Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2838/07.9TBAVR-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: DEMANDADA CIVIL
REQUERIMENTO
PEDIDO
ANULAÇÃO
Data do Acordão: 12/09/2008
Tribunal Recurso: AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Legislação Nacional: ARTIGOS 467.º; 705.º CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. O pedido formulado pelo credor da empresa insolvente, com vista à declaração de nulidade de contrato de arrendamento alegadamente celebrado entre a insolvente (como arrendatária) e um terceiro (senhorio), pressupõe a demanda, em acção própria e em litisconsórcio necessário, de ambos os contraentes.
2. Se esse pedido é deduzido por mero requerimento dirigido ao tribunal, e por via incidental no processo de insolvência, sem ser direccionado contra quem quer que seja, justifica-se o seu indeferimento por manifesta impropriedade do meio processual assim utilizado.
Decisão Texto Integral: Atenta a simplicidade da questão a decidir, nos termos do art. 705º do C.P.C., passa-se a proferir decisão sumária, como segue.
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I. RELATÓRIO
No processo em que foi declarada a insolvência da sociedade A......Lda, veio o credor B......SA apresentar o requerimento junto a fls. 34 e 35, dirigido ao tribunal, concluindo da seguinte forma:
“Termos em que, pelo exposto, deve o referido contrato ser declarado nulo por falta de forma, devendo ser devolvidas, pela C......, SA, as quantias que foram pagas pela Insolvente a título de rendas durante os anos de 1005, 2006 e 2007”.
Para fundamentar a sua pretensão a requerente alega que:
A insolvente tem a sua sede num edifício propriedade da sociedade C......, SA, que cobrou à insolvente, nos anos de 2005, 2006 e 2007 a quantia mensal de 1.033,51€, não existindo, no entanto, qualquer contrato formal que legitime a cobrança destes montantes mensais;
A insolvente imputou contabilisticamente estes custos nos “custos com rendas” e, na verdade, a C...... SA proporcionava à insolvente o gozo temporário de um imóvel mediante retribuição mensal no montante de 1.033,51€;
O contrato de arrendamento nunca foi reduzido a escrito, contra a exigência legal, pelo que é nulo por falta de forma, nulidade que é invocável a todo o tempo, e deve ser oficiosamente conhecida.
Sobre esse requerimento recaiu o despacho de fls. 42 a 44, com o seguinte teor:
“(…) Os elementos juntos aos autos não permitem concluir que tenha, efectivamente, sido celebrado um contrato de arrendamento verbal entre a A......e a sociedade C…. SA.
Porém, mesmo que tivesse sido celebrado entre as partes um contrato de arrendamento nulo por falta de forma, a sociedade C…. SA nunca teria de devolver as quantias entregues a título de rendas.
Vejamos melhor.
A nulidade pode, efectivamente, ser invocada por qualquer interessado a todo o tempo e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal – art. 286º do C.Civil. E declarada oficiosamente a nulidade do negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido com fundamento no art. 289º, nº1, do C. Civil – deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
No entanto, nos casos em que houve uso e fruição do imóvel durante certo tempo, o beneficiário deste uso e fruição deve compensá-lo. De contrário, estaria a enriquecer à custa alheia – art. 473º, nº1, do C.Civil –, resultado que a lei não quer.
Esse dever de indemnizar pelo uso costuma ser computado pelo valor locatício do imóvel detido em consequência do contrato nulo.
Esta a razão por que sempre teria a sociedade C… SA, direito a receber uma indemnização correspondente ao valor das “rendas”.
Indefere-se, pelo exposto, o requerido pela credora B......SA.
Notifique.”
Não se conformando, o requerente recorreu desta decisão, peticionando a sua revogação. Formula as seguintes conclusões:
“A. A douta decisão recorrida enferma de nulidade pois resulta da absoluta desconsideração de documentos justificativos que gozam de força probatória especial, reconhecida no art. 44º do Código Comercial e o nº 1 do artigo 376º do Código Civil Português;
B. O Extracto da conta 62.2.19.1.2.1, relativa aos custos com rendas, constantes de folhas 283 a 285 dos autos, são documentos contabilísticos da insolvente e comprovam a existência de débitos imputados contabilisticamente a rendas pagas durante os anos de 2005, 2006 e 2007;
C. Os referidos documentos contabilísticos juntos pela insolvente têm força probatória especial e espelham sem margem para dúvidas que entre a insolvente “A…..” e a “C...... SA”, existia um contrato de arrendamento;
D. Por outro lado, a Sociedade “C…. SA” não veio aos autos reclamar o pagamento de qualquer valor referente à utilização do espaço onde funcionava a sede da ora Insolvente;
E. Acresce ainda que o Tribunal ficou sem saber se o valor pago pela Insolvente à sociedade “C…. SA”, seria efectivamente aquele que contabilisticamente a insolvente imputou a título de rendas.
F. Não sendo possível ao Juiz, oficiosamente, saber qual o valor do imóvel, bem como o seu valor locatício”.
Admitido o recurso, a Sra. Juiz proferiu despacho de sustentação.
Proferido o despacho que antecede, tendo em vista o disposto no art. 3º, nº3 do C.P.C., as partes nada disseram.
Cumpre apreciar.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO:
Releva para a decisão o seguinte circunstancialismo, que se dá por assente, considerando a posição manifestada no processo pelo Sr. administrador de insolvência (fls. 24, 25 e 36 deste apenso) e os documentos juntos a fls. 26 a 33 e 37 a 41:
1. A insolvente tem a sua sede e todas as suas instalações no edifício da sociedade C…., na Rua João Francisco do Casal (antes Estrada de Taboeira), nºs 87 e 89, na freguesia de Esgueira, concelho de Aveiro;

2. Em 21 de Março de 1996 reuniu a Assembleia Geral da sociedade A……. Lda., “nos termos do disposto no artigo quinquagésimo quarto do Código das Sociedades Comerciais com a finalidade de deliberar sobre os seguintes assuntos:
- Cedência à sociedade por quotas “C……, Lda”, pelo preço de escudos 55.000.000$00 (cinquenta e cinco milhões de escudos) da posição de locatário no contrato de locação financeira celebrado com a D......SA, tendo por objecto a fracção, digo o prédio urbano situado ……., números oitenta e sete, oitenta e nove, freguesia de ………, concelho de Aveiro, inscrito na matriz sob o artigo número três mil trezentos e setenta.
- Nomeação de gerente ou gerentes, aos quais são concedidos os mais amplos poderes para a concretização da operação.
Estavam presentes os seguintes sócios:
(…), estando assim representada a totalidade do capital social.
Assumiu a presidência o sócio E.......
O senhor presidente após referir a ordem de trabalhos, do conhecimento de todos, pôs à votação o primeiro ponto da referida Ordem de Trabalhos. Assim, foi aprovado por unanimidade, ceder à sociedade por quotas C…….. Lda. a posição de locatário no contrato de locação financeira celebrado com a D......SA, tendo por objecto a fracção, digo o prédio urbano situado na Estrada de Taboeira, números oitenta e sete, oitenta e nove, freguesia de Esgueira, concelho de Aveiro, inscrito na matriz sob o artigo número três mil trezentos e setenta, pelo preço de cinquenta e cinco milhões de escudos.
De seguida, colocou à votação o segundo ponto da Ordem de Trabalhos tendo sido deliberado, por unanimidade nomear os sócios E...... e F...... e conceder-lhes os mais amplos poderes para a concretização da operação de cedência da posição de locatário.
Nada mais havendo a tratar foi encerrada a sessão, da qual se lavrou esta acta.”

3. Nos anos de 2005, 2006 e até Fevereiro de 2007, inclusive, a sociedade C……. SA cobrou à insolvente a quantia mensal de 1.033,51€, a título de “comparticipação relativa a ocupação de espaço, consumo de água e electricidade”, quantia que era contabilizada pela insolvente na rubrica “rendas”.

4. No mesmo edifício, para além da insolvente, estão instaladas as sociedades: C…… SA, G...... Lda, H......Lda e I......Lda.

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo agravante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C. – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 664 do mesmo diploma.
No caso dos autos, impõe-se apreciar, fundamentalmente, se o recorrente fez valer os seus direitos na forma processualmente correcta.

2. Constitui entendimento uniforme na doutrina e jurisprudência que o erro na forma de processo deve aferir-se tendo em conta a pretensão concretamente deduzida pelo autor, ou seja, é pelo pedido formulado que deve avaliar-se da propriedade do meio processual utilizado.
Começamos, então, por analisar a pretensão formulada pelo requerente/recorrente, credor nos autos de insolvência.
O recorrente invoca que a insolvente e a sociedade F. Fonseca SA celebraram um contrato de arrendamento para comércio, na sequência do qual esta cedeu à insolvente o gozo temporário de do imóvel onde a insolvente tem as suas instalações, mediante contrapartida monetária mensal, contrato que não foi reduzido a escrito pelo que é nulo por falta de forma.
Com base nessa factualidade o recorrente pretende que, no âmbito do processo de insolvência e por via incidental – o requerimento em apreço foi apresentado nos próprios autos de insolvência –, o tribunal reconheça e declare a nulidade, e condene a C...... SA a restituir as quantias pagas pela insolvente a título de rendas. Refira-se que, eufemisticamente, a requerente nunca formula expressamente um juízo de condenação, sem prejuízo dele estar implícito no pedido formulado – cfr. o relatório supra.
Não se questiona a legitimidade (substantiva e processual) do recorrente para formular a pretensão em causa, legitimidade que é patente não só em face do regime da nulidade – art. 286º do Cód Civil, diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem –, como, particularmente, do disposto no art. 605º, nº1.
Um dos meios de conservação da garantia patrimonial que a lei faculta ao credor é a arguição da nulidade de negócios que afectam o seu direito, e em relação aos quais se queda inerte o devedor. Assim, nos termos do referido preceito, “os credores têm legitimidade para invocar a nulidade dos actos praticados pelo devedor, quer estes sejam anteriores, quer posteriores à constituição do crédito, desde que tenham interesse na declaração da nulidade, não sendo necessário que o acto produza ou agrave a insolvência do devedor”.
Acresce que a nulidade aproveita não só ao credor que pretende a declaração de nulidade como a todos os demais – nº2 do mesmo preceito –, o que, no caso, assume particular relevância considerando a vocação marcadamente universalista do processo de insolvência, aglutinando todos os pleitos para que se possa alcançar um juízo exaustivo sobre o património do devedor.
O ponto é que essa pretensão não pode fazer valer-se nos termos apresentados pelo recorrente, isto é, a recorrente não se socorreu da forma processualmente correcta, tendo deduzido, na acção de insolvência, um pedido que não se coaduna à via (incidental) utilizada, nos termos em que o foi.
Está em causa, afinal, a instauração de acção com vista à declaração de nulidade de um contrato, que deve ser, obrigatoriamente, instaurada contra ambos os contraentes (senhorio e arrendatário), em litisconsórcio necessário, sob pena da decisão não produzir o seu efeito útil normal – art. 28º, nº 2, 1ª parte, do CPC. No caso, considerando a alegação vertida no requerimento em apreço, essa pretensão deve ser dirigida contra a massa falida, representada pelo Sr. administrador de insolvência e contra a sociedade F. Fonseca SA, sociedade que, note-se, ao que a recorrente invoca, nem sequer é parte na presente acção – cfr. as alíneas D) e F) das conclusões de recurso.
Ora, o recorrente limita-se a apresentar nos autos de insolvência e perante o tribunal um requerimento que não tem os requisitos de uma petição inicial (art. 467º do C.P.C.), não tendo sequer dirigido o pedido, especificamente, contra qualquer pessoa – nem a massa falida, nem a sociedade F. Fonseca SA, alegadamente arrendatária e senhorio, respectivamente –, pelo que a pretensão assim formulado não tem a virtualidade pretendida, ocorrendo manifesta inadequação da forma processual utilizada, o que impede a apreciação do mérito do pedido, justificando-se o seu indeferimento.
O erro na forma de processo constitui uma excepção dilatória inominada que, se o processado não for susceptível de aproveitamento, dá origem à absolvição da instância – arts.288º, nº1, al) e, nº3, 493º, nº1 e 2 e 495 do C.P.C.
Tendo em conta as particularidades do caso, é inviável proferir um juízo de absolvição da instância – absolver quem, se o recorrente não direccionou a sua pretensão, individualizando e identificando a parte contra quem formula o pedido? –, pelo que se impõe a aplicação das citadas regras, por similitude de razão, mas com as necessárias adaptações.
Em suma, deve manter-se o despacho recorrido, embora por fundamentos diferentes dos expostos pela Sra. Juiz, sendo inútil apreciar as demais questões suscitadas pelo recorrente.
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Conclusão:
1. O pedido formulado pelo credor da empresa insolvente, com vista à declaração de nulidade de contrato de arrendamento alegadamente celebrado entre a insolvente (como arrendatária) e um terceiro (senhorio), pressupõe a demanda, em acção própria e em litisconsórcio necessário, de ambos os contraentes.
2. Se esse pedido é deduzido por mero requerimento dirigido ao tribunal, e por via incidental no processo de insolvência, sem ser direccionado contra quem quer que seja, justifica-se o seu indeferimento por manifesta impropriedade do meio processual assim utilizado.
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Pelo exposto, julga-se improcedente o agravo, mantendo-se o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente.