Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
598/07.2TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
LEGAL REPRESENTANTE
ORGÃOS DE ADMINISTRAÇÃO - REGISTO E PUBLICAÇÃO
CITAÇÃO DA SOCIEDADE EM ADMINISTRADOR QUE CESSOU ANTES FUNÇÕES
Data do Acordão: 02/12/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – 5º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 21º, Nº 1, DO CPC; 166º DO CSC; 3º, 14º, 15º E 70º DO CÓDIGO REGISTO COMERCIAL
Sumário: I – Nos termos do artº 21º, nº 1, do CPC, as sociedades são representadas por quem a lei, os estatutos ou o pacto social designarem.

II –Nos termos do artº 166º do CSC, os actos relativos às sociedades estão sujeitos a registo e a publicação, nos termos da lei respectiva.

III – Dos artºs 3º, nº 1, al. m), 15º, nº 1, e 70º, nº 1, do Código Registo Comercial, quer a designação, quer a cessação de funções, por qualquer causa que não tenha a ver com o decurso do tempo, dos órgãos de administração das sociedades, são factos que estão sujeitos a registo e a publicação obrigatórios.

IV – Por força do artº 14º, nº 2, do CRC, tais factos só produzem efeitos contra terceiros depois da data da publicação do registo dos mesmos, isto é, tais factos só são oponíveis a terceiros depois da data em que o seu registo for publicado.

V – Uma sociedade deve ter-se como regularmente citada se tal ocorrer na pessoa de um seu administrador que, apesar de ter cessado funções de administrador, continuava, no momento, a ter a posição de representante legal da sociedade perante terceiros, por ainda figurar no registo comercial como sendo administrador dessa sociedade.

Decisão Texto Integral: 1
Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1. Por sentença proferida, em 10/7/2007, nos autos de processo especial de insolvência, autuados sob o nº 598/07.2TBLRA, que correm termos no 5º juízo cível de do tribunal judicial de Leiria, foi decretada a insolvência da ali requerida A....

2. Não se tendo conformado com tal sentença, a requerida dela interpôs recurso, o qual foi recebido como apelação, com subida imediata, em separado dos autos principais e com efeito devolutivo.

3. Nas correspondentes alegações de recurso que apresentou, a requerida/apelante concluiu as mesmas nos seguintes termos:
A) A administradora da ora recorrente foi notificada, com muita surpresa, da sentença do 5º Cível de Leiria – em que foi declarada a insolvência da A....
B) A apelante A..., jamais foi citada no presente processo.
C) Após a notificação da actual administradora, a mesma procurou saber como tal poderia ter acontecido, uma vez que nunca tinha sido citada, nessa altura foi informada pelo antigo administrador, B..., de que ele tinha sido citado, tendo prestado nos autos a informação de que já não era Administrador da referida empresa.
D) Acontece que, por despacho a fls ., da qual a apelante teve conhecimento após a notificação da sentença, o Tribunal a quo considerou que a sociedade A... teria sido citada na pessoa do seu legal representante B... e passa-se a transcrever: (…).
E) Não se compreende a posição do Tribunal a quo, que atribui ao registo um efeito constitutivo para efeitos de Administração, e a sua eficácia perante terceiros, quando o que esta em causa é um efeito directo na sociedade, se foi ou não citada na pessoa de um ex Administrador.
F) Ora, dispõe o art. 404 nº 2 do C.S.C. que “a renuncia só produz efeito no final do mês seguinte aquele em que tiver sido comunicada, salvo se entretanto foi designado ou eleito o substituto.
G) No caso em concreto, aquando da citação do Dr. B..., este já não desempenhava qualquer função na empresa A..., visto que há muito que havia renunciado ao seu cargo de Administrador, designadamente, dia 31/01/2007, cfr acta nº 38 (trinta e oito), que aqui se junta para todos os efeitos legais como doc. nº 1, tendo sido designada como administradora a Srª. Drª. C....
H) Não pode ser atribuído qualquer efeito à citação na pessoa de um ex Administrador.
I) Salvo melhor opinião, julgamos que a citação, efectuada na pessoa do Ex Administrador Sr. Dr. B... é nula nos termos do art 198 nº 1 do C.P.C., não podendo produzir qualquer efeito para a A....
J) No que diz respeito à sociedade A..., a mesma nunca recebeu qualquer citação no presente processo, salvo a notificação da sentença, havendo uma falta de citação de acordo com o disposto no art. 195 nº 1 al. e) do C.P.C., com as devidas consequências legais.
L) Deste modo, todo o processo se encontra enfermo por falta de citação da ora apelante”.

4. Não foram apresentadas contra-alegações.

5. Corridos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e de decidir.
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II- Fundamentação
A) Questão prévia/junção de documento.
Atento ao objecto do presente recurso, e à questão nela em discussão, admite-se a junção aos autos do documento apresentado pela apelante com as suas alegações de recurso (cfr. artºs 706 e 524 do CPC).
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B) De facto
Para além daqueles referidos no ponto I (vg. sob o nº 1), com relevância para a decisão do presente recurso devem ter-se como assentes os seguintes factos (que resultaram as diversas peças e documentos que acompanharam os presentes autos):
1. Para os termos do processo insolvência referido no nº 1 do ponto I a requerida foi citada, em 12/02/2007 (e na sequência de carta registada, com AR, que para o efeito lhe foi enviada), na pessoa do dr. B... (cujo cargo de administrador único da sociedade/requerida constava então do registo lavrado na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa).
2. Na sequência de tal citação, o referido B... veio informar ao processo já não ser administrador da sociedade requerida, em virtude de ter renunciado a tais funções, desde 31/01/2007, informando ainda que, desde tal data, a nova administradora daquela sociedade era a drª C....
3. Na sequência dessa informação veio a ser proferido, em 17/05/2007, o despacho de fls. 172 (fls. 43 destes autos) considerando-se, pelas razões aí aduzidas, válida e regular a citação referida em 1, muito embora no final do mesmo se tivesse ainda ordenado que, para efeitos tão só dos ulteriores termos da causa, se atentasse à identidade da nova administradora.
4. Em assembleia geral da requerida, realizada em 31/01/2007, foi deliberado, por unanimidade, aceitar a renúncia apresentada, nessa data, pelo então administrador da requerida dr B..., com efeitos a contar de 1/2/2007, e, em sua substituição, nomear a drª C... para o preenchimento e desempenho daquele lugar e função de administradora da requerida.
5. Nessa assembleia foi ainda deliberado, por unanimidade, alterar a sede social da requerida para local diferente daquele que constava (até então) do registo efectuado naquela mesma Conservatória, e com o fundamento de as instalações onde a mesma se encontrava domiciliada estarem a ser objecto de venda.
6. A cessação de funções (como administrador único), na sociedade requerida, do administrador dr B... foi registada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa em 24/02/2007.
7. A designação da drª C... como administradora única da requerida foi registada, naquela mesma Conservatória, em 04/05/2007.
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C) De direito
É sabido que é pelas conclusões das alegações de recurso que se fixa e delimita o objecto dos recursos (cfr. artºs 684, nº 3, e 690, nº 1, do CPC, o último na versão anterior ao DL 303/2007 de 24/8 – cfr. artºs 9, al. a), 11, nº 1, e 12, nº 1, do citado DL).
Ora, compulsando o teor das conclusões das alegações do recurso – em total sintonia, aliás, com a sua parte motivatória -, verifica-se que a única questão que importa aqui apreciar e decidir traduz-se em saber se a requerida/apelante se deve ou não considerar como tendo sido regularmente citada para o processo em que foi declarada a sua insolvência, e, em caso de a resposta negativa, quais as consequências jurídicas daí a extrair?
Vejamos então.
Tal como decorre das conclusões das sua alegações de recurso (e tendo ainda em conta o despacho referido no nº 3 do ponto B-II dos factos assentes), a apelante centra apenas a questão no facto de ter sido citada para o aludido processo de insolvência, contra si movido, na pessoa do drº B..., numa altura em que o mesmo já havia cessado as funções de seu administrador (único), sendo então esse cargo desempenhado por uma outra pessoa (alegando ainda ter só tomado com conhecimento de tal citação já depois de ter sido notificada da sentença que decretou a sua insolvência).
No termos do disposto no artigo 21, nº 1, do CPC, as sociedades são representadas por quem a lei, os estatutos ou o seu pacto social designarem.
Resulta dos autos (cfr. certidão da Conservatória do Registo Comercial de Lisboa) que a requerida é uma sociedade anónima, dispondo o seu pacto ou contrato social que a administração era exercida por um só administrador. Situação essa plenamente válida (cfr. disposições conjugadas dos artºs 278, nº 2, 390, nº 2, e 391, nº 1, do CSC).
Nessa medida, a lei confere a esse administrador exclusivos e plenos poderes de representação da sociedade (cfr. artº 405 ex vi artº 390, nº 2, do CSC).
Pois bem, no processo em causa procedeu-se à citação da requerida, por via postal (carta registada com AR), na pessoa do drº. B....
Citação essa que ocorreu no dia 12/02/2007.
Porém, alega a apelante que nessa altura o referido drº. B... já não era o seu representante legal, uma vez que cessara as suas funções de administrador único, por expressa renúncia ao cargo apresentada no dia 31/01/2007, a qual foi logo aceite (em assembleia geral) nesse mesmo dia, tendo, em consequência, sido logo ali nomeada, em substituição daquele (e para o mesmo cargo) a drª C..., e para exercer funções logo no dia seguinte. Materialidade fáctica que encontra suporte nos factos dados como assentes (cfr. nº 4).
Nos termos do estatuído no artigo 166 do CSC, os actos relativos às sociedades estão sujeitos a registo e publicação nos termos da lei respectiva.
Ora resulta do disposto nas disposições conjugadas dos artºs 3, nº 1 al m), 15, nº 1, e 70, nº 1, do Código do Registo Comercial (CRC) que quer a designação, quer a cessão de funções, por qualquer causa que não tenha a ver com o decurso do tempo, dos órgãos de administração das sociedades, são factos que estão sujeitos a registo e publicação obrigatórios (o mesmo podendo, inclusive, também dizer-se em relação à mudança da sede da sociedade, no termos da al. o) do nº 1 daquele primeiro normativo legal e demais preceitos legais citados).
Factos que, assim, e por força do estatuído no artº 14, nº 2, daquele mesmo diploma legal, só produzem efeitos contra terceiros depois da data da publicação do registo dos mesmos, isto é, tais factos só são oponíveis a terceiros depois da data em que o seu registo for publicado.
Como salienta, a tal propósito, o prof. Seabra Lopes (in “Direito dos Registos e do Notariado, 4ª ed., revista e actualizada, de 2007, Almedina, pág. 216”), esta noção de terceiros não deve aqui ser confundida com aquela outra feita no sentido técnico-registral (de terceiros com direitos ou interesses incompatíveis entre si e recebidos de autor comum), mas entendida antes num conceito mais amplo ou lato, por forma abranger quaisquer pessoas, incluindo os próprios interessados com interesses incompatíveis.
Depois de no seu nº 3 dispor que a falta de registo não pode ser oposta aos interessados pelos representantes legais das sociedades, a quem incumbe a obrigação de o promover, o citado artº 14 do CRC determina, todavia, e ainda, que o disposto no artigo não prejudica o estabelecido no Código das Sociedades Comerciais (e bem assim na legislação aplicável às sociedades anónimas europeias).
De entre algumas excepções ao referido princípio previstas no CSC, importa aqui destacar o artº 168, nº 2, onde se dispõe que “a sociedade não pode opor a terceiros actos cuja publicação seja obrigatória sem que esta esteja efectuada, salvo se a sociedade provar que o acto está registado e que o terceiro tem conhecimento deles”.
Ora, posto isto, e reportando-nos ao caso em apreço, resulta, desde logo, da matéria factual assente que quando foi levada a efeito a citação da requerida/apelante na pessoa do dr B... este ainda figurava no registo comercial como sendo o administrador único daquela, não tendo ainda sido promovido o registo e publicação quer da cessação das suas funções (registo esse que só veio a ocorrer mais tarde, ou seja, em 24/2/2007), quer mesmo da designação da drª C... para o exercício de tais funções e em substituição do primeiro (registo esse que só veio a ocorrer muito mais tarde, ou seja, em 04/05/2007).
Assim - e apesar do estatuído no artº 404, nº 2, 2ª parte, do CSC -, nem a cessação (por renúncia) de funções do anterior representante legal da apelante, o dr B..., nem sequer a designação da nova administradora, a drª C..., que a partir daquela data o substituiu, podem produzir efeitos contra terceiros e como tal ser-lhe opostas (neste caso à requerente da insolvência).
E nessa medida, e face nomeadamente às normas registrais supra citadas, na altura em que foi citado o drº B..., apesar de ter cessado funções de administrador, continuava, todavia, a ter a posição de representante legal da sociedade requerida perante terceiros (neste caso perante a requerente do processo da sua insolvência).
E desse modo é de considerar como regulamente efectuada a citação da ré, na pessoa do dr B.... No sentido defendido, vidé Ac. do STJ de 25/06/1996, in “BMJ 458 – 354” (abordando uma situação muito idêntica à destes autos); Ac. do STJ de 17/12/1997, in “BMJ 472 – 521”; Ac. RP de 02/12/1999, in “JTRP000276287/ITIJ/Net” e o prof. Seabra Lopes, in “Ob. cit., págs. 215/216 e 260”.
Termo, pois, em que se terá de julgar, como se julga, improcedente o recurso, confirmando-se a decisão da 1ª instância (cuja decisão de fundo, relacionada decretamento da insolvência da apelante, não foi directamente atacada neste recurso).
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III- Decisão
Assim, em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão da 1ª instância.
Custas pela massa insolvente da apelante.

Coimbra, 2008/02/12