Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1065/08.2TAFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
Data do Acordão: 05/20/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO FUNDÃO – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 359º DO CPP
Sumário: O artigo 359.º, n.º 1 e 2, do C.P.P., não consente uma interpretação que admita a instauração de novo processo pelos factos novos caso estes sejam não autonomizáveis em relação ao objecto do processo originário.
Decisão Texto Integral: I – Relatório
1. No Inquérito n.º 1065/08.2TAFIG, o Ministério Público deduziu acusação contra R..., melhor identificado nos autos, imputando-lhe factos que considerou integrarem a autoria material, sob a forma consumada, de um crime de receptação p. e p. pelos artigos 14.º, n.º3 e 231.º, n.º1, do Código Penal.
Requerida a instrução pelo arguido, veio a ser proferido despacho de não pronúncia.
Desta decisão vem o Ministério Público interpor o presente recurso, formulando, na motivação, as seguintes conclusões (transcrição):
1. Ao despronunciar o arguido, sem pôr em causa os fortes indícios existentes nos autos, entendeu a decisão instrutória que estávamos perante factos não autonomizáveis, cobertos pelo princípio da consumpção do caso julgado.
2. Ao interpretar assim a realidade do processo, violou a decisão instrutória o dever de julgar e de realização da justiça, desde logo por se constituir numa violação da regra do art. 359.º, n. º 1, parte final, do Cód. Proc. Penal, onde se proíbe a extinção da instância.
3. A decisão instrutória impede a realização do julgamento de um arguido fortemente indiciado por crime de receptação ( cf. art. 231.º do Cód. Penal), ou seja, quer a sua condenação quer a sua absolvição, o que demonstra ser inapropriado falar-se aqui de factos não autonomizáveis, pois repita-se, este arguido nunca foi julgado neste ou no processo de onde foi extraída a certidão.
4. Termos em que se deve revogar a decisão instrutória, para que seja substituída por outra que aprecie, isso sim, os indícios em que se sustenta a acusação.


2. O arguido respondeu, concluindo nos seguintes termos (transcrição):
l.ª Os factos novos de que o arguido teria actuado não com negligência, mas com dolo eventual e surgidos no âmbito da audiência de discussão e julgamento do processo n. ° 136/06.4PBFIG, constituem, além de uma alteração não substancial dos factos constantes da acusação pública aí deduzida, nos termos da alínea f) do artigo 1.° do C.P. Penal, uma nova factualidade não autonomizável, face à constante da douta peça acusatória.
2. ª Como constitui uma nova factualidade não autonomizável em relação ao objecto do processo e uma vez que a instância não pode ser extinta nem dela o Tribunal pode conhecer, por não ter havido o acordo constante do n.º 3 do artigo 359.° (na redacção pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto), deixa a conduta indiciada e provada de ser punível no concreto processo em que surgiu, nem em processo autónomo instaurado para esse particular efeito.
3.ª Os factos descritos na acusação normativamente entendidos, ou seja, em articulação com as normas consideradas infringidas pela conduta e também indicadas na peça acusatória, como na realidade aconteceu, definem e fixam o concreto objecto do processo, que, por outro lado, delimita os poderes de cognição do Tribunal.
4.ª Assim, o objecto do processo deve manter-se o mesmo da acusação, ou da pronúncia se a houver, até ao trânsito em julgado da sentença, e deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (unitária e indivisivelmente) e - mesmo quando o não tenha sido - deve considerar-se irrepetivelmente decidido. Além do que, a nova lei processual penal é absolutamente incompatível com a solução da privação do efeito consuntivo do caso julgado sobre os factos não autonomizáveis cujo conhecimento foi impedido por falta de acordo.
5.ª Tudo isto é uma consequência do postulado dos princípios da estrutura acusatória do processo penal e da sua vinculação temática, do contraditório e do asseguramento das elementares garantias de defesa.
6.ª A própria exposição de motivos da proposta de Lei n.º 109/X, elaborada pela Unidade de Missão, refere que: "[n]o âmbito da alteração substancial de factos, introduz-se a distinção entre factos novos autonomizáveis e não autonomizáveis, estipulando-se que só os primeiros originam a abertura de novo processo (artigo 359.°). Trata-se de um decorrência dos princípios non bis in idem e do acusatório, que impõem, no caso de factos novos não autonomizáveis, a continuação do processo sem alteração do respectivo objecto".
7.ª A nova factualidade concretamente apurada em sede de audiência de discussão e julgamento no âmbito do processo n.º 136/06.4PBFIG, consubstanciadora de uma conduta dolosa do arguido R..., com a inerente agravação da responsabilidade criminal do mesmo, como não consta da acusação aí deduzida e como não houve o necessário acordo para a continuação do julgamento quanto à mesma, fica, assim, definitivamente excluída de perseguição penal.
8.a Tendo presente que as primárias finalidades do nosso processo penal são, entre outras, a realização da justiça e a descoberta da verdade material e, por outro, a protecção dos direitos fundamentais das pessoas envolvidas, aquela só poderá ser almejada se tiver sido observada pelo uso de um meio/modo processualmente válido.
9.° O Ministério Público ao acusar novamente o arguido - sendo os mesmos factos os referentes ao elemento objectivo e os novos respeitantes ao elemento subjectivo do crime que lhe é imputado, os quais, só por si, não são autonomizáveis, e surgidos aquando da audiência de discussão e julgamento do processo n.O 136/06.4PBFIG, consubstanciadores de uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, e tendo sido, efectivamente, dados como provados na sentença aí proferida - agiu contra legem, violando, gritantemente, o disposto nos artigos 359.°, n.os 1 e 2 e 1.0, alínea f), ambos do C.P .Penal.
10.ª A Lei 48/2007, de 29 de Agosto recusa a excepção inominada que determina que o processo possa ser remetido à fase de inquérito para que, bem melhor investigado, possa a nova acusação abranger o facto que surgiu da audiência de discussão e julgamento, e quanto ao qual não houve o inerente acordo para que o julgamento prosseguisse com vista à sua apreciação pelo Tribunal,
11.ª Assim, a nova lei é incompatível com a solução do efeito consuntivo do caso julgado sobre os factos não autonomizáveis cujo conhecimento foi obstado pela falta de acordo.
12.ª O Ministério Público ao interpretar os artigos 359.°, n.º 1 e 2 e 1.°, alínea f), ambos do C.P. Penal, no sentido de que os mesmos factos constantes da anterior acusação e os factos novos não autonomizáveis (dados como provados na sentença proferida no âmbito do processo n.º 136/06.4PBFIG) podem ser objecto de perseguição criminal em processo de inquérito ex novo, como aconteceu no processo in casu, viola os princípios do ne bis in idem e do acusatório, ambos com assento na nossa Constituição, respectivamente, no n.º 5 do artigo 25.° e n.º 5 do artigo 32.°, ambos da C.RP ..
13.ª Face ao exposto, a decisão da Meritíssima Dra.ª Juiz a quo de não pronunciar o arguido R... é inteiramente conforme a lei em vigor, não merecendo, consequentemente, qualquer reparo.
Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo Digno Magistrado do Ministério Púbico, julgando, consequentemente, os Venerandos Senhores Juízes Desembargadores do Alto Tribunal da Relação de Coimbra:
a) Inconstitucional, por violação dos princípios do ne bis in idem e do acusatório, respectivamente, consagrados no n.º 5 do artigo 25.° e n.º 5 do artigo 32.°, ambos da C.R.P., a norma que o Ministério Público retira da interpretação que faz dos artigos 359.°, n.º 1 e 2 e 1.º, alínea f), ambos do C.P. Penal (na redacção dada pela Lei 48/2007, de 29.8), no sentido de que os mesmos factos constantes da anterior acusação e os factos novos não autonomizáveis (dados como provados na sentença proferida no âmbito do processo n. ° 136/06.4PBFIG) podem ser objecto de perseguição criminal em processo de inquérito ex novo, como aconteceu no presente processo;
b) a douta decisão da Meritíssima Dr.ª Juiz a quo de não pronunciar o arguido inteiramente conforme a lei processual penal em vigor, não merecendo, consequentemente, qualquer reparo, fazendo assim a sã e recta JUSTIÇA!

3. Admitido o recurso, os autos subiram a esta Relação, onde a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu visto. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º1, do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.
Cumpre agora apreciar e decidir.


II – Fundamentação
1. Conforme jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Assim, a questão essencial a decidir consiste em saber se, tendo o arguido sido absolvido da instância, por verificação de uma alteração dos factos tida como substancial, sendo tais factos não autonomizáveis e sem haver acordo para a continuação do julgamento pelos novos factos, é possível a dedução de nova acusação contra o mesmo arguido, no âmbito de novo inquérito, por tais factos.



2. Apreciando
2.1. Elementos relevantes
1. O arguido R... foi acusado, no âmbito do processo n.º 136/06.4 PBFIG, pela prática de factos que o Ministério Público entendeu integrarem a autoria material e sob a forma consumada de um crime de receptação negligente p. e p. pelos artigos 15.º, al. a) e 3 231.º, n.º2, do Código Penal.
Efectuado o julgamento, o arguido foi absolvido do crime imputado, por se entender que a conduta do arguido, sendo negligente, não era punível pela lei penal.
Na base desta absolvição, esteve o entendimento de que o artigo 231.º, nos seus números 1 e 2, pune condutas dolosas.
Atente-se que, imediatamente antes da leitura da sentença, o tribunal havia comunicado aos sujeitos processuais um novo facto, resultante da audiência de julgamento, pelo qual a conduta do arguido seria dolosa, o que considerou tratar-se de uma alteração substancial dos factos.
O Ministério Público declarou opor-se à alteração substancial e, na sequência de tal posição, foi proferida a referida sentença.

2. Interposto recurso pelo Ministério Público, esta Relação proferiu acórdão em que, foi declarada «nula a sentença, por contradição entre a decisão de facto e a correspondente motivação.»

3. No seguimento do acórdão desta Relação, foi proferida nova sentença, sem precedência de julgamento (o acórdão da Relação apenas declarou nula a sentença anterior) em que, dando-se como provada a existência de dolo eventual por parte do arguido, este foi absolvido da instância, com base em se tratar de um novo facto não autonomizável e de não se ter logrado obter o acordo quanto à continuação do julgamento por tal facto.
O Ministério Público interpôs recurso desta nova sentença, a que foi negado provimento por esta Relação.

4. Com base em certidão do referido processo n.º 136/06.4 PBFIG, tiveram origem os presentes autos, em que o Ministério Público imputou ao mesmo arguido a autoria material, sob a forma consumada, de um crime de receptação p. e p. pelos artigos 14.º, n.º3 e 231.º, n.º1, do Código Penal, consignando-se os factos atinentes a uma conduta dolosa (dolo eventual).
Requerida a instrução, foi proferido despacho de não pronúncia – que é a decisão que constitui o objecto do presente recurso – com o seguinte teor:

DECISÃO INSTRUTÓRIA
Vem o arguido R... requerer a abertura de instrução, por não se conformar com o despacho de acusação proferido nos presentes autos pela Digna Magistrada do M.P.
Nos termos do artigo 286º, nº 1 do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir a acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, competindo ao juiz o dever de levar a cabo todos os actos de instrução tendentes á realização das finalidades desta.
Tais actos foram levados a cabo com a inquirição de testemunhas e teve lugar o debate instrutório.
O Tribunal é competente.
Não há nulidades, ilegitimidade, excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e que cumpra conhecer.
Determina o artigo 308º, nº 1 do Código de Processo Penal que, se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos, devendo, em caso contrário, proferir despacho de não pronúncia.
Sendo este o critério legal em que deve assentar a prolação de um despacho de pronúncia ou não pronúncia, do mesmo resulta que o despacho de pronúncia só deve ser proferido se se puder formular um juízo de probabilidade de aplicação ao arguido ou arguidos de uma reacção criminal.
Vem o arguido acusado de um crime de receptação, previsto e punido pelos artigos 14º, nº 3 e 231º, nº 1 do Código Penal.
Vem acusado deste crime por estar indiciado que o Marco Maia lhe propôs a compra de um monitor “LG”, no valor de 548,13 euros, o que ele aceitou, recebendo tal monitor e entregando àquele aquela quantia monetária, não obstante saber que o Marco Maia é toxicodependente, que o valor de mercado do monitor era muito superior e que não lhe tinham sido exibidos documentos comprovativos da sua legítima proveniência, designadamente factura ou documento equivalente. Vem acusado de ter agido de forma livre e representando como possível a proveniência ilícita de tal objecto, conformando-se com tal possibilidade.
Em sede de instrução, o arguido defende que, face á nova redacção dada ao artigo 359º do Código de Processo Penal, no caso de surgir uma nova factualidade não autonomizável, como aconteceu no presente caso, a instância não pode ser extinta nem dela o tribunal pode conhecer.
Mais defende que, como vinha acusado de um crime de receptação negligente do artigo 231º, nº 2 do Código Penal, se se demonstrar que afinal o arguido terá actuado com dolo, não pode o Tribunal apreciar essa conduta nesse concreto processo nem em processo autónomo.
É, pois, esta a primeira questão que cumpre apreciar.
Nos termos do artigo 231º, nº 1 do Código Penal “quem, com intenção de obter para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial, dissimular coisa que foi obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património, a receber em penhor, a adquirir por qualquer título, a detiver, conservar, transmitir ou contribuir para a transmitir, ou por qualquer forma assegurar, para si ou para outra pessoa, a sua posse é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias”.
A receptação pode ser definida como o crime que acarreta a manutenção, consolidação ou perpetuidade de uma situação patrimonial anormal, decorrente de um crime anterior praticado por outrem.
Vários são os modos de receptação, ou as condutas típicas que determinaram a prática do crime: dissimular, receber em penhor, adquirir por qualquer título, deter, conservar, transmitir ou contribuir para a transmissão, ou assegurar por qualquer forma, a posse para si ou para terceiros de coisa obtida mediante facto ilícito contra o património.
Ora, adquirir é obter a coisa a título de domínio, a título gratuito ou oneroso, não sendo de excluir a própria sucessão “mortis causa” quando o herdeiro sabe que a coisa fora receptada pelo “de cujus”, e o caso em que o criminoso satisfaz com a coisa um débito para com o receptador.
A receptação pressupõe, pois, um deslocamento da coisa do poder de quem a detém ilegitimamente para o receptador, o que significa que só a coisa móvel pode ser objecto de receptação. Assim, a coisa objecto de receptação há-de ser produto do crime.
O tipo de ilícito previsto neste normativo consiste “em o agente estabelecer através das várias modalidades de acção descritas, uma relação patrimonial com a coisa obtida por outrem mediante um facto criminalmente ilícito contra o património, sendo a conduta guiada pala intenção de alcançar, para si ou para terceiro, uma vantagem patrimonial. O conteúdo de ilícito reside, pois, na perpetuação de uma situação patrimonial antijurídica (...), aprofundando a lesão de que foi alvo a vítima do facto anterior (facto referencial) ao diminuir a possibilidade de restaurar a relação com a coisa (...)” - Cfr. Pedro Caeiro, Comentário Conimbricense, Tomo II, pags. 475 e 476.
O objecto da acção é uma coisa que tenha sido obtida por outrem mediante facto ilícito contra o património.
Para que esteja preenchido o tipo objectivo é necessário que a coisa receptada tenha sido obtida pelo autor do facto referencial mediante a prática de um facto ilícito típico contra o património, isto é, mediante uma conduta que preencha o tipo objectivo e subjectivo de um crime patrimonial.
Mas não é necessário que o autor do facto referencial tenha actuado com culpa, pelo que subsiste o preenchimento do crime de receptação ainda que aquele crime contra o património tenha sido praticado por um inimputável.
A acção típica do crime de receptação vem descrita de um modo vinculado no tipo legal de crime e pode consistir em dissimular, receber em penhor, adquirir por qualquer título, deter, conservar, transmitir ou contribuir para transmitir, ou de qualquer forma assegurar, para si ou para outra pessoa, a posse de coisa que foi obtida por outrem mediante a prática de facto ilícito contra o património.
No que especificamente concerne à aquisição da coisa por qualquer título, não se trata, como é patente, de uma aquisição juridicamente válida, mas antes de um deslocamento fáctico da coisa para a esfera de disponibilidade do agente, permitindo ao agente dispor dela como se fosse seu proprietário.
Ou seja, adquirir é obter a coisa a título de domínio, a título gratuito ou oneroso, não sendo de excluir a própria sucessão “mortis causa” quando o herdeiro sabe que a coisa fora receptada pelo “de cujus”, e o caso em que o criminoso satisfaz com a coisa um débito para com o receptador.
A receptação pressupõe, pois, um deslocamento da coisa do poder de quem a detém ilegitimamente para o receptador, o que significa que só a coisa móvel pode ser objecto de receptação. Assim, a coisa objecto de receptação há-se ser produto do crime.
A nível do tipo subjectivo, trata-se de um crime doloso, sendo admissível qualquer das modalidades de dolo previstas no artº 14º do Código Penal. É, portanto, necessário, da parte do agente, o conhecimento ou representação de todos os elementos do tipo já referidos (elemento intelectual) e a vontade de realização ou aceitação do resultado tipificado (elementos intelectual).
Mas, o tipo exige ainda, como elemento subjectivo, a intenção de obter uma vantagem patrimonial.
“ Uma das formas que essa vantagem pode revestir encontra-se certamente na aquisição da coisa por preço inferior ao seu valor – mas essa é, apenas, uma das formas de obter vantagem” – Cfr. Pedro Caeiro, ob. cit., pag. 495.
Como efeito, é possível que “o justo preço pago por uma coisa, visando-se somente o ganho normal do negócio, não exclui a ideia de provento” – FRANK, apud Leal Henriques e Simas Santos, Código penal Anotado, 2.º Volume, 3.ª Edição, pag. 231. Neste sentido, veja-se também Pedro Caeiro, ob. cit., loc. cit.
Não é, todavia, necessário, para que a consumação do crime de receptação venha a ocorrer, que se verifique efectivamente essa vantagem patrimonial
Porém, na primeira acusação, no processo 136/06.4PBFIG deste Tribunal e juízo, o arguido vinha acusado do crime de receptação negligente, previsto e punido pelo artigo 231º, nº 2 do Código Penal e artigo 15º, alínea a), ambos do Código Penal.
Nos termos desta norma legal “quem, sem previamente se ter assegurado da sua legítima proveniência, adquirir ou receber, a qualquer título, coisa que, pela sua qualidade ou pela condição de quem lhe oferece, ou pelo montante do preço proposto, faz razoavelmente suspeitar que provém de facto ilícito típico contra o património é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 120 dias”.
Entendeu a Sra Juiz que efectuou o julgamento que se teriam provado factos que poderiam levar à condenação do arguido a título de dolo eventual.
Da primeira sentença proferida no processo 136/06.4PBFIG foi interposto recurso e a sentença foi declarada nula.
Em obediência ao Tribunal da Relação de Coimbra foi proferida nova sentença.
Nesta segunda sentença o arguido veio a ser absolvido da instância, quanto aos factos contra ele deduzidos na acusação.
Na sequência dessa absolvição da instância, o M.P. deduz a acusação dos presentes autos, agora pelo crime de receptação do artigo 231º, nº 1, a título de dolo eventual.
É precisamente neste ponto que reside a questão fulcral:
- Poderia o M.P. ter deduzido a acusação dos presentes autos, sendo certo que estes autos mais não são do que a continuação do processo 136/06.4PBFIG, na parte referente ao arguido R...?
A resposta a esta pergunta reside necessariamente no artigo 359º do Código de Processo Penal, com a redacção da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto.
Nos termos do nº 1 da referida norma legal, “uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo Tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância”.
Estipula o nº 2 da mesma norma legal que “a comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.
De acordo com o nº 3 da mesma norma, “ressalvam-se do disposto no nº 1 os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do Tribunal” – o que não aconteceu no presente caso.
A lei nova rejeita, assim, a solução de absolvição da instância, recusa a figura da excepção inominada, da impossibilidade superveniente do processo e seu arquivamento, da suspensão da instância, sendo incompatível com a solução da privação do efeito consuntivo do caso julgado sobre os factos não autonomizáveis, cujo conhecimento foi impedido por falta de acordo. A lei nova ordena, pois, o prosseguimento dos autos com os factos anteriores, ignorando os factos novos se eles não forem autonomizáveis dos da acusação ou da pronúncia – cfr. Ac. do STJ de 5.3.2008, in www.pgdlisboa.pt.
É exactamente este o entendimento do Tribunal, como não poderia deixar de ser face á nova lei, aplicável ao presente caso.
Aliás, já o Tribunal da Relação de Coimbra, no Acórdão que recaiu sobre a segunda sentença do processo 136/06.4PBFIG deixou isso bem claro ao referir que “… perante uma alteração substancial de factos apurados em julgamento mas não autonomizáveis como crime diverso a via que nos parece segura é a do conhecimento do mérito da acusação com a consequente condenação ou absolvição do arguido pelos factos nela descritos, perdendo sentido o apelo a uma absolvição da instância” – cfr. fls. 389 destes autos.
Continua o mesmo Acórdão: “Contudo não foi este o trilho seguido no 1º acórdão da Relação (quiçá sugestionado pelo Ac. do TC que refere, anterior á nova redacção do preceito) pelo que não é legítimo que o mesmo tribunal no mesmo processo venha agora dar o dito por não dito, quando é certo que o tribunal da 1ª instância se limitou a acatar o expendido pela Relação naquele 1º acórdão” – cfr. fls. 390 destes autos.
Significa isto que o 2º acórdão da Relação de Coimbra, manteve a decisão da 1ª instância em que absolvia o arguido da instância, não por concordar com tal decisão, mas porque essa decisão apenas respeitou o 1º acórdão da Relação.
Deixa contudo bem claro o 2º acórdão que no caso de factos não autonomizáveis deve conhecer-se do mérito da acusação com a consequente condenação ou absolvição do arguido pelos factos nela descritos. O que aliás, está de acordo com a jurisprudência e também com a letra da lei supra citada.
Assim sendo, dúvidas não restam de que, perante uma alteração substancial de factos, se estes não forem autonomizáveis, o juiz deve ignorá-los na decisão a proferir.
A comunicação da alteração substancial ao M.P. para que ele proceda pelos novos factos só terá lugar se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.
Ora, no presente caso estamos perante uma alteração de uma negligência para um dolo eventual. Todos os restantes factos se mantendo. Facilmente se conclui que estamos perante factos não autonomizáveis.
Aliás, também a Relação de Coimbra já se tinha pronunciado nesse sentido. Pode ler-se no 1º acórdão que “não sendo o facto novo autonomizável relativamente a este processo e tratando-se, como irrefragavelmente se trata, de um facto novo porque modificador da qualificação jurídica do crime imputado ao arguido (…).”
Assim sendo, o M.P. não pode proceder pelos novos factos.
Acresce que o facto da 2ª sentença do processo 136/06.4PBFIG ter absolvido o arguido da instância, ao arrepio da nova redacção do artigo 359º do Código de Processo Penal, não autoriza o M.P. a proceder pelos novos factos, sem mais.
O M.P. só pode proceder por novos factos, no âmbito do artigo 359º do Código de Processo Penal, com a redacção dada pela Lei nº 48/2008, de 29 de Agosto, como bem claro deixou o 2º acórdão da Relação de Coimbra.
Pelo que fica dito, conclui-se que o M.P. não poderia ter formulado a acusação dos presentes autos.
Fica assim prejudicada a análise dos indícios da prática do crime, recolhidos em sede de inquérito no processo 136/06.4PBFIG e da presente instrução, bem como a análise das restantes questões colocadas em sede de instrução.
*
Pelo exposto, e sem necessidade de mais considerações, decide-se proferir despacho de não pronúncia do arguido R..., quanto à prática pelo mesmo do crime de receptação, previsto e punido pelos artigos 14º, nº 3 e 231º, nº 1 do Código Penal de que vinha acusado.
Sem custas.
Notifique.

2.2. Conhecendo
1. Como é evidente, não nos compete reapreciar as decisões anteriormente proferidas por esta Relação.
Tendo o 1.º acórdão desta Relação entendido existir uma contradição «entre a decisão de facto e a correspondente motivação», pelo facto da sentença recorrida não ter acolhido, entre os factos provados, aqueles que o tribunal entendera aditar por via da comunicada alteração substancial dos factos, ao invés de, a existir essa contradição, ordenar o reenvio do processo para novo julgamento, originou-se a situação singular do tribunal de 1.ª instância ter proferido nova sentença, sem precedência de novo julgamento, em que alterou a matéria de facto provada, dando como demonstrado o dolo eventual e absolvendo o arguido da instância por não haver acordo para a continuação do julgamento pelos novos factos (os do dolo, precisamente).
Repare-se que a 1.ª instância, ao proceder dessa forma, limitou-se a trilhar o caminho que o acórdão da Relação havia indicado na respectiva fundamentação: alterou a sentença, conformando-a à alteração substancial dos factos que havia sido comunicada, dando como provado o facto novo; absolveu o arguido da instância – solução que o referido acórdão indicou para a situação de alteração substancial de factos não autonomizáveis, consideradas já as alterações introduzidas em 2007 no C.P. Penal.
Saliente-se, também, que o acórdão em questão, pese embora haja indicado o caminho da absolvição da instância, em parte alguma sustenta que pudesse ser comunicada ao Ministério Público a alteração para instauração de novo processo.
Realmente, diz-se nesse acórdão que não sendo o novo facto autonomizável, «não poderá ser comunicado, ou mesmo que o seja, o Ministério Público não poderá despoletar um novo procedimento tendo como mola esse facto.»
Quanto a esta absolvição da instância, o 2.º acórdão da Relação tece diversas considerações de que se infere a sua discordância em relação à solução adoptada, tendo em vista a nova redacção do artigo 359.º do C.P.P., introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto.
Porém, apesar disso, a Relação negou provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, pelo que a decisão de absolvição da instância transitou.
É na sequência desse acórdão que o Ministério Público deduziu acusação no novo inquérito instruído com base em certidão obtida do processo originário.

2. O C.P.P. de 1987 distingue, no âmbito da alteração dos factos, as situações em que a alteração é substancial daquelas em que não é substancial.
O artigo 1º, nº 1, alínea f), define “alteração substancial dos factos” como aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
As disposições fundamentais a considerar, na fase do julgamento, no tocante a esta matéria, são os artigos 358º e 359.º.
Estatui o artigo 358.º, relativo à alteração não substancial de factos descritos na acusação ou na pronúncia:
«1. Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente para a preparação da defesa.
2. Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.
3. O disposto no nº 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.»
Estabelecia, por seu turno, o artigo 359.º, relativo à alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, na redacção anterior à revisão de 2007:
«1. Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso; mas a comunicação da alteração ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos.
2. Ressalvam-se do disposto no número anterior os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.
3. Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a dez dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.»
Repare-se que ambos os artigos são aplicáveis à alteração dos factos, que pode ser substancial ou não substancial. Se os factos são totalmente independentes dos que integram o objecto do processo e não têm com este qualquer conexão, não parece que se possa prescindir da normal tramitação do processo.
Havendo uma alteração substancial dos factos apurada em julgamento, se os novos factos apurados formassem com os constantes da acusação ou do despacho de pronúncia uma unidade que não permitisse a sua autonomização, não existindo acordo para a continuação do julgamento, questionava-se, face ao regime anterior à revisão de 2007, o modo de solucionar o problema.
Frederico Isasca, referindo-se a novos factos não autonomizáveis, porque e na medida em que formam, juntamente com os constantes da acusação ou da pronúncia, quando a houver, uma tal unidade de sentido que não permite a sua autonomização, propunha que os mesmos fossem considerados na determinação da medida concreta da pena (Alteração substancial dos factos e sua relevância no processo penal português, Coimbra, 2.ª ed., 1999, p. 207).
Leonel Dantas pronunciou-se no sentido do regresso à fase do inquérito para averiguação dos factos integrantes da alteração, defendendo que, no processo base, “o tribunal declarar-se-á impossibilitado de prosseguir por impossibilidade legal “stricto sensu”, o que esgotará a realização da fase processual em que o processo se encontre” (“A definição e evolução do objecto do processo no processo penal”, Revista do Ministério Público, Ano 16.º, n.º 63, p. 106).
Germano Marques da Silva defendia que a única solução razoável era considerar que se verificava uma excepção inominada que determinaria que o processo fosse remetido à fase do inquérito para que, mais bem investigado, pudesse a acusação abranger, se fosse o caso, o facto que a audiência de julgamento indiciou (Curso de Processo Penal, III, 2.ª edição, p. 281).
Conforme refere este autor, a solução do C.P.P. italiano é diversa: o Ministério Público reformulará a acusação, o processo prosseguirá com o objecto modificado e na hipótese de ser indiciado novo crime autónomo será instaurado novo processo pelo novo crime.
O Acórdão do STJ, de 28 de Janeiro de 1993 (C.J., Acs. do STJ, Ano I, Tomo I, p. 178 e segs.), num caso em que o arguido fora acusado por homicídio privilegiado, tendo o tribunal entendido que se não provara o “privilegiamento” e que a condenação deveria ser por homicídio simples, perfilhou o entendimento de que, havendo uma alteração substancial dos factos e não havendo consenso para a continuação do julgamento, deveria ser ordenada a suspensão da instância, concluindo: “Não se instaurará nenhum novo processo, continuando a ser o mesmo, só que regressando, por via da constatação de novos factos, à fase de investigação, havendo como que uma “reabertura do inquérito” em face de factos que não devem deixar de ser investigados”.
Diversa foi a orientação seguida pelo STJ, no seu Acórdão de 17 de Dezembro de 1997 (C.J., Acs. do STJ, Ano V, Tomo III, p. 257). Entendeu o STJ que, no caso de oposição ao prosseguimento do julgamento, depois de indiciada a alteração substancial dos factos da acusação, nos termos do artigo 359.º, n.º1, do CPP, deve o tribunal mandar extrair certidão de todo o processado, ordenar o arquivamento do processo e remeter essa certidão ao Ministério Público. Esta solução traduz-se, afinal, numa absolvição da instância, em processo penal.

3. O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 237/2007, de 30 de Março de 2007, pronunciou-se no sentido de «não julgar inconstitucional a norma, extraída dos artigos 289.ºe 493.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e 1.º, n.º 1, alínea f), 4.º, 359.º, n.º 1, e 379.º, n.º 1, alínea c), primeira parte, do Código de Processo Penal, segundo a qual, comunicada ao arguido alteração substancial dos factos descritos na acusação, resultante da prova produzida em audiência – em situação em que «os novos factos apurados formam, juntamente com os constantes da acusação, uma unidade de sentido que não permite a sua autonomização» –, e opondo-se o arguido à continuação do julgamento pelos novos factos, o tribunal pode proferir decisão de absolvição da instância quanto aos factos constantes da acusação, determinando a comunicação ao Ministério Público para que este proceda pela totalidade dos factos (…)» (D.R., 2.ª série, N.º 100, de 24 de Maio de 2007).
Quer isto dizer que o Tribunal Constitucional, sem se pronunciar quanto à interpretação do artigo 359.º do C.P.P. que considerava mais correcta, mas unicamente cingindo-se à apreciação sobre se a interpretação acolhida na decisão recorrida – que foi no sentido da absolvição da instância nos casos de alteração substancial dos factos não autonomizáveis, não havendo acordo para a continuação do julgamento – ofendia ou não qualquer norma ou princípio constitucionais, designadamente o ne bis in idem e o acusatório, concluiu que tal interpretação não era desconforme à Constituição da República.

4. O artigo 359.º do C.P.P. foi alterado na revisão introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto.
Passou, então, a ter a seguinte redacção:

«1. Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância.
2. A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.
3. Ressalvam-se do disposto no número 1 os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.
4. Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a dez dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.»

O legislador exprimiu assim as suas intenções na Exposição de Motivos da Proposta de Lei 109/X:
«No âmbito da alteração substancial de factos, introduz-se a distinção entre factos novos autonomizáveis e não autonomizáveis, estipulando-se que só os primeiros originam a abertura de novo processo (artigo 359.º). Trata-se de uma decorrência dos princípios non bis in idem e do acusatório, que impõem, no caso de factos novos não autonomizáveis, a continuação do julgamento sem alteração do respectivo objecto».
Assim, as alterações introduzidas em 2007 significam que a lei nova rejeita a solução da absolvição da instância, recusa a figura da excepção inominada, da impossibilidade superveniente do processo e do seu arquivamento e da suspensão da instância.
Mais: o legislador, que conhecia a doutrina sustentada pelo Tribunal Constitucional no mencionado Acórdão n.º 237/2007, adoptou, inequivocamente, uma solução diversa, da qual se depreende que, no seu entender, os princípios do non bis in idem e do acusatório não seriam acautelados se fosse admitida a abertura de novo processo por factos novos não autonomizáveis.
Não havendo acordo para o prosseguimento do julgamento pelos novos factos, o regime constante do artigo 359.º, a nosso ver, determina o prosseguimento dos autos com os factos anteriores, ignorando-se os factos novos se eles não forem autonomizáveis dos constantes da acusação ou da pronúncia.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, o novo regime é incompatível com a solução da privação do efeito consumptivo do caso julgado sobre os factos não autonomizáveis cujo conhecimento foi impedido por falta de acordo (Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 1.ª ed., p. 899).


5. No caso em análise, o arguido fora acusado, no processo anterior, por factos que o Ministério Público entendeu preencherem a autoria material e sob a forma consumada de um crime de receptação negligente p. e p. pelos artigos 15.º, al. a) e 3 231.º, n.º2, do Código Penal.
O tribunal de 1.ª instância procedeu à comunicação de uma alteração substancial dos factos – que consistia em atribuir-se ao arguido uma conduta dolosa –, não tendo sido obtido o acordo para a continuação do julgamento nesses termos.
Na sequência, foi proferida sentença que absolveu o arguido, por se dar como provada a conduta negligente e se entender que tal conduta não era punível.
Declarada nula tal sentença, o tribunal veio a proferir outra em que, tomando, agora como assente a conduta dolosa, não havendo o acordo para o prosseguimento dos autos nesses termos, absolveu o arguido da instância.
Em novo recurso, a Relação, manifestando discordância quanto à solução adoptada, como se infere, com clareza, da fundamentação desenvolvida, ainda assim manteve a sentença recorrida, por entender que nesta o tribunal de 1.ª instância se limitara a acatar o expendido pela Relação no 1.º acórdão.
É certo que, como já se disse, o novo regime constante do artigo 359.º do C.P.P. não contempla a solução que foi adoptada da “absolvição da instância”.
Tendo sido decidida a “absolvição da instância”, nunca chegou a ser proferida qualquer decisão de mérito: condenatória ou absolutória.
Porém, não temos dúvidas em afirmar que o artigo 359.º, n.º 1 e 2, do C.P.P., não consente uma interpretação que admita a instauração de novo processo pelos factos novos caso estes sejam não autonomizáveis em relação ao objecto do processo originário.
A formulação de acusação, pela totalidade dos factos – os originários e os resultantes da alteração, não autonomizáveis dos primeiros –, no âmbito de novo inquérito, constitui solução que contraria, frontalmente, o desiderato do legislador de 2007, expresso na referida Exposição de Motivos e consubstanciado nas alterações introduzidas no artigo 359.º do C.P. Penal, incompatíveis com o não reconhecimento do efeito consumptivo sobre os factos não autonomizáveis cujo conhecimento foi obstado pela falta de acordo quanto ao prosseguimento do julgamento.
Como já se salientou, mesmo o 1.º acórdão desta Relação, que sustentou a solução da absolvição da instância, afastou, na sua fundamentação, a possibilidade de ser despoletado um novo procedimento criminal com base no novo facto não autonomizável.
Não oferece qualquer dúvida que a acusação deduzida no novo inquérito reproduz os factos integrantes do objecto do processo originário, aditando a mencionada alteração que havia sido qualificada de substancial e não autonomizável.
Nos termos da lei, a comunicação de uma alteração substancial ao Ministério Público para que proceda pelos novos factos só tem lugar se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo, o que não é o caso, sendo certo que, in casu, tal comunicação não foi feita, nem podia ser.
A nosso ver, pese embora confessemos, com o devido respeito, a nossa divergência em relação a alguns dos caminhos que foram trilhados no verdadeiro “novelo” processual em que se converteu o caso em apreço, a circunstância da 2.ª sentença proferida no processo 136/06.4PBFIG ter absolvido o arguido da instância, ao arrepio da nova redacção do artigo 359º do C.P.P., não autoriza o Ministério Público a proceder pelos novos factos, sem mais, já que tal preceito legal apenas consente o procedimento por novos factos que sejam autonomizáveis.
Trata-se de uma consequência da configuração que o legislador de 2007 quis dar à salvaguarda do princípio non bis in idem, não havendo, a nosso ver, qualquer contradição com a anterior absolvição da instância, pelas razões supra expostas.

Termos em que, sem necessidade de outras considerações, o recurso deverá improceder.


III – Dispositivo
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.


Sem tributação.


Coimbra,


(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)




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(Jorge Gonçalves)

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(Jorge Raposo)