Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
37/05.3TASEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO VENTURA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA
SEGURANÇA SOCIAL
DESCRIMINALIZAÇÃO
Data do Acordão: 06/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SEIA – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 107º DO RGIT, 113º DA LEI Nº 64-A/2008
Sumário: O artº 113º da Lei nº 64-A/2008 não é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social p. e p. pelo artº 107º do RGIT
Decisão Texto Integral: I. Relatório


[1] Nos presentes autos do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Seia, com o NUIP nº 37/05.3TASEI, inconformados com o despacho de 04/02/2009 que decidiu rejeitar a acusação deduzida contra os arguidos, por manifestamente infundada, o Ministério Público e o assistente Centro Distrital de Segurança Social do Instituto de Segurança Social IP interpuseram recurso.
[2] O Ministério Público extraiu da motivação as seguintes conclusões:
- O Orçamento de Estado para 2009, aprovado pela Lei n° 64-A/2008, de 31.12, introduziu alterações ao Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n°. 15/2001, de 5 de Junho, no que concerne ao crime de abuso de confiança fiscal, que passou a ser punível apenas quando o valor de cada declaração (mensal ou trimestral no I.V.A.) for superior a 7.500 €; todavia, no que concerne ao crime de abuso de confiança à Segurança Social não se operou nenhuma alteração;
- Tal resulta, desde logo, do art°. 113° da Lei n°.: 64-A/2009, de 31.12, sob a epígrafe "Alteração ao Regime Geral das Infracções Tributárias", o qual estabelece que " Os artigos 18.°, 25. °, 98. °, 105. °, 109º e 114º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n. ° 15/2001, de 5 de Junho, passam a ter a seguinte redacção:....", não se prevendo, assim, nenhuma alteração para os crimes contra a Segurança Social;
- Embora haja um certo paralelismo entre aqueles dois crimes na descrição dos seus elementos típicos, o certo é que são distintos os bens jurídicos protegidos pelos citados tipos legais, pois nos crimes contra a Administração Fiscal, os valores tutelados são os inerentes ao regular e efectivo funcionamento do sistema fiscal e de política social estabelecidos pelo Estado - cfr. art°s. 103° e 104° da Constituição da República Portuguesa, ao passo que nos crimes contra a Segurança Social o bem jurídico tutelado é o património dela, ou seja a tutela do respectivo erário, assente na satisfação dos créditos contributivos de que a Segurança Social é titular, sendo que este delito é um crime específico próprio, exigindo-se que o agente seja uma entidade empregadora.
- Além disso, aqueles crimes têm um enquadramento sistemático distinto, o que se compreende pela diferente natureza dos tributos em causa, surgindo aqueles em dois capítulos diferentes do R.G.I.T., sendo que as remissões que aí são efectuadas para o regime punitivo fiscal visam apenas uma remissão para as respectivas penas aplicáveis; bem como só assim se entenda que as alterações que vêm surgindo com as sucessivas leis do Orçamento tenham vindo a separar os regimes, numa tentativa de assegurar e regular o imprescindível financiamento do sistema público da Segurança Social, conferindo-lhe um regime mais gravoso e uma maior eficácia à protecção dos interesses subjacentes.
- Não há qualquer remissão para o art°. 105° do R.G.I.T. em termos de dever ser atendido o valor aí previsto (ou outro) para efeitos do preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, o que se compreende face a tratarem-se de diferentes tributos e ao facto de não serão muitas, actualmente, as empresas que, mensalmente, entregarão declaração referentes a contribuições devidas à Segurança Social que, em cada uma delas, seja excedido o valor de 7500 Euros.
- Caso se entendesse que para se verificar o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social seria necessário que o pagamento não efectuado teria de ser, por cada declaração apresentada/ a apresentar, superior a 7500 Euros, tal equivaleria a um convite a que os respectivos obrigados não procedessem ao pagamento dessas quantias ou, pelo menos o fizessem apenas na parte em que excedesse os 7500 Euros, gerando situações de desigualdade entre as empresas que ultrapassem e as que não ultrapassem tais montantes por declaração, bem assim como, e no que diz respeito a estas últimas, entre aquelas que, ainda assim, cumprissem as suas obrigações contributivas e aquelas que não o fizessem.
- Além disso, tal entendimento significaria uma desresponsabilização em toda a linha dos comportamentos que tivessem por objecto declarações retidas até 7.500 Euros, pois enquanto a não entrega das prestações tributárias iguais ou inferiores a 7500 Euros integra, agora, a contra-ordenação prevista pelo art°. 114° do R.G.I.T., no caso da não entrega das quotizações deduzidas à Segurança Social, tal conduta deixaria, por falta de previsão legal correspondente, de ser objecto de qualquer sanção, o que, certamente, não terá sido pretendido pelo legislador, já que contraria as linhas orientadoras do próprio Relatório do Orçamento de Estado para 2009.
- De acordo com este Relatório está previsto que a receita de contribuições para 2009 atinja o montante de 13.865,93 milhões de euros, com um crescimento implícito de 5,6%, estabelecendo se como medida e linha estratégica garantir as bases de um sistema público e universal de Segurança Social sustentável, referindo-se ali, expressamente, que esta sustentabilidade passa "também pela melhoria da eficácia na cobrança das contribuições, através do Plano de Combate à Fraude e Evasão Contributiva e Prestacional ... " e não se perceberiam estas expectativas se ao mesmo tempo se estabelecesse um regime que apenas sancionaria as entidades empregadoras e seus representantes se os montantes descontados e não entregues fossem, por declaração mensal, superiores a 7500 Euros - valor declarativo que não é frequentemente atingido, por declaração, no nosso país.
- Também, no sentido de não ter havido intenção do legislador de fazer uma equiparação entre as situações respeitantes a impostos e a contribuições relativas à Segurança Social, temos os tipos legais referentes às fraudes, pois no que concerne à fraude contra a segurança social, a mesma é apenas punível se a vantagem patrimonial ilegítima for de valor superior a 7500,00€, em contrapartida a fraude fiscal só é punida se a vantagem ilegítima for de valor igual ou superior a 15000,00€, pelo que seria uma incoerência sistemática admitir a identidade entre o art. 105°, n.° 1, e o art. 107°, n.° 1, ambos do R.G.I.T., no que respeita ao valor de 7.500 €.
- O legislador deu sinais nítidos de que pretendia que queria uma maior responsabilização (penal) das entidades empregadoras e seus representantes que não entregassem as quotizações deduzidas à Segurança Social, quer ao afastar a possibilidade de verificação de qualquer contra-ordenação mas, antes, a integração de crime, bem como ao eliminar a possibilidade de extinção de responsabilidade criminal no caso de pagamento de prestação inferior a 2.000 Euros, nos termos anteriormente fixados pelo art°. 105°, n°6, do R.G.I.T..
- O recente Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21/01/2009, proferido no Processo n°.: 342/04.6TAAVR, disponível em www.dgsi.pt, acabou por aplicar o art°. 107° do R.G.I.T. sem atender ao valor mínimo previsto no art°. 105°, n°1, do R.G.I.T., tendo sido proferida decisão condenatória pelo crime de abuso de confiança contra a Segurança Social quando foi dado como provado que a prestação mais elevada em falta era de 1.572,57 Euros.
- Assim, a conduta imputada aos arguidos continua a constituir a prática de crime (contra a Segurança Social) p. e p. pelo art°. 107°, n°1, do R.G.I.T., pelo que a Acusação Pública não poderia ser rejeitada por manifestamente infundada.
Consideramos, assim, que o Mm Juiz a quo não efectuou a interpretação mais correcta da ratio legis dos normativos legais e dos princípios aplicáveis a esta situação, violando o preceituado nos arts.2° n°2 do C.Penal; 311°, nos. 1, 2 e 3 do C.P.Penal e 107°, n°1, do R.G.I.T., pelo que deverá o despacho proferido pelo Mm° Julgador a fls.329 a 335 ser revogado, por violador do disposto nos supra citados preceitos legais e substituído por outro que receba a acusação pública deduzida e designe data para audiência de discussão e julgamento, seguindo-se os ulteriores termos até final.

[3] Por seu turno, o assistente formulou as seguintes conclusões:
1° No âmbito deste processo, os Arguidos estão acusados por um crime continuado de abuso de confiança à segurança social, previsto e punido  pela conjugação do disposto nos arts 30°, 2 e 79° do CP, em conjugação com os arts 30, a), 6°, 1, 7°, 1 e 107°, em conjugação com o art° 105°, 4, todos do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001, de 5/06.
2° A Lei n° 64-A/2008, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2009, veio dar nova redacção ao artigo 105° do Regime Geral das Infracções Tributárias, restringindo o crime de abuso de confiança fiscal aos casos em que a prestação não entregue á administração tributária é de valor superior e € 7500 e revogou o disposto no n°6 do referido artigo.
3° Manteve inalterável o artigo 107° do Regime Geral das Infracções tributárias, relativo ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, que define os seus elementos, remetendo, apenas, nos n°s 1 e 2, para efeitos punição, condições de punibilidade e extinção da responsabilidade, para o artigo 105°.
4° Os crimes tributários estão divididos no RGIT em quatro capítulos: Capítulo 1: crimes tributários comuns; Capítulo II: crimes aduaneiros; Capítulo III: crimes fiscais (artligos 103° a 105°) ;Capítulo IV: crimes contra a segurança social (artigos 106° e 107°).Estes tipos de crimes não se confundem entre si, tendo o legislador previsto e regulado independentemente cada um deles, sendo que as disposições específicas de cada um não se aplicam aos demais, salvo quando a lei expressamente o disser.
5º São crimes distintos e que tutelam bens jurídicos distintos: no crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido no artigo 105° o normal funcionamento e interesses do sistema fiscal — a arrecadação de receitas e prossecução dos objectivos da justiça distributiva, no crime de abuso de confiança a relação de confiança, colaboração, lealdade e transparência das entidades empregadoras para com Segurança social a relação de confiança.
6° É certo que o artigo107° (disposição que não sofreu qualquer alteração) remete no seu n° 1 para os n°s 1 e 5 do artigo 105°. Porém, esta remissão prende-se unicamente com as penas a aplicar, dado que o artigo 107°, 1 descreve todos os elementos do tipo legal do crime de abuso de confiança contra a segurança social.
7° Ora, penas e elementos do tipo de crime não se confundem, pelo que a alteração introduzida pela Lei 64-A/2008 ao artigo 105°, 1 em nada contende com o tipo legal estatuído no artigo 107° do RGIT.
8° Aliás, de acordo com o artigo 1°, n° 3 do Código Penal, aplicável ao RGIT por força do seu artigo 3°, não é permitido o recurso à analogia, pelo que, não se pode aplicar o artigo 105°, 1 do RGIT para restringir o âmbito de aplicação do artigo 107°, dado que, como já se referiu, o artigo 107° só remete para o artigo 105° n° 1 no que às penas respeitam.
9º Por último, tendo-se verificado a revogação expressa do n°6 do artigo 105°, aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social por remissão do n° 2 do artigo 107° , não pode agora ser invocada como causa de extinção de responsabilidade, podendo os agentes do ilícito prevalecer-se do disposto no n° 4 do artigo 105º, que, como condição de punibilidade, não estabelece quantitativo máximo da prestação em dívida.

[4] Os arguidos não apresentaram resposta.
[5] Neste Tribunal da Relação de Coimbra, o Sr. Procurador-geral Adjunto elaborou parecer, evidenciando os distintos bens jurídicos protegidos pelo tipo penal de abuso de confiança fiscal, por um lado, e pelo abuso de confiança contra a segurança social, por outro, e considera que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, no sentido de que o artº 113º da Lei nº 64-A/2008 não é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social p. e p. pelo artº 107º do RGIT.
[6] Cumprido o artº 417º, nº2, do CPP, nenhum dos sujeitos processuais respondeu.
[7] Foram colhidos os vistos e realizou-se conferência.


II. Fundamentação

2.1. Âmbito do recurso
[8] É pacífica a doutrina e jurisprudência[1] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso[2]. Os recursos apresentados versam a mesma questão, a saber, a definição do alcance da alteração introduzida pelo artº 113º da Lei nº 64-A/2008, de 31/12, no regime das infracções fiscais, em termos de comportar, ou não, a descriminalização das condutas imputadas aos arguidos.

2.2. Da decisão recorrida
[9] O Ministério Público acusou os arguidos M...  e J...  como autores de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs. 107º, nº1 e 105º, nº1 do RGIT e 30º, nº2 do Código Penal, e ainda a sociedade “T…, Lda”, como responsável pelo mesmo crime, nos termos dos artºs 6º, 7º, 105º, nº1 e 107º do RGIT e 30º, nº2 do Código Penal.
[10] O Centro Distrital de Segurança Social do Instituto de Segurança Social IP constituiu-se assistente.
[11] Remetidos os autos a Tribunal, por despacho de 08/01/2009 foi determinada a notificação dos sujeitos processuais para «se pronunciarem quanto aos eventuais efeitos para o presente processo decorrentes da entrada em vigor da Lei nº64-A/2008, de 21 de Dezembro, mormente o teor do seu artigo 113º na parte em que alterou a redacção do nº1 do artº 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias». Na sequência, os arguidos vieram aos autos sustentar que as condutas de que foram acusados encontravam-se descriminalizadas e Ministério Público e assistente o inverso.
[12] Em 04/02/2009, o Sr. Juiz a quo proferiu o despacho recorrido, com este teor:
1. A 28 de Janeiro de 2008, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos M... , J...  e "T... , Lda", imputando-lhes a prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.
Remetidos os autos à distribuição, o Tribunal suscitou questão prévia ao recebimento da acusação, ordenando a notificação dos sujeitos processuais para, querendo, se pronunciarem quanto aos eventuais efeitos para o presente processo decorrentes da entrada em vigor da Lei n° 64-A/2008, de 31 de Dezembro.
Os arguidos pessoas singulares pronunciaram-se no sentido da descriminalização das suas condutas por via da alteração da norma do artigo 105°, n° 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias.
O Ministério Público afirmou que a alteração da indicada norma não é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.
O assistente "Instituto da Segurança Social, I.P. - Centro Distrital da Guarda" sustentou a não descriminalização do crime imputado aos arguidos, considerando que os diversos crimes tributários são distintos, tal como os bens jurídicos tutelados pelas correspondentes normas, pelo que as específicas disposições relativas a cada um desses tipos de crimes não se aplicam aos demais, salvo disposição expressa em contrário.
Alegou ainda que a remissão do artigo 107°, n° 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias para os nos 1 e 5 do artigo 105° do mesmo diploma prende-se unicamente com as penas a aplicar.
Acresce que não é permitido o recurso à analogia.
2. O artigo 113º da Lei n° 64-A/2008, de 31 de Dezembro - que entrou em vigor a 1 de Janeiro de 2009, conforme o artigo 174º -, veio alterar, entre outras, a norma do artigo 105º, n° 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, introduzindo-lhe um elemento objectivo adicional do tipo legal de crime.
Assim, se anteriormente a essa alteração, os elementos objectivos do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal residiam na omissão de entrega, total ou parcial, à administração tributária de prestação tributária deduzida nos termos da lei e a cuja entrega o agente estava legalmente obrigado, actualmente exige-se que a prestação tributária omitida seja de valor superior a € 7 500,00.
A indicada Lei não alterou a norma do artigo 107º do Regime Geral das Infracções Tributárias pela qual respondem os arguidos nos presentes autos.
De acordo com esta última disposição legal:
"1 - As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos nºs 1 e 5 do artigo 105°.
2- É aplicável o disposto nos nas 4, 6 e 7 do artigo 105º".
Como bem nota o assistente, os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social constam desta disposição legal, visando a remissão operada a final para o artigo 105°, nº 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias apenas a aplicação das penas ali previstas.
Assim sendo, na aparência, a alteração legal não teria quaisquer repercussões ao nível do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, circunstância que não foi notada pelos arguidos no seu requerimento, no qual trataram a questão como se no presente processo estivessem acusados pelo crime de abuso de confiança fiscal.
Todavia, não entendemos que a questão seja tão líquida, aliás, de outro modo, o Tribunal não a teria suscitado.
Na verdade, se o artigo 107°, n° 1, in fine, do Regime Geral das Infracções Tributárias remete para as penas previstas no artigo 1052, n° 1, do mesmo diploma, já não é assim quando remete igualmente para o n° 5 desse artigo 105°.
De acordo com o artigo 105°, n° 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias:
"5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a € 50 000,00, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas".
É manifesto que, neste caso, a remissão operada não visa unicamente a aplicação das penas previstas nesta norma, uma vez que essa aplicação pressupõe igualmente a verificação da circunstância agravante, que se integra no tipo legal de crime, aí prevista, ou seja, que a prestação omitida seja superior a € 50 000,00.
Desde logo não deixámos de notar a incongruência da posição do assistente: conforma-se com a aplicação desta circunstância agravante por via da remissão do artigo 107°, n° 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, mas não aceita que circunstância semelhante - no sentido de que está em causa um elemento quantitativo da prestação tributária, embora de sentido contrário - seja aplicável por via daquela mesma remissão.
Importa ainda notar que a disposição legal que consagra o tipo de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social contém uma outra remissão para o artigo 105° do Regime Geral das Infracções Tributárias, conforme o n° 2 do artigo 107°.
Essa remissão continua a ser operada para os nos 4, 6 e 7 do artigo 105°.
Sucede, porém, que o artigo 115° da Lei n° 64-A/2008, de 31 de Dezembro, veio revogar o n° 6 do artigo 105° do Regime Geral das Infracções Tributárias.
Tal revogação é consequência necessária da alteração introduzia ao n° 1 do artigo 105°.
Efectivamente, esse nº 6 determinava que, se o valor da prestação tributária não excedesse € 2.000,00, a responsabilidade criminal extinguir-se-ia pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária.
Ora, na medida em que a omissão de entrega de prestação tributária igual ou inferior a € 7.500,00 deixou de constituir crime, a norma do n° 6, ao prever um valor inferior a esse, deixou de ter cabimento no ordenamento jurídico.
Deste modo, verifica-se que o artigo 107°, n° 2, do Regime Geral das Infracções Tributárias remete para norma já revogada.
Quidjuris?
Liminarmente afastada está a possibilidade de se entender que o n° 6 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias subsiste no ordenamento jurídico apenas para efeitos de aplicação ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.
Recorrendo à argumentação do próprio assistente diremos que, atenta a relativa compartimentação entre os tipos legais de crimes tributários - crimes tributários comuns (artigos 87° a 91º), crimes aduaneiros (artigos 92º a 102º), crimes fiscais (artigos 103° a 105º) e crimes contra a Segurança Social (artigos 106º e 107° todos do Regime Geral das Infracções Tributárias) -, embora haja uma remissão expressa para uma norma prevista num outro tipo de crime, esta terá necessariamente de subsistir no regime jurídico de modo a que aquela remissão seja operante.
Caso o legislador pretendesse manter a aplicação a um tipo de crime tributário do regime respeitante a outro tipo de crime tributário, entretanto revogado, a solução seria simples: no caso, o legislador alteraria a norma do artigo 107° do Regime Geral das Infracções Tributárias, de modo a nele incluir expressamente disposição idêntica ou similar à anteriormente prevista no artigo 105°, n° 6. O que não fez.
Não o tendo feito há que retirar as devidas ilações.
É manifesto, como já se notou, que a intenção do legislador foi descriminalizar determinadas condutas.
Sucede que, a entender-se que a remissão do artigo 107°, n° 1, para o disposto no artigo 105°, nº 1, não abrange a inclusão ao nível do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social do novo elemento tipificados da conduta do crime de abuso de confiança fiscal, isso não implicaria a manutenção estrutural do tipo legal de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.
Por efeito da revogação do n° 6 do artigo 105° do Regime Geral das Infracções Tributárias, o que se verificaria, ao nível do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, seria antes uma sua agravação.
Efectivamente, se, antes da indicada alteração legal, a omissão de entrega, total ou parcial, do montante das contribuições legalmente devidas, até ao montante de órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, até ao montante de € 2 000,00, conduziria à extinção da responsabilidade criminal nos termos previstos no n° 6 do artigo 105° do Regime Geral das Infracções Tributárias, actualmente deixaria de subsistir tal causa de extinção da responsabilidade criminal, o que se traduziria num efectivo agravamento do tipo legal de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.
Ora, se essa fosse a intenção do legislador, este certamente não a deixaria de consignar, de algum modo, explicitando que, por um lado, era sua intenção desagravar o tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal e, por outro, agravar o tipo legal de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.
Na sequência do que se expôs, não podemos senão interpretar a alteração legal no sentido da extensão desta ao tipo legal de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, isto é, não podemos senão entender que actualmente a omissão de entrega, total ou parcial, de montante das contribuições legalmente devidas igual ou inferior a € 7 500,00 não constitui crime.
Importa ainda sublinhar que, contrariamente ao que sustenta o assistente, a interpretação que o Tribunal faz da alteração legal não implica o recurso à analogia não permitida.
Desde logo porque a analogia na interpretação da lei penal só é proibida quando se traduza na qualificação de um facto como crime (artigo 1°, nº 3, do Código Penal).
Por outro lado, existindo no n° 1 do artigo 107° do Regime Geral das Infracções Tributárias uma remissão para o n° 1 do artigo 105° do mesmo diploma, a aplicação do novo elemento tipificador do crime de abuso de confiança fiscal ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social não é feita por analogia, podendo, quando muito, qualificar-se como interpretação extensiva dessa remissão.
No caso concreto, os arguidos respondem pela omissão de entrega de montantes de contribuições deduzidas nos salários efectivamente pagos aos trabalhadores por conta de outrem relativo aos meses de Agosto a Novembro de 2002, Janeiro e Junho a Dezembro de 2003, perfazendo € 33 098,43; e ainda pela omissão de entrega de montantes de contribuições deduzidas nas remunerações efectivamente pagas aos membros dos órgãos estatutários da pessoa colectiva relativas aos mesmos meses, perfazendo € 2 817,06.
O Tribunal deverá considerar o montante de cada uma das "prestações", isto é, o montante das contribuições devidas em cada um dos meses, atento o disposto no n° 7 do artigo 105° do Regime Geral das Infracções Tributárias, segundo o qual para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária, aplicável ao tipo legal de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social ex vi artigo 107°, n° 2, do Regime Geral das Infracções Tributárias.
Não deixámos de estranhar que, apesar do conhecimento do teor desta norma, o montante devido fosse tratado nos autos praticamente sempre como estivesse em causa o valor globalmente devido, sendo que mesmo a acusação peca por esse indevido tratamento jurídico.
Apesar disso, dos elementos dos autos, designadamente os mapas de fls. 218 a 220, resulta que o montante das contribuições devidas em cada um dos meses se situou sempre abaixo do patamar dos € 7 500,00.
Sendo assim, haverá que considerar descriminalizada a conduta imputada aos arguidos, o que, nesta fase, implica a rejeição da acusação, por manifestamente infundada, nos termos do artigo 311°, nos 2, alínea a), e 3, alínea d), do Código de Processo Penal.
3.
Em face do exposto decide o Tribunal:
Julgando descriminalizada a conduta imputada aos arguidos M... , J...  e "T... , Lda", nos termos das disposições conjugadas dos artigos 113° e 115° da Lei n° 64-A/2008, de 31 de Dezembro, 105°, ns 1, e 107°, n9 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, rejeitar a acusação deduzida contra os arguidos, por manifestamente infundada, nos termos do disposto no artigo 311 °, nas 2, alínea a), e 3, alínea d), do Código de Processo Penal.
II. Sem custas.
4.
Notifique.


2.3. Da despenalização das condutas imputadas aos arguidos
[13] Como se disse, a questão em discussão no presente recurso emerge da alteração introduzida pela Lei nº 64-A/2008, de 31/12, diploma que aprova o Orçamento do Estado para 2009. No seu artº 113º, essa Lei introduziu alterações em 6 preceitos do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), entre os quais ao artº 105º, no qual se tipifica o abuso de confiança fiscal. Centremos a atenção nessa nova intervenção legislativa no preceito, reconhecidamente um dos mais turbulentos do ordenamento penal[3]/[4] .
[14] A redacção do artº 105º, nº1 do RGIT vigente no momento da publicação da Lei nº64-A/2008, de 31/12, era a seguinte:

Artº º105º
(Abuso de confiança)
1. Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente a prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão de três anos ou multa até 360 dias.

Após a referida alteração, que se evidencia a negrito, passou a ser:
  Artº º105º
(Abuso de confiança)
1. Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente a prestação tributária superior a €7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão de três anos ou multa até 360 dias.

[15] A introdução de um limiar de tipicidade no crime de abuso de confiança fiscal, em função do montante da prestação tributária retida, que antes inexistia, torna inequívoco que foi vontade do legislador restringir o leque de condutas puníveis àquelas que ultrapassem essa valoração - €7500[5] - e, inerentemente, despenalizar as condutas omissivas com expressão igual ou inferior.
[16] Esse novo elemento do tipo incriminador[6] afecta outras vertentes do referido preceito. Com efeito, o nº 6 do artº 105º, em que ponderavam as condutas puníveis em que o valor da prestação retida fosse inferior a €2000, deixou de ter campo de aplicação e foi revogado pela Lei nº 64-A/2008, de 31/12. Nenhuma dúvida se suscita também neste ponto.
[17] Os problemas surgem quando se toma em consideração que várias das normas que regem o crime de abuso de confiança fiscal são aplicáveis ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, por via de remissão legal. Com efeito, estatui a norma incriminadora desse último crime:
Artº 107º
 (Abuso de confiança contra a segurança social)
1. As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entregaram, total ou parcialmente, às instituições da segurança social, são punidas com as penas previstas nos nºs. 1 e 5 do artigo 105º.
2. É aplicável o disposto nos nºs. 4, 6 e 7 do artigo 105º.

[18] Ora, essa norma manteve-se inalterada pela Lei nº 64-A/2008, de 31/12, mas, ainda assim, entende a decisão recorrida que deve ser encontrado paralelismo entre os dois tipos incriminadores – abuso de confiança fiscal e abuso de confiança contra a segurança social, em termos de interpretar extensivamente[7] este último no sentido de também restringir a esfera de punição às contribuições devidas de montante superior a €7500.
[19] Assim colocado, o problema é sobretudo interpretativo, de reconstituição do pensamento legislativo. Podemos dizer que o legislador ponderou igualmente o tipo de ilícito do crime de abuso de confiança contra a segurança social?
[20] Nesse esforço hermenêutico, importa tomar vários planos ou elementos. Como salientou recentemente o Supremo Tribunal de Justiça:
«Interpretar um preceito consiste, antes do mais, em tirar das palavras usadas na sua redacção um certo sentido, um certo conteúdo de pensamento, uma significação; em extrair da palavra — expressão sensível de uma ideia — a própria ideia nela condensada. Não se tratará, porém, de colher da lei um qualquer sentido, o primeiro que o texto legal traga ao espírito do jurista. É que a lei não se destina a alimentar a livre especulação individual; é um instrumento prático de realização e de ordenação da vida social, que se dirige sempre a uma generalidade mais ou menos ampla de indivíduos, não concretamente determinados, para lhes regular a conduta (Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, I, 1973, p. 144, e Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 5.ª ed., 1951, p. 24).
Diversos elementos contribuem para esse objectivo.
O elemento gramatical com uma primeira função de natureza negativa, eliminadora: a de eliminar dos sentidos possíveis da lei todos aqueles que, de qualquer modo, exorbitam do texto respectivo (Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., p. 159), tendo presente que, quanto às normas que comportam mais de um significado (sentido, pensamento), nem todos esses sentidos recebem do texto legislativo igual apoio; uns hão -de naturalmente caber dentro da letra da lei mais à vontade do que outros; os primeiros corresponderão ao sentido natural das expressões utilizadas, os outros a um sentido arrevesado, forçado.
O intérprete deve, em princípio, admitir que a lei procede de um legislador que sabe exprimir com suficiente correcção o seu pensamento [...]; do simples texto da lei recebe maior impulso o sentido que melhor corresponde ao seu significado natural, ao seu alcance normal (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., pp. 159 e 160). Quando no texto da lei surgem vocábulos de sentido dúbio ou ambíguo, só o elemento lógico pode fixar o seu sentido e alcance decisivos, o que não significa que não deva esse elemento intervir mesmo quando o texto da lei é aparentemente claro, dada a possibilidade de o texto legislativo ter atraiçoado o pensamento real do legislador.
O elemento racional, a razão de ser, o fim visado pela lei (a ratio legis) e ainda nas circunstâncias históricas particulares em que a lei foi elaborada (ocasio legis) contribuem para a avaliação da sua influência no espírito do legislador e, assim, para descortinar mais facilmente a disciplina que através da norma se pretendeu estatuir. O elemento sistemático, as disposições reguladoras do instituto em que se integra a norma a interpretar e as disposições reguladoras dos institutos ou problemas afins. E o elemento histórico, os materiais relacionados com a história da norma e que lançam alguma luz sobre o seu sentido e alcance decisivo.
Sintetizando, pode reter -se que se trata de estabelecer o sentido das expressões legais para decidir a previsão legal e, logo, a sua aplicabilidade ao pressuposto de facto que se coloca perante o intérprete, cientes de que a interpretação da lei não deve cingir -se à letra da lei mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (artigo 9.º, n.º 1, do CC), além de que, «na fixação e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas» (artigo 9.º, n.º 3)»[8].

[21] O plano interpretativo gramatical depõe no sentido de que o legislador pretendeu confinar a alteração ao abuso de confiança fiscal e não também ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, cujo tipo incriminador manteve-se intocado. Nele encontra-se – rectius continua a encontra-se - remissão para as penas cominadas no artº 105º do RGIT, que em nada posterga a sua natureza autónoma.
[22] A este propósito, argumenta-se na decisão recorrida com a circunstância de se remeter não só para a moldura penal mas também para circunstância qualificativa, na medida em que o nº2 do artº 107º do RGIT torna aplicável ao abuso de confiança contra a segurança social o nº 5 do artº 105º do mesmo diploma. Perfilha entendimento similar o Ac. da Relação de Lisboa de 25/02/2009[9], onde se lê:
«Sempre se tiveram em consideração todos os valores referidos no artº 105º para os aplicar aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social (por virtude das remissões feitas pelo artº 107º).
Então porquê agora também não se aplicar o novo valor de € 7.500, previsto no nº 1 do artº 105º?
Só porque a remissão do nº 1 do artº 107º é para as penas?
Mas a remissão para o nº 5 do artº 105º também é para as penas e sempre tem que se considerar o valor de € 50.000 aí indicado!»
 
[23] Porém, não vemos que esse raciocínio proceda. A circunstância do legislador procurar sintonia na circunstância agravante qualificativa entre os dois tipos penais não significa que os crimes sejam – devam ser -, em todos os seus elementos típicos, inteiramente similares, ou dizendo de outra forma, que o crime de abuso de confiança contra a segurança não seja mais do que o espelho do crime de abuso de confiança fiscal. Não se olvide que o legislador reservou um capítulo próprio para a tutela criminal da segurança social, deixando claro que os bens jurídicos respectivos, embora próximos, não se confundem[10].
[24] Diferente seria se o legislador tivesse dado algum sinal verbal de que a despenalização teve, por alguma forma, em atenção o crime de abuso de confiança contra a segurança social. Porém, nem a proposta de lei do Governo que conduziu à Lei do Orçamento[11], nem o Relatório do Orçamento do Estado para 2009[12], nem, finalmente, a discussão na Assembleia da República[13], comportam o menor subsídio para a posição sufragada no despacho recorrido.
[25] Dito isto, importa ponderar o principal argumento avançado no despacho recorrido, a saber, de que o legislador o deixou intocada a remissão do nº2 do artº 107º do RGIT para o revogado nº6 do artº 105º, o que significaria agravamento do crime de abuso de confiança contra a segurança, que se tem como contrário à intenção do legislador. Na linha de raciocínio do tribunal a quo, se o legislador não o disse, foi porque não o quis.
[26] A primeira observação prende-se com o facto da interpretação sufragada pelo Tribunal a quo em nada afastar a insubsistente remissão para norma revogada, fenómeno que, como é sabido, não é raro no ordenamento penal nacional[14], impondo-se efectuar interpretação ab-rogante. Ou seja, mesmo que se defenda que deve ser restringida tipicidade do crime de abuso de confiança contra a segurança nos mesmos termos em que o foi quanto ao crime de abuso de confiança fiscal, sempre ficará sem conteúdo a remissão para o nº 6 do artº 105º do RGIT e, inerentemente, afirmada a presença de deficiência legislativa. Então, pretender reconstruir a intenção do legislador a partir de um lapso manifesto, afigura-se-nos constituir exercício incongruente.
[27] Em segundo lugar, verifica-se que a norma do nº6 do artº 105º do RGIT contemplava causa de extinção da responsabilidade penal, conferindo uma oportunidade ao agente do crime, que era notificado para o efeito, de se eximir à punição, e que, em muitas situações[15], era sobreponível, sem fundamento material que o justificasse, a condição objectiva de punibilidade, estabelecida com o mesmo propósito, após a redacção conferida à al. b) do nº4 do mesmo artº 105º pela Lei nº 53-A/2006, de 29/12. Essas situações de dupla notificação, mesmo que restritas aos casos em que a prestação tributária ou contribuição retidas não excedessem €2000, suscitaram dúvidas sobre aquela norma – o nº6 do artº 105º - e o respectivo campo de aplicação[16]. Não nos causa estranheza, por isso, que o legislador tenha procurado exactamente postergar essa repetição de actos da administração, com vista à optimização de recursos humanos e materiais, deixando apenas a notificação contemplada na al. b) do nº4 do artº 105º do RGIT. Como se salienta no Ac. de Fixação de Jurisprudência nº6/2008, nas condições objectivas da punibilidade as finalidades extrapenais tem prioridade em face da necessidade da pena.
[28] Acresce que, como se refere em aresto desta Relação de 04/03/2009[17], e ao contrário do que acontece no domínio tributário, a descriminalização de condutas no domínio do abuso de confiança contra a segurança social deixaria esse comportamento omissivo, socialmente profundamente lesivo, sem qualquer consequência, na medida em que falta atempada de entrega das contribuições à Segurança Social não é tipificada como contra-ordenação[18]. É certo que se pode contrapor que, sempre que o infractor reponha as contribuições retidas em falta, acrescida de juros, seja no prazo de 90 dias sobre o termo do prazo, seja no prazo de 30 dias após a notificação imposta na al. b) do nº4 do artº 105º, aplicável ex vi nº2 do artº 107, também não é sujeito a coima, mas permanece intocado o argumento da arquitectura punitiva da omissão de cumprimento das obrigações para a segurança social não obedecer ao paralelismo perfeito afirmado na decisão recorrida.
[29] Aliás, essa diferença valorativa, sinal da referida autonomia axiológica, encontra expressão noutro tipo penal. O crime de fraude fiscal apenas é punível se a vantagem patrimonial ilegítima for superior a €15.000, enquanto o crime de fraude contra a segurança social estabelece que a punição depende igualmente da ultrapassagem de um limiar valorativo mas estatui montante inferior: €7500. Daí que não cause estranheza ao intérprete a introdução de nova dessintonia entre a punição de condutas omissivas puras aproximadas – mas não iguais -, como acontece nos referidos crimes de abuso de confiança por ausência de entrega de quantias retidas, nem que o depauperamento da segurança social mereça reforço punitivo, pois é bem sabido que o respectivo equilíbrio financeiro – sustentabilidade - tem sido unanimemente reconhecido como uma das principais preocupações dos cidadãos e do Estado, mormente quanto à manutenção futura das prestações sociais, pelo menos ao mesmo nível[19]. Concorda-se inteiramente com o Desembargador Cruz Bucho quando observa[20]:
«Este reforço da autonomia do regime punitivo das infracções contra a Segurança Social funda-se e justifica-se na necessidade premente de defesa da sustentabilidade da segurança social fortemente ameaçada, em Portugal como na generalidade dos países europeus, pelo efeito conjunto de várias situações, nomeadamente o crescente envelhecimento da população, a redução da taxa de natalidade, o aumento progressivo do período contributivo (amadurecimento do sistema) e o crescimento das pensões a um ritmo superior ao das contribuições (cfr., v.g., o “Relatório Técnico sobre a Sustentabilidade da Segurança Social”, apresentado pelo Governo aos parceiros sociais, em Maio de 2006), as quais fazem perigar a própria manutenção do Estado Social.
Assim, quanto ao crime de abuso de confiança fiscal compreende-se que, por razões de eficiência, se retirem dos tribunais, contribuindo deste modo para o seu descongestionamento, processos de natureza bagatelar por não se justificar que o Estado afecte recursos humanos e materiais na perseguição criminal de ilícitos fiscais em que a prestação não entregue é igual ou inferior a €7500, mas em que fica ressalvada a luta contra evasão fiscal (onde, de resto, se têm vindo a realizar grandes progressos), desde logo por via do procedimento contra-ordenacional (em que o valor mínimo da coima aplicável corresponde ao valor da prestação em falta, se o arguido for pessoa singular, e duas vezes esse valor, se o arguido for pessoa colectiva - cfr. artigos 114º, n.º1 e 26º, n.º1, ambos do RGIT).
Mas, a mesma justificação não colhe no que se refere ao abuso de confiança contra a segurança social no que toca à não entrega das quotizações deduzidas de valor igual ou inferior a €7500, já que o orçamento do IGFSS assenta ainda primordialmente nas receitas advenientes das contribuições resultantes dos descontos nas remunerações devidas – cfr. artigos 54º, 90º, n.º2 e 92º todos da Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro, que aprova as bases gerais do sistema de segurança social e Gomes Canotilho-Vital Moreira, CRP Anotada, 4ªed., vol. I, Coimbra, 2007, págs. 817- 818 e 1105-1106».

[30] Assim, também o elemento teleológico aponta em sentido oposto ao sufragado na decisão recorrida, impondo-se concluir que o limite de €7500 introduzido pela Lei nº64-A/2008, de 31/12, no nº1 do artº 105º do RGIT não tem aplicação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social[21].
[31] Nessa medida, falece inteiramente o fundamento que conduziu à rejeição da acusação por manifestamente infundada, pois comporta todos os elementos do crime imputado, que permanece punível. Procedem, pelo exposto, os recursos.

III. Dispositivo

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em:
A) Conceder provimento ao recurso;
B) Revogar o despacho recorrido e ordenar a sua substituição por outro que receba a acusação e designe dia para julgamento, em obediência ao disposto nos artºs. 311º a 313º do CPP.

Texto elaborado em computador e revisto (artº 94º nº2 do CPP).

Recurso nº 37/05.3TASEI

                                                                       Coimbra, 17/06/2009

                                                                                                                      

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(Fernando Ventura - relator)

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(Isabel Valongo)



[1] Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, II, 2ª ed., Ed. Verbo, pág. 335 e Ac. do STJ de 99/03/24, in CJ (STJ), ano VII, tº 1, pág. 247.
[2] Cfr., por exemplo, art.ºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2, 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do CPP e acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/95, publicado sob o n.º 7/95 em DR, I-A, de 28/12/95.
[3] Cfr. Manuel da Costa Andrade, O abuso de confiança fiscal e a insustentável leveza (de um acórdão) do Tribunal Constitucional, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 134º (2002), págs. 307-325; Manuel da Costa Andrade e Susana Aires de Sousa, As Metamorfoses e desventuras de um crime (abuso de confiança fiscal) irrequieto..., Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 17, nº1 (2007), págs. 53-72. Tudo a propósito de outra Lei de aprovação do Orçamento do Estado, então para o ano de 2007, e de problema que só encontrou solução jurisprudencial estabilizada com o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência nº6/2008, de 9/4 (DR, 1ª série, nº94, de 15/05), e o Ac. do Tribunal Constitucional nº 409/2008 (DR, 2ª série, nº 185, de 24/09).
[4] Assim o Sr. Desembargador José Manuel Cruz Bucho, no estudo referido pelo Sr. Procurador Geral Adjunto, ao que cremos ainda inédito, e que seguimos de perto.
[5] Valor esse que leva em consideração, como resulta do inalterado nº7 do artº 105º do RGIT, os valores que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária, e não o valor global retido.
[6] Propendemos a considerar assim esse novo elemento configurador da ilicitude penal, como elemento negativo do tipo. Sobre a discussão, cfr. Susana Aires de Sousa, Os crimes fiscais, Coimbra, 2006, págs. 302 a 305.
[7] Note-se que existe alguma hesitação na decisão recorrida em aceitar essa qualificação mas, na verdade, quando se refere que o legislador disse menos do que queria dizer, dúvidas não há que se fundamenta em exercício interpretativo desse tipo.
[8] Ac. de Fixação de Jurisprudência nº5/2009, DR, 1ª Série, nº 55, de 19/01/2009.
[9] Relator Des. Nuno Garcia, Pº 102/04.4TACLD, www.dgsi.pt
[10] Como se refere no Ac. da Relação do Porto de 15/10/2003, Pº 0314181, relator Des. Borges Martins, www.dgsi.pt: «É certo que os crimes contra a segurança social reportam-se a condutas paralelas ou similares às dos crimes fiscais. Mas nos crimes contra a administração fiscal os valores tutelados são os inerentes ao regular e efectivo funcionamento do sistema fiscal e de política social estabelecidos pelo Estado. O sistema fiscal não visa apenas arrecadar receitas, mas também, e primordialmente, a repartição justa dos rendimentos e da riqueza e a diminuição das desigualdades entre os cidadãos - cfr. arts. 103 e 104 da CRP. Diferentemente, nos crimes contra a Segurança Social o bem jurídico tutelado é o património (lato sensu) da Segurança Social, ou seja, como diz o recorrente [IGFSS], "a tutela do respectivo erário, assente na satisfação dos créditos contributivos de que a segurança social é titular". Ao contrário do que acontece com as receitas fiscais, as contribuições para a Segurança Social não servem para, indistintamente, o Estado realizar os seus fins (sociais ou outros). Não são receitas do Estado, mas do recorrente (art. 25 n° 1 al. a) do Dec.-Lei 260/99 de 7-7), destinando-se à prossecução dos seus fins específicos, de que não beneficiam, sequer, todos os cidadãos». Sobre o bem jurídico tutelado nas infracções fiscais, Susana Aires de Sousa, Sobre o bem jurídico-penal, protegido nas incriminações fiscais, republicado em Direito Penal Económico e Europeu, Textos Doutrinários, III, Coimbra. 2009, págs. 293-319.
[11] http://www.portugal.gov.pt/NR/rdonlyres/C5A0434A-7D2D-4E78-859D-C1DE110D22F1/0/lei_OE2009.pdf.
[12] http://www.portugal.gov.pt/NR/rdonlyres/20A98C85-24F0-4E72-9172-0D1CFD2C5D69/0/rel_OE2009.pdf
[13] http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?ID=34133.
[14] Num dos muitos exemplos que podem ser dados, refira-se o longo período em que a Lei nº 93/99, de 14/7, fez referência no seu artº 16º, al. a), aos revogados artºs. 300º e 302º do Código Penal.
[15] Sempre que cumpridas as obrigações declarativas. Nota-se que esse pressuposto encontra-se respeitado no caso em presença e, acrescente-se, na esmagadora maioria das situações similares, desde logo porque as obrigações declarativas encontram outra expressão no domínio das contribuições para a segurança social retidas, dado o carácter periódico e reiterado da remuneração dos trabalhadores e órgãos sociais.
[16] Costa Andrade e Susana de Sousa, op. cit., págs. 67-68 e Américo Taipa de Carvalho, O crime de abuso de confiança fiscal, Coimbra, 2007, págs. 21-29.
[17] P 257/03.5TAVIS-C1, relator Des. Jorge Raposo.
[18] Criticamente, cfr. Isabel Marques da Silva, Regime das Infracções Tributárias, Almedina, 2007, pág. 189 e Costa Andrade e Susana de Sousa, op. cit., pág. 70.
[19] Em sentido contrário, o Ac. da Relação do Porto de 27/05/2009, Pº 343/05.7TAVNF, relatora Des. Maria do Carmo Dias, www.dgsipt,, considerando que os crimes de abuso de confiança fiscal e contra a segurança social integram situações materialmente idênticas, tornando o diferente sancionamento contrário ao disposto nos artºs 18º, nº2 e 13º da CRP. Salvo melhor opinião, a existência de limiares punitivos diferentes nos tipos penais de fraude demonstra que o legislador não estatui o paralelismo perfeito e absoluto que parece afirmado nesse aresto e que, no limite, retiraria toda a justificação para a instituição de tipos penais autónomos.
[20] No estudo referido na nota 4.
[21] Assim, o Ac. desta Relação de Coimbra 04/03/2009, P 257/03.5TAVIS-C1, relator Des. Jorge Raposo, já referido na nota 17 e em que foi adjunto o aqui relator e os arestos da Relação do Porto de 25/03/2009, Pº 1131/01.5TASTS, relator Des. Francisco Marcolino, de 20/04/2009, Pº 8419/02.6TDPRT, Des. Maria Leonor Esteves, de 27/05/2009, P 1760/06.0 TDPRT, relator Des. Aniceto Piedade e de 03/06/2009, Pº 0715084, relator Des. Francisco Marcolino,  todos acessíveis em www.dgsi.pt