Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
25/07.5TBTMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VÍTOR
Descritores: CASO JULGADO
TAXA DE JURO
MORA DO CREDOR
Data do Acordão: 11/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR - 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 497º E 671º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, ARTIGOS 2º, 13º, 99º E 102º DO CÓDIGO COMERCIAL E ARTIGO 813º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1) Executando-se uma sentença de condenação num pagamento de uma quantia em moeda estrangeira acrescida de juros a uma determinada taxa, a qual terminou por um acordo de pagamento em determinadas condições; incumprido tal acordo; e tendo sido intentada nova acção para pagamento do remanescente, não tem a respectiva sentença que ater-se aos termos da condenação da primitiva acção, que já não tem efeito de caso julgado sobre o remanescente da dívida que assim se autonomizou. Pode assim na acção agora intentada haver à condenação no pagamento de juros às taxas previstos na lei portuguesa.

2) Para que exista mora do credor, não é suficiente que este se recuse a colaborar com o devedor no respectivo cumprimento sendo ainda necessário que a omissão do primeiro seja essencial para o cumprimento, de molde a que sem ela o devedor não possa validamente prestar.

Decisão Texto Integral: 1. RELATÓRIO.

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

A.... instaurou a presente acção declarativa, com processo ordinário contra B...., pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia global de € 74.544,65, acrescidos de juros de mora, sendo os vincendos sobre a importância de € 49.879,80, desde 01 de Janeiro de 2007, até integral pagamento e ainda na sanção pecuniária compulsória correspondente a 5% de juros sobre o total em dívida, desde o trânsito em julgado da sentença, até integral pagamento.

Para o efeito, alegou, em síntese, ser aquela a importância ainda em dívida, por parte da Ré, na sequência de um fornecimento de artigos em vidro a cujos fabrico e comercialização se dedica que efectuou à Ré, a pedido desta última, que esta não pagou, tendo, depois de instaurada a competente acção declarativa, sido condenada a pagar à Autora a importância de € 711.922,55.

Como a Ré continuasse sem pagar, a Autora instaurou a correspondente acção executiva, contra a Ré, em cuja pendência, através da intermediação da Câmara do Comércio e Indústria Luso Francesa, Autora e Ré firmaram um acordo, nos termos do qual, a dívida foi fixada no montante de 827.640,00 Francos Franceses, na condição de o pagamento de tal quantia ser efectuado com uma entrega imediata de 138.000,00 FF, seguida de 40 prestações mensais e sucessivas de 17.241,00 FF;

A Ré ainda pagou a referida importância de 138.000,00 FF e 20 das referidas prestações, embora, com atrasos;

Porém, desde Abril de 2002 que a Ré deixou de fazer pagamentos, não tendo entregue à Autora qualquer outra quantia monetária, apesar de para tal sido por diversas vezes interpelada.

A Ré apresentou a sua contestação na qual alegou, em síntese, que efectivamente foi firmado o acordo extra-judicial de fixação do montante e de pagamento da dívida que a Autora refere, na petição inicial, mas não é exacto que tenham sido fixadas 40 prestações mensais e sucessivas, porque tal não ficou acordado, tanto assim que a Ré foi fazendo os pagamentos parciais sem regularidade, que a Autora foi recebendo sem quaisquer reclamações;

Acresce que a Ré já pagou 21 prestações e não as 20 que a Autora alegou terem sido realizadas, tendo sido a Autora que não praticou todos os actos necessários ao cumprimento da obrigação por parte da Ré, tornando-se necessária a fixação do prazo de vencimento das obrigações e a determinação do lugar do cumprimento, que deverá ser o do domicílio da Ré uma vez que a Ré nunca negou a dívida e em todos os contactos que foram sendo mantidos ao longo destes anos para regularização dos pagamentos, a Ré sempre reconheceu que o montante que estava em dívida era o de € 47.385,80 euros, a que acresce que o cheque que a Ré alegou ter enviado para pagamento da vigésima primeira prestação nunca foi recebido pela Autora.

No saneador conheceu-se da validade e regularidade da instância tendo sido elencados os factos provados e organizada a base instrutória que foram objecto de reclamação oportunamente decidida.

Procedeu-se a julgamento e acabou por ser proferida sentença que julgou a acção procedente por provada e procedente e, em consequência, condenou a Ré B..... a pagar à Autora A..... a quantia global de € 49.879,80, acrescidos de juros de mora, vencidos desde 3 de Abril de 2002 e vincendos, às taxas legais previstas para as obrigações comerciais, até efectivo e integral pagamento, a que acrescerá a sanção pecuniária compulsória prevista no art. 829º A nº 4 do CC, após o trânsito em julgado da presente sentença.

Daí o presente recurso de apelação interposto pela Ré a qual no termo da sua alegação pediu que se revogue a sentença subsistindo apenas da mesma a declaração potestativa de que a Autora é credora da Ré pelo montante de € 47.385,80.

Foram para tanto apresentadas as seguintes,

Conclusões.

1) A questão das taxas de juro eventualmente devidos pela R. encontra-se definitivamente assente por efeito do caso julgado formado na acção nº 61/1984 e não foi objecto de qualquer convenção ou alteração posterior que, nesse âmbito, tivesse modificado a obrigação.

2) Como tal, ao condenar a R. no pagamento de juros às taxas aplicáveis pela lei nacional, quando a acção anterior fixara definitivamente a aplicabilidade das taxas de juro da lei francesa, a sentença recorrida ofende o caso julgado, violando o disposto nos artigos 497º e 671º nº 1 do CPC.

3) Efectivamente, o acordo de pagamento referido na alínea J'ì da Matéria Assente em nada modificou, em matéria de juros, a obrigação que já se encontrava totalmente definida entre as partes.

4) Mas além disso, pelo menos desde que a Autora rompeu o acordo que tinha estabelecido com a Ré quanto ao modo de pagamento, isto é, por intermédio da Caixa de Comércio Luso-Francesa, ela própria se constituiu em mora accipiens nos termos do artigo 813º do Código Civil, por não praticar os actos necessários ao cumprimento da obrigação da Ré.

5) E enquanto tal situação perdurar, verifica-se uma situação de impossibilidade temporária de cumprimento, situação em que a Ré, devedora, não responde pela mora no cumprimento, como determina o artigo 792º nº 1 do Código Civil.

6) Porém, já antes disso a Ré tinha motivo suficiente para suspender a todo o tempo o pagamento de outras prestações à A., visto que um dos cheques emitidos pela C....a seu pedido, o cheque nº SSE0 .... datado de 95/05/18 no valor de 16.812,37 FRF fora entregue pela R. na Câmara de Comércio Luso Francesa em Lisboa para pagamento de uma das mensalidades, tendo o seu valor sido debitado na conta bancária da Ré, mas sem que a Autora o tivesse recebido.

7) Tendo sido infrutíferas as diligências empreendidas pela própria Ré com vista a determinar o seu paradeiro, poderia ela livrar-se da obrigação mediante a consignação em depósito das quantias ainda devidas à Autora, conforme previsto no artigo 841º do Código Civil. Porém, mas só o faria se quisesse, visto que a consignação em depósito é facultativa.

8) Nada mais competia à R. fazer em face da obrigação contratual a que se vinculara, e no entanto a sentença vem agora dizer que apesar de se ter demonstrado que a Ré obteve a emissão do cheque bancário, que foi debitado na sua conta e de o ter entregue a quem devia (a CCILF) a Ré não logrou cumprir com o ónus de demonstrar que cumprira a sua obrigação.

9) Ora, se a questão pode suscitar tais dúvidas que o próprio tribunal vem a considerar que a R. ainda não se libertou do pagamento de uma prestação de 500.000$00 desembolsada em 1995, tinha a R. todo o direito de suspender a todo o tempo o envio de quaisquer outras prestações, enquanto não se apurasse em definitivo qual o estado e a validade dos pagamentos efectuados anteriormente, -como veio a fazer em 2002.

10) Efectivamente tinha-se deparado uma situação muito séria e não esclarecida de impossibilidade de a R. efectuar os pagamentos com segurança, a ponto de a própria A. ter acabado por romper unilateralmente o que estava contratado quanto aos procedimentos de concretização do pagamento, mas sem cooperar minimamente com a R. no estabelecimento de novos procedimentos que substituíssem a efectivação dos pagamentos com a intermediação da Câmara de Comércio.

11) Até que a partir de 2004 nem sequer lhe era possível arriscar na efectivação de outros pagamentos, porque a própria A. se recusou a recebê-los pelo processo que estava contratado.

12) Neste contexto não assume qualquer relevância o facto de se ter provado que a partir de Dezembro de 2004 a Ré continuava a justificar as faltas de pagamento com as dificuldades de mercado.

13) Independentemente dessa ou de outras justificações, o facto é que não estavam removidos os obstáculos para que a Ré pudesse efectuar outros pagamentos com segurança e sem correr o risco de pagar duas vezes a mesma coisa por falta de cooperação da A., contrariamente ao que entendeu a sentença recorrida.

14) Esta conclui erradamente que em 2 de Abril de 2002 ainda se encontravam por pagar vinte das prestações previstas no acordo de pagamento firmado entre as partes, no valor unitário de 2.493,996 ou seja no montante global de 49.879,80 €.

15) Mas na verdade em 2 de Abril de 2002, quando a R. suspendeu os pagamentos encontravam-se por pagar apenas 19 prestações no valor unitário de 2.493,99 € ou seja no montante global de 47.385,816 porquanto a prestação referida na alínea L) também tem de considerar-se já paga pela Ré.

16) Não podendo a A. exigir à R. que volte a pagá-la pela segunda vez, terá é que reclamar a sua entrega por parte da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Francesa, depositária do cheque que a representa.

17) A R. sempre se confessou devedora à A. da quantia de 47.385,806 mas mesmo o pagamento desta quantia só poderá ser-lhe exigido quando forem definidas novas condições de pagamento em substituição daquelas que vigoravam no acordo que a A. rompeu unilateralmente, sem apresentar qualquer motivo justificativo para o efeito e sem promover o estabelecimento de outro procedimento alternativo.

18) Quando era seu o ónus resolver com a intermediária o assunto do cheque que a R. já tinha pago e entregue a esta, bem como cooperar na remoção dos obstáculos que impediam a R. de continuar a efectuar pagamentos com segurança.

19) Como tal, é a A. que se encontra em mora e não a Ré, tendo a decisão recorrida violado o disposto nos artigos 792º nº 1 e 813º do Código Civil, ao decidir em sentido contrário.

20) Não sendo exigível à R. o pagamento de quaisquer juros de mora que, a serem devidos o seriam sempre por aplicação das taxas fixadas na lei francesa sob pena de violação do caso julgado.

Não houve contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

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2. FUNDAMENTOS.

Com interesse para a decisão da causa encontram-se provados os seguintes,

2.1. Factos.

2.1.1. No âmbito da sua actividade, a Autora, que se dedica ao fabrico e comercialização de artigos e materiais de vidro, forneceu à Ré, a crédito e no decurso dos anos de 1982 e 1983, diversos materiais e artigos do seu fabrico e comércio (alínea A) da matéria assente);

2.1.2. Para cobrança do montante devido pela Ré, a Autora intentou acção declarativa de condenação, a qual como processo nº 61/1984 correu seus termos pelo 2º Juízo deste Tribunal Judicial da Comarca de Tomar (alínea B) da matéria assente);

2.1.3. Por força do decidido nesta acção declarativa, e já considerando as correcções decorrentes dos recursos interpostos para o Tribunal da Relação de Lisboa e para o Supremo Tribunal de Justiça, a Ré foi condenada no pagamento da quantia de 711.922,55 FF (Francos Franceses), acrescida de juros de mora a contabilizar à respectiva taxa supletiva fixada pela lei francesa (alínea C) da matéria assente);

2.1.4. Como a Ré, mesmo depois da decisão ter transitado em julgado, se manteve na posição de não pagar a quantia em que tinha sido condenada, a Autora promoveu a respectiva acção executiva com prévia liquidação dos juros (alínea D) da matéria assente);

2.1.5. Para receber o saldo ainda em dívida do seu crédito, a Autora veio promover a execução da sentença proferida no processo que com o nº 61/1984 correu seus termos pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Tomar, mas sem esquecer de, na quantia exequenda, deduzir as quantias já recebidas (alínea I) da matéria assente);

2.1.6. Já na pendência da execução e liquidação dos juros de mora e através da intermediação da Câmara de Comércio e Indústria Luso Francesa, a Autora aceitou fixar a dívida no valor global de 827.640,00 FF, na condição de ser feito o pagamento imediato de 138.000,00 FF (ou Esc. 4.000.000$00) seguido de 40 prestações mensais de 17.241,00 FF (ou Esc. 500.000$00) (alínea E) da matéria assente);

2.1.7. A Ré deduziu oposição à execução, acabando por ser proferida sentença que julgou extinta a execução, em face do acordo aceite pela Ré, através da intermediação da Câmara de Comércio e Indústria Luso Francesa, referido em E) supra (alínea J) da matéria assente);

2.1.8. As prestações objecto do acordo descrito em E) venciam-se sucessivamente (resposta ao nº 1 da base instrutória);

2.1.9. A Ré fez o pagamento da quantia inicial de 138.000,00 Francos franceses, bem como o pagamento de, pelo menos, 20 prestações mensais do valor unitário de esc. 500.000$00, a que correspondem, actualmente, € 2.493,99 (alínea F) da matéria assente);

2.1.10. O pagamento das 20 prestações referidas em F) não foi efectuado com regularidade (alínea G) da matéria assente);

2.1.11. O pagamento das 20 prestações referidas em F) foi feito com atraso em relação às datas dos seus vencimentos (resposta ao nº 2 da base instrutória);

2.1.12. A Autora recebeu os pagamentos referidos em F) sem ter efectuado qualquer reclamação (alínea H) da matéria assente);

2.1.13. O último pagamento efectuado pela Ré foi o de 250 contos e destinava-se a completar o pagamento da parte restante da 20ª prestação, em 2 de Abril de 2002 (resposta ao nº 6 da base instrutória);

2.1.14. Um dos cheques emitidos pela C....a pedido da Ré, entregue na CCILF em Lisboa para pagamento de uma das mensalidades, foi o cheque nº SSE0 .... datado de 95/05/18 no valor de 16.812,37 FRF (alínea L) da matéria assente);

2.1.15. O cheque referido em L) foi enviado pela Ré à Câmara do Comércio Luso Francesa (alínea O) da matéria assente);

2.1.16. O valor do cheque descrito em L) foi debitado na conta bancária da Ré (alínea P) da matéria assente);

2.1.17. A Autora não recebeu o cheque referido em L) (resposta ao nº 10 da base instrutória);

2.1.18. A Ré encetou várias diligências, junto do Banco sacado, para saber se o cheque referido em L) foi extraviado ou se foi apresentado a pagamento e quando e a quem foi pago, mas sem sucesso (resposta ao nº 13 da base instrutória);

2.1.19. Em Dezembro de 2004, a Autora comunicou à CCILF que lhe retirava o processo de cobrança (alínea M) da matéria assente.

2.1.20. A Ré deve à Autora, pelo menos, os montantes de € 47.385,81, equivalente de 19 prestações de 500.000$00 (alínea N) da matéria assente);

2.1.21. A Ré foi várias vezes interpelada para fazer o pagamento da totalidade do saldo ainda em dívida (resposta ao nº 5 da base instrutória);

2.1.22. A partir de Dezembro de 2004, sempre que era reiterada a interpelação para reiniciar os pagamentos, a Ré continuava a justificar as faltas de pagamento com as dificuldades de mercado (resposta ao nº 12 da base instrutória).

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2.2. O Direito.

Nos termos do preceituado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

- O caso julgado formado na acção nº 61/84 constitui óbice à condenação nos juros às taxas praticadas?

- Da pretensa mora accipiens do credor.

2.2.1. O caso julgado formado na acção nº 61/84 constitui óbice à condenação nos juros às taxas praticadas?

A sentença apelada condenou a Ré B...., a pagar à Autora A.... a quantia global de € 49.879,80 acrescido de juros de mora vencidos desde e de Abril de 2002 às taxas legais previstas para as obrigações comerciais até efectivo e integral pagamento acrescidos da sanção pecuniária compulsória prevista no artigo 829º-A nº 4 do Código Civil após o trânsito em julgado da sentença. A Ré insurge-se contra a condenação proferida quanto a juros por entender que a tal obsta o caso julgado que se formou neste particular na acção nº 61/1984 e não foi objecto de qualquer convenção ou alteração que nesse âmbito tivesse modificado a obrigação.

Assim sendo, ao condenar a Ré no pagamento de juros às taxas aplicáveis pela lei nacional quando a acção anterior fixara definitivamente a aplicabilidade das taxas de juros da lei francesa, mostra-se violado o caso julgado a que aludem os artigos 497º e 671º do Código de Processo Civil.

A Ré não tem razão. Efectivamente em consequência do incumprimento do contrato de compra e venda a Autora havia intentado contra a Ré a aludida acção que acabou por condenar esta última no pagamento da quantia de 711.922,55 FF acrescida de juros de mora à taxa supletiva fixada pela lei francesa. A referida sentença foi efectivamente executada tendo o respectivo processo terminado por acordo em que se contemplava o pagamento das quantias em dívida. Contudo após várias vicissitudes e pagamentos restou ainda em dívida a importância de € 74.544,65 de capital e juros vencidos.

Ora esse crédito remanescente é feito valer agora através da presente acção declarativa autónoma que não está assim sujeito ao caso julgado da acção anterior, o que só sucederia caso a mesma fosse de índole executiva. A situação é aqui ao fim e ao cabo idêntica à de qualquer outro crédito feito valer ex novo referindo-se aliás que tão pouco a Ré levantou a questão.

Assim sendo e tratando-se de um remanescente em dívida já autonomizado, admite-se que a mora no respectivo pagamento esteja já sujeita aos juros previstos para as operações comerciais nos termos do que vem explanado na sentença

Nesta conformidade bem se andou ao considerar que lhe são aplicáveis os juros aludidos na sentença ora apelada, de harmonia com o disposto nos artigos 2º, 13º, 99º e 102º do Código Comercial.

Improcedem pois as considerações da apelante neste particular.

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2.2.2. Da pretensa mora accipiens do credor.

Refere a Ré que desde que a Autora rompeu o acordo que tinha estabelecido com a mesma quanto ao modo de pagamento, i.e. por intermédio da Caixa de Comércio Luso-Francesa, ela própria se constituiu em mora accipiens nos termos do disposto no artigo 813º do Código de Processo Civil por não praticar os actos necessários ao cumprimento da obrigação da Ré. Assim enquanto tal situação perdurar verifica-se uma impossibilidade temporária de cumprimento, situação em que a Ré devedora não responde pela mora no cumprimento, como determina o artigo 792º nº 1 do Código Civil. Contudo, acrescenta, já antes disso a Ré tinha motivos suficientes para suspender a todo o tempo o pagamento de outras prestações à Autora, visto que um dos cheques emitidos pela C....a seu pedido, o cheque nº SSE0 ...., datado de 95/05/18 no valor de 16.812,37 FTF fora entregue pela R. na Câmara de Comércio Luso-Francesa em Lisboa para pagamento de uma das mensalidades, tendo o seu valor sido debitado na conta bancária da Ré, mas sem que a Autora o tivesse recebido.

Decidindo.

Nos termos do preceituado no artigo 813º do Código Civil "O credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação". De um modo geral têm-se entendido que é essencial para que possa verificar-se a mora do credor a) Que ao devedor seja lícito prestar, que possa prestar e que tente fazê-lo; b) Que o credor recuse sem motivo justificado a colaboração necessária ao cumprimento; c) Que se mantenha a possibilidade da realização futura da prestação. Além disso deverá sempre indagar-se da possibilidade de uma actuação culposa do credor[1].

À face dos requisitos supra-enumerados não se vê onde é que a Ré pode filiar validamente a mora do credor. Na verdade esta acção surge na sequência do incumprimento da Ré mesmo após as partes terem chegado a um acordo já na fase executiva da sentença que primeiramente ajuizou do crédito da Autora. Foi sempre a Ré quem se atrasou nos pagamentos faseados do remanescente da dívida, não vindo mencionado nos factos provados qualquer entrave da credora à satisfação da obrigação; antes pelo contrário a Autora interpelou a Ré a fim de que procedesse ao pagamento da totalidade do saldo em dívida mas sem qualquer êxito.

Por outro lado não pode a Ré justificar a cessação dos pagamentos com o facto de um dos cheques emitido pela C....a seu pedido o cheque nº SSE0 .... datado de 18 de Maio de 1995 e no valor de € 16.812,37 que fora entregue na Câmara de Comércio Luso Francesa para pagamento de uma das mensalidades se ter extraviado; é que na verdade a Autora é estranha a esta situação que terá de ser dirimida pela Ré com esta entidade. Aliás para além de poder ter efectuado a consignação em depósito a fim de se livrar da obrigação, não é menos certo que tão pouco a Ré logrou provar (e o ónus era seu) que a suspensão dos pagamentos se ficasse a dever àquele

incidente, já que a resposta a esta questão que era o cerne do quesito 8º foi negativa. A isto acresce ainda que tem sido entendido, para que exista mora do credor, não ser suficiente que este se recuse a colaborar com o devedor no respectivo cumprimento sendo ainda necessário que a omissão do primeiro seja essencial para o cumprimento, de molde a que sem ela o devedor não possa validamente prestar[2].

Por último refira-se que como corolário da ausência de mora por parte da credora tem esta direito (contrariamente ao que a Ré pretende) aos juros peticionados e nos termos em que o foram.

Nesta conformidade sempre a apelação terá que improceder.

                     

Poderá então concluir-se o seguinte:

1) Executando-se uma sentença de condenação num pagamento de uma quantia em moeda estrangeira acrescida de juros a uma determinada taxa, a qual terminou por um acordo de pagamento em determinadas condições; incumprido tal acordo; e tendo sido intentada nova acção para pagamento do remanescente, não tem a respectiva sentença que ater-se aos termos da condenação da primitiva acção, que já não tem efeito de caso julgado sobre o remanescente da dívida que assim se autonomizou. Pode assim na acção agora intentada haver à condenação no pagamento de juros às taxas previstos na lei portuguesa.

2) Para que exista mora do credor, não é suficiente que este se recuse a colaborar com o devedor no respectivo cumprimento sendo ainda necessário que a omissão do primeiro seja essencial para o cumprimento, de molde a que sem ela o devedor não possa validamente prestar.

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3. DECISÃO.

Pelo exposto acorda-se em julgar a apelação improcedente confirmando assim a sentença apelada.

Custas pela apelante.


[1] Cfr. v.g. Rita Lynce de Faria "A mora do credor" Lex Lisboa, 2000, pags. 16.
[2] Cfr. Cattaneo Della mora delle creditore in Commentario del Codice civile, Bologna Zanichele Editore Roma, apud Autora e lugar supracitados.