Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3479/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. FERREIRA LOPES
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
LOCAL DE PAGAMENTO
Data do Acordão: 05/04/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALBERGARIA A VELHA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ART. 1039º, Nº 1, DO C. CIV.
Sumário:

I – O acordo verbal entre as partes de um contrato de arrendamento quanto ao local do pagamento da renda é válido, como decorre do nº 1 do artº 1039º do C. Civ..
II – Assim, um dado contrato de arrendamento escrito passa a integrar a cláusula sobre o local de pagamento de renda que posteriormente tenha sido acordada verbalmente entre senhorio e arrendatário .
III – Havendo cessão da posição contratual válida por parte do inquilino, o cessionário está obrigado a respeitar o contrato de arrendamento existente e bem assim o acordo verbal anterior relativo ao local de pagamento da renda .
Decisão Texto Integral:
Apelação nº 3479/03
Albergaria-a-Velha.


Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

Relatório.
BB, casado, reformado, residente no Bairro CC, intentou ação com processo sumário contra DD, médica dentista, residente na Rua EE, alegando, em síntese, o seguinte:
Em Janeiro de 1984 celebrou um contrato de arrendamento com FF pelo qual lhe cedeu a fruição de três compartimentos do 1º andar de um prédio de que é dono sito em Albergaria-a-Velha a fim de o FF aí exercer a sua profissão de médico estomatologista;
Em Janeiro de 1996, o FF, por escritura pública, transmitiu à ora Ré a sua posição de arrendatário;
Logo que tomou conhecimento da cessão do arrendamento, o Autor comunicou à Ré, por carta, que deveria depositar a renda numa conta em seu nome da Caixa de Crédito Agrícola de Albergaria.
Acontece que a Ré desde a data em que se operou a cessão, jamais procedeu ao depósito das rendas, encontrando-se em dívida, à data da propositura da acção, 560.000$00, a que acrescem 79.011$00 de juros vencidos.
Em consequência, pede a condenação da Ré a reconhecer o Autor como dono e legítimo proprietário do imóvel em causa e a pagar-lhe o valor das rendas vencidas, os juros de mora vencidos e vincendos e a despejar o arrendado, entregando-o livre e devoluto.
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A ré contestou, alegando, em síntese, não existir acordo sobre o local do pagamento das rendas, pelo que cabia ao Autor vir receber as rendas ao domicílio dela, locatária. Como não o fez a mora era dele.
Todavia, tendo-o procurado, infrutíferamente, para lhe pagar, depositou as rendas em dívida disso dando conhecimento ao Autor. Por cautela, depositou até à contestação as rendas devidas e a indemnização.
Concluiu sustentando a improcedência da acção e a condenação do Autor como litigante de má fé.
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Após resposta do Autor, a Srª juiz, no saneador, conheceu do mérito da causa julgando a acção improcedente.
O Autor apelou vindo este Tribunal pelo acórdão de fls. 214 a 218, a dar-lhe provimento, ordenando o prosseguimento do processo para julgamento a fim de se apurar se existiu ou não estipulação verbal entre o Autor e o anterior inquilino, comunicada à Ré, no sentido de as rendas serem depositadas numa conta do Autor na agência de Albergaria-a-Velha da Caixa de Crédito Agrícola.
Baixado o processo à comarca, procedeu-se à condensação da matéria de facto com especificação da já assente e elaboração da base instrutória.
Realizada a audiência de discussão e julgamento a decidida a matéria de facto sem censura, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, autorizando a Ré a proceder ao levantamento da quantia depositada a título de rendas e indemnização.
Inconformado com a decisão, o Autor apelou rematando a sua alegação com as conclusões seguintes:
1ª - Quem transmitiu à Ré, por cedência, a posição de arrendatário foi o FF e não o Autor...que, por isso, nenhuma obrigação tinha de transmitir ou acordar com a Ré, o que quer que fosse a esse respeito...cumprindo à Ré apenas e tão só, proceder, quanto ao pagamento, como o fazia o anterior arrendatário....
2ª - Dispõe o art. 1039º do Cód. Civil que o pagamento da renda ou aluguer deve ser efectuado no último dia do contrato ou do período a que respeita, e no domicílio do locatário à data do vencimento...se as partes ou os usos não fixarem outro regime...facto que até pode ser provado por testemunhas.
3ª - No âmbito da vigência do contrato, pelo menos a partir de pelo menos Dezembro de 1986, o FF depositava e mandava depositar as rendas na instituição e contas bancárias aludidas em e)..., o que ocorreu até à escritura de cessão aludida em b), ou seja 26.01.96..., tudo numa prática e uso comumente aceite reconhecido entre as partes (locador e locatário) que perdurou durante 10 anos.
4ª - A Ré e recorrida, ao outorgar a escritura de cessão com o FF, assumiu através dela todos os correspondentes direitos e obrigações do anterior arrendatário, perante o locador. Isto é, ao celebrar o contrato de cessão do arrendamento a Ré substituiu o primitivo arrendatário, nos seus direitos e obrigações decorrentes do contrato de arrendamento e nomeadamente dos usos e convenções ainda que verbais estipulados entre as partes quanto ao local de pagamento da renda. O que equivale a dizer que a Ré assumiu a obrigação de pagamento da renda nos moldes estipulados e convencionados entre as partes, ou seja na conta do Autor no Balcão da CCAM de Albergaria-a-Velha.
5ª - Resulta também dos autos que “não só as partes (primitivas) fixaram o local de pagamento da renda – na conta D.O. do Autor na C.C.A.M. de Albergaria – como também o Autor, dando-se conta de que os depósitos não estavam a ser aí efectuados pela Ré, lhe comunicou, por carta de 19.03.98, que as rendas deveriam ser efectuadas por depósito mensal, na sua conta já referida”, (alínea e) dos factos assentes) pelo que não tendo feito o pagamento nos termos convencionados, sempre teria de se entender que a Ré não cumpriu a obrigação de pagamento da renda no local estipulado, incorrendo dessa forma em mora.
6ª - Não se verifica, no caso, a situação de mora accipiendi prevista no art. 813º do Cód. Civil por parte do Autor, pois que a Ré não depositou as rendas no tempo e lugar próprios, o que constitui claramente, causa de resolução do contrato e é motivo justificativo do despejo ...sendo que nem a Ré logrou demonstrar que o Recorrente (senhorio) tivesse alguma vez recusado receber as rendas mensais, nem isso resulta da alínea h) dos factos assentes.
7ª - O que resulta da alínea c) dos factos assentes é que de 08.02.96 a 07.12.98, a Ré depositou mensalmente na conta nº 103505750 da CGD, balcão de Aveiro, em nome do Autor, e por depósito definitivo, as rendas relativas aos meses de Fevereiro de 1996 a Dezembro de 1998, com o alegado motivo de recusa do senhorio, indicado nos 4 primeiros depósitos.
8ª - O depósito das rendas para ser liberatório tem de ser feito na agência, filial ou dependência da CGD, situada na comarca da área do domícilio do senhorio. Feito noutro local, esse depósito não tem qualquer relevância, pelo que deve ser decretado o despejo.
9ª - Residindo o Autor em Albergaria-a-Velha, e situando-se o local arrendado também na mesma vila, deveriam o depósitos das rendas, a existir o motivo invocado pela Ré, ser efectuados no Balcão da CGD de Albergaria-a-Velha. De onde que, assim não tendo ocorrido, é manifesto que os mesmos não são liberatórios e portanto, haverá de ser declarada a resolução do contrato e decretado o despejo.
10ª - Como decorre da alínea e) dos factos asseentes, o Autor comunicou à Ré, em carta de 19.03.98, que deveria efectuar as rendas na sua conta da C.C.A.M. de Albergaria-a-Velha. De onde que se mora tivesse havido por parte do Autor (e não houve), sempre esta se teria extinguido por força da comunicação de 19.03.98.
11ª - Ao decidir nos termos em que o fez, o tribunal a quo violou o disposto nos arts. 1039º nº1 e 813º do Cód. Civil.
12ª - No que se reporta à matéria de facto tida por provada, considerou-se, erroneamente, provado que, após a celebração daquela escritura pública e no último dia do prazo de pagamento, a Ré foi a casa do Autor para lhe pagar a renda; nessa altura ninguém lhe abriu a porta (resposta aos nºs 5 e 6 da base instrutória). Do mesmo passo, foi erroneamente dada resposta negativa ao nº2 da base instrutória onde se inquiria se “tal facto (que as rendas eram depositadas na CCAM de Albergaria-a-Velha na conta do Autor) era do conhecimento da Ré”.
13ª - Da análise da prova gravada, nomeadamente dos depoimentos de HHHH, resulta manifesto que a Ré tinha conhecimento de que as rendas do estabelecimento que tomou por cedência, eram depositadas, por acordo das partes, o Autor e o anterior arrendatário, na conta D.O. de que o Autor é titular na CCAM de Albergaria-a-Velha.
14ª - Por outro lado, não emerge dos autos, nomeadamente dos depoimentos das testemunhas oferecidas pela Ré, e gravados em suporte magnético, designadamente KKKKK, que a Ré tenha ido, no último dia do prazo de pagamento à casa do Autor para lhe pagar a renda e que ninguém lhe abriu a porta.
15ª - Face àquela prova é manifesto que a matéria do nº 2 da base instrutória merecia resposta de “provado” e a dos nºs 5 e 6 da mesma peça, merecia resposta de “não provado”.
16ª - Há manifesta contradição entre os elementos constantes dos autos (documentos e prova gravada) e a matéria de facto tida por provada relativa aos nºs 2, 5º e 6º, sendo que estas não emergem dos autos, nomeadamente quanto aos itens supra-invocados, que estão incorrectamente julgados, posto que os concretos meios probatórios constantes do processo conjugados com as regras da experiência impunham decisão diversa sobre os mencionados pontos da matéria de facto, o que se invoca nos termos do art. 690º-A, nº1 a) e b) e nº2 do CPCivil, devendo este Tribunal proceder em conformidade com o disposto no nº 5 daquele art. 690º-A.
17ª - Ao decidir nos termos em que o fez, o tribunal a quo violou os arts. 659º nº3, 660º nº2, 690º-A. nºs 1 als. a), b) e 2, o que determina a nulidade da sentença nos termos do art. 668º nº 1, alíneas c) e d) e a modificabilidade da decisão em conformidade com o disposto no art. 712º nºs 1 als. a) e b) e 2, todos do CPCivil.
A recorrida não contra-alegou.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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Fundamentação de facto.
A sentença deu como provados os seguintes factos:
Dos factos assentes:
1. No dia 01.01.84, por contrato reduzido a escrito, o Autor declarou dar de arrendamento ao FF três salas do 1ºandar do prédio sito na Rua de Santo António nº10, Albergaria-a-Velha, inscrito na matriz sob o art. 220, com direito a acesso e plena utilização do hall e casa de banho, mediante a renda anual de 84.240$00, a pagar em duodécimos mensais de 7.020$00 cada, vencendo-se a 1ª no dia 01.01.84 (alínea a);
2. Por escritura pública realizada no dia 26.01.96, no Cartório Notarial de Albergaria-a-Velha, o Dr. José Almeida declarou ser arrendatário de três compartimentos com direito a servidão de casa de banho, no 1º andar do prédio referido no número anterior, onde tem um consultório de medicina dentária e que, pelo preço de 2.750.000$00, cede à Ré os referidos locais, com todos os correspondentes direitos e obrigações e com todos os móveis e utensílios nele à data existentes, assim lhe transmitindo a posição de arrendatário dos mesmos locais, o que a Ré declarou aceitar (alínea b);
3. De 08.02.96 a 07.12.98, a Ré depositou mensalmente na conta nº 103505750 da Caixa Geral de Depósitos, balcão de Aveiro, em nome do Autor, e por depósito definitivo, as rendas relativas aos meses de Fevereiro de 1996 a Dezembro de 1998, constando dos 4 primeiros depósitos e como motivo, recusa de senhorio (alínea c);
4. No prazo para contestar esta acção, a Ré efectuou depósito condicional da quantia de 888.000$00 à ordem destes autos, com a indicação de rendas e indemnização de Fevereiro de 1996 até Fevereiro, inclusive, de 1999 (alínea d);
5. Por carta de 19.03.98, o Autor comunicou à Ré o seguinte: serve a presente para a notificar para efectuar o depósito das rendas relativas ao arrendamento de parte do prédio sito na Rua de Santo António nº10, na minha conta nº 0045.3310.00000001915.29 ao balcão da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Albergaria-a-Velha, uma vez ser absolutamente desnecessário o depósito das mesmas na CGD, por falta de motivo (alínea e);
Da base instrutória:
6. No âmbito da vigência do contrato aludido em 1), a determinada altura, a partir de pelo menos Dezembro de 1986, o FF depositava ou mandava depositar as rendas na instituição e conta bancária referida no nº 5, o que ocorreu até à escritura de cessão aludida em 1), (resposta ao art. 1º);
7. Desde a celebração do escritura pública aludida em 2) nunca o Autor compareceu junto da Ré para receber a renda (art. 4º);
8. Por isso, após a celebração da escritura e no último dia do prazo do pagamento, a Ré foi a casa do Autor para lhe pagar a renda; nessa altura ninguém lhe abriu a porta artigos 5º e 6º);
9. O Autor disse à Ré que não aceitava receber dela a renda que o FF lhe estava a pagar (art. 7º).
Estes os factos julgados provados.
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Fundamentação de direito.
A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado, como se sabe, pelas conclusões da alegação do apelante (artigos 684º nº3 e 690º nº1 do CPCivil), passa pela análise e resolução das seguintes questões jurídicas por ele colocadas:
- Se a decisão sobre a matéria de facto, concretamente as respostas dadas pelo tribunal recorrido aos artigos 2º, 5º e 6º da base instrutória, deve ser alterada no sentido propugnado pelo apelante;
- Se a Ré cumpriu a obrigação do pagamento da renda no tempo e lugar próprios.
- Se, na hipótese de não ter cumprido a obrigação de pagar a renda, efectuou depósito liberatório válido.
Vejamos, começando, naturalmente, pela questão primeiramente enunciada.
Após a reforma do processo civil operada pelos DL 329-A/95 de 12 de Dezembro e 180/96 de 25 de Setembro, o tribunal da Relação passou a ter o poder de alterar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto nos termos previstos no art. 712º do Cód. Processo Civil. Segundo este, em três casos pode a Relação alterar a decisão relativa à matéria de facto proferida pela 1ª instância:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 690º-A, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
No caso vertente, os depoimentos das testemunhas, nos quais a 1ª instância se baseou para dirimir a matéria de facto encontram-se gravados. Constam, assim, do processo todos os elementos probatórios valorados por aquela instância, pelo que é possivel modificar a decisão sobre a matéria de facto se enfermar de erro de julgamento.
O recorrente insurge-se contra as respostas dadas aos quesitos 2º, 5º e 6º, as quais deveriam ser provado, quanto ao quesito 2º, e não provado quanto aos restantes, ao contrário do que decidiu a 1ª instância.
Adiante-se desde já que a nossa opinião coincide inteiramente com a da 1ª instância, inexistindo qualquer fundamento para alterar aquelas respostas.
No quesito 2º da base instrutória inquiria-se se “tal facto (que as rendas eram depositadas na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Albergaria-a-Velha numa conta em nome do Autor), era do conhecimento da Ré”. A este quesito o tribunal respondeu não provado
Ora, diferentemente do que alega o apelante, de nenhum dos depoimentos das testemunhas que refere se pode concluir ter a 1ª instância decidido mal este ponto.
A testemunha Maria Regina Ferreira só foi ouvida ao 1º quesito, e confirmou o que neste se inquiria. A testemunha José Chará Costa, genro do Autor, declarou não conhecer a Ré, sobre o quesito 2ª disse que “se há uma transmissão do arrendamento, se há um trespasse, ela (a nova inquilina), assumiu as obrigações do anterior”, no entanto, quanto à questão concreta referido no quesito 2º, nada revelou saber, apenas tem conhecimento do envio da carta a que se reporta o nº 5 da base instrutória. A testemunha Dinis Alberto Marques Pamplona, filho do Autor, afirmou conhecer o acordo a que se refere o quesito 1º, mas desconhece se tal facto foi transmitido à Ré em data anterior à carta de 19.03.98 (nº 5 da matéria de facto). Por último, a testemunha Clara Pereira de Almeida, esposa do anterior arrendatário, confirmou o acordo relativo ao modo de pagamento da renda referido no quesito 1º, expressamente afirmou, a propósito do quesito 2º, não ter dado conhecimento de tal facto à Ré e desconhecer que alguém o tenha feito. Perante esta prova, é evidente que a resposta ao quesito 2º não poderia ser a que pretende o apelante, pelo que, nesta parte, não há que modificar a decisão do tribunal recorrido.
Os quesitos 5º e 6º tiveram resposta de provado e pensamos que fundadamente.
Os factos aí quesitados foram confirmados pelas testemunhas Maria Rosa de Jesus, que declarou ter acompanhado a Ré a casa do Autor para lhe pagar a renda no último dia do prazo mas que ninguém lhes abriu a porta, e José Francisco Sousa Fernandes, amigo do pai da Ré, que acompanhou este a casa do Autor, no dia em que a Ré lá esteve para efectuar o pagamento da renda. O tribunal da 1ª instância valorou estes depoimentos e também não vemos que exista qualquer fundamento para que não mereçam credibilidade. As testemunhas arroladas pelo Autor limitaram-se a dizer, quanto a estes quesitos, não terem tido conhecimento da ida da Ré a casa do Autor.
O recorrente alega ainda na conclusão 16ª que existe contradição entre documentos constantes dos autos e a matéria de facto tida por provada relativa aos quesitos 2º, 5º e 6º. Todavia, não esclarece a que documentos se refere e o tribunal, que não tem dons de adivinho, não sabe quais sejam pelo que não tem condições de aferir da alegada contradição.
Também não se vê em que é que o tribunal violou os artigos 659º nº 3, 660º nº 2, nem que ocorram as nulidades da sentença referidas no art. 668º nº1 alíneas c) e d), do Cód. Processo Civil.
Improcedem, em consequência, as conclusões 12ª a 16ª do recurso.
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Vejamos agora a 2ª questão que consiste em saber se a Ré incumpriu o contrato, não pagando a renda no tempo e lugar próprios.
Á apreciação deste aspecto, importa ter presentes os seguintes factos:
Entre o Autor, como senhorio, e o FF, como arrendatário, foi celebrado em 01.01.84 um contrato, reduzido a escrito, nos termos do qual aquele cedeu ao FF três salas de um seu prédio a fim de este aí exercer medicina, mediante a renda anual de 84.240$00, a pagar em duodécimos;
A partir de determinada altura, pelo menos desde Dezembro de 1986, por acordo verbal entre as partes, foi acordado que a renda seria paga através de depósito numa conta bancária em nome do Autor na agência da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Albergaria-a-Velha;
Por escritura pública de 26.01.96, o FF cedeu à Ré o local que tomara de arrendamento ao Autor, onde tinha instalado um consultório de medicina dentária, com todos os móveis e utensílios nele existentes, assim transmitindo à Ré a posição de arrendatário, com todos os correspondentes direitos e obrigações;
A Ré depositou numa conta bancária em nome do Autor na agência da Caixa Geral de Depósitos de Aveiro, as rendas relativas aos meses de Fevereiro de 1996 a Dezembro de 1998.
Destes factos resulta que entre o Autor e o FF foi celebrado um contrato de arrendamento para o exercício de profissão liberal.
Quanto ao pagamento da renda, que constitui, como se sabe, a principal obrigação do locatário (art. 1038º alínea a) do Cód. Civil), as partes acordaram, posteriormente ao contrato escrito e por acordo verbal, que seria paga por depósito numa conta bancária em nome do Autor.
O acordo entre as partes do contrato quanto ao local do pagamento é válido, como decorre do nº1 do art. 1039º do Cód. Civil, nos termos do qual “o pagamento da renda deve ser efectuado no último dia da vigência do contrato ou do período a que respeita, e no domicílio do locatário à data do vencimento, se as partes ou os usos não fixarem outro regime”.
No sentido da validade da estipulação verbal quanto ao local do pagamento da renda, veja-se o Ac. da Relação do Porto de 25.02.96, www dgsi.pt/jtrp, que decidiu: “a estipulação verbal posterior à celebração do contrato escrito de arrendamento, relativa ao tempo ou local do pagamento das rendas é válida e pode ser tacitamente convencionada.”
Assim, o contrato de arrendamento que vigorava entre o Autor e o FF passou a integrar a cláusula de que o local do pagamento da renda seria a conta do Autor/senhorio na conta deste na agência de Albergaria-a-Velha da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo.
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Em Janeiro de 1996 o arrendatário FF transmitiu para a Ré a sua posição no contrato de arrendamento que celebrara com o Autor.
Trata-se de um contrato válido, porque permitido pelo art. 122º, nº1 do Regime Jurídico do Arrendamento Urbano, (RAU), aprovado pelo DL nº 321–B/90 de 15 de Outubro, nos termos do qual:
“A posição do arrendatário é transmissível por acto entre vivos, sem autorização do senhorio, a pessoas que no prédio arrendado continuem a exercer a mesma profissão.”
Tal contrato configura uma cessão da posição contratual, modalidade de contrato expressamente prevista nos artigos 424º e sgs. do Cód. Civil.
A propósito desta espécie de contrato, ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil anotado, vol. I, 4ª edição, pag. 402:
“O contrato de cessão da posição contratual tem como principal efeito a substituição do cedente pelo cessionário, como contraparte do cedido, na relação contratual básica, tal como esta existe à data da cessão.
Ao lado dos direitos e obrigações fundamentais, o cessionário assume perante o cedido os deveres laterais ou secundários, as expectativas, os ónus e os deveres acessórios de conduta que adviriam da relação contratual básica para o cedente.”
O Prof. Mota Pinto, Cessão da Posição contratual, pag. 450, ensina:
“O efeito típico principal da cessão de contrato é a transferência da posição contratual, no estádio de desenvolvimento em que se encontrava no momento da eficácia do negócio, de uma das partes do contrato para outra. Verifica-se a extinção subjectiva da relação contratual, quanto ao cedente, sendo a mesma relação adquirida pelo cessionário e permanecendo idêntica apesar desta modificação de sujeitos.”
Do acabado de expor, parece-nos resultar para o caso dos autos o seguinte entendimento:
A Ré, cessionária, passou a ocupar, na relação de arrendamento existente, a posição que era a do FF. Não surgiu, portanto, qualquer relação jurídica nova. Mantendo-se a mesma a relação contratual, a cessionária assumiu todos os deveres que cabiam ao cedente, designadamente o de pagar a renda no momento e lugar próprios, no caso, a conta em nome do Apelante no balcão da C.C.A.M. de Albergaria-a-Velha, conforme acordada pelas primitivas partes.
Sucede que a Ré, ao invés de efectuar os depósitos naquela conta, fê-lo a partir de Fevereiro de 1996 numa conta em nome do Autor na agência de Aveiro da CGD.
Ao proceder assim, a Ré incumpriu o contrato na medida em que não pagou as rendas no lugar próprio, o que constitui o fundamento da resolução do contrato de arrendamento previsto no art. 64º nº1 alínea a) do RAU, nos termos do qual “o senhorio pode resolver o contrato se o arrendatário não pagar a renda no tempo e lugar próprios nem fizer depósito liberatório”. Contra este entendimento não releva a circunstância de não se ter provado a matéria de quesito 2º.
É que, como é consabido, a resposta negativa a um quesito apenas significa não se ter provado o facto quesitado, tudo se passando como se aquele facto não tivesse sido articulado (cf., por todos, o Ac. do STJ de 08.01.1991, AJ, 15º/16º, pag.20).
Por outro lado, era à Ré que cabia, ao negociar com o FF a cessão do estabelecimento, informar-se do complexo de direitos e obrigações emergentes do contrato, nomeadamente das condições do pagamento da renda, seu valor, tempo e lugar de pagamento.
Sucede que a Ré no prazo da contestação procedeu ao depósito, condicional, da quantia de 888.000$00 a título de rendas e indemnização, correspondente a Fevereiro de 1996 até Fevereiro, inclusive, de 1999.
Com este depósito a Ré fez caducar o direito do Autor à resolução do contrato, pois, conforme dispõe o art. 1048º do Cód. Civil, “o direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda ou aluguer caduca logo que o locatário, até à contestação da acção destinada a fazer valer esse direito, pague ou deposite as somas devidas e a indemnização referida no nº1 do art. 1041.º ”
Como se decidiu no Ac. do STJ de 20.06.2000, BMJ 498/219, “o depósito liberatório abrange as rendas que não tenham sido oportunamente pagas, concretamente as vencidas até ao termo do prazo da contestação ou até à data da contestação, acrescidas de 50% de indemnização.”
Assim, e em conclusão:
Ao não efectuar o pagamento da renda no lugar próprio, a Ré incumpriu o contrato de arrendamento;
O direito do Autor à resolução do contrato (alínea a) do nº1 do art. 64º do RAU), caducou com o depósito efectuado pela Ré do valor das rendas devidas e indemnização, nos termos do art. 1048º do Cód. Civil;
Da subsistência do contrato de arrendamento resulta, para o Autor, o direito à quantia depositada, 888.000$00, conforme referido no nº 4 da matéria de facto, podendo proceder ao seu levantamento;
A importância depositada na conta do Autor na agência de Aveiro da Caixa Geral de Depósitos, e relativa às rendas de Fevereiro de 1996 a Dezembro de 1998, conforme o nº3 da matéria de facto, pertence à Ré que tem, por isso, o direito de proceder ao seu levantamento.
Decisão.
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, e confirma-se a sentença na medida em que não decretou o despejo, reconhecendo-se ao Autor o direito a fazer sua a importância depositada conforme o nº 4 da matéria de facto, € 4.429,33 (888.000$00);
A importância depositada pela Ré a título das rendas dos meses de Fevereiro de 1996 a Dezembro de 1998, na conta nº 103505750 em nome do Autor, no balcão de Aveiro da CGD, referida no nº 3 da matéria de facto, pertence à Ré, que fica autorizada a proceder ao seu levantamento.
Custas pelo Autor e Ré na proporção de 2/3 e 1/3, respectivamente.
Coimbra, 04.05.04