arrendamento tendo por objecto a fracção que identifica e que foi transmitido para a ré, e esta condenada a despejar de imediato o locado ou, quando assim se não entenda, deverá ser considerado denunciado o mesmo contrato nos termos do disposto na al. a) do art.º 1101.º e art.º 1103.º, n.º 1 do C. Civil e, consequentemente, a ré igualmente condenada a proceder à entrega do locado no termo do contrato, ou seja, no dia 30 de Setembro do ano de 2011.

Em fundamento alegou, em síntese útil, que é o dono do prédio que identifica no art.º 1.º da petição inicial, sito em Coimbra, por lhe ter sido adjudicado em partilha a que se procedeu por óbito de sua irmã, D....

Mediante contrato celebrado em 5 de Setembro de 1996, que as partes reduziram a escrito, a referida irmã do ora Autor deu de arrendamento a E..., para habitação deste, a fracção correspondente ao primeiro andar direito e garagem do aludido prédio. Dado o falecimento do arrendatário, o arrendamento transmitiu-se à sua mulher, F... a qual, segundo chegou ao conhecimento do demandante, faleceu em 15/12/2009, data a partir da qual deixou o arrendado de ser habitado. Na verdade, e tendo-se embora o arrendamento transmitido para a ré, que com a mãe residia à data da morte, sendo aquela portadora de deficiência que lhe acarreta incapacidade permanente que obsta à sua suficiência, após o decesso da progenitora passou a viver na J..., sita na morada identificada no cabeçalho.

Acresce que o Autor tem uma filha solteira, a qual reside numa casa arrendada na cidade de Coimbra, pagando uma renda no valor de € 350,00 mensais que, atendendo aos seus parcos rendimentos, só tem conseguido suportar com o auxílio do demandante seu pai, com o que se verifica uma situação de necessidade para habitação própria de descendente em 1.º grau, que é causa legalmente prevista para a denúncia.

Deste modo, quer porque lhe assiste o direito de resolver o contrato ao abrigo do disposto no art.º 1083.º, n.º 2, al. d) do Código Civil, quer porque tem o direito de o denunciar, pretensão que encontra acolhimento no preceituado na al. a) do artigo 1101.º e art.º 1103º, n.º 1 do mesmo diploma legal, deve o contrato ser julgado resolvido ou, quando assim se não entenda, validamente denunciado e a ré condenada a entregar o locado ao demandante, livre e devoluto.
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Regularmente citada na pessoa da curadora "ad litem" que lhe foi nomeada (sua irmã G...), a ré veio contestar, o que fez nos seguintes termos:

Em sede exceptiva, pugnou pela inaplicabilidade ao contrato ajuizado do normativo que, inovadoramente, veio instituir a possibilidade de denúncia do arrendamento com fundamento na necessidade de descendente em 1.º grau do senhorio. Numa outra via de ataque à pretensão deduzida, alegou que só por motivo de força maior, decorrente do seu estado de saúde, se viu obrigada a passar a residir no centro de acolhimento identificado, sendo certo que mantém no arrendado muitos dos seus objectos pessoais, aí se deslocando regularmente, uma vez que é nesse local, onde sempre viveu, que se sente segura e confortável, aí continuando a ter o centro da sua vida familiar. Conclui pela improcedência da acção.
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Foi então proferido despacho saneador, no qual se julgou desde logo improcedente o pedido de denúncia do contrato, tendo os autos prosseguido apenas para apreciação do fundamento resolutivo, com selecção dos factos assentes e organização da base instrutória. Daquela primeira peça reclamou a ré vindo a ser determinada, em consequência, a rectificação da al. A).

Teve lugar audiência de discussão e julgamento, tendo o Tribunal proferido decisão sobre a matéria de facto sem reclamação das partes após o que, na devida oportunidade, foi proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu a ré do pedido contra ela formulado.

Irresignado, interpôs o autor o presente recurso e, tendo apresentado as suas alegações, delas extraiu as seguintes conclusões, que se transcrevem integralmente:

“1.ª- Na mui douta sentença fez-se uma errada apreciação da matéria dada como provada, estando a sua fundamentação em oposição à mesma;

2.ª- A causa de pedir na situação “sub judice” alicerça-se, fundamentalmente, no não uso do arrendado pela Ré, ora apelada, por mais de um ano, aferido desde o óbito da sua progenitora (15/12/2009).

 3.ª - A referida matéria dada como provada, embora contendo algumas contradições e imprecisões, como acontece, nomeadamente, com os seus pontos 11, 12 e 16, certo é que da conjugação de toda ela, resulta que a Ré deixou de ter a sua residência instalada no arrendado não só desde Junho de 2010, mas sim, desde o óbito da sua progenitora, ou seja, desde 15/12/2009, verificando-se assim, desde tal data o não uso do locado, por parte da Ré.

Para prova do referido não uso, contribui, sem dúvida, a matéria que foi dada como provada, nomeadamente, a doença de que é portadora e respectivo grau de incapacidade, de que resulta a ausência de auto-suficiência e consequentemente, a impossibilidade de viver sozinha, pois, necessita de ser acompanhada por qualquer dos irmãos, residindo estes e trabalhando, todos, fora de Coimbra;

4.ª- Verifica-se assim, uma evidente contradição entre a mui douta decisão e a matéria de facto dada como provada;

Porém, sem prescindir, acresce dizer que,

5.ª- Tal não uso, desde o óbito da mãe da Ré (15/12/2009) até à entrada em Juízo da respectiva acção (28/12/2010), ou seja, durante mais de um ano, resulta suficientemente provado, através dos depoimento das testemunhas da Ré, H..., sua irmã e de I...,  cujos depoimentos não foram devidamente valorados;

Pelo que,

6.ª- Reapreciada que seja, a prova produzida em Audiência de julgamento o que ora se requer, deve mui doutamente ser considerado provado que a Ré deixou de habitar o locado a partir do óbito da sua mãe, e como tal, há mais de um ano;

7.ª- Tal facto constitui a violação por parte da Ré a obrigação lhe é imposta pelo art.º 1072.º, n.º 1, em consonância com o estipulado no artigo 1083.º, n.º 2, al. d), ambos do Código Civil, ou seja, de usar efectivamente a coisa para o fim contratado, não deixando de a utilizar por mais de um ano;

Ainda, e sem prescindir,

8.ª - O facto da actual alínea d) do n.º 2 do art.º 1083.º do Código Civil ser aparentemente menos específica que as alíneas h) e i) do artigo 64.º do antigo RAU, não significa que os anteriores fundamentos de resolução tenham sido eliminados.

9.ª- Os fundamentos de resolução – encerramento, local desabitado ou falta de residência permanente – previstos nesta alínea terão de ser articulados com a redacção do corpo do nº 2 do referido preceito legal, quando não ocorram há mais de um ano.

Assim,

10.ª - Quando uma dessas situações, antes previstas no RAU, se verifiquem há mais de um ano, serão fundamento de resolução nos termos da alínea d) do artigo 1083.º do C. Civil. Porém, caso tais situações não durem há mais de um ano, mas, ainda assim, forem graves, ou não o sendo, tenham consequências que tornem inexigível ao senhorio a manutenção do contrato de arrendamento – como acontece no caso “sub júdice" - podem contudo fundamentar a resolução do contrato, nos termos do n.º 2 da mesma disposição legal.

11.ª- Daí a referência do artigo 14.º, n.º 2 à falta de residência permanente do NRAU: “ Quando o pedido de despejo tiver por fundamento a falta de residência permanente do arrendatário “.

12.ª - Veja-se, neste sentido, a título de exemplo, o mui douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21-06-2011 (Proc. n.º 1491/04.6 PCAMD.L 1–1) in www.dgsi.pt, onde sumária e expressamente consta : “ Nos termos do artigo 1083º do Código Civil (na redacção vigente introduzida pela Lei nº 6/2006 de 27/02), o senhorio pode resolver o contrato quando o inquilino não use o locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no art.º 1072 n.º 2 do Código Civil e, tratando-se, no caso “sub Júdice” de um arrendamento para a habitação, o não uso do locado não pode deixar de corresponder à falta de residência permanente anteriormente prevista no artigo 64.º, n.º 1 al. i) do extinto RAU, como causa de resolução do contrato de arrendamento.

Só com esta equiparação de conceitos se compreende que no art.º 14.º, n.º 2 do NRAU se preveja que o pedido de despejo pode ter por fundamento a falta de residência permanente.

13.ª- Por todo o exposto, deveria ter sido dado como provado o quesito 1 e 2 da Mui douta Base Instrutória e, consequentemente, ser dado provimento, à invocada causa de resolução do contrato de arrendamento, por não uso, nos termos do disposto na alínea d) do n.º 2 do art.º 1083.º do Código Civil;

Porém,

14.ª - Mesmo considerando que na presente situação o não uso não dura há mais de um ano -o que não se concede- a situação não poderá deixar de se considerar grave ou, não o sendo, terá consequências que tornam inexigível ao senhorio, ora Recorrente, a manutenção do contrato de arrendamento, e consequentemente, pode de igual modo, fundamentar a resolução do contrato, nos termos do n.º 2 do Art.º 1083.º do mesmo diploma legal.

15.ª - A conduta da Ré, constitui um autêntico abuso de direito – por atentar manifestamente contra os limites do fim social e económico do arrendamento, ao pretender manter um arrendamento para habitação apenas e com umas esporádicas idas ao locado, sem qualquer tipo de ocupação justificável.

A recorrida contra alegou doutamente, pugnando naturalmente pela manutenção do julgado.
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Sabido que o objecto do recurso se delimita em face das conclusões insertas nas alegações do recorrente, como resulta do preceituado nos art.ºs 684 n.º 3 e 685.º-A do CPC, constituem questões a decidir, correctamente identificadas pela recorrida, as seguintes:

i. da nulidade da sentença recorrida por oposição entre os fundamentos e a decisão;

ii. da alteração das respostas dadas aos art.ºs 1.º e 2.º da base instrutória;

iii. da verificação do fundamento resolutivo invocado pelo autor, face ao disposto no art.º 1.083.º do CC;

iv. do abuso de direito por banda da ré/recorrida.
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i. No que se reporta ao assacado vício, e conforme a recorrida, nas suas contra- alegações, faz notar, é o mesmo aparentemente invocado a dois níveis, a saber, enquanto vício da própria sentença, que é causa de nulidade nos termos prescritos na al. c) do n.º 1 do art.º 668.º, e ao nível da decisão que incidiu sobre a matéria de facto controvertida, previsto no n.º 4 do art.º 653.º, ambos os preceitos do CPC.

A respeito, cabe referir que, analisado o quadro legal -vide art.ºs 653.º, n.º 2, 658.º e 659.º, n.ºs 1 a 3 do CPC- dele decorre claramente a consagração na nossa lei processual de um sistema de cisão entre a decisão da matéria de facto e a sentença, sendo que os vícios da primeira não importam, em caso algum, a nulidade da última, cujas causas constam taxativamente elencadas do art.º 668.º. [1]

A contradição a que alude a al. c) do n.º 1 do convocado art.º 668.º ocorre quando os argumentos alinhados em suporte da decisão repelem o resultado que nela se expressou, o que não ocorre claramente na decisão recorrida. Na verdade, tendo sido dado como assente que apenas a partir de Junho de 2010 a ré deixou de residir no arrendado, considerando a data da propositura da acção -Dezembro desse mesmo ano- logicamente se concluiu, na sentença recorrida, que o prazo de um ano prescrito na lei não se havia completado, pelo que o autor não havia logrado fazer prova do facto constitutivo -não uso do locado por período superior a um ano- do direito à resolução do contrato que pretendia fazer valer. Daí o juízo de improcedência, surgindo a decisão proferida como decorrência lógica dos explanados fundamentos de facto e de direito, não se verificando o assacado vício.

Questão diversa será a da também invocada contradição entre os vários factos dados como provados, por não serem, no entender do recorrente, conciliáveis entre si os factos da mãe da ré, com quem esta até então residia, ter falecido em 15/12/2009, quando se deu igualmente como assente que só a partir de Junho de 2010 ninguém reside no arrendado, dado que a demandada padece de doença irreversível e incapacitante que a impede de viver sozinha, sendo certo que foi também dado como provado que a sua residência, desde pelo menos o óbito da progenitora, passou a estar instalada na J....

A questão enunciada, conforme deflui do que se deixou referido, deve ser apreciada ao nível do controlo a exercer pela Relação sobre o julgamento de facto, nos termos do disposto nos art.ºs 653.º, n.º 4 e 712.º do CPC, o que nos introduz na, também pretendida pelo recorrente, alteração da matéria de facto.
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ii. No caso de impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, segundo corrente jurisprudencial que se tem vindo a consolidar, cabe ao Tribunal da Relação proceder a uma apreciação autónoma da prova impugnada, perseguindo a sua própria convicção, que poderá coincidir -ou não- com a formada em primeira instância. Daqui decorre que não bastam à confirmação do julgado a coerência e racionalidade da decisão proferida, sendo certo, porém, que a actividade de reapreciação da prova pelo tribunal de recurso se orienta no sentido de detectar um erro de julgamento, atendendo até à circunstância de ser chamado a pronunciar-se “sobre pontos concretos da matéria de facto, por regra, com base em certos depoimentos que são indicados pelo recorrente e recorrido, pelo que não almejará uma convicção probatória plena, porque não fundada na totalidade da prova produzida no Tribunal recorrido” (do aresto do STJ de 24/1/2012, processo n.º 1156/2002.L1.S1), isto sem embargo do poder/dever de analisar e reapreciar toda a prova quando tal se revele necessário à reponderação exigida.

Acresce que, nos termos do já citado art.º 712.º, a decisão do Tribunal da 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação, ainda que oficiosamente, e para o que ora importa, nos termos previstos na 1.ª parte da al. a) do n.º 1. Deste modo, tendo a prova testemunhal sido objecto de gravação, encontrando-se à disposição deste Tribunal de recurso todos os elementos probatórios considerados pela 1.ª instância, para além dos factos cuja alteração é pretendida pelo recorrente nada obsta a que na reponderação da prova produzida se proceda à alteração de outras respostas, nomeadamente em ordem a eliminar, se disso for caso, a apontada contradição.

Em causa estão as respostas dadas aos art.ºs 1.º, 2.º 3.º e 10.º, nos quais se perguntava:

“1- Posteriormente ao óbito de F..., que ocorreu em 15/12/2009, ninguém habita no arrendado, encontrando-se abandonado.

2- A ré, desde o falecimento da sua progenitora, deixou de pernoitar no arrendado, de aí tomar as suas refeições, de aí receber os seus amigos, ou quaisquer visitas.

3- A residência da ré, desde, pelo menos o óbito da sua mãe, passou a estar instalada -dado o seu internamento- na J....

10- Por motivo de força maior e atenta a doença, a ré foi recebida pela J..., Coimbra, tendo entrado para aquela instituição em 01/06/2010, ali permanecendo de 2ª feira de manhã até 6ª feira ao fim da tarde.”.

Aos factos acima transcritos, que se encontravam controvertidos, respondeu o Tribunal “a quo” restritivamente aos art.º 1.º e 2.º (Art.º 1.º- Provado apenas que posteriormente a Junho de 2010 ninguém habita no arrendado; Art.º 2.º- Provado apenas que a ré deixou de pernoitar no arrendado, de aí tomar as suas refeições, de aí receber os seus amigos, ou quaisquer visitas” e positivamente aos art.ºs 3.º e 10.º.

Pois bem, se do teor das respostas dadas aos art.º 1.º, 2.º e 10.º se extrai que apenas a partir de Junho de 2010, data em que foi recebida na J..., ali permanecendo de 2.ª a 6.ª feira, a ré terá deixado de ter no locado a sua residência permanente -factualidade que, aliás, suportou a tese jurídica perfilhada na decisão recorrida- a verdade é que tais factos conflituam com o, também dado como assente, vertido no sobredito art.º 3.º, do qual constava que “A residência da ré, desde, pelo menos o óbito da sua mãe, passou a estar instalada, dado o seu internamento, na J...” (é nosso o destaque).

Fundamentou o Tribunal “a quo” estas suas respostas nos seguintes termos: “[P]ara a resposta à matéria dos factos (…), o Tribunal tomou em consideração todas as provas produzidas e analisadas em audiência de julgamento, nomeadamente a prova testemunhal, bem como a prova documental junta aos autos.

Concretizando, o tribunal respondeu restritivamente aos artigos 1.º e 2.º da base instrutória, em face das declarações prestadas pela testemunha H..., a qual, embora sendo irmã da ré, prestou um depoimento espontâneo, coerente e objetivo, relatando a este tribunal que desde Junho de 2010 a B...passa os dias da semana na J..., e os fins-de-semana em casa dos irmãos, fora de Coimbra.

Quanto aos artigos 3.º a 7.º da base instrutória, a resposta positiva que mereceram por parte deste Tribunal, alicerçou-se na conjugação entre o depoimento de H... com o depoimento prestado pelas testemunhas L..., M...e O..., todas com residência na Rua ..., ou seja, no mesmo prédio do locado.

Tais testemunhas afirmaram, em depoimento calmo, sereno, isento, sem contradições e com conhecimento directo dos factos a que depuseram, que a B...não passa a semana no locado, que os irmãos desta a colocaram numa instituição, indo buscá-la à sexta-feira e que a mesma vai passar os fins de semana a casa destes.

(…) Por seu lado, as respostas positivas dadas aos artigos 9.º a 10.º da base instrutória, alicerçaram-se no depoimento de H..., irmã da ré, a qual confirmou a sua participação em tal decisão, juntamente com os restantes irmãos”.

Destaca o recorrente os depoimentos da referida H... e ainda de I..., ambas indicadas pela ré e que, segundo aquele, imporiam respostas positivas aos citados art.ºs 1.º e 2.º.

Pois bem, ouvida toda a prova produzida, e antecipando desde já a conclusão, dir-se-á que deverão ser mantidas as impugnadas respostas aos art.ºs 1.º e 2.º, alterando-se, em conformidade, a resposta dada ao art.º 3.º, em ordem a harmonizá-la com a prova efectivamente produzida.

Com efeito, dos assinalados depoimentos se extrai com clareza que, efectivamente, apenas a partir do internamento da ré na J..., ocorrido em Junho de 2010, esta aqui permanece com carácter de habitualidade, sem prejuízo de passar os fins de semana com  familiares, contrastando com o que incontestavelmente se verificou até então, situação em que, sem prejuízo de permanecer alguns dias com as irmãs, na residência destas, continuava a ter no locado o seu centro de vida, aqui mantendo as suas roupas e objectos (como ainda hoje mantém), aqui passando os fins de semana com regularidade e mesmo alguns dias de semana. Tal relevante e intensiva utilização que do locado foi feita pela ré naqueles primeiros meses que se seguiram à morte da progenitora resultou proficientemente ilustrada pelo convincente, embora não convocado pelo recorrente, testemunho prestado por O..., a inquilina do 1.º esq.º, segundo a qual “da porta de sua casa vê a porta da casa da ré, embora não possa ver para dentro dela”, cuja isenção e equidistância em relação às partes em conflito ficou à partida evidenciada pelo facto de ser comum a autor e ré. Ademais, o que resulta deste mesmo testemunho, corroborado pelos prestados pelas identificadas H... e I... (esta a empregada doméstica da falecida F..., que continuou, embora com diferente periodicidade, a garantir a limpeza do locado) é que a ré continua a deslocar-se ao apartamento, aqui passando algumas horas, seja às 6.ªs feiras, depois das irmãs a irem buscar à instituição, seja às 2.ªs feiras, antes de aí a reconduzirem, nele tendo permanecido durante a sua convalescença, após ter sido operada às cataratas, e ainda durante uma festas que tiveram lugar na cidade, acompanhada pela irmã e sobrinha, para além de aí pernoitar por vezes, por ocasião de consultas, ou mesmo um ou outro fim de semana. De resto, tal como com singeleza a mesma testemunha O... declarou, a “menina” (assim se referia à pessoa da demandada, a quem, nas suas palavras “viu nascer”), gosta da casa, onde tem o seu quarto, com “uma bonecada” (sic), e chora quando lhe dizem que tem de sair.

Da prova produzida, quer a documental junta aos autos, quer a testemunhal -e as mencionadas testemunhas revelaram-se merecedoras de total credibilidade, dada a consistência e concordância dos seus depoimentos, isto a despeito da dura instância a que foi submetida a testemunha I..., sobretudo por banda do Mm.º juiz- retira-se que somente após o internamento na J... em 01/06/2010 é que a ré deixou de pernoitar com assiduidade no arrendado e de aí tomar as suas refeições (ao que resultou do depoimento da irmã, com excepção dos lanches, que ali faz questão em tomar), de aí receber os seus amigos ou quaisquer visitas, sem prejuízo das deslocações que ali faz e tempos que nele permanece, contactando com os vizinhos e com os objectos que lhe são familiares.

Em suma, porque a prova produzida -mesmo a testemunha L..., indicada pelo autor, inquilino do 3.º D.º, fez eco da apontada realidade, aludindo ao facto de, nos tempos que se seguiram à morte da mãe, ter visto a ré por algumas vezes, cinco ou seis, segundo a sua avaliação, no locado- foi no sentido das respostas restritivas que mereceram os art.ºs 1.º e 2.º da base instrutória, são as mesmas mantidas. Todavia, por contraditada pela mesma prova, e contraditória com aquela que mereceu o art.º 10.º, para não mencionar o seu teor eminentemente conclusivo e contentor de um conceito jurídico -residência- que, por ser nuclear à discussão da causa, deveria ter sido evitado, altera-se a resposta dada ao art.º 3.º, de forma a que do mesmo passe a constar que “Desde 1 de Junho de 2010 a ré passou a estar instalada, dado o seu internamento, na J...”.
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II. Fundamentação

De facto

Agora definitivamente estabilizada a matéria de facto, são os seguintes os factos a considerar:

1. O autor e mulher, C..., casados sob o regime da comunhão geral de bens são donos e legítimos possuidores das fracções autónomas designadas pelas letras F e D, correspondentes ao 1.º e 3.º andares, lado direito, com arrumo independente no rés do chão a primeira e garagem com arrumo anexo no rés do chão a fracção D, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na Rua ..., em Coimbra, inscrito na respectiva matriz predial urbana da freguesia de ..., sob o artigo ... e descrita na Conservatória do Registo Predial de Coimbra, sob o nº ..., que veio à posse do ora autor por partilha da herança, aberta por óbito da sua irmã, D... (al. A)[2].

2. Através de contrato reduzido a escrito, realizado no dia 5 de Setembro de 1966, a irmã do autor, cedeu o gozo e fruição do primeiro andar direito e garagem do prédio sua propriedade, a que corresponde a fracção “ F “, a E... (al. B).

3. O contrato foi celebrado pelo prazo de um ano, com início do dia 1 do mês de Outubro de 1966 e com termo no último dia do mês de Setembro de 1967, sucessivamente renovável, por iguais períodos e nas mesmas condições (al. C).

4. A renda mensal estabelecida foi no valor de 1050$00 (mil e cinquenta escudos), sendo, actualmente, face às sucessivas actualizações legais, no valor de 51,48 € (cinquenta e um euros e quarenta e oito cêntimos) (al. D).

5. O local arrendado destinava-se à habitação (al. E).

6. Tendo o arrendatário E... falecido, o arrendamento transmitiu-se à sua mulher, F... (al. F).

7. Com o óbito de F..., ocorrido em 15/12/2009, ocorreu transmissão do arrendamento para a ré, filha que com eles anteriormente habitava, possuidora de deficiência permanente, para a qual se operou a transmissão do arrendamento (al. G).

8. A Ré é portadora, de nascença de Síndrome de Down-Trissomia XXI (malformação cromossómica), que implica atraso mental (doença do foro psíquico/psiquiátrico) e, em razão dessa doença, foi-lhe atribuída, em Junta Médica de 22/07/2003, uma incapacidade permanente de 84% (Cap.: X, Nº: 3.3, Grau: III da TNI aprovada pelo DL 341/93 de 30/09) (al. H).

9. Posteriormente a Junho de 2010 ninguém habita no arrendado (resposta ao art.º 1.º).

10. Altura em que a ré deixou de pernoitar no arrendado, de aí tomar as suas refeições, de aí receber os seus amigos, ou quaisquer visitas (resposta ao art.º 2.º).

11. Desde 1 de Junho de 2010 a ré passou a estar instalada, dado o seu internamento, na J... (resposta ao art.º 3.º.

12. E quando aí não se encontra, como sucede por vezes ao fim de semana, passa-os, alternadamente, com cada um dos seus três irmãos, na residência destes, dada a sua falta de auto-suficiência (respostas aos art.ºs 4.º e 5.º).

13. Dentro das limitações próprias da doença que sofre e da incapacidade que é portadora, a ré tem alguma capacidade de auto-suficiência, conseguindo alimentar-se, vestir-se, tratar da sua higiene pessoal (resposta ao art.º 6.º).

14. Devidamente acompanhada, consegue também confeccionar alimentação menos elaborada, ir às compras, executar tarefas domésticas que não exijam complexidade (resposta ao art.º 7.º).

15. A ré considera o locado como sendo a sua casa (resposta ao art.º 8.º).

16. Após o decesso dos pais, e porque as irmãs e irmão da ré residem e trabalham fora de Coimbra, não a podendo assim a acompanhar diariamente, decidiram que ela não deveria ficar sozinha no locado (resposta ao art.º 9.º).

17. Por motivo de força maior e atenta a doença, a ré foi recebida pela J..., em ..., Coimbra, tendo entrado para aquela instituição em 01/06/2010, ali permanecendo de 2.ª feira de manhã até 6.ª feira ao fim da tarde (resposta ao art.º 10.º).

18. É no locado que a ré tem a sua roupa, e demais pertenças pessoais, continuando aquela casa com toda a mobília necessária para suporte de vida da ré: quartos mobilados com camas, mesinhas de cabeceira, guarda-fatos; salas mobiladas com mesas, cadeiras, sofás, armários, televisão, rádio; cozinha com fogão, frigorífico, mesa, bancos, máquina de lavar, pratos, talheres, copos e demais trem de cozinha (resposta ao art.º 14.º).

19. É para aquela residência que continua a ser enviada toda a correspondência destinada à ré (resposta ao art.º 15.º).

20. Os contratos de fornecimento de serviços básicos, como água, electricidade e sinal de televisão continuam em vigor e regularmente aquela casa é limpa e as flores regadas e tratadas também regularmente (resposta ao art.º 16.º).

21. A ré sente-se verdadeiramente feliz e segura, assim estabilizando o seu estado emocional, quando chega ao locado e entra no seu quarto, onde tem todas as suas coisas e pertenças pessoais (resposta ao art.º 17.º).

22. Quando em Junho do ano passado foi operada às cataratas, ela desejou fazer o pós-operatório no locado, onde permaneceu, com carácter de permanência, duas semanas seguidas (resposta ao art.º 18.º).

23. Continua inscrita no médico de família no Centro de Saúde de ...e é seguida regularmente na consulta de ginecologia do Centro Hospitalar de Coimbra, unidades de saúde que se localizam na área do locado (resposta ao art.º 19.º).
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De Direito

iii. Sendo o elenco factual o que se deixou consignado, cabe agora decidir se o autor logrou provar, conforme lhe competia, atentas as regras de distribuição do respectivo ónus coonsagradas no art.º 342.º do Código Civil[3], os factos integradores do fundamento resolutivo invocado.

Resulta do elenco factual a considerar, e nisso as partes não dissentem, que entre autor e ré vigora contrato de arrendamento urbano, mediante o qual o primeiro se encontra obrigado a proporcionar à segunda, mediante uma retribuição, o gozo temporário da fracção identificada em 2.

Assente está -e também aceite por autor e ré- ser aplicável aos presentes autos, atento o disposto no seu art.º 59.º, n.º 1, o regime emergente da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro (NRAU), logo, o art.º 1072.º. Epigrafado de “Uso efectivo do locado”, impõe este dispositivo que o arrendatário faça uso efectivo do arrendado para o fim contratado, assumindo-se como ilícito contratual o não uso por período superior a um ano, conforme resulta claramente do confronto deste n.º 1 com a norma de exclusão que se lhe segue.

Tal violação do dever que, para o inquilino, decorre do contrato -e que encontra a sua justificação no facto da não utilização do imóvel implicar a sua desvalorização[4]- é susceptível de fazer nascer na esfera jurídica do senhorio o correspondente direito de resolver o acordo celebrado, como decorre do disposto na al. d) do n.º 2 do art.º 1083.º.

Não tendo embora correspondência no anterior texto, deverá entender-se que, impondo o n.º 1 do art.º 1072.º que o arrendatário use efectivamente o arrendado, uso que terá de ser aferido atendendo ao fim contratualmente previsto, tratando-se de arrendamento para habitação, o dever aqui consagrado se reconduz a final ao velho conceito de residência permanente, impondo ao arrendatário que tenha no locado, com carácter de habitualidade e estabilidade, o seu centro de vida. Na verdade, e pese embora a formulação menos específica do dever aqui consagrado, a verdade é que o legislador não quis seguramente excluir dos fundamentos de resolução a falta de residência permanente do inquilino, isto quando de arrendamento para habitação se trate, posto que estamos perante a forma mais óbvia de violação do contrato na modalidade de não uso, atenta a destinação que as partes contratualmente fixaram ao locado, entendimento que, de resto, encontra conforto na alusão que no art.º 14.º n.º 2 do diploma se faz a tal conceito[5].

Valendo aqui toda o labor doutrinário e jurisprudencial precedente na construção do conceito de residência permanente, assim se entende o lugar onde o inquilino “tem o centro ou a sede da sua vida familiar e social e da sua economia doméstica; a casa em que, estável ou habitualmente dorme, toma as suas refeições, convive e recolhe a sua correspondência, o local onde tem instalada e organizada a sua vida familiar, o seu lar”[6].

Finalmente, e conforme uniformemente vinha sendo entendido, erigindo-se o não uso por mais de um ano em facto constitutivo do direito a resolver o contrato, sobre o senhorio recai o ónus da respectiva prova (vide art.º 342.º, n.º 1).

Retornando agora ao caso sob apreciação, logo se verifica que, à luz do elenco factual apurado, e dadas as -mantidas- respostas restritivas que mereceram os artigos 1.º e 2.º da base instrutória, ainda a aceitar que a partir da data do seu internamento na J..., que teve lugar no dia 1 de Junho de 2010, a ré deixou de ter no locado a sua residência permanente, a verdade é que, tendo por referência a data da propositura da acção, instaurada que foi em 28/12/2010, o prazo de 1 ano prescrito na lei não tinha ainda decorrido.

Defende todavia o recorrente que, ainda assim, a factualidade a ter em conta permite concluir pela violação do dever que sobre o inquilino impende nos termos do citado art.º 1072.º, n.º 1 em termos susceptíveis de fundamentar o pretendido despejo, uma vez que, não obstante o não decurso do prazo de 1 ano, estamos perante ilícito contratual que, pela sua gravidade, legitima a resolução do contrato.

Vejamos se assim é.

Adoptando uma diferente metodologia, o ressuscitado (embora novel) art.º 1083.º sucedeu, ainda que sem total coincidência, aos art.ºs 63.º e 64.º do RAU. Assim, para lá da consagração de uma sorte de cláusula geral, a cujo crivo terá de ser submetido o ilícito verificado, em ordem a aferir da sua gravidade e consequente susceptibilidade, ou não, de comprometer a subsistência do vínculo contratual, o legislador optou agora por uma enumeração que é claramente exemplificativa (como decorre da utilização do advérbio nomeadamente). Dentre os fundamentos resolutivos capazes de conferirem ao senhorio o direito a resolver o contrato surge enunciada precisamente a violação do dever consagrado no n.º 1 do art.º 1072.º, desde que preencha a aludida cláusula geral, atingindo um nível de gravidade ou produzindo consequências tais que não seja exigível àquele senhorio, de um ponto de vista objectivo, a manutenção daquele contrato[7].

Face à disposição legal pretende o recorrente que situações há que, não preenchendo embora a previsão normativa de nenhuma das diversas alíneas aqui enunciadas, pela sua gravidade objectiva tornam inexigível ao senhorio que mantenha o contrato em vigor, o que se verificaria no caso vertente.

“Prima facie”, e dado o reconhecido carácter não taxativo dos fundamentos resolutivos aqui enunciados, não se duvida que causas aqui não previstas, preenchendo a cláusula de especial gravidade consagrada no n.º 1, ainda que atendendo apenas às suas consequências, seja suficiente para fundamentar a resolução do contrato. Não obstante, já se afigura difícil conceber que, atribuindo a lei de forma expressa relevância ao não uso, mas apenas se perdurar por mais de um ano, se possa, pela via do preenchimento da cláusula do n.º 1, conceder o mesmo efeito ao não uso que não observe aquele requisito temporal quando a lei, repete-se, entendeu dever relevar tal facto apenas quando se prolongue por um determinado hiato de tempo, que fixou em 1 ano. De todo o modo, e ainda a perfilhar aqueloutro entendimento -que temos por incorrecto, mas claramente mais favorável à pretensão do recorrente- a verdade é que nada foi trazido aos autos em ordem a suportar o juízo da maior gravidade pressuposta no n.º 1 do preceito, quer quando se pondere a situação, objectivamente e em si mesma considerada (note-se que a ré, dentro das suas limitações, vem fazendo do locado algum uso), quer as consequências daí resultantes para o senhorio, aqui autor, relativamente às quais nada se sabe.

Atento o exposto, improcede também este fundamento recursivo.
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iv. Finalmente, e um pouco -dizemos nós- em desespero de causa, vem o recorrente esgrimir com o abuso de direito, que resultaria do facto da ré, com a sua apurada conduta, “atentar manifestamente contra os limites do fim social e económico do arrendamento, ao pretender manter um arrendamento para habitação apenas e com umas esporádicas idas ao locado, sem qualquer tipo de ocupação justificável”.

A este respeito, sendo certo quanto justamente acentua a recorrida quando refere tratar-se de questão nova, não colocada perante o Tribunal recorrido, que sobre ela não se pronunciou, e sendo igualmente exacto que, enquanto meio de impugnação, o recurso visa tão só a reapreciação do decidido, a verdade é que, sendo o abuso de direito uma excepção de conhecimento oficioso e tendo-se a ré sobre ela pronunciado nas suas contra alegações, conhecer-se-á deste último fundamento do recurso.

Nos termos do art.º 334.º “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Em tese geral, como sabido, a doutrina do abuso do direito tem a função de “obstar a injustiças clamorosas a que poderia levar, na espécie, a aplicação de determinações abstractas da lei a um caso concreto”[8]. Na configuração deste instituto, o transcrito art.º 334.º consagra uma concepção objectivista: o excesso cometido no exercício do direito tem de ser manifesto, dispensando-se embora a consciência, por parte do agente, da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social e económico do direito exercido, bastando que o seja na realidade.

Ora, no caso em apreço, se é a própria lei que não atribui relevância bastante à conduta da ré para que o ilícito em causa se assuma como fundamento resolutivo do contrato, não se vê que direito esteja a ré a exercer, para mais em termos clamorosamente ofensivos da boa fé, assim improcedendo o derradeiro argumento recursivo.
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III. Decisão

Atento o exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, mantendo a sentença recorrida.

Custas a cargo do apelante.
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Sumário

I. O art.º 1072.º impõe ao arrendatário que faça uso efectivo do arrendado para o fim contratado, assumindo-se como ilícito contratual o não uso por período superior a um ano, conforme resulta claramente do confronto deste n.º 1 com a norma de exclusão que se lhe segue.

II. Tal violação do dever que, para o inquilino, decorre do contrato -e que encontra a sua justificação no facto da não utilização do imóvel implicar a sua desvalorização- é susceptível de fazer nascer na esfera jurídica do senhorio o correspondente direito de resolver o acordo celebrado, como decorre do disposto na al. d) do n.º 2 do art.º 1083.º.

III. Não tendo embora correspondência no anterior texto, deverá entender-se que, impondo o n.º 1 do art.º 1072.º que o arrendatário use efectivamente o arrendado, uso que terá de ser aferido atendendo ao fim contratualmente previsto, tratando-se de arrendamento para habitação, o dever aqui consagrado se reconduz a final ao velho conceito de residência permanente, impondo ao arrendatário que tenha no locado, com carácter de habitualidade e estabilidade, o seu centro de vida.

IV. Erigindo-se o não uso por mais de um ano em facto constitutivo do direito a resolver o contrato, sobre o senhorio recai o ónus da respectiva prova (vide art.º 342.º, n.º 1).
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Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Hélder Almeida

[1] Ao passo que “a decisão da matéria de facto está sujeita a um regime diferenciado de valores negativos -a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação- a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: aquela decisão é impugnável por meio de reclamação, acto contínuo à sua publicação, e não é autonomamente recorrível, i.e., apenas pode ser impugnada no recurso que for interposto da sentença final, podendo, neste caso o controlo sobre o julgamento da matéria de facto ser feito pela Relação, nos termos gerais (art.ºs 653 n.º 4, 2.ª parte, e 712.º do CPC)”. Do excelente aresto desta Relação de 19/12/2012, proferido no processo n.º 31156/10.3 YIPRT.C1, relatado pelo Ex.mº Sr. Juiz Des. Henrique Antunes.

[2] Nota: tal é o que resulta da escritura de partilha cuja cópia faz fls. 21 a 27 dos autos, tendo sido omitida no despacho que determinou a rectificação da redacção primitiva da al. em causa -fls. 113-  a especificação agora feita, a despeito de então se ter ordenado, correctamente, a rectificação do teor dos art.ºs 1.º e 2.º da p. i.
[3] Diploma legal a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.

[4] Assim, Menezes Leitão, in “Arrendamento urbano”, Almedina, págs. 54/55, com quem se concorda.

[5] Neste mesmo sentido, aresto da Relação do Porto de 20/12/2012, proferido no processo n.º 2017/11.0 JTPRT.P1, acessível em www.dgsi.pt.


[6] Aresto do STJ de 5/3/85, BMJ 345, pág. 172, citado por Aragão Seia, no seu “Regime do Arrendamento Urbano”, Almedina, págs. 298/299.

[7] Neste sentido, que temos por correcto, Maria Olinda Garcia, in “A nova disciplina do arrendamento urbano”, 2006, pág. 23, e ainda acórdão da Relação do Porto de 14/10/2010, processo n.º 1451(09.0 TJPRT.P1, acessível em www.dgsi.pt, que enuncia deste modo os pressupostos de resolução do contrato de arrendamento “1) incumprimento pela outra parte, que se presume culposo (art.º 799.º do Código Civil); 2) é necessário que o incumprimento seja (objectivamente) grave; 3) e que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento. Seja qual for o tipo de incumprimento contratual do locatário (…), a sua relevância para efeitos de resolução do contrato tem que ser ponderada casuisticamente, em face das circunstâncias concretas de cada contrato e de cada infracção, só podendo constituir fundamento de resolução as infracções que, pela sua gravidade e consequências, tornam inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento”. Defendendo a tese de que, verificada uma das situações previstas nas diversas alíneas do n.º 2, se presume que assumem a gravidade pressuposta pelo n.º 1, fazendo recair sobre o inquilino o ónus de provar a escassa relevância do ilícito no contexto do programa contratual, aresto da mesma Relação de 8 de Maio de 2010, proc. n.º 451/09.4 TJPRT.P1, disponível no mesmo sítio. 
[8] cfr. Manuel de Andrade, in Teoria Geral das Obrigações, Coimbra, 1958, a págs. 63, 64.