Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2009/06.1YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VÍTOR
Descritores: USUFRUTO
NUA PROPRIEDADE
OBRAS
HABITAÇÃO DO PROPRIETÁRIO
Data do Acordão: 09/26/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE ALCOBAÇA, 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1439º, 1471º Nº2 E 1472º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. No âmbito das obras levadas a cabo na coisa usufruída, distinguem-se as que ficam a cargo do usufrutuário – reparações ordinárias indispensáveis à conservação da coisa (art.1472º do CC) – das outras obras e melhoramentos de que seja susceptível a coisa usufruída, que incumbem ao nu-proprietário, não podendo o usufrutuário proibi-las, mas ficando com o direito de usufruto das mesmas (art.1471º nº2 do CC).

2. A realização de obras de beneficiação por parte do nu-proprietário não é, por si só, indício de aquiescência do usufrutuário à habitação daquele no prédio usufruído, já que o titular do usufruto não pode impedir a sua realização.

3. Na ausência de criação de expectativas válidas ao nu-proprietário, cuja destruição possa indiciar abuso de direito por parte do usufrutuário, o direito deste último prevalece em absoluto sobre os interesses habitacionais do primeiro.

Decisão Texto Integral: Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

A..., residente na Estrada Nacional n° 60, Montes, Alcobaça, veio intentar contra os Réus B... e mulher, C..., residentes na Estrada Nacional n° 60, Montes, Alcobaça, a presente acção com processo sumário, pedindo a sua condenação a desocupar de imediato a casa identificada no artigo 1º da petição inicial e a absterem-se de praticar actos lesivos e de impedir o seu livre exercício do direito de uso e habitação do referido prédio.
Alega, para tanto, que é usufrutuária do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial e o Réu titular da nua propriedade do mesmo prédio, tudo por escritura de partilha outorgada em 22.02.97. Os Réus, por tolerância da Autora, instalaram-se na casa e destinaram à Autora um quarto para dormir. Passaram a proibi-la de usar a cozinha e casa de banho e agrediram-na. Ela tem insistido para os Réus deixarem a casa, mas recusam-se a fazê-lo.
Os Réus contestam com a alegação de que passaram a viver na casa de que a Autora é usufrutuária a seu pedido. Fizeram obras e acordaram que destinada à Autora ficaria o uso do rés-do-chão e a utilização simultânea da cozinha. Negam tê-la impedido de qualquer uso livre da casa, injuriado ou agredido.
Dispensada a audiência preliminar, são organizados os factos assentes e a base instrutória, sem reclamação. Realizada a audiência de julgamento com observância do legal formalismo, o tribunal decide a matéria de facto controvertida nos termos definidos a fls. 114 e 115, sem reclamação.
Foi proferida sentença que julgou a acção procedente condenando os Réus a desocupar o prédio urbano, sito na Rua da Estrada Nacional, com o n° 60, no Lugar de Montes, composto de casa de rés-do-chão para habitação com a área de 45 m2 e logradouro com a área de 311 m2, inscrito na matriz predial sob o artº 701°, e a absterem-se de praticar actos que impeçam o direito de usufruto da Autora.
Daí o presente recurso de apelação interposto pelos RR., os quais no termo da sua alegação pediram que se reformule a sentença de harmonia com a sua alegação de recurso absolvendo-se os RR. do pedido.
Foram para tanto apresentadas as seguintes,

Conclusões.

1) A sentença recorrida não faz uma correcta aplicação do direito aos factos provados impondo-se diferente solução jurídica para o pleito.
2) Dar como provado no ponto 4 do item II – Fundamentos de Facto: “E, onde, após a morte de D..., com autorização da Autora, os Réus passaram também a habitar.” e no ponto 7 do mesmo item: “Os Réus, em 1997, e com vista à sua instalação no prédio referido em A), realizaram obras de beneficiação (...)”, é prova bastante sobre o carácter duradouro do acordo que legitima a ocupação pelos RR do imóvel.
3) Face à prova produzida não pode ser dada prevalência ao direito de uso e fruição do imóvel sob pena de haver lugar à paralisação das necessidades habitacionais do nu proprietário que são realizadas através do mesmo imóvel por via de acordo de divisibilidade da coisa celebrado entre as partes com carácter duradouro.
4) As obras realizadas, dada a sua envergadura não tiveram por fim a conservação da coisa.
5) Estipula o artº 1 472º do Código Civil que estão a cargo do usufrutuário tanto as reparações ordinárias indispensáveis para a conservação da coisa como as despesas de administração.
6) Contrariamente ao vertido na sentença posta em crise as obras efectuadas são determinantes para produzir reflexo sobre a duração do acordo de divisibilidade celebrado.
7) Sendo o acordo e todos os elementos que o integram factos impeditivos do direito da ora apelada e fazendo menção à existência do acordo como faz era aquela que competia a alegação e prova da duração temporária do mesmo, ainda que contrária ao que foi acordado entre as partes.
8) Foi na qualidade de usufrutuária do prédio dos autos e no gozo pleno dos direitos de uso e fruição sobre o imóvel que a apelada conferiu ao nu proprietário a possibilidade de ali fixar residência, guardar os seus haveres pessoais, dormir, enfim, instalar a sua intimidade, a sua vida privada.
9) Conforme estipula o nº 1 do art. 1460º do Código Civil o usufrutuário tem o poder de constituir novos direitos, mesmo reais, sobre a coisa.
10) No uso dessa faculdade, foi constituído a favor do ora apelante um direito de uso – nº 1 e 2 do artº 1484º do Código Civil.
11) Gozo esse que se encontra limitado pelas necessidades do titular, ora apelante e do seu agregado familiar.
12) Verificando-se um conflito entre a posição da A., ora apelada, como usufrutuária e os RR., ora apelantes, como proprietários de raiz e face à prova produzida não pode ser dada prevalência ao direito de uso e fruição do imóvel sob pena de haver lugar à paralisação das necessidades habitacionais (direito de habitação) do nu proprietário que são realizadas através do imóvel identificado nos autos por via do acordo de divisibilidade da coisa celebrado entre as partes com carácter duradouro.
13) No contexto dos autos sendo a reserva de usufruto simultânea com a aquisição da nua propriedade por parte dos apelantes e o facto de aqueles viverem desde 1997 no imóvel, ali exercendo um direito de uso, na sequência de um acordo de divisibilidade do uso da coisa, perfeitamente lícito à luz das regras do usufruto, entende-se que, não obstante a deterioração do relacionamento entre as partes, não só não tem a ora apelada direito a derrogar tal acordo, com a sua pretensão se traduz em abuso do direito.
Não houve contra-alegações.
Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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2. FUNDAMENTOS.

O Tribunal deu como provados os seguintes,

2.1. Factos.

2.1.1. Integral conteúdo da escritura de partilha, junta a fls. 6 e ss., lavrada no dia 24.02.1997, no Cartório Notarial de Alcobaça, partilha dos imóveis deixados por óbito de D... ocorrido em 21.01.¬1995, em que foram outorgantes, entre outros, a aqui Autora A... e o aqui Réu B...; escritura em que foram adjudicados à Autora e ao Réu o usufruto e a nua propriedade, respectivamente, do seguinte prédio:
"Urbano, sito na Rua da Estrada Nacional, com o n° 60, no Lugar de Montes, composto de casa de rés-do-chão para habitação com a área de 45 m2 e logradouro com a área de 311 m2, inscrito na matriz predial sob o art. 701°, com o valor patrimonial e atribuído de 12.467$00." (A).
2.1.2. Prédio que constituía a casa de morada de família da Autora e do falecido D..., seu marido (B).
2.1.3. Prédio onde a Autora, após a morte do D..., continuou a habitar (C).
2.1.4. E onde, após a morte do D..., com autorização da Autora, os Réus passaram também a habitar (D).
2.1.5. Réus que efectuaram no prédio obras de beneficiação (E).
2.1.6. Actualmente, o relacionamento entre Autora e Réus encontra-se deteriorado (F).
2.1.7. Os Réus, em 1997, e com vista à sua instalação no prédio referido em A), realizaram obras de beneficiação no dito prédio que se traduziram na remodelação do rés-do-chão e no acabamento da construção de um primeiro andar, cujas obras já haviam sido iniciadas - primeiro andar esse independente, inclusivamente no acesso, do rés-do-chão - , composto por uma sala e um quarto, e na construção de uma casa de banho no dito primeiro andar (2º e 3º).
2.1.8. Tendo Autora e Réus combinado que estes iriam habitar o 1º andar, podendo utilizar a cozinha do rés-do-chão e o filho ocupar um dos quartos do rés-do-chão (4º).
2.1.9. Os Réus respeitam o acordo referido na resposta dada ao art° 4º e não impedem a Autora de usar a totalidade do rés-do-chão, com excepção da utilização pela mesma da cozinha diariamente, nos períodos compreendidos entre as 7h30 / 8h30m e as 19h / 21 horas e da utilização do quarto do filho dos Réus, estudante, durante as férias escolares deste (5º).
2.1.10. Os Réus proibiram a Autora de usar a cozinha e a casa de banho nos períodos compreendidos entre as 7h30 / 8h30m e as 19h/21 horas e, por uma vez, fecharam o gás (8º).
2.1.11. A actual presença dos Réus no prédio constitui, para a Autora, motivo de perturbação, nervosismo e ansiedade (10º).
2.1.12. A Autora discute frequentemente com os Réus (11º).
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2.2. O Direito.

Nos termos do precei-tuado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Pro-cesso Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso deli-mitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformi-dade e conside-rando também a natureza jurídica da maté-ria versada, cumpre focar os seguintes pontos:
- O usufruto e a nua propriedade à luz do caso vertente.
- Apreciação dos argumentos dos apelantes.
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2.2.1. O usufruto e a nua propriedade à luz do caso vertente.

Estatui o artigo 1 439º do Código Civil - Diploma ao qual pertencerão os restantes normativos a citar sem menção de origem – que "o usufruto é o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio sem alterar a sua forma ou substância". Estamos em presença de um direito real limitado que coexiste com a propriedade titulada por um sujeito diverso já que a reunião da nua propriedade e do usufruto na esfera jurídica de uma só pessoa provoca a extinção deste último. Pode o usufruto ser constituído por contrato, testamento ou usucapião sendo certo que é no título constitutivo do mesmo que se determinam os direitos e obrigações do usufrutuário; só na falta ou insuficiência do título é que se observam as disposições dos artigos 1 446º ss. No que concerne à questão de saber a quem incumbe realizar obras na coisa objecto do usufruto há que distinguir entre as reparações importa fazer uma destrinça: tratando-se de obras ordinárias de reparação indispensáveis à conservação da coisa as mesmas ficam a cargo do usufrutuário – artigo 1 472º. Já quanto às outras obras e melhoramentos de que seja susceptível a coisa usufruída, serão levadas a cabo pelo nu-proprietário sem que o usufrutuário possa proibir as mesmas ficando com o direito de usufruto das mesmas nos termos do preceituado no nº 2 do artigo 1 471º do Código Civil[ Cfr. mais desenvolvimentos in Pires de Lima e Antunes Varela "Código Civil Anotado III, 2ª edição pags. 521.].
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2.2.2. Apreciação dos argumentos dos apelantes.

A Autora usufrutuária obteve ganho de causa tendo os RR. recorrentes sido condenados a desocupar a casa da qual detêm a nua propriedade.
Sustentam os apelantes que no caso vertente não poderá dar-se preferência ao usufruto em prejuízo da nua propriedade sendo fundamental para tanto tomar em linha de conta que os RR. levaram a cabo no prédio várias obras de beneficiação.
Os apelantes não têm razão. Dos factos provados sabe-se apenas que a Autora e os RR. combinaram que estes iriam habitar o 1º andar podendo utilizar a cozinha do rés-do-chão e o filho ocupar um dos quartos do rés-do-chão. No entanto ignora-se em concreto outros pormenores relevantes do acordo, nomeadamente contrapartidas eventuais e expectativas criadas nos Réu em virtude das quais as obras teriam sido realizadas. Ao contrário do que os Réus pretendem inculcar a realização destas não significa a criação de uma expectativa de autorização da Autora a uma permanência prolongada no prédio pela simples razão já acima aflorada de que o usufrutuário é obrigado a consentir a realização de obras ou melhoramentos de que seja susceptível a coisa usufruída sendo certo que é o usufrutuário que tem o direito de fruir dos mesmos – artigo 1 471º. Não pode pois dizer que o comportamento da Autora ofendeu as regras da boa-fé, nomeadamente sob a forma de venire contra factum proprium. Sem outros elementos não podiam os nus proprietários ignorar a sua posição jurídica no seio do prédio e comportar-se como se fossem proprietários plenos assim subvertendo a natureza do instituto do usufruto[ Acerca da natureza preponderante do usufruto na tradição jurídica cfr. Álvaro D'Ors "Derecho Privado Romano", 1997, Eunsa, pags. 265 e D. 7,1,13,2. Cfr. ainda José Alberto González "Direitos Reais e Direito Registal Imobiliário" Quid Juris, 3ª Edição pags. 33. ]. Perante os factos provados a utilização do prédio por parte dos RR. só poderia ter lugar mediante tolerância da Autora que era a titular do direito de uso, à qual são juridicamente indiferentes as alegadas necessidades habitacionais dos nus proprietários. Pretender o contrário é subverter o âmbito dos direitos que cabem a A. e RR. esvaziando o conteúdo do usufruto. E ao contrário do que os RR. sustentam não se vê que a usufrutuária tenha constituído qualquer direito de habitação a favor dos nus-proprietários nomeadamente o direito de habitação; este se bem que possível[ Cfr. Oliveira Ascensão "Direito Civil Reais" Coimbra Editora 5ª Edição pags. 473.] só o seria através dos modos a que alude o artigo 1 485º, não pode ser surpreendido em qualquer facto provado ou documentos juntos aos autos ; é que na realidade constituindo-se o direito de uso e habitação, pela forma a que se reporta o artigo 1 485º e não há indicação segura de ter sido constituído qualquer direito daquela índole, sendo que seria ónus dos RR. prová-lo. Mantendo-se o usufruto tem o respectivo titular sempre o direito de o fazer valer usando o prédio in toto.
Nesta conformidade sempre a apelação teria que improceder.

Pode pois concluir-se o seguinte:

1) Quanto a obras levadas a cabo na coisa objecto do usufruto há que distinguir entre as reparações ordinárias indispensáveis à conservação da coisa que ficam a cargo do usufrutuário – artigo 1 472º - das outras obras e melhoramentos de que seja susceptível a coisa usufruída as quais serão efectuadas pelo nu-proprietário sem que o usufrutuário possa proibir as mesmas, ficando com o direito de usufruto das mesmas nos termos do preceituado no nº 2 do artigo 1 471º do Código Civil.
2) A realização de obras de beneficiação por parte do nu-proprietário não é por si só indício de aquiescência do usufrutuário à habitação daquele, já que o titular do usufruto não pode impedir a realização das mesmas.
3) Na ausência de criação de expectativas válidas ao nu-proprietário cuja destruição possa indiciar abuso de direito por parte do usufrutuário, o direito deste último prevalece em absoluto sobre os interesses habitacionais do primeiro.
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3. DECISÃO.

Pelo exposto acorda-se em julgar a apelação improcedente confirmando assim a sentença apelada.
Custas pelos Apelantes.