Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
325/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. RUI BARREIROS
Descritores: DENÚNCIA DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO
Data do Acordão: 03/30/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ART. 1098.º C.C.
Sumário:

I - O exercício do direito de denúncia do contrato de arrendamento por um dos comproprietário é uma questão de direito adjectivo, onde a regra é o litisconsórcio voluntário.
Decisão Texto Integral:
Acordam, na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, no recurso de apelação nº 325/04, vindo do 3º Juízo do Tribunal da Comarca da Figueira da Foz (acção sumária nº 509/01):
I – Relatório.
1. Autor: A, solteiro, ... .
2. Réus: J e mulher, L, ....
3. Pedido: declaração de denúncia do contrato de arrendamento celebrado ente anterior proprietário do prédio e os réus.
4. Causa de pedir: necessidade do locado para a sua habitação própria.
...
II – Fundamentação.
8. Não tendo sido impugnada a matéria de facto dada como provada na sentença, nem havendo lugar a qualquer alteração da mesma, usando da faculdade prevista no nº6, do artigo 713º, do CPC, remete-se para os termos da decisão de 1ª instância sobre tal matéria.
9. O Direito.
...
Portanto, o que está em causa é o facto da sentença ter reconhecido a legitimidade activa do recorrido para intentar acção de denúncia do contrato para habitação própria, sem que tenha alegado o acordo da outra comproprietária, matéria esta que os recorrentes defendem como a correspondendo à realidade, de acordo com as Conclusões 6ª a 9ª.
Os recorrentes, entendem que o autor carece de legitimidade para a acção, desacompanhado da outra comproprietária. É este o objecto do recurso.
9.1. Na letra da Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1943, só o senhorio-proprietário e o usufrutuário tinham a faculdade de denunciar o contrato para o destinarem a sua habitação [1]. No entanto, a jurisprudência entendia que o senhorio-comproprietário também a tinha [2]. A redacção dada ao artigo 1098º do Código Civil de 1966 veio colocar o comproprietário ao lado do proprietário e do usufrutuário: «o direito de denúncia para habitação do senhorio depende, em relação a ele, da verificação dos seguintes requisitos: a) ser proprietário, comproprietário ou usufrutuário do prédio ...» [3].
No entanto, no domínio daquela Lei e aquando da discussão na então Assembleia Nacional, a admissão de denúncia por parte dos comproprietários nunca foi no sentido de um deles, isoladamente, poder propor acção de despejo: «do que se passou na Assembleia Nacional por ocasião da discussão do texto correspondente à alínea b) depreende-se que é lícito a um comproprietário requerer o despejo quando os outros comproprietários estiverem de acordo em que ele vá ocupar a casa» [4].
Admitindo-se que se tenha clarificado a possibilidade do comproprietário poder denunciar o contrato de arrendamento, independentemente de tal ter sido necessário ou não, permaneceu o problema de saber em que condições ele o pode fazer: sozinho ou acompanhado dos outros comproprietários? De acordo com a letra da lei, qualquer das hipóteses tem o mínimo de correspondência com o que estava na al. a), do nº 1, do artigo 1098º do Código Civil [5] e consta, hoje, da al. a), do nº 1, do artigo 71º do Regime do Arrendamento Urbano [6] [7] [8].
9.2. Para responder a esta questão, teremos de passar pelo artigo 1405º, cujo nº 1 dispõe que «os proprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular; separadamente, participam nas vantagens e encargos da coisa, em proporção das suas quotas e nos termos dos artigos seguintes», agrupados numa secção sobre «direitos e encargos do comproprietário»; e o nº 2: «cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que a este seja lícito opor-lhe que ela não lhe pertence por inteiro». Desta aparente - dizemos nós - dicotomia entre o exercício do direito de reivindicar (nº 2) e o exercício de outros direitos (nº 1), tem-se defendido que cada comproprietário tem legitimidade activa para as acções reais, mas já não a tem para as acções pessoais.
Contudo, pensamos que não existe a referida dicotomia; o facto da lei, num nº 2, afirmar a legitimidade activa do comproprietário para determinada acção, depois de ter enunciado, no nº 1, a «posição dos comproprietários» em geral, não significa que tenha querido estabelecer uma contra-posição. O que quis foi impedir que o conjunto dos comproprietários obstasse a que um deles reivindicasse a coisa na totalidade, visto tratar-se da defesa de um direito essencial: perdendo-se a propriedade, perde-se tudo. Assim, a lei não quer obrigar a que um comproprietário esteja à espera dos outros ou reuna os outros para defender tal direito. Mais do que este argumento, digamos de comodidade para o demandante, o fundamento da norma é permitir que um só dos donos possa defender o direito total.
Mas, se para a defesa daquele direito, a lei permite que um só aja, tal não quer dizer que, para a defesa de outros direitos, o mesmo não possa acontecer. Os Srs. Profs. Pires de Lima e Antunes Varela dizem-no claramente: «isto não significa, porém, que seja a intervenção conjunta dos vários contitulares o único processo legal de prevenir ou sanar os conflitos entre os interesses divergentes dos comproprietários. Há casos em que a colisão de interesses não é possível ou não tem relevância jurídica, nenhum inconveniente havendo em facultar a actuação autónoma de cada contitular (cf. arts. 1405º, 2; 1406º; 1408º, 1; 1409º, 1)» [9]. O que a norma quer regular é o exercício de direitos na compropriedade, especificando, entretanto, que, quando se tratar da reivindicação, pela sua importância, nenhum contitular do direito pode ser impedido pelos outros de agir; é a defesa essencial do direito sobre a coisa, em que a sua perda representa a perda “de tudo”, permitindo-se, assim, que, eventualmente, a qualidade prevaleça sobre a quantidade e que a agilidade supere a burocracia [10].
Então, o que temos de concluir é que a norma se refere ao processo de formação de vontade da entidade jurídica formada pelos comproprietários e ao funcionamento da vida da compropriedade, ou seja, ao seu lado interno, uma vez que se trata de uma realidade mais complexa do que a personalidade individual, em que o processo de formação da vontade depende de uma só pessoa a qual, para agir, basta que se dirija ao órgão decisor, sem ter de levar atrás de si mais ninguém, nem “mostrar” qual foi seu processo “decisório”.
Diferente são as relações dessa entidade com outras, autónomas e independentes, ou seja, o lado externo da compropriedade. Aqui, interessam normas adjectivas, de legitimidade processual [11]. Claro que aquele nº2, do artigo 1405º acaba por ter reflexos no plano adjectivo, visto que a lei processual não pode impedir o que a substantiva permite. Mas, não se pode é concluir que, fora da reivindicação, o nº 1 do referido artigo estabeleça um litisconsórcio necessário activo.
9.3. Os recorrentes dizem que a posição seguida pela sentença sob recurso vai no sentido da jurisprudência maioritária. Entretanto, citam doutrina e jurisprudência em sentido contrário, por eles defendido.
Na verdade, é a posição do Sr. Prof. Pereira Coelho: «parece, todavia, que o comproprietário que pretenda exercer o direito de denúncia terá de obter o assentimento dos outros, tanto mais que a faculdade do art. 1096º, nº 1, al. a) só pode ser usada pelo senhorio uma vez (art. 1098º, nº, al. c))» [12], posição que mantém na versão de 1988, já com referência à posição contrária do Sr. Dr. Antunes Varela [13]. Também no Acórdão da Relação do Porto, de 20 de Julho de 1982, defendeu-se que «não é lícito ao comproprietário denunciar contrato de arrendamento com a oposição dos consortes» [14]. A questão surgiu porque o réu nessa acção alegara que o autor era comproprietário de outros prédios que também eram objecto de contratos de arrendamento mais recentes, tendo este respondido que os outros comproprietários se opunham à denúncia desses outros contratos. Ora, a questão assim posta, situa-se, na âmbito das relações internas. Não obstante, toda a exaustiva fundamentação do Acórdão vai no sentido do defendido pelos recorrentes, podendo admitir-se que, se a situação se apresentasse unicamente no plano das relações externas, a sua posição seria a mesma. E é também a posição do Acórdão da Relação de Lisboa, de 11 de Abril de 1978, que os recorrentes também citam: «a faculdade de denunciar o contrato de arrendamento com o fundamento de o senhorio necessitar do prédio arrendado para habitação própria, ..., é também conferida ao co-herdeiro de herança indivisa de que o prédio faz parte, desde que os restantes co-herdeiros nisso estejam de acordo, visto que essa faculdade só pode ser usada uma vez» [15]. No mesmo sentido, ainda, o Acórdão da relação de Lisboa, de 4 de Julho de 1973 [16], em que se faz a distinção entre acções pessoais e reais, se qualifica o despejo por resolução do arrendamento como acto de administração, não sujeito à restrição do artigo 1024º, nº 2 e em que se afirma que «o comproprietário só como administrador pode sozinho propor acção de despejo por resolução do contrato, vinculando a sentença os restantes comproprietários»; cá está a questão colocado no plano da lei adjectiva.
9.4. Seguimos a posição contrária à destes Acórdãos, tal como os seguintes [17]:
a) da Relação de Lisboa, de 20 de Junho de 1969 [18]: «tendo o autor sucedido, em comunhão com outro, nos direitos do senhorio, pode exercer os direitos comuns, designadamente o de despejo, sem que seja lícito opor-lhe que tais direitos não lhe pertencem por inteiro» [19].
b) do STJ, de 27 de Junho de 1995 [20], já citado, que julgou a legitimidade activa do comproprietário que pede uma indemnização por prejuízos causados no prédio comum, considerando não haver litisconsórcio necessário, depois de ter abordado o direito substantivo, conforme passagem deixada na nota nº 12.
c) do STJ, de 30 de Abril de 2003 [21]: «3. Quanto a nós, torna-se pacífico que o comproprietário pode sozinho, intentar a acção de denúncia do contrato de arrendamento urbano, atentas as dificuldades jurídico/práticas com que se defrontaria, se estivesse condicionado à cooperação de todos os outros demais comproprietários. Não estamos em presença de uma situação de litisconsórcio natural - imposto pela realização do efeito útil normal da decisão (artigo 28º -2, do Código de Processo Civil), ... . Por outro lado, também no caso, não ocorre nenhum acordo sobre o uso comum do locado que contrarie a propositura da acção só por um dos co-herdeiros; não há a indicação de fim diferente a que o locado se destina; ou que os demais herdeiros venham a ser privados desse uso. Não é desejável razoavelmente, impor uma pluralidade activa, no contexto que acaba de descrever-se, inviabilizando, na prática, o exercício do direito de denúncia - que reveste uma natureza eminentemente pessoal. 4. O artigo 1404º do Código Civil manda aplicar as regras da compropriedade, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer direitos, sendo que o co-herdeiro, por força deste artigo, pode, tal como acontece com o comproprietário, exercer o seu direito de denúncia do contrato de arrendamento para habitação própria, relativamente a um prédio pertencente à herança indivisa de que também é herdeiro. É uma solução que, actualmente, se nos apresenta como a mais equilibrada, na ponderação dos interesses convergentes à situação de herança não partilhada, embora tenha sido apresentada e discutida com algumas hesitações, no passado (...). A solução ora defendida, goza de algum conforto face ao artigo 2078º-1, do Código Civil, quanto à legitimidade material do exercício da acção de restituição de todos os bens da herança por uma só herdeiro. E colhe ainda, perante a observação de que, a denúncia do arrendamento urbano para habitação do próprio denunciante, é um direito de natureza pessoal, só podendo ser exercido por aquele dos co-herdeiros que reúne as condições objectivas do respectivo direito de acção, não actuando em prejuízo de nenhum dos outros. Repetindo uma ideia que é transversal ao que já se disse, anteriormente, não se afigura curial, nem praticável, que todos os consortes tivessem que vir à acção, fazer declarar um direito material que só a um diz respeito; ou exigir-se que fosse o cabeça de casal a fazê-lo, em representação da herança, a que tal direito não pertence, pela pessoalidade da sua natureza. A autora é, por todo o exposto, parte legitima».
d) Apesar de tudo, trazemos à colação o Acórdão da Relação de Évora, de 28 de Abril de 1994 sumariado [22] da seguinte forma: «a situação do autor ser comproprietário ou compossuidor de certas coisas, só por si não o legitima processualmente para demandar relativamente a ocorrências com as mesmas coisas ou a ela respeitantes. Tal legitimidade não pode existir designadamente nos casos em que se discute a existência de contratos (ou promessas de contrato) relativamente às mesmas». E deixamo-lo para o fim porque, por um lado, ele julgou que havia litisconsórcio necessário, pelo que caberia lá trás, juntamente com os Acórdãos que vão no sentido da posição dos recorrentes, mas, por outro lado, aceitamos a sua fundamentação e, também, o decidido. Vejamos. Depois de se referir à matéria substantiva, nomeadamente às normas constantes dos artigos 1405º e 1286º, afirma: «mas, destes dispositivos legais, apenas se pode chegar à conclusão de que, pelo simples facto de o autor ser comproprietário ou compossuidor, ele naqueles casos poderá demandar, desacompanhado dos demais consortes; de modo algum, a simples qualidade de comproprietário ou compossuidor confere, por si só, legitimidade processual ao autor, em geral», afirmação que subscrevemos e que vai na orientação da do Sr. Prof. Antunes Varela, atrás referida, embora com um enfoque de outro ângulo, o que se deverá à solução do caso concreto uma vez que «no caso concreto, não se discute ou averigua a qualidade de comproprietário ou de compossuidor. Essencial é discutir não só a existência como, ainda, a validade ou nulidade de um contrato que se diz ter sido celebrado». Ora, para se decidir da legitimidade activa, do direito substantivo, passou-se para as normas adjectivas, tendo-se concluído pelo litisconsórcio necessário, uma vez que estava em causa a validade de um contrato em que um dos sujeitos eram os comproprietários de um estabelecimento comercial. Assim, o efeito útil do que viesse a ser decidido exigia a presença de todos os comproprietários, posição que parece ser aceite pelo Sr. Prof. Anselmo de Castro: «os nossos tribunais, nomeadamente, na vigência do Cód. de 1939 [23], consideravam forçoso o litisconsórcio em todos os casos de comunhão jurídica de interesses e de identidade do facto jurídico em causa (contrato, testamento, etc.), quando pleiteada a sua validade ou eficácia com razões não circunscritas a algum dos interessados» [24]. Citamos este Autor por ter sido nele que o Acórdão do STJ, de 27 de Junho de 1995 [25] assentou a sua fundamentação para resolver a legitimidade activa do comproprietário com base na disciplina normativa adjectiva.
e) A posição do Sr. Dr. Pinto Furtado: «... afigura-se-nos preferível entender que, no caso de pluralidade de contitulares do prédio arrendado, qualquer deles estará habilitado a exercer isoladamente o seu direito de denúncia para habitação própria, sem necessidade de provar o assentimento dos outros ...» [26].
f) A posição do Sr. Prof. Antunes Varela, em comentário ao Acórdão do STJ de 11 de Julho de 1967 [27]: «nestes termos, o comproprietário que careça do prédio para habitação própria poderá denunciar o contrato de arrendamento para o termo do prazo ou da renovação, sem necessidade de provar a aquiescência dos outros consortes, bastando-lhe fazer a prova dos requisitos discriminados no nº 1 do artigo 1098º. Nem a falta de intervenção dos outros consortes, nem a falta de prova do seu assentimento ou da decisão judicial a que se referem o nº 2 do artigo 1407º do Código Civil, constituirão causa de ilegitimidade do autor ou de improcedência da acção de despejo» [28]. O Autor começa por analisar a letra da lei: «a simples inclusão do comproprietário, entre o proprietário e o usufrutuário, como titular do direito de denúncia do arrendamento, sem subordinação a nenhumas limitações, inculca desde logo, por si só, a ideia de que se quis prescindir, para o efeito, da intervenção e do acordo mesmo dos restantes consortes» [29]. Tanto mais que era sabida a posição da jurisprudência anterior, no sentido da exigência do assentimento de todos, por um lado, e não se consagrou uma alteração proposta pelo Sr. Dr. Tito Arantes na então Assembleia Nacional, no sentido do exercício do direito de denúncia só poder ser exercido «por aquele ou aqueles dos comproprietários que representem por si, ou pela concordância dos consortes, mais de 50 por cento de interesse da coisa comum», por outro lado [30]. E conclui que o comproprietário exerce um simples direito de uso que a lei reconhece, em princípio, a cada um dos comproprietários, sob condições que pertencem ao direito substantivo e à vida interna da compropriedade [31].
g) Finalmente, a posição do Acórdão da Relação de Évora, de 26 de Março de 1980, relatado pelo então Desembargador Dias da Fonseca, que defende a posição referida na alínea anterior, com pormenorizada análise histórica da Lei [32].
9.5.1. Na nossa posição, a forma do exercício do direito de denúncia do contrato pelo comproprietário é uma questão de direito adjectivo, onde a regra é o litisconsórcio voluntário [33], enquanto que a vida dos vários consortes, as suas relações internas é uma questão do direito substantivo. O inquilino, accionado por um deles, não pode opor-lhe o que a todos eles diz respeito. Só pode opor ao denunciante a falta das condições da acção previstas na lei, para além, obviamente, da falta da alegada necessidade do locado. Depois, a relação do denunciante com os outros consortes situa-se noutro plano.
As coisas podem não ser assim tão simples, como propositadamente as apresentámos. Há situações em que se exige a pluralidade activa, o que é matéria adjectiva, portanto fora da disciplina que rege a vida da compropriedade, e que já tem a ver com interesses da parte passiva, pelo menos reflexamente: na relação jurídico-processual, a decisão a proferir tem de produzir efeito estável e definitivo entre as próprias partes; é isso que impõe o nº 2, do artigo 26º do CPC: relações jurídicas há em que o efeito útil normal da respectiva decisão exige a presença de todos os interessados. O que se pretende, mais do que a coerência lógica das decisões proferidas sobre uma relação jurídica concreta, é que «não sejam proferidas decisões que praticamente venham a ser inutilizadas por outras proferidas em face dos restantes interessados» [34]. Seria o caso de uma acção para declaração da validade de um contrato de arrendamento proposta por um só comproprietário [35]. Mas, o mesmo já não acontece com uma acção para denúncia do contrato de arrendamento por parte de um comproprietário que prove todas os requisitos para a procedência da acção. Obtida ela, não é possível que outro intente nova acção que retire o efeito útil da anterior; e o mesmo se verifica se a acção improceder, uma vez que o senhorio pode usar dessa faculdade uma só vez; era o que se dizia na alínea c), do nº 1, do artigo 1098º, e, do facto do preceito ter desaparecido do artigo 71º da R.A.U., não decorre regime diferente, quer pelo preceituado no nº 2 deste artigo [36], quer porque o senhorio é só um, mesmo na compropriedade. Aliás, é com base nessa limitação que a corrente oposta defendia o litisconsórcio necessário, pelo que se ela desaparecesse, cairia o argumento [37].
9.5.2. Conforme se diz no Acórdão do STJ, de 27 de Junho de 1995, «trata-se de critérios, antes de tudo, práticos, mas não menos admissíveis, visto o direito se destinar a regulamentar a vida real e não ser dela divorciado» [38]. Esta valiosa chamada de atenção alerta-nos para problemas que rodeiam esta questão, precisamente os de boa harmonia das soluções que se situem na intersecção do direito substantivo e do adjectivo. Neste aspecto, preocupam-nos as questões levantadas pelo Sr. Conselheiro António Pais de Sousa quando não encontra resposta, nem concorda com as dadas pelo Sr. Prof. Antunes Varela, para os problemas que se podem levantar com a admissibilidade da legitimidade activa singular [39]. Terão de ser resolvidos legislativamente, encarando directamente aquela zona de intersecção e tomando opções; não se aceita que se sacrifiquem as regras processuais a pensar em eventuais divergências dos comproprietários, sobretudo em situações como as de denúncia para habitação própria, em que é indiferente ao inquilino que o seu despejo seja pedido por um ou por vários consortes, sendo certo que ele retomará a sua anterior posição contratual se aquele que o despejou não a for habitar efectivamente, nos termos do disposto no artigo 72º, nº 2, do R.A.U..
Dificuldades sobrevêm sempre. No Acórdão da Relação do Porto, de 20 de Julho de 1982, já referido [40], ao aceitar-se que os consortes se pudessem opor a que um deles denunciasse o prédio objecto de arrendamento mais antigo, também se suscitou a dúvida da «oposição da referida minoria (ser) desfavorável à compropriedade, não (ter) base séria, (constituir) um favor ao autor e só seria relevante se os respectivos consortes também necessitassem do prédio para habitação» [41], tendo-se respondido «que essa oposição resulta da própria natureza da compropriedade» - estamos no plano do direito substantivo -, «e foi exercida pelos consortes no uso de uma faculdade que não se mostra abusiva, excedendo os limites próprios do direito, designadamente que tenha havido o propósito de apenas se fazer um favor ao autor» - o que mostra que a solução para situações patológicas há-de ser procurada nos institutos próprios para tal fim - [42]. De entre os problemas que podem surgir, quer pela não completa articulação entre o direito substantivo e o adjectivo, quer pela plasticidade da vida real, parece-nos que devem merecer mais atenção aqueles que podem afectar o inquilino; porque, do seu lado, o interesse é o de um bem fundamental - a habitação -, ao passo que, do lado dos “senhorios”, é o dos rendimentos a obter com o prédio, esteja lá quem estiver (obviamente que, se um dos consortes necessitar do prédio para a sua habitação, prevalece o seu direito, mas não é esse o enfoque que agora fazemos); porque é mais fácil os comproprietários juntarem-se para lesarem um inquilino, do que surgirem problemas verdadeiros entre eles, que não sejam solucionados antes da acção ou mesmo depois dela, visto que, havendo necessidade do locado para habitação, só um deles o pode ir habitar e o resto são questões de rendimentos; isto, numa perspectiva mais pragmática, por que juridicamente, são problemas a resolver segundo a disciplina da compropriedade, como se disse já.
Neste contexto das dificuldade, e agora no plano das relações externas - porque aí é que eles podem atingir gravidade -, podem suscitar-se dúvidas relativamente às acções de despejo com base em acto ilícito do inquilino, porque, improcedente a acção, poderia ele voltar a ser citado para acção igual intentada por outro comproprietário [43]. Mas, teoricamente, isso também pode acontecer com uma acção de reivindicação, em que o inquilino alegue que a propriedade é dele ou de uma terceira pessoa, sendo certo que o resultado obtido não se impunha aos outros consortes, que poderiam voltar a reivindicar a coisa, obrigando o inquilino a repetir a sua defesa. Neste caso, sempre ele poderia fazer intervir os restantes consortes, logo na primeira acção e deduzir pedido reconvencional, o que se compreenderia com mais facilidade, visto que, arrogando-se a propriedade, é natural que tenha de desenvolver uma actividade para a afirmação dos seus direitos, do que no caso de uma acção de despejo por facto ilícito, em que já não se compreende que fosse o inquilino a ter o trabalho processual que o autor não quis ter.
III – Decisão.
Pelo exposto, julgam improcedente a apelação, confirmando o decidido em primeira instância.
Custas pelos recorrentes.
30 de Março de 2004.
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[1] - artigo 69º, al. b).
[2] - Acórdãos da Relação de Lisboa de 1 de Fevereiro de 1956, e de 15 de Janeiro de 1960, in Jurisprudência das Relações, 2, 63 e 6,16, respectivamente, e da Relação do Porto, de 4 de Janeiro de 1950, in Bol., 21º, 293.
[3] - cf. Código Civil Anotado, Professores Pires de Lima e Antunes Varela, Coimbra Editora, 1968, vol. II, pág. 376, anotação ao artigo 1098º; Arrendamento Urbano, Breves notas às correspondentes disposições do Código Civil, do Dr. Rui Vieira Miller, Almedina, 1967, pág. 154.
[4] - Professor Alberto dos Reis, Processos Especiais, Coimbra Editora, 1982, vol. I, pág. 179. Cf. Prof. Antunes Varela, na RLJ 101º, 174, 1º col. nº 3.
[5] - diploma a que pertencem os restantes artigos sem referência.
[6] - R.A.U.; D.L. nº 321-B/90, de 15 de Outubro, com as alterações introduzidas pelos D.L.s 278/93, de 10 de Agosto, 257/95, de 30 de Setembro 64-A/2000, de 22 de Abril e 329-B/2000, de 22 de Dezembro.
[7] - cf. a já referida RLJ 101º, a pág. 174, 1ª col., 1º §.
[8] - «A nova redacção modificou a questão da atribuição do direito de denúncia também ao comproprietário, mas faz surgir a questão de como dever agora ser exercido» (Acórdão da Relação de Évora, de 26 de Março de 1980, in CJ V, 3, 17, 1ª col., 2º §, do nº 14).
[9] - Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 1972, vol. III, pág. 319, anot ao artigo 1405º. O Acórdão do STJ, de 27 de Junho de 1995, depois de citar os referidos Autores, no que respeita o aspecto focado (mas o facto de o primeiro (nº 1, do artigo 1405º) mencionar que os comproprietários exercem em conjunto todos os direito que pertencem ao proprietário singular não tem o sentido da necessidade do consentimento de todos para o exercício de quaisquer poderes relativamente à coisa, ...»), afirma: «com isto não se impede que em certas circunstâncias cada titular possa actuar autonomamente; ou que noutras o exercício do direito esteja sujeito à deliberação da maioria ...; e noutras, ainda, se torne indispensável a intervenção de todos» (BMJ 448º, 311, 8º §).
[10] - repare-se que, na propriedade horizontal, em que «os condóminos, nas relações entre si, estão sujeitos, ..., às limitações impostas aos proprietários e aos comproprietários de coisas imóveis» (artigo 1422º, nº 1), qualquer condómino pode levar a cabo reparações indispensáveis e urgentes, na falta ou impedimento do administrador (artigo 1427º).
[11] - a este propósito, transcrevemos a seguinte passagem do então Sr. Desembargador Cardona Ferreira, «qualquer decisão judicial não pode ter, apenas, em perspectiva os direitos substantivos mas, também, as suas circunstâncias processuais (Acórdão da Relação de Évora, de 23 de Outubro de 1986, in CJ XI, 4, 288, 2ª col., 8º §, do ponto VI). Também no Acórdão da Relação de Évora, de 26 de Março de 1980, atrás citado (nota nº 11), se faz a distinção entre as relações entre os comproprietários, por um lado, e estes e o inquilino, por outro lado (pág. 17, 1ª col., último §, e 2ª col. 1º §, respectivamente).
[12] - Direito Civil – Arrendamento, sumário das lições ao Ciclo Complementar de Ciências Jurídicas em 1980-81, pág. 212.
[13] - pág. 270, na edição de 1988.
[14] - ponto I do respectivo sumário, in CJ VII, 4, 211.
[15] - sumário, no BMJ 278º, 301.
[16] - com sumário no BMJ 229º, 222. No mesmo sentido, os Acórdãos da Relação de Lisboa, de 16 de Outubro de 1970 (BMJ 200º, 287), da Relação do Porto, de 1 de Fevereiro de 1979 (RLJ 116º, 116).
[17] -além de outros, os Acórdãos da Relação do Porto, de 27 de Março de 1980, com sumário no BMJ 295º, 453; da Relação de Lisboa, de 19 de Março de 1971, com sumário no BMJ 205º, 252, de 6 de Dezembro de 1988, com sumário no BMJ 382º, 516.
[18] -Jurisprudência das Relações, ano 15, 1969, tomo III, pág. 587.
[19] - sumário.
[20] - BMJ 448º, 309.
[21] relatado pelo Sr. Conselheiro Neves Ribeiro; www.dgsi.pt.
[22] BMJ 436º, 469.
[23] - «Neste particular (configuração do litisconsórcio necessário), ..., e embora a estrutura básica do C. P. Civil de 1939 e dos trabalhos do Prof. Alberto dos Reis, a evolução da doutrina e da jurisprudência não passou daí» (o já citado Acórdão da Relação de Évora, de 23 de Outubro de 1986, in CJ XI, 4, 288, 2ª col., 2º §, do ponto VI).
[24] - Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, 1982, vol. II, pág. 207.
[25] - cf. nota nº 23.
[26] - Curso de Direito dos Arrendamentos Vinculísticos, Almedina, 2ª edição, 1988, págs. 561 e 190.
[27] - a já citada RLJ 101º, a pág. 167; Acórdão em que todos os comproprietários estavam de acordo com a acção de despejo e foram à acção em litisconsórcio, que, para o Acórdão, seria necessário.
[28] - RLJ 101º, 176, 2ª col., 2º e 3º §§.
[29] - RLJ 101º, 176, 1ª col. 2º §.
[30] - Diário das Sessões, 1950, pág. 321; RJJ 101º, pág. 174, 2ª col, 2º §, e pág. 176, 1ª col., 3º §. Acórdão da Relação de Évora, de 26 de Março de 190, in CJ V, 3, 16, 1ª col., último §, do nº 11.
[31] - artigo 1406º.
[32] - Acórdão já citado, na nota nº 11 e publicado na CJ V, 3, 14. O referido Relator é autor, juntamente com o então Dr. Antunes Varela da obra Inquilinato (cf. pág. 15, 2ª col., 2º §). Numa passagem rápida pelo site da dgsi, só encontrámos, sobre a matéria, Acórdãos da Relação de Lisboa e do Porto, todos eles no sentido de permitirem a denúncia por um só consorte.
[33] - o litisconsórcio necessário tem carácter excepcional (Prof. Anselmo de Castro, obra e volume citados, pág. 199).
[34] - Prof. Anselmo de Castro, obra e volume citados, pág. 205.
[35] - cf. o que dissemos atrás, na anterior al. d) (cf. notas nºs. 25 e 27).
[36] - igual ao previsto no nº 2, do artigo 1098: «o senhorio que tiver diversos prédios arrendados só pode denunciar o contrato relativamente àquele que, ..., esteja arrendado há menos tempo».
[37] - o Sr. Dr. M. Januário C. Gomes aceita que a restrição tenha deixado de existir e, em consequência, vê reforçada a tese que permite a denúncia por um só dos consortes: «a solução defendida por Antunes Varela parece, ..., ser a mais avisada, tanto mais que o argumento principal da tese oposta, traduzido, ..., na alínea c) do nº 1 do artº 1098º do código civil, não tem cabimento face ao R.A.U., que não adoptou o regime daquela alínea» (Arrendamentos Para Habitação, Almedina, , 2ª edição, 1996, pág. 287).
Contudo, não parece que tal restrição fosse o argumento mais importante da tese a que nos opomos (no domínio da Lei 2030 já a jurisprudência aceitava a denúncia por parte de comproprietário, desde que com o acordo dos restantes, e a exigência de que a restrição figurasse na lei não era para proteger ou bem regulamentar a compropriedade, mas «evitar que cada comproprietário pudesse usar desse direito separadamente», na expressão do autor do projecto inicial, Dr. Sá Carneiro - RLJ 101º, 174, fim da 1ª col. e início da 2ª -). Por outro lado, se, agora, se permitisse que um consorte pudesse denunciar o contrato, com o fundamento dos outros também o poderem fazer, permaneciam os mesmos problemas que se vinham colocando, caso houvesse um só prédio ou um número de prédios inferior aos dos consortes carecidos de habitação (problemas esses que afloraremos no texto já a seguir e na nota nº 42).
[38] - BMJ 448º, 312, § 5º.
[39] - obra citada, edição de 1980, pág. 100: se algum dos consortes também necessitar do prédio para nele habitar, pode-se opor, o tribunal tem de julgar a possibilidade de uso simultâneo (o que hoje não parece nada aceitável), e, em caso negativo, qual dos consortes merece prioridade. E se o consorte oponente não se aperceber que corre a acção?
[40] - nota nº 17.
[41] - § 3º, da 2ª col., da pág. 215 da CJ VII, 4.
[42] - cf. § seguinte ao referido na nota anterior.
[43] - o Sr. Prof. Anselmo de Castro, apesar de entender que, em princípio, se poderia admitir que o comproprietário pudesse intentar acção confessória de servidão contra a pessoa que impede o seu exercício (obra e vol. citados, pág. 215, 1º §), acaba por concluir que «deva prevalecer a norma da legitimidade do litisconsórcio necessário» (3º 4, da mesma página).