Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1154/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: CHEQUE SEM PROVISÃO
PREJUÍZO PATRIMONIAL
Data do Acordão: 06/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE FERREIRA DO ZÊZERE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIME
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 11º, DO D. L. 454/91, DE 28/12 E 857º, DO C. CIVIL
Sumário: Se numa acção executiva, exequente e executado acordam em reduzir o montante da quantia exequenda e na forma faseada de pagamento desta, o cheque emitido pelo executado, para pagamento imediato duma dessas prestações, que seja devolvido por falta de provisão, não haverá prejuízo patrimonial por não ter havido, expressa pelas partes, a vontade de novação.
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
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I – Relatório.
1.1. Submetida a julgamento, após pronúncia pela alegada autoria material consumada de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelo artigo 11.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 454/91, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Setembro, a arguida A..., melhor identificada mormente a fls. 755, acabou absolvida da prática do ilícito assim apontado.
1.2. Irresignada com tal veredicto dele interpôs recurso a assistente B..., o qual, depois de devidamente motivado, contém o quadro de conclusões seguintes visando obter a condenação da recorrida:
1.2.1. No momento da outorga do acordo celebrado nos termos do artigo 882.º do Código de Processo Civil [CPC], no âmbito do Processo Executivo n.º 563/00 do 1.º Juízo Cível de Loulé, a arguida reconheceu e aceitou a existência de uma divida, e, após a entrega de um requerimento com o respectivo plano de pagamento em anexo, ficou absolutamente ciente quer da redução/fixação da quantia exequenda, quer dos direitos e obrigações que adquiria e assumia (“pacta sunt servanda”), procedendo à novação de outra anterior quantia exequenda, que ficava substituída pela ora acordada entre as partes (artigos 857.º; 859.º e 862.º, todos do Código Civil [CC]).
1.2.2. Por sua livre vontade, exequente (assistente) e executada (arguida), alteraram a causa de pedir, o pedido, e, consequentemente, o título executivo originário.
1.2.3. No mesmo acordo estão expressamente ínsitas a novação, redução e fixação da quantia exequenda, o que constitui uma verdadeira confissão expressa de dívida por parte da executada (arguida) e a substituição da obrigação exequenda originária (cfr. artigos 293.º; 294.º e 300.º do CPC e 857.º; 859.º e 862.º do CC).
1.2.4. Como consequência da citada novação, redução e fixação da quantia exequenda, e, sobretudo, visando evitar a remoção de bens, a arguida entregou à assistente no dia 12 de Julho de 2001, o cheque n.º 8567019824 sobre o Banco Comercial Português, em causa nos presentes autos, no montante (então) de 10.000.000 Esc.
1.2.5. Com efeito, como consta dos factos provados em audiência de julgamento, tendo por base relações comerciais anteriores entre arguida e assistente, das quais resultava uma dívida superior a Esc. 55.000.000$00, a assistente sofreu prejuízo patrimonial, desde logo, quando reduziu o montante da quantia peticionada na Acção Executiva, na convicção de que imediatamente receberia o montante de Esc. 10.000.000$00, titulado pelo cheque.
1.2.6. Na sequência da emissão do cheque constante dos autos, a assistente teve elevados prejuízos e padece de uma situação financeira paupérrima.
1.2.7. Destinando-se o cheque ao pagamento parcial da quantia exequenda, a assistente tem o direito de receber o valor desse cheque, não simplesmente porque é dele portadora, mas porque tinha e tem a posição de credora na relação jurídica que subjaz à emissão do cheque e que este se destinou a satisfazer.
1.2.8. Foram perfeitamente preenchidos pela conduta da arguida todos os elementos constitutivos do tipo legal de crime de emissão de cheque sem provisão, mormente a existência de uma relação patrimonial homologada judicialmente que subjaz à emissão cartular, bem como elemento prejuízo patrimonial.
1.2.9. Pois, apesar do acordo de pagamento ter sido apenas parcialmente homologado, a relação obrigacional subjacente à emissão do cheque existe validamente, o crédito nele titulado encontrava-se vencido e era exigível na data da sua entrega, alicerçando-se a emissão do titulo cartular na divida novada, reconhecida e confessada pela arguida na parte que o citado acordo foi validado (homologado) pelo Ex.mo Juiz de Loulé.
1.2.10. A emissão do referido cheque pela arguida, representou, em termos monetários, a assunção válida de uma dívida própria desta para ser cumprida na data da emissão e entrega desse titulo, sendo que, o cheque funciona como meio de pagamento imediato da relação que lhe está subjacente.
1.2.11. Em consequência, ante a verificada falta de provisão, a conduta da emitente do cheque lesou interesses patrimoniais da assistente enquanto tomadora, interesses esses legitimamente constituídos.
1.2.12. Sendo que, a mera frustração do crédito pelo tomador do cheque apresentado a pagamento gera, no seu património, um prejuízo patrimonial.
1.2.13. A homologação parcial da transacção efectuada na acção cível ocorreu após o incumprimento por parte da arguida, razão pela qual se restringiu à fixação e redução da quantia exequenda, mostrando-se, por isso, prejudicado nos demais pontos.
1.2.14. Pelo que, a relação negocial da qual emergiu a obrigação de efectuar o pagamento do montante titulado pelo cheque em causa preexistiu à homologação do acordo para suspensão da instância executiva, sendo que o crédito titulado nesse titulo era válido e exigível.
1.2.15. Mostrando-se, consequentemente, preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime em análise por parte da arguida.
1.2.16. Atentos os factos, deveria a arguida ter sido efectivamente condenada em primeira instância, pela prática, como autora material, do assacado crime de emissão de cheque sem provisão.
1.3. Admitido o recurso, notificados para o efeito, responderam a arguida sustentando a manutenção do decidido e o Ministério Público, em contrário, sufragando a sua alteração nos moldes peticionados pela recorrente.
1.4. Remetidos os autos a este Tribunal, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente à subsistência do decidido na 1.ª instância.
Cumpriu-se com o disposto pelo artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal [CPP].
No exame a que alude o n.º 3 de igual preceito consignou-se que nada obstava ao conhecimento de meritis.
Colhidos os vistos dos M.mos Adjuntos, seguiram os autos para realização de audiência, a qual se processou nos termos do artigo 423.º do último diploma indicado.
Cabe, então apreciar.
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II – Fundamentação de facto.
2.1. A matéria de facto emergente como provada na decisão recorrida é a seguinte:
2.1.1. No âmbito das relações comerciais existentes entre B..., e a arguida, esta contraiu junto daquela empresa uma dívida de montante superior a € 274.338,84, em virtude da aquisição de diversos materiais e equipamentos com que esta equipou a discoteca Princess of Night, que explorava.
2.1.2. A fim de obter o pagamento da referida dívida, B..., instaurou, contra a arguida, uma acção executiva que corre os seus termos no Tribunal Judicial de Loulé com o n.º 563/00.
2.1.3. No âmbito da aludida acção, foi determinada a realização da penhora dos bens existentes no estabelecimento comercial da arguida com efectiva apreensão e remoção daqueles bens.
2.1.4. Tal penhora foi designada para o dia 12 de Julho de 2001, pelas 13.30 horas.
2.1.5. Nesse dia, como as partes chegaram a um acordo de pagamento, procedeu-se, apenas, à penhora dos bens da executada e arguida, sem remoção dos mesmos, tendo esta sido nomeada depositária daqueles, com o intuito de promover a sua utilização durante a época estival, que se aproximava, e foi requerida a suspensão da instância.
2.1.6. Nos termos do referido acordo «1. Exequente e executado aceitam reduzir e fixar a dívida exequente no montante de Esc. 55.000.000$00 [por lapso manifesto que se corrige, escreveu-se na decisão impugnada 55.000$00] (cinquenta e cinco milhões de escudos); 2. Para pagamento da quantia exequenda serão satisfeitas as seguintes prestações sucessivas: a) pagamento imediato de Esc. 10.000.000$00 através do cheque BCP n.º 8567019824 sacado sob a conta n.º 00254478337 emitido pela executada em 12 de Julho de 2001; b) pagamento da quantia de Esc. 10.000.000$00 pela executada no dia 15 de Agosto de 2001; c) pagamento da quantia de Esc. 10.000.000$00 pela executada no dia 15 de Setembro de 2001; d) as restantes prestações, até perfazerem o remanescente da quantia exequenda, serão satisfeitas através da entrega da quantia mensal e sucessiva de Esc. 5.000.000$00; 3. Acordam as partes em proceder de imediato a uma avaliação integral e descriminada da obra executada pela exequente de forma a quantificar numa relação DEVE/ HAVER as operações da obra realizada; 4. Decidem as partes dividir as custas em partes iguais.»
2.1.7. Na sequência deste acordo, a arguida entregou a B..., no dia 12 de Julho de 2001 e com essa data, o cheque com o n.º 6567019824, no montante de Esc. 10.000.000$00, sacado sobre o Banco Comercial Português.
2.1.8. Apresentado a pagamento na agência de Ferreira do Zêzere do BCP, o seu pagamento foi recusado por falta de provisão em 20 de Julho de 2001.
2.1.9. Em 27 de Novembro de 2002 foi proferida decisão na acção executiva que corre os seus termos no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Loulé com o n.º 563/00, nos termos da qual «... Nesta acção executiva para pagamento de quantia certa, sob a forma do processo ordinário, em que é exequente B... e executada A..., ambas com os sinais dos autos, atendendo à qualidade dos intervenientes e objecto em litígio, julgo parcialmente válida a transacção, constante do documento de fls. 42/43, que homologo, reduzindo o montante da quantia exequenda a Euros 274.338,83 (contravalor de Esc. 55.000.000$00), nos termos conjugados dos artigos 293.º, n.º 2, 294.º, 297.º, 299.º, a contrario e 300.º, todos do C.P.C. No mais, considerando que a executada já incumpriu o pagamento da dívida exequenda em prestações – cujos prazos de pagamento faseado foram ultrapassados e sucessivamente incumpridos – conforme se alcança de fls. 45 e seguintes dos autos, determina-se a prossecução dos autos, até integral satisfação da quantia exequenda que agora ficou estabelecida, ficando prejudicada a homologação dos pontos 2, 3 e 4, do acordo-transacção de fls. 42/43.»
2.1.10. A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que estava a emitir um cheque que apresentado a pagamento dentro do prazo legal seria devolvido por inexistirem fundos na conta, que permitissem o seu pagamento integral, e que tal cheque tinha o valor de Esc. 10.000.000$00.
2.1.11. Sabia, também, que com a sua conduta causaria prejuízo patrimonial ao tomador, como sabia que tal cheque se destinava a ser pago imediatamente.
2.1.12. Sabia, ainda, que a sua conduta era proibida por lei.
Mais se provou que:
2.1.13. A arguida vive com um filho menor e mãe.
2.1.14. Aufere o rendimento mensal de € 1.000,00.
2.1.15. A arguida não tem antecedentes criminais.
2.2. Relativamente aos factos não provados, consignou-se na dita decisão que assim se não considerou que:
“A arguida com a sua conduta causou prejuízo patrimonial ao tomador.”
2.3. A motivação probatória inserta ainda nessa decisão reza como segue:
“A convicção do Tribunal assentou na apreciação e valoração dos seguintes meios de prova.
Nas declarações da arguida, que afirmou ter relações comerciais com a assistente, com vista à montagem de discoteca denominada “Princess of Night”. No decurso dessa relação e após várias vicissitudes, nomeadamente no que se refere ao pagamento das quantias em dívida, a assistente instaurou uma acção executiva contra ela no Tribunal Judicial da Comarca de Loulé. Ordenada e executada a penhora dos bens existentes na mencionada discoteca, com remoção dos mesmos, foi efectuado, durante a sua realização, um acordo, nos termos do qual foi reduzida a quantia exequenda para Esc. 55.000.000$00 e estabelecido um programa faseado do seu pagamento. Nessa altura, entregou o cheque dos autos à assistente, embora tenha esclarecido que não tinha provisão nessa altura, o que só aconteceria passados uns dias.
As testemunhas Aires Jerónimo e Nuno Filipe Gameiro disseram que a arguida contratou a empresa assistente, de que são sócios-gerentes, para proceder ao equipamento da discoteca em questão. Na sequência desta relação contratual, a arguida não pagou nem o material instalado, nem os serviços prestados. Por isso, foi instaurada a já mencionada acção executiva. Ordenada a penhora nos termos já indicados, durante a sua realização foi celebrado um acordo com a arguida, nos termos do qual a quantia exequenda foi reduzida para Esc. 55.000.000$00 e estabelecido um plano faseado do seu pagamento. Como a primeira prestação se vencesse nesse mesmo dia, a arguida entregou o cheque dos autos para efectuar o seu pagamento. Apresentado a pagamento, foi devolvido por falta de provisão, pelo que a assistente não recebeu os Esc. 10.000.000$00 titulados por aquele. Disseram, ainda, que, em virtude desse acordo, foi requerida a suspensão da instância, embora se tenha concretizado a penhora dos bens nomeados, sem que se tenha, todavia, procedido à sua remoção, e tendo sido dada autorização a arguida, que ficou depositária dos mesmos, para os utilizar.
As testemunhas António Andrade, funcionário judicial que efectuou a penhora, José Lopes e Jacinto Moita, que se encontravam presentes, confirmaram que a assistente e a arguida concluíram o mencionado acordo, embora não tenham assistido às respectivas negociações.
A testemunha Hélder Cabrita, advogado da arguida que assistiu à celebração do acordo, disse que, devido a várias vicissitudes na execução do contratado entre a assistente e a arguida, nomeadamente quanto ao montante já pago por esta, confirmou que, para evitar a penhora com remoção dos bens nomeados pela assistente, se concluiu o acordo em questão, tendo a arguida entregue o cheque dos autos, embora tenha declarado que o mesmo só passado alguns dias teria provisão.
As testemunhas Rui Viana e Hermínio Gomes não assistiram aos factos descritos na acusação.
As testemunhas depuseram com isenção e objectividade, pelo que merecem toda a credibilidade.
Atendeu, também, ao cheque de fls. 13, ao depósito de valores de fls. 14, aos documentos de fls. 59 a 65 e documento de fls. 508, bem como ao C.R.C. junto aos autos.
Quanto ao facto não provado, não se fez prova do mesmo em audiência de julgamento.”
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III – Fundamentação de Direito.
3.1. No caso sub judice a este Tribunal era facultado conhecer de facto e de direito, atentas as disposições conjugadas dos artigos 364.º, n.º 1 e 428.º, n.ºs 1 e 2, este a contrario, ambos do CPP. Também que cabia conhecer, mesmo oficiosamente, dos vícios enumerados no artigo 410.º, n.º 2 do apontado diploma, caso eles resultassem do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum. Exceptuado tal conhecimento oficioso, não deve olvidar-se, ainda, que são as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que definem o âmbito do recurso (artigo 412.º, n.º 1 do CPP e Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed., pág. 335).
Vendo-se, então, as conclusões oferecidas pelo recorrente, sendo certo que nenhuma questão de conhecimento oficioso se nos antolha, e o que acaba de dizer-se, temos que o estrito objecto do presente recurso se cingirá, contudo, a estrita matéria de direito, qual seja de verificarmos se (em contrário do decidido) confluíam nos autos todos os pressupostos exigíveis à condenação da arguida, concretamente do prejuízo patrimonial causado à assistente por virtude da emissão do cheque em causa.
3.2. Respigando o que a propósito se escreveu na resposta oferecida em 1.ª instância pelo Ministério Público, relembremos em termos genéricos dos pressupostos essenciais à emergência do tipo legal apontado (actualmente um crime de dano [Ac. deste Tribunal da Relação prolatado em 25 de Fevereiro de 2003, e publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XVIII, Tomo I, págs. 73/4], cujos vêm mencionados no artigo 11.º do citado Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro. Assim:
A nível objectivo, e desde logo, a emissão e entrega de um cheque ao tomador ou beneficiário para pagamento de quantia superior a € 62,35 (verificando-se simultaneidade temporal entre a emissão e entrega do cheque).
Depois, a existência de falta de provisão, irregularidade de saque, proibição de pagamento, encerramento da conta sacada, alteração das condições da sua movimentação ou endosso recebido com conhecimento das causas de não pagamento integral; e, por fim,
A verificação de prejuízo patrimonial.
A nível subjectivo, impõe-se o conhecimento pelo emitente da falta de provisão e a vontade de praticar o facto, sabendo que o mesmo é proibido por lei. Ou, em termos outros: o agente deve actuar com vontade de emitir o cheque, tendo consciência da ilicitude da sua conduta, bem como da falta de provisão, ainda que, com o seu comportamento saiba que causará ou poderá causar um prejuízo patrimonial.
Mais se torna ainda indispensável para a perfeição deste crime, como condição objectiva de punibilidade, que ocorra a apresentação do cheque a pagamento e o não pagamento motivado em função dos diversos motivos de recusa referenciados no artigo 11.º, do dito diploma legal, verificado aquele nos termos e prazos estabelecidos no artigo 29.º, da Lei Uniforme Relativa ao Cheque (vulgo LURC).
Pormenorizando-se:
De acordo com o disposto no artigo 11.º primeiramente indicado, importa que não ocorra provisão – entendida esta como a existência de fundos colocados à disposição do sacador no banco sacado, em conformidade com um contrato de depósito celebrado entre estes últimos, dando ao sacador o direito de dispor desses fundos mediante cheque – no momento em que o cheque deva ser apresentado a julgamento.
No que concerne à exigência de um prejuízo patrimonial, o legislador pretendeu não apenas sublinhar a função económica do cheque enquanto meio de pagamento imediato, mas também salientar o bem jurídico protegido com a incriminação: o património do legítimo portador cheque.
O prejuízo a que alude aquele artigo 11.º, consiste “na frustração do direito do portador do cheque de receber na data da sua apresentação a pagamento a quantia a que tem direito em razão da obrigação subjacente e para cujo pagamento o cheque serviu” (cfr. Germano Marques da Silva, in Regime Jurídico - Penal dos Cheques sem Provisão, Principia, 1997, pág. 55), que se traduzirá sempre numa diminuição patrimonial, já que, tendo o beneficiário do cheque operado uma transferência patrimonial a favor do emitente, não vê satisfeito o seu crédito pela instituição bancária.
O mesmo autor in Crimes de Emissão de Cheque Sem Provisão, D.C.E., 1996, pág. 85, escreve: “Já se tem pretendido que o não pagamento do cheque, sobretudo nos casos em que se tenha destinado a pagar dívidas contraídas anteriormente à sua emissão, não causa prejuízo patrimonial ao seu portador, na medida em que a dívida civil se manteria no património do portador do cheque”, concluindo pela inaceitabilidade de tal posição.
Na obra intitulada Cheques Sem Provisão – Regime Jurídico anotado, pág. 149, o seu autor (António Augusto Tolda Pinto) afirma que o prejuízo patrimonial deverá: “traduzir – se numa diminuição patrimonial, sofrida pelo portador ou beneficiário do cheque, já que este, dispondo de um título de pagamento, não vê satisfeito o seu crédito pela instituição de crédito”. “ (…) em cada caso, o que importa indagar, face ao ordenamento jurídico é se a emissão e pagamento do cheque representa em termos monetários a assunção válida de uma dívida própria ou alheia, para ser cumprida na data da emissão e entrega do cheque, sendo certo que o cheque aqui funciona como meio de pagamento imediato da relação que lhe está subjacente. Se assim suceder, a acção do emitente do cheque lesa, em princípio interesses patrimoniais do tomador, legitimamente constituídos e daí a transposição da tutela penal para a punição do cheque, enquanto título incorporado de um bem pecuniário, destinado a circular, no comércio, com esse valor”.
De acordo com o Ac. da Relação do Porto, de 30 de Maio de 2001 in www.dgsi.pt. no Processo n.º 133/00: “ (...) é irrelevante que tal dívida tivesse sido contraída em momento anterior à data da emissão do cheque”.
Já no Ac. da mesma Relação do Porto, de 28 de Novembro de 2001, no Processo n.º 175/96, pode ler-se: “ (...) há prejuízo patrimonial pela emissão de cheque sem provisão, desde que a relação subjacente à emissão seja válida e o crédito nele titulado se encontre vencido e seja exigível na data da sua entrega. No caso de dívida anterior, o não pagamento na data da apresentação implica um prejuízo que se traduz na frustração do tomador no não recebimento naquela data”.
Quanto ao elemento subjectivo do tipo de ilícito, exige-se simplesmente que o agente actue com dolo, em qualquer das suas modalidades (vd. artigo 14.º do Código Penal [CP]). Tal dolo, terá de se verificar no momento da prática do facto, isto é, no momento da emissão e entrega do cheque.
No que concerne, escreveu o Prof. Germano Marques da Silva: “O agente tem de ter consciência de que o seu comportamento é proibido por lei e que causará ou poderá causar prejuízo patrimonial a terceiro e, mesmo assim, actuar com intenção de realizar o facto típico ou simplesmente aceitar o seu resultado – prejuízo patrimonial ao portador – como consequência necessária do seu comportamento ou conformar-se com a eventualidade desse resultado” (ob. cit., pág. 77).
No que respeita à mencionada condição objectiva de punibilidade, importa referir ainda que o cheque deve ser apresentado a pagamento no prazo de 8 (oito) dias, contando-se tal prazo do dia indicado no cheque com data de emissão, nos termos do artigo 29.º LURC.
3.3. Como resulta do Assento n.º 6/93, de 27 de Janeiro, publicado no Diário da República, I.ª Série-A, de 7 de Abril seguinte, o legislador considerou o “prejuízo patrimonial” como conatural do não pagamento de um cheque por falta de provisão.
Esta conclusão não beneficia, porém, de qualquer presunção sendo que tem de verificar-se caso a caso podendo, inclusive, mesmo que não claramente demonstrada, inferir-se dos factos fixados pelas instâncias (Ac. do STJ, de 25 de Maio de 1994, in www.dgsi. pt, n.º convencional SJ199405250461513).
Lendo-se a decisão recorrida (cuja matéria de facto, relembra-se, por falta de impugnação e não verificação de um qualquer dos vícios referidos no artigo 410.º, n.º 2, se tem por definitiva), resulta que considerou como não provado que “A arguida com a sua conduta causou prejuízo patrimonial ao tomador.”
Só por si este seria elemento bastante à manutenção respectiva.
Controverte-a como visto a recorrente e em moldes que nos reconduzem, então, à interpretação do acordo elaborado pelas partes em 12 de Julho de 2001.
Previamente a uma tal concreta tarefa, impõe-se a exacta dilucidação sobre três formas de extinção das obrigações além do cumprimento, quais sejam da novação (objectiva, única que poderia relevar no caso); da datio pro solutum (ou dação em cumprimento) e da datio pro solvendo.
Quanto à primeira, expressa a lei que ela se dá quando o devedor contrai perante o credor uma nova obrigação em substituição da antiga (artigo 857.º do CC).
No que concerne à própria declaração negocial do credor e do devedor, expressa a lei que a vontade de contrair a nova obrigação em substituição da antiga deve ser expressamente manifestada (artigo 859.º do CC).
É expressa a declaração negocial feita por meio de palavras, escrito ou outro meio directo de manifestação de vontade (artigo 217.º, n.º 1 do CC).
A novação envolve, assim, um contrato a um tempo constitutivo e extintivo de obrigações, na primeira vertente relativamente à obrigação nova e, na segunda, quanto à obrigação originária.
Para o efeito, todavia, tem de ser expressa pelas partes a vontade de novação, o chamado animus novandi, coma consequência de, não o sendo, a primitiva obrigação se não extinguir.
A lei reporta-se à segunda, expressando que a prestação de coisa diversa da que for devida, embora de valor superior, só exonera o devedor se o credor der o seu assentimento (artigo 837.º do CC).
Pressupõe, pois, um acordo modificativo e porventura um acto executivo, podendo a prestação inicialmente devida ser substituída por outra, que é susceptível de consistir em um facto ou em um serviço ou na própria cessão de um direito de crédito.
O mencionado acordo do credor deve incidir sobre a dupla vertente da aceitação da prestação diversa da devida e na imediata extinção do seu direito de crédito e da correspondente obrigação.
É, com efeito, essencial à referida figura a existência de uma prestação diferente da que era devida e que esta tenha, na intenção das partes, o efeito de extinguir a primitiva obrigação.
No que respeita à terceira, a lei reporta-se-lhe expressando, por um lado, que se o devedor efectuar uma prestação diferente da devida, para que o credor obtenha mais facilmente, pela realização do valor dela, a satisfação do seu crédito, este só se extingue quando for satisfeito e na medida respectiva (artigo 840.º, n.º 1 do CC).
E, por outro, que se a dação tiver por objecto a cessão de um crédito ou assunção de uma dívida, se presume feita nos termos do número anterior (artigo 840.º, n.º 2 do CC).
Resulta do n.º 1 do referido artigo a realização pelo devedor de uma prestação diferente da devida ao credor, naturalmente no âmbito do acordo de um e de outro nesse sentido, não extinguindo a obrigação enquanto a prestação dada simultânea subsequentemente não satisfizer o direito de crédito do credor.
O traço característico da dação em função cumprimento traduz-se, pois, na circunstância de as partes não pretenderem a extinção imediata da obrigação do devedor, e quererem que ela subsista até à satisfação integral do direito de crédito concernente, como que se tratasse de um mandato conferido ao credor pelo devedor de se pagar por via da coisa ou do crédito em causa.
Não raro surge a dúvida sobre se, na espécie respectiva, ocorre a intenção das partes de extinção do direito de crédito mediante a dação, ou de condicionar essa extinção à realização do direito que a última envolve.
Para obstar a esse impasse, no caso de o objecto da dação ser a cessão de um direito de crédito ou a assunção de uma dívida, a lei estabeleceu a presunção no sentido de que ela ocorreu para que o credor obtivesse mais facilmente, pela realização do valor dela, a satisfação do seu direito de crédito.
Trata-se, naturalmente, de uma presunção legal a favor do credor, que o dispensa de provar o facto presuntivo, incidindo sobre o devedor o ónus da sua ilisão (artigo 350.º do CC).
Em síntese, na situação de datio pro solvendo, o direito de crédito não se extingue pela mera entrega da coisa, ou pela cessão de crédito, ou assunção de alguma obrigação, mas só pela realização efectiva do seu valor ou conteúdo, conforme os casos.
Decorre, pois, do que vem de dizer-se, que a novação se traduz na extinção de uma obrigação por via da constituição de outra, e que a dação em cumprimento se consubstancia na extinção de uma obrigação por via da realização de prestação diferente, e que a dação em função do cumprimento se concretiza em prestação tendente à realização de um direito de crédito sem intenção de substituição de outra ou de extinção imediata do referido direito de crédito.
A novação e a datio pro solvendo têm por elemento comum envolverem a constituição de uma nova obrigação, e a diferença concernente em na primeira se extinguir imediatamente a antiga obrigação e, na segunda, a mesma se não extinguir imediatamente.
A dação em cumprimento e a dação em função do cumprimento têm, por seu turno, em comum, em sede de cumprimento, a substituição da prestação, e a diferença, na primeira, de extinção imediata da obrigação e, na segunda tal extinção depender da condição de realização do respectivo direito de crédito (com interesse Ac. do STJ, de 6 de Novembro de 2003, in www.dgsi.pt n.º convencional SJ200311060034957.
3.4. Na posse destes considerandos façamos a apontada exegese da matéria de facto provada e, mais concretamente, do acordo firmado em 12 de Julho de 2001.
O recorrente sustenta que através do mesmo foi feita a “novação, redução e fixação consensual da quantia exequenda” sofrendo desde logo prejuízo patrimonial pois aceitou o cheque em causa na convicção de que receberia de imediato o correspectivo valor e a arguida evitou a remoção dos bens. Nesta simbiose descortina a emergência de uma nova obrigação, mormente uma subjacente ao título mencionado e que se venceu de imediato tornando-se também logo exigível.
Ressalvado o devido respeito, entendemos que se não coaduna com a realidade e o antes expendido uma tal conclusão.
Tal acordo firmado entre a assistente e a arguida consubstanciou-se na materialização da declaração do resultado de um acerto de contas que ambas entenderam dever fazer, então, passando pela redução da quantia exequenda reclamada antes pela primeira e no escalonamento de um seu pagamento faseado, e do qual emergiu uma declaração de reconhecimento ou confissão de dívida por parte da recorrida em relação à recorrente.
A emissão por parte da recorrida, a favor da recorrente, do cheque em questão, com o valor inscrito correspondente a parte do montante entretanto fixado como em dívida, traduziu-se na constituição, com base naquela obrigação de pagamento, de uma obrigação cambiária não autónoma, no sentido em que se limitava a traduzir uma expedita forma de pagamento (imediato) de uma das parcelas consideradas como em dívida pela arguida à assistente.
Do que se não deduz, porém, que pela devolução por falta de boa cobrança do título emitido um distinto prejuízo patrimonial haja sofrido a assistente.
Por duas ordens de razões:
Em primeiro lugar, porque não podemos concluir que se nos depara em tal acordo uma novação.
Na verdade, da factualidade apurada não decorre o exigível animus novandi.
Do que se trata é que a emergente obrigação cambiária se consubstanciou em dação em função do cumprimento ou datio pro solvendo, ou seja, que a emissão do cheque pela recorrida e sua entrega à recorrente visou (reafirma-se) facilitar a esta a realização parcelar do seu direito de crédito subjacente, e, este sim, consubstanciado no depois judicialmente homologado.
Em segundo lugar, e dispensando-nos de reproduzir de novo a factualidade provada, nomeadamente o incumprimento da arguida e posterior homologação parcelar do acordado, porquanto como argutamente exarou a M.ma Juiz a quo na decisão recorrida “ (…) Se assim não fosse, ao prejuízo já causado pela arguida à assistente pelo não pagamento das quantias que estivessem em dívida, mas cujo pagamento coercivo será obtido por intermédio da acção executiva, entretanto, instaurada, acresceria um novo prejuízo, o qual, porque situado somente no plano do não cumprimento da relação cartular consubstanciada no cheque dos autos, não resultaria do incumprimento de qualquer obrigação resultante de uma relação subjacente àquela relação cartular.” (sublinhado nosso)
Por outras palavras, neste momento a arguida não seria devedora de € 274.338,83, (assim considerados na sentença homologatória exarada na execução instaurada), mas antes de 324,338,83 (aquele montante, acrescido de cerca de € 50.000,00, correspondentes ao valor do cheque emitido).
Do que se conclui dever manter-se a factualidade acolhida na decisão recorrida e com ela a não prova do exigido prejuízo patrimonial autonomamente decorrente da estrita subscrição do título ajuizado.
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IV – Decisão.
São termos em que perante todo o exposto se nega provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 6 UCs.
Notifique.
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Coimbra, 21 de Junho de 2006