Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1158/07. 3TALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: EXCESSO DE VELOCIDADE
RADAR
MEIOS PROIBIDO DE PROVA
CONSTITUCIONALIDADE
SANÇÃO ACESSÓRIA
COMPETÊNCIA PARA APLICAÇÃO
Data do Acordão: 12/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 2º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 27.º, N.º 138.º E 145.º, ALÍNEA B); 170.º, N.ºS 3 E 4 E 181.º DO CE; ART. 13º DA LEI N.º 1/2005, DE 10 DE JANEIRO
Sumário: I. – Não se mostra contrária à ordem constitucional, a norma contida no n.º 4 do artigo 170.º do C.E., na dimensão normativa de que fazem fé em juízo, nos termos do n.º 3 do mesmo preceito, os elementos de prova obtidos através dos aparelhos ou instrumentos aprovados nos termos legais e regulamentares”.
II. – É competente para aplicação da sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir veículos motorizados a entidade administrativa com competência para aplicação da coima correspondente á infracção estradal praticada.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

veio interpor recurso da decisão que julgando improcedente a impugnação deduzida, manteve a decisão da Direcção-Geral de Viação - Delegação de Leiria que lhe aplicou a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias, pela prática da contra-ordenação p. e p. pelos artigos 27º, n.º 4, 138º e 145º, al. b) todos do Código da Estrada.

E, da respectiva motivação extraiu as seguintes conclusões:

1- A consideração de que os elementos recolhidos pelo aparelho de medição (radar) têm um poder probatório acrescido é inconstitucional, resultando inconstitucional, assim, a norma dos arts. 170º, n.ºs 3 e 4, do CE, conforme os acórdãos do Tribunal Constitucional acima invocados, pelo que se requer essa declaração de inconstitucionalidade.

2- A sanção acessória de inibição de condução apenas pode ser aplicada por um Tribunal, pelo que deve repudiar-se e revogar-se a decisão de aplicação dessa sanção pela Autoridade Recorrida, que violou o principio da jurisdicionalização que se encontra consagrado nos artigos 27º, 29º, 32º e 202º da CRP.

3- Finalmente, apenas se deve aplicar tal sanção quando se tenha verificado uma situação de perigosidade, pelo que não há lugar à sua aplicação in casu, uma vez que não foi produzida prova de tal facto.

Nestes termos, deve dar-se sem efeito a decisão recorrida, nos termos e com as consequências legais.

A Magistrada do MºPº junto da 1ª instância ofereceu resposta, concluindo pela improcedência do recurso.

Nesta instância a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer acompanhando a resposta à motivação.

Os autos tiveram os vistos legais.

III- FUNDAMENTAÇÃO

Na decisão recorrida consta o seguinte:

Consideram-se provados os seguintes factos:

1. No dia 16 de Outubro de 2005, o Recorrente conduzia o veículo automóvel de matrícula 00-00-TQ na A1, km 125, n/s, Leiria, à velocidade de 166 km /h..

2. O arguido efectuou o pagamento voluntário da coima.

3. O arguido tem averbado ao seu registo individual de condutor a prática anterior de:

a) uma contra-ordenação, por excesso de velocidade inferior a 60 km/h., praticada em 22-11-2002, tendo-lhe sido aplicada, a sanção acessória de 30 dias de inibição de conduzir, suspensa a sua execução de 21-4-2003 a 18-10-2003;

FACTOS NÃO PROVADOS

1. Não se provaram outros factos relevantes para a decisão da causa.

MOTIVAÇÃO

O Tribunal fundou a sua convicção no teor do auto de notícia de fls. 1 cujo teor faz fé em juízo (dado que não foi posto em causa e o arguido não pode discutir a infracção dado que procedeu ao pagamento da coima: art.º 172º, n.º 5 do C.E.); no teor da declaração do pagamento voluntário da coima de fls. 4; no teor do Registo Individual de Condutor de fls. 5 quanto aos antecedentes contra-ordenacionais.

APRECIANDO

Atendendo ao disposto no n.º 1 do artigo 75º do DL n.º 433/82 este tribunal conhece apenas da matéria de direito (isto sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente os vícios indicados no artigo 410º, n.º 2 do CPP, de acordo com o acórdão do STJ para fixação de jurisprudência de 19-10-1995, publicado no DR, 1-A Série de 28-12-95), havendo-se como assente toda a factualidade que foi considerada provada.

Sendo o objecto do recurso fixado pelas conclusões retiradas das respectivas motivações, no presente recurso, tal como vêm sintetizadas pelo recorrente, são suscitadas as seguintes questões:

 - valor probatório do aparelho de radar como auto de notícia e a inconstitucionalidade do n.º 4 do art. 170º do Código da Estrada;

- a impossibilidade de aplicação de sanção acessória de inibição de condução no caso dos autos, por não ter a autoridade recorrida competência para aplicar tal sanção (a qual só pode ser aplicada pelos Tribunais), e por não ter ficado demonstrada a verificação de uma situação de perigosidade.

A-

Quanto aos meios de prova em que se baseou, refere a decisão recorrida “o teor do auto de notícia de fls. 1 cujo teor faz fé em juízo (dado que não foi posto em causa e o arguido não pode discutir a infracção dado que procedeu ao pagamento da coima: art.º 172º, n.º 5 do C.E.); no teor da declaração do pagamento voluntário da coima de fls. 4; no teor do Registo Individual de Condutor de fls. 5 quanto aos antecedentes contra-ordenacionais.

No aludido auto de contra-ordenação, para além de indicar a velocidade a que o veículo conduzido pelo arguido circulava (já deduzido do valor de erro máximo admitido), identificou-se, de forma suficiente, o aparelho que procedeu à leitura da velocidade.

E, na fotografia de fls. 2, anexa ao auto, pode observar-se uma viatura em circulação, estando identificada a respectiva matrícula, podendo ainda ver-se registados a data, a velocidade a que seguia. Os agentes de autoridade limitaram-se a captar a imagem da viatura através de câmara fotográfica que utilizavam.

Ora, a utilização das câmaras fotográficas, à data, já estava regulamentada, o que aconteceu com a redacção introduzida pela Lei n.º 39-A/2005, de 29 de Julho ao art. 13º da Lei n.º 1/2005, de 10 de Janeiro (que regula a utilização de câmaras de vídeo pelas forças e serviços de segurança em locais públicos de utilização comum).

Passou a estabelecer o citado art. 13º, no n.º 1 que “ …é autorizada a instalação e a utilização pelas forças de segurança de sistemas de vigilância electrónica, mediante câmaras digitais, de vídeo ou fotográficas, para captação de dados em tempo real e respectiva gravação e tratamento …”. Quando na versão originária apenas se fazia referência a sistemas de vigilância por câmaras de vídeo.

No caso vertente, com a recolha da fotografia de fls. 2 não foi violado o direito à imagem e à reserva da intimidade da vida privada do recorrente, direitos constitucionalmente consagrados (art. 26º), pelo que teremos de concluir que a prova que serviu de base à convicção do tribunal não padece da nulidade a que alude o art. 126º do CPP.

Estabelece o artigo 170º, n.º 3 do Código da Estrada que “O auto de notícia levantado e assinado nos termos dos números anteriores faz fé sobre os factos presenciados pelo autuante, até prova em contrário”. E, acrescenta o n.º 4 que “O disposto no número anterior aplica-se aos elementos de prova obtidos através de aparelhos ou instrumentos aprovados nos termos legais e regulamentares”.

Coloca o recorrente a tónica da questão, na inexistência de previsão legal que conceda aos arguidos a oportunidade e os meios de pôr em causa o valor probatório dos elementos obtidos através dos radares de medição de velocidade, o que consubstancia a inconstitucionalidade do n.º 4 do art. 170º do CE, por violação das garantias de defesa dos arguidos, nomeadamente do princípio do contraditório, consagrado no art. 32º, n.º 5 da CRP.

Ora como salientam António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral ([i]) citando Germano Marques da Silva “O auto de notícia é um documento que vale como documento autêntico quando levantado ou mandado levantar por autoridade pública (art. 363º, n.º 2 do CC) seja autoridade judiciária ou autoridade policial e, por isso, faz prova dos factos materiais dele constantes nos termos do art. 169º do CPP.

Chamado a pronunciar-se sobre a aludida norma do CE, o Tribunal Constitucional adoptou o posicionamento uniforme no sentido de que a fé em juízo dos autos de notícia reconduz-se a um especial valor probatório atribuído a certas comprovações materiais para os factos presenciados por certa autoridade pública. Pressuposto de tal entendimento é o de que tal fé em juízo não acarreta qualquer presunção de culpabilidade, nem envolve uma manipulação arbitrária do princípio in dubio pro reo. Por outro lado tal especial valor probatório não afecta o direito de defesa do arguido e o seu exercício do contraditório – cfr. Ac. 7-2-1990.

No domínio do actual CE - art. 170º, n.º 3 - o auto de notícia levantado nos termos dos números anteriores faz fé sobre os factos presenciados pelo autuante até prova em contrário”([ii]).

Nos termos expostos, teremos de concluir pela inexistência da invocada inconstitucionalidade.

B-

Sustenta o recorrente que a autoridade administrativa recorrida não tinha competência para aplicar a sanção acessória de inibição de conduzir.

O direito de ordenação social constitui um ramo jurídico punitivo específico e autónomo do direito penal. ([iii]) Tal como no direito penal, também o direito de ordenação social estabelece duas categorias de sanções: a coima e as sanções acessórias, sendo a coima a sanção principal.

Nos termos do artigo 33º do DL 433/82, de 27.10 (RGCC) a competência para o processamento das contra-ordenações e a aplicação das coimas e sanções acessórias é das autoridades administrativas, sendo o direito processual penal direito subsidiário, como dispõe o artigo 41º do RGCC.

Ora, estando em causa uma contra-ordenação estradal, dispondo o Código da Estrada de norma própria sobre os requisitos da decisão proferida pela autoridade administrativa, aplica-se o regime do CE, e não o RGCC.

Nos termos do n.º1 do artigo 181º do CE «A decisão que aplica a coima ou a sanção acessória deve conter: a) a identificação do infractor; b) a descrição sumária dos factos, das provas e circunstâncias relevantes para a decisão; c) a indicação das normas violadas; d) a coima e a sanção acessória; e) a condenação em custas».

Por conseguinte, tendo o ora recorrente incorrido na prática de uma contra-ordenação estradal, tinha a autoridade administrativa (DGV) competência para lhe aplicar as respectivas sanções: coima e sanção acessória.

Alega ainda o recorrente que não lhe devia ter sido aplicada a sanção acessória de inibição de conduzir, por não ter ficado demonstrada a verificação de uma situação de perigosidade.

Também nesta questão não lhe assiste razão.

A contra-ordenação em causa p. e p. pelos artigos 27º, n.º 4, 138º e 145º, al. b) todos do Código da Estrada é considerada de “grave”, dado que o arguido conduzia com excesso de velocidade, sendo a situação de perigosidade inerente à circulação em tais circunstâncias.

Improcede, assim, na totalidade a argumentação do recorrente.

IV- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Negar provimento ao recurso.


[i] - in Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 2ª edição, pág. 133/134.
[ii] - Ainda o Ac do TC de 17-9-1988, in www.dgsi.pt, decidiu o seguinte:
I- Não julga inconstitucional a norma constante da segunda parte do n.º 5 do artigo 64º do Código da Estrada, que atribui aos elementos colhidos através de aparelhos de fiscalização de transito, aprovados pela Direcção-Geral de Viação, o valor de que gozam os autos de notícia nos termos do artigo 169º do Código de Processo Penal de 1929.
II - O valor probatório do auto de notícia fundado na determinação, por aparelho de medição adequado, da velocidade de um veículo, não incide sobre a culpa ou a responsabilidade do transgressor, mas apenas sobre o facto concreto da medição da velocidade, não impedindo que o réu continue a presumir-se inocente.
III- Tal valor probatório não obriga a dispensar a produção, em julgamento, de qualquer outra prova que se repute necessária, designadamente para questionar o próprio auto de notícia.
IV- Acresce que a audiência de julgamento se há-de subordinar ao princípio do contraditório e realizar-se com observância das regras da oralidade e imediação.
V- E se ficar a pairar no espírito do julgador dúvida sobre a velocidade a que seguia o infractor, sempre essa dúvida se há-de resolver a favor deste, por força do principio "in dubio pro reo".

[iii] - cfr. Taipa de Carvalho, in Direito Penal, Parte Geral, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 125 e segs.