Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
316/17.7T9SEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: OFENSA A PESSOA COLECTIVA
DIFAMAÇÃO
Data do Acordão: 02/20/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: : GUARDA (J C GENÉRICA DE SEIA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 180.º, 182.º E 187.º DO CP
Sumário: I – O tipo objectivo do ilícito previsto no artigo 187.º do CP consiste na difusão de factos inverídicos sobre organismo, serviço, ou pessoa colectiva que sejam susceptíveis de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança destas entidades, não tendo o agente fundamento para, em boa-fé, reputar tais factos como verdadeiros.

II – O bem jurídico protegido pela incriminação é o bom-nome do organismo, serviço ou pessoa colectiva, instituição ou corporação.

III – Estando em causa uma carta escrita pelo arguido aos assistentes em que se manifesta em relação aos estatutos de uma fundação dos quais na sua opinião não estão a ser respeitados e, quando as expressões utilizadas não consubstanciam a imputação de qualquer facto, não se mostram preenchidos os elementos objectivos do crime p. e p. pelo art. 187.º do CP.

IV – No crime de difamação, bem jurídico protegido é a honra, numa dupla concepção fáctico-normativa, que inclui não apenas a reputação e o bom nome de que a pessoa goza na comunidade (a honra externa), mas também a dignidade inerente a qualquer pessoa, independentemente do seu estatuto social (a honra interna) – cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, páginas 495 e 496, Universidade Católica Portuguesa, 2008).

Decisão Texto Integral:



            Acordam na Secção Criminal da Relação de Coimbra

“Fundação …”, … e …, deduziram acusação particular contra o arguido, …, imputando-lhe a prática, de um crime de ofensa a organismos, serviço ou pessoa colectiva p. e p. pelo artº 187º do Cod. Penal e dois crimes de injúrias e difamação agravada p. e p. pelo artº 180º e 181º do Cod. Penal.

O Ministério Público não acompanhou a acusação particular deduzida pelos assistentes a fls 125 a 131 contra o arguido.

Distribuídos os autos ao Juízo de Competência Genérica de Seia - Juiz 2 a Sra. Juiz proferiu despacho, rejeitando a acusação, por considerar que os factos imputados não constituem crime nos termos dos artsº 287º e 311º, nº 1 e 2, al a) e nº 3, al d) do CPP e porque manifestamente infundada.

Inconformados com esta decisão, dela interpuseram recurso os assistentes, “Fundação …”, … e …, pretendendo que se receba a acusação particular deduzida pelos assistentes contra o arguido e o submeta a julgamento para realização da justiça material e do qual seja condenado num crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva previsto e punido no art. 187 do C.Penal e ainda dois crimes de injurias e difamação agravada  previsto e punido nos artigos 180 e 181  ambos do C. Penal  e ainda das taxas de justiça (306€) a que deu exclusiva causa  e ainda que se pronuncie sobre a admissibilidade do pedido formulado de indemnização civil formulado e o arguido a pagar a título de indemnização à demandante Instituição a importância de trezentos e cinquenta  euros e aos assistentes … e … trezentos euros para cada, (sendo que estes valores serão entregues a Instituição de cariz social) , por danos indicados no supra citados e constantes desse pedido e que ora se dão aqui como fielmente reproduzidos  acrescida dos juros legais a vencer até efectivo pagamento .

Formulou as seguintes conclusões:


1. O presente processo teve uma investigação completamente ao arrepio das regras mínimas exigíveis pois, como se referiu em termos de questão prévia.

2. Este inquérito que deveria ter sido irrepreensível e compreendido um conjunto de diligências que visassem investigar a existência de crimes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas - (art. 262º, nº 1, CPP), foi tudo menos tal.

3. Não foram assegurados nos presentes autos investigação sobre factualidade susceptível de indiciar prática de outros crimes sabendo-se que o processo tinha como participado um agente da GNR, mas afinal por Delegação de competências, foi conduzido por um colega da GNR  de nome …, no posto de  ... , agente …, por delegação de competência da Procuradora do MP constante   a  fls 71 dos autos.                                                                        

4. Não se descortina nos autos conforme artigo 48.º do CPP que o Ministério Público ( que é quem tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49.º a 52.º e nos termos do artigo 50.º é ao Ministério Público) tenha procedido oficiosamente a quaisquer diligências que face à queixa se julgassem indispensáveis à descoberta da verdade e couberem na sua competência, para além de nem  ter participado em todos os actos processuais .


5. Será portanto e só em sede de Julgamento que se haverá e terá de haver a comprovação de que estes indícios são mesmos crimes nos termos não só factuais mas com os todos os ingredientes que estão suficientemente explanados e fundamentados na acusação particular e no pedido de Indemnização civil e na Prova indicada.
 
6. Verifica-se precisamente que a credibilidade foi posta em causa quando o participado, com data de 9 de maio de 2017 remeteu para a Fundação … e também para a Assembleia de Freguesia da União de Freguesias de ... e ... a carta cujo conteúdo se dá ora aqui como fielmente reproduzida e para onde se remete para os devidos e legais efeitos.

7. E que o teor dessa comunicação o participado expressamente, não pretendia exercer um direito a um qualquer esclarecimento, antes imputava factos praticados pelos assistentes que são ofensivos do seu bom nome.

8.   Impunha o participado que os visados e em prazo certo por ele estipulado que os assistentes atuassem de determinada forma, com a factualidade escrita em que são claras as expressões em contexto sitas a Linhas 04 do corpo da carta a paginas 01 que refere “… … pela presente notificar, com efeitos imediatos… “ e a linhas 05-06 do corpo da carta a paginas 01, “… violação grave dos estatutos da fundação na eleição do actual conselho de administração, o qual é como referi, grave… … “ referindo um alegado art. 19 alínea a) dos estatutos que considerava enquanto normativo correto, válido e em vigor, escrevendo a Linhas 07 a 10 do corpo da carta a paginas 01, para onde se remete e se dá como reproduzido.

9. Colocando em causa a credibilidade dos assistentes quando refere nessa carta, bem sabendo que era falso, que  “… … verifica-se , concretamente, que o elemento indicado pela … … , não era, nem é residente nem natural da Freguesia de ... à data da indicação /eleição o que consubstancia uma violação, grave, do art.19 do… …” pois bem sabia o participado que a reforma administrativa operada em 2013  reuniu os povos e territórios das então existentes freguesias de ... e ...  dando assim origem à União de freguesia de ... e ... sabendo o participado onde residia o participante (...) – ... .

10. Como se fosse “Autoridade supra judicial” impondo aos assistentes: “… …, Deverá imediatamente e com seus efeitos imediatos o conselho… … abster-se de tomar decisões e votações que importem a contratualização e alteração do que quer que seja , bem como o seu vice-presidente (entenda-se o 2º participante ) de praticar qualquer acto… … ou que o vice-presidente se demita … …  “ e dá um prazo :  5 dias (linhas 7 a  da 2º página), e ameaça com processos cíveis e crimes conforme   linhas 8-9 da 2º página dizendo e escrevendo“…  que me seja notificada ,de imediato, darei inicio a outras diligencias… … para eventual responsabilidade civil e criminal, por inércia dos membros do conselho de administração “ constante do  documento- carta atenta precisamente contra os assistentes não só na sua  honra, mas sim do crédito, do prestígio ou da confiança da pessoa colectiva assistente.


11. Ocorreu difusão de factos inverídicos sobre organismo, serviços, pessoa colectiva e pessoas que são susceptíveis – e foram-no – com o intuito de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança destas entidades e pessoas

12. E os autos são bem claros ao evidenciar que tal carta circulou por imensas pessoas ligadas aos assistentes e participado e ainda em plena assembleia de freguesia que teve até “honras” em ponto um de ordem de trabalhos em 9 de Junho de 2017.

13. Também quanto à matéria de Direito que o Tribunal A quo tentou construir algo de pouco sustentável mas que não passa de também aqui o Tribunal a quo inverter e ler os factos de forma que levasse a uma interpretação errónea, omitindo e eclipsando em especifico os factos e  fazendo tábua rasa da regra de que  é a acusação particular que define o objecto do processo (pois não houve fase instrutória).


14.  Não se está perante afirmações ingénuas ou puras ou de prolação de factos inverídicos mas a formulação acintosa de juízos ofensivos da credibilidade, do prestígio ou da confiança das entidades e do bom nome dos restantes assistentes onde revela a imputação dos factos acima descritos na carta que foi divulgada e propagandeada e dos assistentes visados pois a noção de facto, “traduz-se naquilo que é ou acontece, na medida em que se considera como um dado real da experiência.

15. A decisão do Tribunal a quo não foi aferida de acordo com o critério objectivo da compreensão e percepção do normal homem comum.

 
16. O Tribunal a quo inverteu por completo o preceituado no artigo 117.º e demais aplicável do C. P.


17. O entendimento do Tribunal A quo violou o princípio constitucional do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva plasmado no artigo 20.º da CRP, representando de igual modo uma restrição interpretativa intolerável da teleologia imanente ao n.º 1 do artigo 246.º do Código de Processo Penal quando a acusação particular descreve os itens factuais insertos na queixa formulada contra o arguido.

18.  A acusação particular deduzida indica o concreto circunstancialismo espácio-temporal do inter criminis e respectivo modo de execução.

19. Neste domínio, constitui entendimento ao que se crê uniforme na jurisprudência dos nossos tribunais superiores,[1] no sentido de que “não é necessário que a queixa descreva, com todo o pormenor, a forma como decorreram os factos e refira que o denunciado agiu com intenção de os praticar (elementos objetivos e subjetivos do crime): basta que o denunciante participe o evento naturalístico e revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes.”
20. Para além de ter ofendido as pessoas singulares que são titulares dos respetivos órgão ou nela exerçam funções, neste caso Presidente e vice-presidente e ora assistentes o arguido (que nem sequer tem qualquer ligação directa ou indirectamente com os assistentes),e ao escrever, divulgar, propagandear da forma como o fez, revelou que não estava a praticar factos que visassem qualquer tipo de tentativa de esclarecimento ou até de liberdade de expressão e de opinião.

21. Mas antes intrometer-se em assuntos sociais, incriminando pessoas e Instituição de práticas ilegais e indevidas imputando factos que sabia bem falsos e que foram divulgados para ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança da Fundação e a honra e bom nome das pessoas assistentes.

22. Verificam-se ofendidos os artigos 180º, 182º, 183º, 187ª e 30º, nº. 2, todos do Código Penal, por parte do arguido.


23. Em conformidade deve revogar-se o despacho recorrido, determinando-se que seja substituído por outro que receba a acusação particular deduzida pelos assistentes contra o arguido e o submeta a julgamento para realização da justiça material e do qual seja condenado num crime de ofensa a organismos, serviço ou pessoa coletiva  previsto e punido no art. 187 do C.Penal e ainda dois  crimes de injurias e difamação agravada  previsto e punido nos artigos 180 e 181  ambos do C. Penal  e ainda das taxas de justiça( 306€) a que deu exclusiva causa  e ainda que se pronuncie sobre a admissibilidade do pedido formulado de indemnização civil formulado e o arguido a pagar a título de indemnização à demandante Instituição a importância de trezentos e cinquenta  euros e aos assistentes (...) e (...) trezentos euros para cada, ( sendo que estes valores serão entregues a Instituição de cariz social) , por danos indicados no supra citados e constantes desse pedido e que ora se dão aqui como fielmente reproduzidos  acrescida dos juros legais a vencer até efectivo pagamento .

24.  Falecendo os fundamentos que levaram à sua rejeição, seguindo-se os ulteriores trâmites processuais.

Assim, se fazendo JUSTIÇA

Respondeu o Digno Procurador Adjunto, manifestando-se pela improcedência do recurso.

           

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta no sentido da improcedência do recurso.

Respondeu o arguido, …, pugnando pela improcedência do recurso.


Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


É este o despacho recorrido:

O Tribunal é competente.

Os Assistentes têm legitimidade para o exercício da acção penal.
*

 Da Acusação Particular.

Dispõe o artigo 283.º, n.º3, do Código de Processo Penal, no que concerne ao conteúdo obrigatório da acusação, que esta contém, sob pena de nulidade, além do mais, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.

Mais resulta de forma expressa do disposto no artigo 311.º, n.º2, do Código de Processo Penal que, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada (alínea a)), sendo de considerar como tal, além do mais e no que ao caso dos autos reveste pertinência, a acusação que não contenha a narração dos factos (n.º3, alínea b)) e ou se os factos não constituírem crime (n.º3, alínea d)).

Os Assistentes deduziram acusação particular (não acompanhada pelo Ministério Público) contra …, imputando-lhe a prática de um crime de ofensa a organismos, serviço ou pessoa colectiva, previsto e punido no artigo 187º, do Código Penal e de dois crimes de injúria e difamação agravada previstos e punidos nos artigos 180º e 181º, ambos do Código Penal (cfr. fls. 125 a 131).

Atentemos, antes de mais, ao crime de ofensa a organismos, serviço ou pessoa colectiva, previsto e punido no artigo 187º, do Código Penal.

Dispõe o nº1 do artigo 187.º do Código Penal (na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 59/2007 de 4 de Setembro) que “[quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.”

O bem jurídico protegido pela incriminação é o bom-nome do organismo, serviço ou pessoa colectiva, instituição ou corporação. O bem jurídico protegido não é, portanto, a honra, enquanto interesse essencialmente intrínseco e inerente à dignidade da pessoa, mas antes a credibilidade dos entes aí previstos. (cfr. neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04 de Maio de 2011, disponível in www.dgsi.pt)

 “Visa o tipo legal previsto no artigo 187º do Código Penal criminalizar acções (…) não atentatórios da honra, mas sim do crédito, do prestígio ou da confiança de uma determinada pessoa colectiva, valores que não se incluem em rigor no bem jurídico protegido pela difamação ou pela injúria” (cfr. acta n.º 25 da Comissão Revisora do Código Penal de 1995)

 “O bom-nome assume-se, assim, como uma realidade dual. De um lado, suporte indesmentível para que a credibilidade, o prestígio e a confiança possam existir. De outra banda, resultado dessas mesmas e precisas realidades ético - socialmente relevantes” (vide Faria Costa in Comentário Penal ao Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 678).

O tipo objectivo do ilícito previsto no artigo 187º do Código Penal consiste na difusão de factos inverídicos sobre organismo, serviço, ou pessoa colectiva que sejam susceptíveis de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança destas entidades, não tendo o agente fundamento para, em boa-fé, reputar tais factos como verdadeiros.

No que concerne ao primeiro elemento do tipo objectivo (afirmação ou propalação de factos inverídicos) e contrariamente ao que sucede nos crimes de difamação e de injúria, o crime que ora nos ocupa apenas contempla a afirmação ou prolação de factos inverídicos e já não a formulação de juízos ofensivos da credibilidade, do prestígio ou da confiança das entidades.

Com feito, se, relativamente a pessoa singular, em sede de difamação ou de injúria, tanto importa fazer uma imputação desonrosa de um facto como formular um juízo, de igual sorte desonroso, já no âmbito da ofensa a pessoa colectiva, apenas releva a imputação de factos.

De salientar que a noção de facto “traduz-se naquilo que é ou acontece, na medida em que se considera como um dado real da experiência. Assume-se, por conseguinte, como um juízo de afirmação sobre a realidade exterior, como um juízo de existência. (…) Um facto é, pois, um elemento da realidade, traduzível na alteração dessa mesma realidade, cuja existência é incontestável (…) ” (vide Faria Costa, in op. cit., págs. 680 e 681).

Um facto é, portanto, um juízo de existência ou de realidade.

 No que concerne aos factos inverídicos, importa fazer a necessária destrinça entre factos falsos e factos inverídicos. Na verdade, como faz notar o mesmo Autor, a falsidade tem neste contexto um valor de uso, uma carga de desvalor, de negação, que o emprego de inverídico não acarreta. De resto, o universo dos candidatos abarcados pela noção de inverídico mostra-se mais extenso do que o que circunscreve a própria falsidade.

Assim, para o preenchimento do tipo objectivo de ilícito, necessário se torna, desde logo, que os factos afirmados e ou propalados sejam inverídicos, ficando de fora “a afirmação ou propalação de factos verídicos, susceptíveis de ofenderem a credibilidade, o prestígio ou a confiança” (vide Conselheiro O. Mendes, in O Direito à Honra e A Sua Tutela Penal, pág. 115, apud Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12 de Maio de 2010 supra aludido, disponível in www.dgsi.pt).

De referir ainda a este propósito que o artigo 187º, nº2 remete apenas o disposto no 183º e no artigo 186º, nºs. 1 e 2 e não para a equiparação estabelecida no artigo 182º, do

(1 Para uma melhor compreensão desta distinção, atentemos ao exemplo oferecido por Faria Costa (in op. cit, pág. 679):“Imaginemos que A afirma que o serviço Y – abrangendo este milhares de pessoas – é um “covil de ladrões”.

Considere-se, ainda, que foram, nos últimos tempos, condenados por corrupção três ou quatro pessoas daquele serviço. Nesta perspectiva, a afirmação de A não é em termos de contextualização, falsa (…). Mas é, por certo, uma afirmação inverídica, porque quem quer que seja considera como não verdadeiro o efeito de contaminação que o agente quer retirar da frase. O que é o mesmo que afirmar: não vale aqui um pensamento baseado na figura da sinédoque. Todos convêm que é inverídico que a existência de umas poucas condenações possa tomar o serviço como autêntico covil de ladrões.”)

Código Penal e nos termos da qual à difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão.

Decorre, assim, do exposto que afirmar ou propalar factos inverídicos pressupõe que a ofensa seja feita verbalmente (cfr., neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 3 de Abril de 2013, disponível in www.dhsi.pt).

Já o segundo elemento que compõe o tipo objectivo de ilícito impõe que os factos inverídicos sejam idóneos a ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança da pessoa colectiva, organismo ou serviço; importando salientar que o tipo de ilícito não exige a ofensa do bom-nome da entidade, sendo suficiente o perigo dessa ofensa ocorrer, em virtude de uma conduta do agente com a potencialidade adequada para causar esse dano. A construção típica do crime que ora nos ocupa diverge da dos crimes de difamação e injúria, que, enquanto crimes de dano, assentam na constatação de uma ofensa efectiva à honra (cfr. neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário ao Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 509).

A credibilidade de uma instituição afere-se pelo comportamento cumpridor, diligente e pontual, mas sobretudo pela sua conduta séria e parcial revelada na actuação dos seus órgãos e membros; sendo o prestígio demonstrado pela imposição da pessoa colectiva no seu domínio específico da sua actuação, perante instituições congéneres e, por isso mesmo, perante a própria comunidade que serve e que a envolve; mostrando-se uma instituição digna de confiança “quando pela sua génese e actuações posteriores se apresenta, paradigmaticamente, como entidade depositária daquele mínimo de solidez de uma moral social que faz com que a comunidade a veja como entidade em quem se pode confiar” (Faria Costa, in op. cit. pág. 681).

No que concerne, por seu turno, à capacidade ou idoneidade de ofensa da credibilidade, do prestígio ou da confiança da pessoa colectiva, organismo ou serviço deve a mesma ser aferida de acordo com o critério objectivo da compreensão e percepção do normal homem comum.

Por fim, em terceiro lugar, é necessário que o agente ao afirmar ou propalar factos inverídicos o faça sem ter fundamento para, em boa-fé, os reputar verdadeiros. Como nos dá nota Faria Costa, não é necessário, para que se verifique preenchido este elemento típico, que o agente tenha conhecimento do carácter não verídico dos factos, bastando que não tenha fundamento para, em boa-fé, os reputar verdadeiros. Contudo, se existir o conhecimento da inveracidade da imputação, o crime será perpetrado na sua forma agravada prevista nos artigos 187º, nº 2 e 183, nº 1 alínea b), ambos do Código Penal.

Impõe-se, portanto, que o agente actue sem fundamento para, em boa-fé, reputar verdadeiros os factos que afirma ou propala, isto é, que não tenha razões sérias para aceitar o facto ou factos imputados como verdadeiros; não cabendo, pois, ao agente fazer prova da existência da “boa-fé”, uma vez que a inexistência desta é elemento constitutivo do crime”.

No que se refere ao seu elemento subjectivo, o crime é essencialmente doloso, bastando, para uma plena imputação subjectiva, o mero dolo eventual, como resulta da conjugação do artigo 14.º com o artigo 187.º n.º 1, ambos do Código Penal.

Regressando ao caso dos autos, e percorrida a acusação particular deduzida, verifica-se que, de acordo com os factos nela constantes, o arguido dirigiu aos Assistentes uma carta em que se pode ler as seguintes expressões “ (…) pela presente notificar, com efeitos imediatos (…)” “violação grave dos estatutos da fundação na eleição do actual conselho de administração, o qual é como referi, grave (…)”, “(…) art. 19 alínea a) dos estatutos que considerava enquanto normativo correto, válido e em vigor (…)”, “deverá, imediatamente e com seus efeitos imediatos o conselho … abster-se de tomar decisões e votações que importem a contratualização e alteração do que quer que seja, bem como o seu vice-presidente de praticar qualquer acto… ou que o vice-presidente se demita… (…)”

Mais consta da acusação que “o participado na sua ofensiva carta de tipo “notificação” de 9 de maio dá um prazo: 5 dias (…) e ameaça com processos crimes: “… que me seja notificada, de imediato, darei início a outras diligências… … para eventual responsabilidade civil e criminal, por inércia dos membros do conselho de administração.”.

Verifica-se, assim, por um lado, que em causa está uma missiva dirigida pelo arguido aos assistentes, não se tratando de expressões dirigidas pela forma verbal e, por outro lado, que as expressões utilizadas pelo arguido não consubstanciam, desde logo, a imputação de qualquer facto, pelo que não se mostram, desde logo, preenchidos os elementos objectivos do crime previsto e punido no artigo 187º do Código Penal imputado ao arguido.

Decorre, assim, do exposto que os factos narrados na acusação particular não constituem crime (nem o imputado ao arguido, nem qualquer outro).

No que respeita, por seu turno, ao crime de difamação, estatui o artigo 180.º, n.º1, do Código Penal que, quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.

Mais dispõe o artigo 182º, do Código Penal, que à difamação e à injúria verbais são equiparadas a feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão.

Através da incriminação das condutas supra descritas o legislador propõe-se conferir uma tutela ampla e adequada ao bem jurídico honra e consideração pessoal, entendido complexamente em todas as suas refracções.

O bem jurídico protegido pela incriminação é, portanto, a honra, numa dupla concepção fáctico-normativa, que inclui não apenas a reputação e o bom nome de que a pessoa goza na comunidade (a honra externa), mas também a dignidade inerente a qualquer pessoa, independentemente do seu estatuto social (a honra interna) – cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, páginas 495 e 496, Universidade Católica Portuguesa, 2008).

Segundo o ensinamento de Beleza dos Santos “a honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um individuo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale” (Algumas considerações sobre crimes de difamação e injúria, in Revista de Legislação e Jurisprudência N.º 92, pág. 164).

Simas Santos e Leal Henriques referem, por seu turno, que a honra consiste na “essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter” – continuando ainda tais autores – “é a dignidade subjectiva, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui, dizendo, assim, respeito ao património pessoal e interno de cada um” (Código Penal Anotado, 2º Volume, Rei dos Livros, 2000, pág. 469).

Importa, igualmente, chamar à colação o disposto no artigo 26.º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa, no qual se consagra, entre outros direitos fundamentais, o direito ao bom nome e reputação, que emana de outro valor constitucional, axial e nuclear que é a dignidade da pessoa humana, reconhecendo-se aí o valor eminente do homem enquanto pessoa, como ser autónomo, livre e socialmente responsável, na sua unidade existencial de sentido.

Ora, enquanto direito fundamental, o bom nome e reputação são pressupostos indispensáveis para o desenvolvimento da pessoa em comunidade, sendo o respectivo conteúdo baseado numa pretensão de reconhecimento da sua dignidade e tem como correlativo uma conduta negativa dos outros. Trata-se, pois, na esteira do pensamento de Augusto Silva Dias, (cfr. in Alguns Aspectos do regime jurídico dos crimes de Difamação e de Injúrias, Revista da A.A.F.D.L., 1989, pp. 18.), de uma “pretensão a não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade”.

Já no que respeita à consideração, será o património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo, nestes moles, o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que cada um de nós é tido pelos outros. Será, então, o merecimento que a pessoa tem no meio social, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva, ou seja, a forma como cada sociedade vê cada pessoa.

O crime de difamação é um crime de dano (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido) e de mera actividade (quanto à forma de consumação do ataque ao objecto de acção.

De referir que o tipo objectivo inclui a imputação de um facto ofensivo da honra a outra pessoa, a formulação de um juízo ofensivo da honra de outra pessoa ou a reprodução daquela imputação ou deste juízo. Diversamente do que sucede no crime de injúria (que é dirigida exclusivamente ao ofendido), a “difamação” é dirigida a um terceiro.

No que concerne ao tipo subjectivo de ilícito, estamos perante um crime doloso, que admite qualquer modalidade do dolo, bastando-se, pois, a sua verificação com o dolo eventual.

De salientar que não é necessário um particular animus difamandi, sendo actualmente pacífico o entendimento quer na jurisprudência que na doutrina que basta o dolo genérico, sendo, pois suficiente para a realização do tipo de ilícito que o autor saiba que está a atribuir um facto ou a dirigir palavras, cujo significado ofensivo do bom nome ou consideração alheia ele conhece. Será sempre, porém, ainda de exigir a consciência, por banda do agente, que a sua conduta é de molde a produzir a ofensa da honra e da consideração de alguém, e que o queira fazer.

No que concerne, por sua vez, ao crime de injúria, este encontra-se tipificado no n.º1 do artigo 181.º do Código Penal que preceitua que, quem “injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.”

Através da incriminação das condutas supra descritas o legislador propõe-se conferir uma tutela ampla e adequada ao bem jurídico honra e consideração pessoal, entendido complexamente em todas as suas refracções, valendo aqui todas as considerações supra expendidas a propósito da honra, bom nome e consideração que, brevitastis causa, aqui se dão por integralmente reproduzidas.

Da previsão típica do normativo convocado, resulta serem elementos objectivos do tipo de ilícito em apreço: a) imputação directa de factos ou recurso a palavras dirigidas à vítima e b) que tais factos ou palavras sejam ofensivas da sua honra ou consideração.

 Ao nível do tipo subjectivo de ilícito, estamos perante crime doloso, bastando-se a sua verificação com o dolo eventual; sendo certo que não é necessário um particular animus injuriandi. Com efeito, tanto a doutrina como a jurisprudência concordam agora que basta o dolo genérico, sendo pois suficiente para a realização do tipo de ilícito, que o autor saiba que está a dirigir palavras cujo significado ofensivo do bom nome ou consideração alheia ele conhece e o queira fazer.

Relativamente ao segundo elemento objectivo do tipo – a saber: que as palavras proferidas sejam ofensivas da honra ou consideração do ofendido – importa desde logo dizer que, a honra está ligada à imagem que cada um tem de si próprio, construída não apenas também a partir de reflexos exteriores, repercutindo-se no apego a valores de probidade e honestidade e a consideração, (a reputação, a boa fama) e representando a visão exterior sobre a dignidade de cada um, o apreço social, o bom nome de que cada um goza no círculo das suas relações ou, no que respeita a figuras públicas, no seio da comunidade (neste sentido vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Janeiro de 2000, BMJ-493-156).

Volvidos, novamente, ao caso dos autos, e atentando nas palavras escritas pelo arguido, facilmente se constata que não há uma única expressão que seja atentatória da honra, consideração ou bom nome dos Assistentes pessoas singulares, não se mostrando, pois, preenchidos, desde logo, o elementos objectivo quer do crime de difamação quer do crime de injúria imputados ao arguido.

Ademais, estando em causa crime doloso – como sucede no caso em apreço – conforme se salienta no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01 de Junho de 2011 (disponível para consulta em www.dgsi.pt): “ (…)da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade - o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).

O dolo como elemento subjectivo - enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objectivas - constitutivo do tipo legal, será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283º/3 C P Penal, impõe que seja incluído na acusação.”.

Com efeito, a descrição dos factos atinentes ao elemento subjectivo não se basta com o elemento volitivo e portanto com a alegação de que o agente quis ofender os assistentes na sua honra e consideração social, antes se impondo que se alegue que o agente agiu livre, deliberada e conscientemente e que actuou com consciência da ilicitude da sua conduta e portanto com conhecimento de que esta é proibida e punida por lei.

Ora, no caso dos autos, em momento algum da acusação particular deduzida é feita sequer referência a essa consciência da ilicitude e não se presumindo o conhecimento da lei incriminadora e sendo a consciência da ilicitude essencial para a punibilidade do facto, a existência dessa consciência tem de ser objecto de acusação e de prova e, portanto, terá que fazer parte do objecto do processo.

Deste modo, não constando da acusação pública qualquer alusão aos factos atinentes ao elemento intelectual do dolo, não se mostra vertida naquela peça processual a descrição dos factos atinentes ao elemento subjectivo.

De referir, por fim, que a acusação (particular ou pública) não é passível de aperfeiçoamento, tendo o legislador previsto, de forma expressa, o dever de rejeição, em situações como a presente (cfr. artigo 311.º, n.º2, alínea a) do Código de Processo Penal) - neste sentido vide, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 9 de Maio de 2012, disponível para consulta em www.dgsi.pt.

Em face do exposto, e nos termos das disposições legais citadas, por os factos não constituírem crime (imputado contra a Assistente pessoa colectiva) e por ausência de factos integradores dos elementos objectivos e subjectivos dos crimes de difamação e injúria imputados ao arguido, rejeito a acusação deduzida pelos Assistentes “Fundação …”, … e ….

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Atento o facto de ter sido rejeitada a acusação deduzida pelos Assistente, é a mesma a responsável pelo pagamento de taxa de justiça (cfr. artigo 515.º, n.º1, alínea f), do Código de Processo Penal), a qual, atenta a complexidade dos autos e processado a que deu origem, se fixa em 2 UC (cfr. artigo 8.º e Tabela III Anexa ao RCP) e sem prejuízo do apoio judiciário de que a mesma possa beneficiar.          
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Do Pedido de Indemnização Cível deduzido pelos Assistentes

Por via do requerimento entrado em juízo a 20 de Abril de 2018, os Assistentes, para além de deduzir acusação particular, deduziram, também, pedido de indemnização cível contra o arguido, propugnando pela condenação deste no pagamento da quantia de 1.506,00 euros, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais pelos danos sofridos em consequência da conduta do arguido.

No que respeita ao pedido cível deduzido pelos Assistente, cumpre desde logo dizer que atenta a ratio do principio da adesão e o facto de o pedido cível deduzido depender directa e imediatamente do crime objecto do processo em que se funda, verificando-se que não pode tal crime, por razões de ordem processual, ser objecto de julgamento, como sucede in casu, inexiste fundamento para tal dedução (cfr. artigo 71.º do Código de Processo Penal).

Em face do exposto e atenta a rejeição da acusação particular deduzida pelos Assistentes “Fundação …”, … e …, por requerimento entrado em juízo a 20 de Abril de 2018, não se recebe, nessa medida, o pedido cível deduzido no mesmo articulado.

Sem custas cíveis, atento o valor do pedido (cfr. artigo 4.º, n.º1, alínea n) do RCP).
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Rejeitada a acusação particular – a qual não havia sido acompanhada pelo Ministério Público – e não sendo admitido o pedido cível deduzido, oportunamente, arquivem-se os autos.
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 Notifique.
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Cumpre decidir:

Conforme decidido no AcRel.do Porto de 21/10/2015 no processo nº 658/14.3GAVFR.P1 relatado pela Exma Desembargadora Elsa Paixão e que aqui teremos em linha de conta na medida em que seguimos o mesmo pensamento, ““remetidos os autos para julgamento, nos casos em que, como sucede no presente, não houve instrução, “o juiz aprecia a conformidade da acusação com o quadro normativo que a regula, confinando-se a não admissão a julgamento às situações tipificadas no nº 2” [cfr. Código de Processo Penal, Comentários e notas práticas, dos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, pág. 766] do art. 311º do C.P.P., respeitando a da al. a) desta norma à rejeição da “acusação manifestamente infundada”. Neste conceito compreende-se a acusação que padeça de deficiências estruturais de tal modo graves “que, em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade” [cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal anotado e comentado, 12ª ed., pág. 605], encontrando-se taxativamente enumerados no nº 3 do preceito os casos em que, para efeitos do nº 2, a acusação se considera manifestamente infundada. De entre eles, interessa-nos aqui em particular o que vem previsto na al. d), que se verifica quando os factos descritos na acusação “não constituírem crime”.

Excluída, pela redação que a Lei nº 65/98, de 25/8 deu ao preceito em referência e que fez caducar o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 4/93, a possibilidade de rejeição da acusação por manifesta insuficiência de prova indiciária, este fundamento “só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objetivos e subjetivos de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa” [cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, pág. 779], seja devido a uma insuficiente descrição fáctica, seja porque a conduta imputada ao agente não tem relevância penal. É, no entanto, necessário, nesta fase processual de triagem, que os factos descritos não constituam inequivocamente crime, não bastando que assim seja entendido por uma das várias correntes seguidas pela jurisprudência. A interpretação da referida al. d), que não é, nem podia ser tão clara como as que contemplam os demais fundamentos de rejeição da acusação por manifesta falta de fundamento, “não pode, na sua interpretação ir além do que a estrutura dos princípios processuais admite.
De facto, caducou a jurisprudência anteriormente fixada pelo Acórdão de fixação de jurisprudência nº 4/93, no sentido de que a “acusação manifestamente infundada” incluía a rejeição por manifesta insuficiência de prova indiciária. Atualmente, o único verdadeiro caso de “acusação manifestamente infundada” encontra-se na al. d) (do nº 3 do art. 311º do Código de Processo Penal) – “se os factos não constituírem crime” –, já que as situações previstas nas restantes alíneas – quando a acusação não contenha a identificação do arguido, a narração dos factos, as disposições legais aplicáveis ou as provas – configuram casos de nulidade de acusação (assim, Damião da Cunha, RPCC 18, 2 e 3, p. 211).Ou seja, só e apenas quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime, é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la.

E os factos não constituem crime quando, entre outras situações, se verifica uma qualquer causa de extinção do procedimento ou se a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora do crime imputado. Sublinhe-se que este juízo tem que assentar numa constatação objetivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efetuada. Não se trata, nem se pode tratar de um juízo sustentado numa opinião divergente, por muito válida que seja.” [cfr. Ac. RC 12/7/11, proc. nº 66/11.8GAACB.C1]

            No caso vertente é imputado ao arguido a prática de um crime p. e p. pelo artº 187º do Cod Penal.

«Dispõe o artigo 187.º, n.º 1 do Código Penal que:

“1.Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismos ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias”.

2 – É correspondentemente aplicável o disposto:
a) No artigo 183º; e
b) Nos nºs 1 e 2 do artigo 186º

O bem jurídico protegido com a presente norma consiste essencialmente no bom-nome da pessoa ou organismo - ou seja é uma honra exterior.

São elementos objectivos do tipo a afirmação ou propalação de factos inverídicos; que esses mesmos factos sejam susceptíveis de ofender a credibilidade, prestígio ou a confiança da entidade vítima; e que o agente activo não tenha fundamento para, em boa fé, reputar tais factos - inverídicos - como verdadeiros.

Factos inverídicos são, factos não verdadeiros. Além do mais, tais factos têm de ser capazes - no sentido de idóneos - de ofender a credibilidade, prestígio ou confiança da pessoa colectiva. Tal idoneidade para causar a ofensa tem de ser aferida de forma objectiva segundo o padrão de um homem médio, ou seja, o facto tem de se apresentar como objectivamente adequado – cláusula de adequação - para colocar em causa a reputação social - credibilidade, prestígio e confiança - da pessoa colectiva - para maior desenvolvimento vide Faria Costa in Comentário Conimbricense, Tomo I, pag. 675 e ss..Quanto ao elemento “sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, (…)” o mesmo não é explícito carecendo de interpretação mais cuidada. Enquanto que no crime de difamação a boa fé - cfr. n.º 4 do art. 180º do Código Penal - não pode significar uma pura convicção subjectiva, uma pura forma de opinão pessoal, destituída de base e alicerce de suporte, na veracidade dos factos, necessitando antes de assentar numa imprescindível dimensão objectiva. Ao conseguimento da prova da verdade dos factos, a lei equipara o conseguimento da prova que o agente fez tudo o que estava ao seu alcance e lhe era exigível para reputar como verdadeira a imputação, confiando “seriamente” na verdade do facto. Esta crença na verdade há-de ser, portanto, uma crença objectivamente fundada. Tal ressalva não foi feita no tipo legal de crime previsto no art. 187º do referido diploma legal.

Isto é, a existência de fundamento para em boa fé reputar os factos como verdadeiros é desde logo um elemento do tipo e não uma causa de exclusão da ilicitude.

Por outro lado, dado que o legislador não fez a ressalva que faz no n.º 4 do art. 180º em relação ao crime de difamação, consideramos, no nosso modesto entender, que não carece o agente de cumprir o dever de informação sobre a verdade, ou melhor, veracidade da informação. Ou seja, a boa fé a que se refere o art. 187º é mais subjectiva desde que corroborada por alguns factos objectivos. (Ac da Rel Porto nº 932/14.9PIPRT de 19/04/2017, relatado pela Exma Sra Desembargadora Paula Guerreiro e que aqui seguimos)

Conforme se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-5-2010. in www.dgsi.pt, “Não é necessário, para que se verifique preenchido este elemento típico, que o agente tenha conhecimento do carácter não verídico dos factos; basta que não tenha fundamento para em boa fé os reputar de verdadeiros.”

Quanto ao elemento subjectivo o presente tipo legal basta-se com o dolo genérico.

No que ao dolo genérico diz respeito, a conduta do agente preencherá o elemento subjectivo do tipo legal de crime em apreço na medida em que este, ao afirmar os factos inverídicos saiba que não tem fundamento para reputar tais factos como verdadeiros - elemento intelectual do dolo enquanto conhecimento da realidade fáctica -, querendo – elemento volitivo do dolo enquanto vontade de praticar o facto típico.

No caso vertente e tendo presente os elementos objectivos do tipo temos que concluir que os mesmos não constam da acusação particular. Na verdade da acusação particular não resultam descritos factos que constituem os elementos objectivos do tipo legal de crime em apreço.

Consta da acusação que o arguido dirigiu aos Assistentes uma carta em que se pode ler as seguintes expressões “ (…) pela presente notificar, com efeitos imediatos (…)” “violação grave dos estatutos da fundação na eleição do actual conselho de administração, o qual é como referi, grave (…)”, “(…) art. 19 alínea a) dos estatutos que considerava enquanto normativo correto, válido e em vigor (…)”, “deverá, imediatamente e com seus efeitos imediatos o conselho … abster-se de tomar decisões e votações que importem a contratualização e alteração do que quer que seja, bem como o seu vice presidente de praticar qualquer acto… ou que o vice presidente se demita… (…)”

Mais consta da acusação que “o participado na sua ofensiva carta de tipo “notificação” de 9 de maio dá um prazo: 5 dias (…) e ameaça com processos crimes: “… que me seja notificada, de imediato, darei início a outras diligências… … para eventual responsabilidade civil e criminal, por inércia dos membros do conselho de administração.”.

            Estamos, portanto, perante uma carta escrita pelo arguido aos assistentes em que se manifesta em relação aos estatutos de uma fundação dos quais na sua opinião não estão a ser respeitados. As expressões utilizadas não consubstanciam a imputação de qualquer facto, pelo que não se mostram preenchidos os elementos objectivos do crime p. e p. pelo artº 187 do Cod Penal

Aliás, mesmo que existissem factos necessários ao preenchimento do tipo legal de crime previsto no art. 187º, nº 1 do Código Penal, sempre poderemos dizer que, esses factos não preencheriam também os elementos objectivos do crime porquanto o arguido fê-lo através da de uma carta, ou seja por escrito e o art. 187º do Código Penal não remete expressamente para a equiparação prevista no art. 182º do Código Penal.

Conforme podemos ler no douto Acórdão do TRL de 24-01-2013 “O tipo objectivo deste crime preenche-se com a afirmação ou divulgação de “factos inverídicos”, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança, não abarcando a imputação de “juízos de valor” ofensivos, como sucede nos crimes de difamação e injúria.

Este específico aspecto não é tão linear como à primeira vista poderia parecer na medida em que, ao invés do que sucede com os crimes de difamação e injúria previstos nos artigos 180.º e 181.º do Código Penal, inexiste relativamente à ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva prevista no artigo 187.º do mesmo diploma uma qualquer norma que alargue as margens de punibilidade do tipo aos comportamentos escritos, gestuais, por imagem, ou outro tipo de expressão distinta da verbal.

E o certo é que a norma remissiva do artigo 187.º, n.º 2 do Código Penal não inclui o artigo 182.º do mesmo diploma. Esta ausência da remissão para o artigo 182.º implica que se considere em princípio não penalmente protegida a ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva cometida por escrito, gesto ou imagem.

Como escreve Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa 2008, p. 509), outra interpretação “violaria o princípio da legalidade”. (Ac da RelPorto cit e que seguimos)

No mesmo sentido o douto acórdão do TRP de 3-4-2013 onde podemos ler, no seu sumário, “IV - “Afirmar ou propalar” factos inverídicos pressupõe que a ofensa seja feita verbalmente, tanto mais que, o nº 2 do art. 187º do CP não remete para o disposto no art. 182º do CP, o que significa que o legislador não quis que esta última referida norma fosse também correspondentemente aqui (art. 187º do CP) aplicável. Mesmo em relação aos crimes previstos nos arts. 180º e 181º do CP, caso não existisse a equiparação consagrada no art. 182º do CP, a difamação ou injúria feitas, por exemplo, por escrito também não eram punidas.”
            Portanto, os factos narrados na acusação não constituem crime.

E o mesmo se diga no que respeita ao crime de difamação p. e p. pelo artº 180º, nº 1 do Cod. Penal e ao crime de injúrias p. e p. pelo artº 181 do mesmo diploma.

Dispõe o art 180 nº 1 do Código Penal que:

Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias”.

Artº 182º

À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão.

Estipula o artº 181º nº 1 que “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sobre a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias”.  

Os arts 180º e 181º do Código Penal protegem a honra e a consideração de uma pessoa, sendo a honra “aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale”.

E, a consideração “ aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa á falta de consideração ou ao desprezo público” (Prof. Beleza dos Santos, ob. cit).

Ora, no caso vertente, não se vislumbra quaisquer factos passíveis de atentarem contra a honra ou a dignidade dos assistentes. Trata-se de uma missiva em que o arguido se mostra aborrecido, zangado, com a violação dos estatutos e que quer ver de imediato tudo resolvido – apenas isso.

Não atentou, nem denegriu a imagem de ninguém, a honra ou a consideração dos assistentes.

Assim, não se mostra preenchido quer o elemento objectivo do crime de difamação, quer o do crime de injúrias imputado ao arguido.

Nessa medida, bem andou o tribunal ao rejeitar a acusação.

Nestes termos, se decide, negando provimento ao recurso, confirmar o despacho recorrido.

Custas pelos recorrentes fixando-se a taxa de justiça em 4 uc (artº 513 do CPP e artº 8º nº 5 e tabela III do RCP).

Coimbra, 20 de Fevereiro de 2019

Alice Santos (relatora)

Belmiro Andrade (adjunto)

                                                                                             


[1] - Acórdão da RC de 23/09/2015, proferido no proc. 448/12.8GEGDM.P1, acessível no endereço www.dgsi