Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
64/16.5T8CNT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
NOTÁRIO
RECURSO
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
Data do Acordão: 10/08/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - CANTANHEDE - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 67, 68, 644 CPC, ARTS3, 7, 76, 82 LEI Nº 23/2013 DE 5/3, LEI Nº 117/2019 E 13/9
Sumário: 1. - Cabendo recurso de decisão notarial (não jurisdicional) no âmbito de autos de inventário instaurados segundo o regime decorrente da Lei n.º 23/2013, de 05-03, a competência para a sua apreciação cabe ao Tribunal Judicial de Comarca e não ao Tribunal da Relação.

2. - À Relação apenas cabe conhecer dos recursos nesse âmbito instaurados de decisões judiciais (as do dito Tribunal de Comarca).

Decisão Texto Integral:









Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

Correndo autos de inventário pelo Cartório Notarial de Cantanhede, em que são interessadas, entre outros, MT (…) e MA (…), ambas com os sinais dos autos,

foi proferido despacho notarial nomeando J (…) como “curador especial da interessada incapaz MA (…)”, perante o que aquela interessada MT (…) veio, em arguição de invalidade, requerer que fosse “anulada a indicação de curador”, designando-se “para desempenhar essas funções A (…)

Conhecendo-se do assim requerido, foi proferido novo despacho notarial, indeferindo a arguição de invalidade e mantendo o curador nomeado.

Interpôs, então, a interessada MT (…) recurso para o “M.º Juiz da Comarca de Cantanhede - Juízo Cível”, apresentando alegação e conclusões, assim terminando por pedir a revogação do despacho recorrido, a ser “substituído por outra decisão que deferindo à nulidade arguida, anule o despacho de nomeação de curador especial à incapaz MA (…), devendo ser repetido o processado após o falecimento do anterior curador …”.

Admitido o recurso na sede notarial, e remetidos os autos, foi proferida pela M.ª Juiz do Juízo Local Cível de Cantanhede - Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra a seguinte decisão (datada de 12/04/2019):

«Os presentes autos foram remetidos a este Tribunal para apreciação do recurso interposto em 05.02.19 pela interessada requerente MT (…) da decisão do Sr. Notário que designou curador especial à interessada MA (…).

Nos termos do art. 3º, nº 7 do Regime Jurídico do Processo de Inventário (RJPI) compete ao Tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado praticar os actos que, nos termos da presente lei, sejam da competência do Juiz.

A competência do Tribunal é residual e circunscreve-se aos actos que lhe sejam especificamente cometidos por lei.

O RJPI não prevê a impugnação judicial da decisão de nomeação de curador especial para o Tribunal da Comarca (cfr. art. 7º, nº 4 do RJPI).

O acto em causa - apreciação do recurso da decisão que nomeia curador especial a interessada - não se enquadra no âmbito das competências reservadas ao Tribunal da comarca do Cartório notarial onde o processo foi apresentado.

As decisões referenciadas no art. 76º do RJPI são passíveis de recurso de apelação para o Tribunal da Relação, e não para o Tribunal do Cartório notarial onde foi apresentado o inventário, e estão sujeitas ao pagamento de taxa de justiça.

Não cabendo no âmbito de competência deste Juízo Local a apreciação do recurso, determina-se a devolução ao Cartório.

Notifique e, após trânsito, devolva ao Cartório.» ([1]).

Inconformada, a Interessada MT (…) recorre – agora para a Relação – do assim decidido, apresentando alegação, onde formula as seguintes

Conclusões ([2]):

«A) A ora recorrente interpôs recurso do despacho do Notário que indeferiu a nulidade por si arguida na nomeação de curador ad litem para sua mãe e também interessada, MA (…) tendo esse recurso sido interposto para Mª. Juiz da Comarca de Cantanhede- Juízo Cível.

B) Porém, a Mª. Juiz decidiu que “não cabendo no âmbito de competência deste Juízo Local a apreciação do recurso, determina-se a devolução ao Cartório”, tendo fundamentado a decisão referida, escrevendo que “Nos termos do art. 3º, nº 7 do Regime Jurídico do Processo de Inventário (RJPI) compete ao Tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado praticar os actos que, nos termos da presente lei, sejam da competência do Juiz.

C) Sempre com o devido respeito pela opinião expressa e pela decisão tomada, entendemos que a mesma viola a lei e é contrária à jurisprudência dos tribunais superiores que já se conhece sobre o assunto.

D) Com efeito, os tribunais da Relação são unânimes em considerar que de todas as decisões interlocutórias ou finais dos notários cabe sempre recurso para o tribunal de 1ª. instância e só depois da decisão deste cabe recurso para o Tribunal da Relação.

E) Esta unanimidade fundamenta-se no facto de o recurso a interpor dos actos do notário serem sempre para os Tribunais de 1ª. Instância, como resulta do artigo 67º. do Código Processo Civil actualmente vigente .

F) Face ao exposto, deve ser revogada a decisão recorrida e ordenado ao tribunal de 1ª. instância que conheça o recurso interposto do despacho do Notário que indeferiu a nulidade arguida pela ora recorrente na nomeação de curador ad litem para sua mãe e também interessada, MA (…), pois que o tribunal da Relação não pode conhecer imediatamente o presente recurso, com base no citado art. 76º, nº 2, do RJPI, pois esse tribunal apenas pode conhecer os recurso, mas das decisões proferidas pelo juiz de 1ª instância, quer a que homologa a partilha, quer outras, subindo com aquele os recursos das decisões interlocutórias proferidas ao longo do processo, incluindo aquelas que, nos termos do artº. 644º., nº. 1 do Cod. Proc. Civil devam subir já.

G) Mostram-se violadas pela decisão ora impugnada, pelo menos, as normas dos artigos 67º. e 68º. do Cod. Proc. Civil

SEM EMBARGO,

E para a hipótese de se entender que o tribunal da Relação é desde já o competente,

Então deve julgar o presente recurso

H) Nos presentes autos, o despacho de que é interposto recurso pôs termo ao incidente de nomeação de curador especial para a interessada MA (…), sendo que se trata de um incidente tramitado de forma autónoma, embora não por apenso, pelo que a decisão é recorrível, nos termos do artº. 644º., nº. 1, al. a) do Cod. Proc. Civil

I) De tal despacho cabe recurso, nos termos do 645º., nº1, al. a) do Cod. Proc. Civil, com o regime de subida constante do nº. 2 desse mesmo artigo e o efeito fixado no artº. 647º., nº. 1 do Cod. Proc. Civil, o qual também sobe imediatamente, como todos os recursos de apelação, para o que não existe norma processual expressa, nem é necessário, dado o disposto nos artº. 645º., nº.s 1 e 2 e 646º., ambos do Cod. Proc. Civil.

J) Neste sentido, já decidiu a Relação de Coimbra, no seu acórdão de 28/4/2010, proferido no processo 1363/09.8TBSTR-A.C1 (Rel. Des. Jaime Carlos Ferreira), publicitado em http://www.dgsi.pt/jtrc., que “é também admissível recurso de apelação de outras decisões do tribunal de 1ª instância, conforme nº 2 do citado artº 691º, designadamente de “despacho que não admita o incidente ou que lhe ponha termo”, sendo que “do despacho que pôs termo ao incidente de intervenção principal suscitado na contestação, deferindo ao chamamento pretendido pelo Réu, cabe recurso, o qual sobe em separado e com efeito devolutivo, nos termos dos artºs 691º-A, nºs 1 e 2, e 692º, nºs 1, 2 e 3”.

K) Apesar da renumeração, os actuais artigos do Cod. Proc. Civil correspondentes aos artigos citados nesse acórdão e originários da reforma do regime dos recursos introduzido pelo Dec. Lei nº. 303/2007, de 24/08,têm textos rigorosamente iguais, nomeadamente os correspondentes aos artºs 691º-A, nºs 1 e 2, 691º-B e 692º, nºs 1, 2 e 3 que são os artigos 645º., 646º. e 647º., todos do Cod. Proc. Civil.

L) Por isso, deve ser admitido o presente recurso contra a decisão que, de forma ilegal, designou o curador especial para a interessada MA (…), sem audição do Ministério Público, como está determinado legalmente.

M) No presente processo de inventário, foi nomeado curador especial da interessada MA (…), J (…) nomeação que consta do despacho de 28 de Fevereiro de 2018, o qual não contém as razões pelas quais se fez a opção por um tal representante, nem foi notificado à ora recorrente.

N) A ora recorrente teve conhecimento dessa nomeação, como refere no seu requerimento de 16/3/2018, através “notificação que ontem lhe foi feita pelo Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra - Juízo Local Cível de Coimbra – Juiz 2 da nomeação de um curador novo para sua mãe e também interessada MA (…) , sem que lhe tenha sido comunicado por Vª. Exª e sem que se vislumbrem as razões para uma tão estranha designação” e, nesse mesmo requerimento, veio pedir que “deve ser anulada a indicação de curador feita nos presentes autos, por violar o disposto no artº. 17º., nº.s 4 e 5 do Cod. Proc. Civil.”

 O) É que, como então referia a ora recorrente, existiam familiares, mais exactamente afins da MA (…) que reúnem as condições para desempenharem as funções de curador, pois que, não podendo ser designado os irmãos de MA (…), pois esta ainda não realizou partilhas com ele, pelo que os mesmos podem ser interessados nos presentes autos, ficam os irmãos do inventariado.

P) Porém, o curador nomeado é que não o pode ser, pois que, para além de ser pessoa que hostiliza a ora recorrente – nem sequer a cumprimenta quando com ela se cruza na rua -, o curador nomeado trata-se de pessoa que não reúne os requisitos de laços familiares, proximidade e conhecimento da incapaz para o exercício das funções de curador, tendo a ora requerente apresentada um requerimento no processo de Inventário, opondo-se a tal nomeação e indicando um familiar próximo que no seu entender reúne as condições exigidas para o exercício cabal de tais funções.

Q) Além do mais, essa nomeação ocorreu sem que tenha sido ouvido o Ministério Público, como impõe o artº. 17º., nº. 5 do Cod. Proc. Civil e é este o fundamento do presente recurso, onde se dispõe que “a nomeação incidental de curador deve ser promovida pelo Ministério Público, podendo ser requerida por qualquer parente sucessível, quando o incapaz haja de ser autor, devendo sê-lo pelo autor, quando o incapaz figure como réu” (nº. 4) e “O Ministério Público é ouvido, sempre que não seja o requerente da nomeação” (nº. 5).

R) A nulidade arguida em 16 de Março de 2018, só quase um ano depois foi objecto de despacho proferido em 17 de janeiro de 2019, indeferindo a arguida nulidade da não audição do Ministério Público, invocando-se o parecer nº. 5/2014 do Conselho Consultivo da Procuradoria -Geral da República, segundo o qual “o Ministério Público não deve intervir a título principal ou a acessório, no processo de inventário enquanto o mesmo se encontrar pendente e a ser tramitado no cartório notarial, sob a direcção do respectivo notário, assumindo, no entanto, essa intervenção a partir do momento em que o inventário ingressa no tribunal para o exercício das competências jurisdicionais previstas no RJPI”.

 É por demais evidente a falta de razão desse despacho e falta de acerto na invocação a este propósito daquele parecer.

S) 10. Em primeiro lugar, o referido parecer é dirigido a uma situação muito específica, qual seja, a de o Mº. Pº. ter de requerer como parte principal ou de acompanhar como parte acessória um determinado inventário, em que seja interessado um qualquer herdeiro ausente ou incapaz, mas não é essa a questão de que se trata agora, pois o que se pretende é que o Mº. Pº. seja ouvido – mesmo não sendo parte principal ou acessória – num determinado incidente processual de designação de curador especial de incapaz, pelo que, uma vez feita essa nomeação, ele se retira do processo.

T) Não deixa de ser estranho, interpretar-se a lei no sentido de ser mais exigente para a nomeação feita por Juiz do que a nomeação feita por um simples notário, ao impor para aquela que “O Ministério Público é ouvido, sempre que não seja o requerente da nomeação” e dispensando-a para o notário.

U) Em segundo lugar, acresce que é o próprio RJPI que impõe o cumprimento desse artº. 17º., nº. 5 do Cod. Proc. Civil, porque, nos termos do artigo 82.º do RJPI determina que “Em tudo o que não esteja especialmente regulado na presente lei, é aplicável o Código de Processo Civil e respetiva legislação complementar” e esse mesmo RJPI. dispõe que, “4 - A nomeação de curador especial é da competência do notário, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Civil sobre esta nomeação”.

V) É o próprio RJPI quem, expressamente determina a aplicação do referido artº. 17º. do Cod. Proc. Civil, com uma norma em que apenas altera quem deverá fazer a nomeação, mas mantendo toda a demais regulamentação.

X) Em terceiro lugar, o artº. 5º., ainda do RJPI, ao determinar de forma clara a competência do Mº. Pº. no inventário que corre perante os notários, restringindo-a à função de representante defensor dos interesses da Fazenda Pública – aí sim como parte -, ressalva de forma expressa na parte final do nº. 2 que esta restrição é sempre “sem prejuízo das demais competências que lhe estejam atribuídas por lei.”

Y) Uma dessas competências que a lei lhe confere expressamente é a de ser “ouvido, sempre que não seja o requerente da nomeação”, quando esteja em causa a nomeação de representante especial para incapazes ou ausentes.

Z) Deste modo, “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”, como se determina no artº. 195º., nº 1 do Cod. Proc. Civil, aqui também aplicável por força do artº. 82º. do RJPI, por estarmos perante um caso omisso neste RJPI.

AA) Não se conhecendo a posição do Mº. Pº., a sua opinião é decisiva para poder ser decidida a nomeação desse representante, por razões substanciais, como os laços familiares, e não apenas por maiorias de interessados conjugadas contra a ora recorrente.

BB) Deste modo, com fundamento na violação do disposto no artº. 17º., nº. 5 do Cod. Proc. Civil, aplicável aos presentes autos ex vi dos artigos 7º., nº.2 e 5º., nº. 2, parte final do RJPI, incorreu o despacho de nomeação na nulidade prevista no artº. 195º., nº. 1 do Cod. Proc. Civil, por ter sido praticado um acto de nomeação de um curador especial para uma interessada incapaz com omissão de uma formalidade que a lei prescreve como obrigatória - “O Ministério Público é ouvido, sempre que não seja o requerente da nomeação” -, deve ser anulada a nomeação efectuada e todos os actos subsequentes que dela dependam e onde ocorreu a nomeação do curador designado.

CC) Por isso, deve ser revogado o despacho recorrido do Notário e substituído por outra decisão que deferindo á nulidade arguida, anule o despacho de nomeação de nomeação de curador especial à incapaz MA (…)devendo ser repetido o processado após o falecimento do anterior curador, devendo ser ouvido o Mº. Pº., como determina o artº. 17º. do Cod. Proc. Civil, seguindo-se os demais termos processuais adequados, só assim se cumprindo a lei e fazendo

 J U S T I Ç A!».

Não foi apresentada contra-alegação de recurso.

O recurso foi admitido como de apelação, com o regime e efeito fixados no processo ([3]), tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, vindo a ser mantido tal regime e efeito fixados. 

Nada obstando, na legal tramitação recursiva, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito do Recurso

Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([4]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 –, está em causa na presente apelação saber:

a) Se o Tribunal Judicial de Comarca – no caso, o Juízo Local Cível de Cantanhede – é incompetente para conhecer do recurso interposto de decisão proferida por Notário no âmbito de inventário (decisão de indeferimento de arguição de nulidade quanto à nomeação de curador especial a interessada), sendo competente, em razão da hierarquia, o Tribunal da Relação;

b) Caso se conclua pela competência da Relação, se deve ser revogada aquela decisão notarial, deferindo-se a arguição de nulidade, com as legais consequências.

III – Fundamentação

          A) Matéria de facto

O substrato factual a considerar é o que resulta do antecedente relatório, aqui dado como reproduzido.

B) Matéria de direito

Da (in)competência do Tribunal de Comarca

Começa a Apelante por esgrimir, no seu acervo conclusivo, haver erro do Tribunal a quo (Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra - Juízo Local Cível de Cantanhede), ao julgar-se hierarquicamente incompetente para conhecer do recurso de decisão notarial em autos de inventário e considerar ser competente o Tribunal da Relação, tratando-se de recurso quanto a decisão do Sr. Notário que designou curador especial a uma interessada, mais precisamente impugnação de despacho notarial de indeferimento de arguição de nulidade na nomeação de tal curador.

Invoca, para tanto, diversa jurisprudência dos Tribunais da Relação, sempre no sentido de caber recurso das decisões interlocutórias ou finais dos notários, no âmbito de autos de inventário, para o Tribunal de 1.ª instância, só depois, julgado o recurso em Tribunal de Comarca, sendo permitido recurso para a Relação (neste caso, recurso já da decisão do Juiz).

Assim, para a ora Recorrente, ancorado no art.º 67.º do NCPCiv. ([5]), as decisões notariais, em autos de inventário, são sempre impugnáveis em recurso para o Juiz do Tribunal de Comarca e não, diretamente, para o Tribunal da Relação (a Relação só seria competente, neste âmbito, para conhecer do recurso interposto da decisão judicial que conhecesse do recurso interposto da decisão notarial).

Já para o Tribunal a quo, diversamente, cabe recurso da decisão notarial para a Relação, diretamente, e não para o Tribunal de Comarca, invocando-se, em abono desta tese, o disposto nos art.ºs 3.º, n.º 7, 7.º, n.º 4, e 76.º do RJPI ([6]), de cuja conjugação resultaria afastada a competência do “Tribunal do Cartório notarial onde foi apresentado o inventário”.

Ora, sobre tal questão de competência recursiva (em razão da hierarquia) se têm vindo a pronunciar os Tribunais da Relação, como, aliás, logo indicado pela ora Recorrente.

Plano em que também já houve pronúncia nesta Relação e Secção, pelo que cabe atentar na solução então encontrada.

Assim, no Ac. TRC de 20/06/2017 ([7]) foi desenvolvida a seguinte linha de argumentação, tendo em conta, especificamente, o disposto nos art.ºs 67.º e 68.º ([8]), ambos do NCPCiv.:

«Desde logo, entendemos que resulta das disposições ora transcritas ([9]) que das decisões proferidas por notário cabe recurso para o tribunal da 1ª instância que for o territorialmente competente, ao passo que o recurso da sentença homologatória da partilha, porque proferido pelo juiz desse tribunal de 1ª instância, é que é dirigido ao tribunal da Relação territorialmente competente, como determina expressamente o art. 66º, nº 3, do RJPI, uma vez que vem interposto de decisão judicial e não do notário.

Nesta linha interpretativa vai Augusto Lopes Cardoso, em Partilhas Judiciais, 6ª edição, 2015, págs. 82/85, que a dado passo escreve o seguinte:

“Dir-se-á, pois, que (…) deve ser aqui aplicado o regime subsidiário dos recursos civis (ex vi do cit. Art. 82.º do RJPI) vale dizer que a discordância da decisão notarial interlocutória deve manifestar-se através dum requerimento de impugnação para o Juiz dirigido ao Notário (CPCiv., art. 637.º-1).

Do exposto deve deduzir-se que, não estando previsto que a impugnação das «decisões interlocutórias» que não são autónomas suspendam o andamento do processo de inventário, também não se justifica que subam imediatamente ao Juiz do processo, pelo que, preparada a impugnação com a respectiva alegação, aquela irá aguardar o momento em que o processo seja remetido a Tribunal para a prolação da decisão homologatória da partilha.”.

Também Tomé D´Almeida Ramião, em O Novo Regime do Processo de Inventário, 2ª Ed., 2014, págs. 198/199, defende que o art. 76º, nº 2 do RJPI, se refere às decisões judiciais, decorrendo do artigo 644.º, n.º 2, do NCPC, que o recurso de apelação tem por objecto uma decisão proferida por um tribunal de 1ª instância, concluindo que “Não é admissível uma espécie de recurso “per saltum” para o Tribunal da Relação de uma decisão proferida pelo notário. O recurso para este tribunal superior tem necessariamente de ter por objecto uma decisão jurisdicional.”.

E na verdade é esta a interpretação que fazemos e a conclusão a que também chegamos.

Realmente, lendo todo o diploma em causa, nas suas diferentes normas que tratam do tema dos recursos e da articulação dos Srs. Notários com os Tribunais em geral (cfr. os seus artigos 3º, nº 7, 13º, nº 2, 16º, nos 4 e 5, 57º, nº 4, 66º, nos 1 e 3, 69º, 70º e 76º) nada nos permite concluir que se tenha instituído um regime legal de recursos directo das decisões do Notário para o tribunal da Relação e não, primeiro, para o tribunal da 1ª instância e, daí, depois, para a Relação, dentro das regras normais do NCPC.

Claro que o legislador poderia ter introduzido esse sistema do recurso per saltum, optando, então, por libertar, quase por completo, os tribunais de comarca dos processos de inventário, passando o encargo para os tribunais da Relação. Mas se fosse essa a sua intenção, deveria tê-la formulado expressamente, dado o entorse processual que essa situação constituiria (e parece que também entorse constitucional), o que não fez.

Ao invés, nem de forma implícita se extrai daquele citado diploma qualquer novidade nos recursos dos senhores Conservadores e Notários – que são interpostos, como é sabido, usualmente, em primeira linha, para os tribunais de comarca, conforme aos respectivos Códigos de Registo. Consequentemente, temos que concluir que os recursos, neste tipo de processo especial (o inventário), continuam a ser interpostos para o tribunal de comarca e não para o tribunal da Relação.» ([10]).

Tudo para concluir «que, além das decisões interlocutórias cuja recorribilidade está expressamente prevista, em que dúvidas não existem que a competência em razão da hierarquia para o conhecimento do recurso delas interposto cabe ao tribunal de 1ª instância, as outras decisões interlocutórias, como a ora em apreço, também seguem, em caso de recurso, a via de conhecimento ab initio pelo tribunal da 1ª instância, conforme citado art. 76º, nº 2, do RJPI, e só depois seguem, eventualmente, em segundo momento para a Relação (…)».

No mesmo sentido se pronunciou também o Ac. TRC de 09/05/2017, Proc. 86/17.9YRCBR (Rel. Arlindo Oliveira), em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário:

«1. Uma vez que a sentença homologatória da partilha é proferida pelo juiz territorialmente competente, cf. artigo 66.º, n.º 1 do RJPI, à luz das regras gerais – artigo 68.º, n.º 2, do CPC – mesmo na ausência do disposto no n.º 3 do supra citado artigo 66.º, a competência para o julgamento do recurso interposto contra a sentença homologatória da partilha sempre caberá ao Tribunal da Relação.

2. Relativamente às decisões interlocutórias cuja recorribilidade está expressamente prevista (…) dúvidas não podem existir de que a competência em razão da hierarquia para o conhecimento do recurso delas interposto cabe ao tribunal de 1.ª instância, como resulta das previsões legais que regulam as decisões interlocutórias ora em apreço, in casu, o citado artigo 16.º, n.º 4, conjugado com o disposto no artigo 76.º, n.º 2, ambos do RJPI.» ([11]).

Veja-se ainda o Ac. TRP, de 27/06/2018 ([12]), assim considerando:

«I - As decisões proferidas pelo Notário ao longo do processo de inventário são, em regra, impugnáveis judicialmente.

II - A competência para conhecer dessa impugnação é do tribunal de 1.ª instância, não apenas nas situações previstas nos artigos 57.º e 16.º do RJPI mas em todas as outras em que nos termos gerais do direito processual civil a decisão é passível de recurso.

III - O regime do artigo 76.º do RJPI refere-se somente aos recursos de apelação das decisões do tribunal de 1.ª instância, estabelecendo que as decisões judiciais interlocutórias só podem ser impugnadas no recurso de apelação da sentença judicial homologatória da partilha.».

E o anterior Ac. TRP de 26/04/2018, Proc. 9995/17.4T8VNG-A.P1 (Rel. Inês Moura), igualmente em www.dgsi.pt, salientando e concluindo assim:

«Só das decisões do tribunal de 1ª instância é que cabe recurso para o Tribunal da Relação; as decisões do notário não são decisões proferidas no âmbito da função jurisdicional pelo que delas não pode haver recurso directo para a Relação.

(…)

A doutrina tem vindo a expressar igual entendimento. (…)

Posto isto, afigura-se que podemos retirar a seguinte conclusão: das decisões do notário proferidas em sede de processo de inventário, passíveis de serem impugnadas, é competente para conhecer da impugnação o juiz do tribunal de 1ª instância territorialmente competente (…). Das decisões proferidas pelo juiz de 1ª instância cabe recurso para a Relação, nos termos gerais, de acordo com o regime de recursos previsto no art.º 76 do RJPI e C.P.C.».

Por fim, veja-se o Ac. TRL de 25/09/2018, Proc. 4833/17.0 T8LSB.L1-1 (Rel. Pedro Brighton), também em www.dgsi.pt, assim sumariado: “Em processo de inventário, é da competência do Tribunal de 1.ª instância a apreciação dos recursos das decisões do Notário».

Ora, não se vê razão para divergir desta orientação jurisprudencial, também defendida por doutrina autorizada, antes se aderindo aos respetivos fundamentos, nada se impondo agora acrescentar, a não ser o sublinhar que a lógica do sistema, preponderante em termos interpretativos, implica que para a Relação só se recorra de decisões jurisdicionais, não de decisões de entidades não judiciais, sem expressa ressalva/previsão legal nesse sentido.

Quanto a estas últimas decisões, em autos de inventário – decisões do Notário –, poderá recorrer-se (se recorríveis) para o Tribunal Judicial de 1.ª instância (o Tribunal de Comarca) e só após, da decisão jurisdicional deste, para a Relação (se admissível).

Por fim, uma última nota. Resulta da Lei n.º 117/2019, de 13-09, com entrada em vigor no próximo dia 1 de janeiro de 2020 – que, para além do mais, aprova o “regime do inventário notarial” ([13]) –, que (cfr. art.º 2.º, n.ºs 3 e 4, do Anexo, no referente à tramitação do processo de inventário notarial):

“(…)

3 - Ao notário compete realizar todas as diligências do processo, sem prejuízo dos casos em que os interessados devam ser remetidos para os meios judiciais.

4 - Compete ao tribunal de comarca da circunscrição judicial da área do cartório notarial praticar os atos que caibam ao juiz, bem como apreciar os recursos interpostos de decisões do notário.” (itálico aditado).

Isto é, na nova lei – a entrar em vigor em 1 de janeiro próximo – o legislador, ciente das divergências suscitadas na aplicação prática do texto da atual lei, não deixou de tomar posição clara, consagrando a solução no sentido de caber ao Tribunal de Comarca a competência para apreciar os recursos interpostos de decisões do notário (assim se ultrapassará alguma obscuridade, criticada por certas vozes, na feitura da lei ainda em vigor).

Por isso, só das decisões que, assim, venham a ser proferidas pelo Tribunal de Comarca (decisões judiciais) caberá recurso para a Relação e não, per saltum, das decisões notariais (não jurisdicionais).

Em suma, impõe-se a conclusão, mesmo à luz da lei atual, no sentido de ser este Tribunal da Relação incompetente, em razão da hierarquia, para conhecer do recurso interposto nos autos de uma decisão notarial, sendo para tal competente o Tribunal recorrido.

Donde que, salvo o devido respeito, deva revogar-se a decisão recorrida, assistindo razão à Recorrente nesta parte, ficando quanto ao mais, logicamente, prejudicada a apreciação de questões suscitadas (só subsidiariamente apresentadas por tal Recorrente).

***

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - Cabendo recurso de decisão notarial (não jurisdicional) no âmbito de autos de inventário instaurados segundo o regime decorrente da Lei n.º 23/2013, de 05-03, a competência para a sua apreciação cabe ao Tribunal Judicial de Comarca e não ao Tribunal da Relação.

2. - À Relação apenas cabe conhecer dos recursos nesse âmbito instaurados de decisões judiciais (as do dito Tribunal de Comarca).

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V – Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, revogando-se, em consequência, a decisão recorrida e determinando-se que o Tribunal de Comarca, por ser o competente hierarquicamente, conheça do recurso interposto de decisão notarial, se a tal nada mais obstar.

Custas da apelação pelo vencido a final.


Coimbra, 08/10/2019     

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral (Relator)

          Luís Cravo

Fernando Monteiro


([1]) Cfr. certidão judicial junta a solicitação do Tribunal superior, com itálico aditado.
([2]) Que se deixam transcritas, com destaques subtraídos.
([3]) Com subida imediata, em separado e com efeito suspensivo (cfr. fls. 28 v.º do processo físico).
([4]) Excetuadas, naturalmente, questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([5]) Segundo o qual compete aos tribunais de 1.ª instância o conhecimento dos recursos das decisões dos notários, dos conservadores do registo civil e de outros que, nos termos da lei, para eles devam ser interpostos.
([6]) Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 05-03.
([7]) Proc. 109/17.1YRCBR (Rel. Moreira do Carmo), desta mesma Secção, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler: “No processo de inventário, é da competência do tribunal de 1ª instância o recurso das decisões do Notário”.
([8]) Este último a dispor (n.ºs 1 e 2) que compete às Relações o conhecimento dos recursos que por lei sejam da sua competência e dos recursos interpostos de decisões proferidas pelos tribunais de 1.ª instância.
([9]) Aqueles art.ºs 67.º e 68.º.
([10]) E acrescentou-se, quanto ao disposto no art.º 76.º, n.º 2, do RJPI, que «tal normativo reporta-se a recursos para a Relação, mas das decisões proferidas pelo juiz de 1ª instância, quer a que homologa a partilha, quer outras, subindo com aquele os recursos das decisões interlocutórias proferidas ao longo do processo (aliás, mesmo que fosse de admitir que as decisões interlocutórias seriam recorríveis logo para a Relação, sem passar primeiro pelo juiz da 1ª instância, então os respectivos recursos só poderiam subir à Relação com o recurso que se interpusesse da decisão homologatória da partilha e não já, como ocorreu). // Já assim era, de resto, no âmbito do anterior Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei 29/2009, de 29.6 (que acabou por não produzir efeitos, conforme decorria dos seus arts. 4º, 8º, nº 2, 18º, 60º, nº1 e 3, 62º, 64º, 72º, nº 1 e 4, e 73º). // É de notar, em abono desta conclusão, que mesmo noutros casos em que a lei passou competências dos tribunais para o Ministério Público e para os Notários e Conservadores, manteve sempre a possibilidade de reapreciação pelos juízes dos tribunais judiciais da 1ª instância e, daí, para a Relação, nos termos gerais. Veja-se, por exemplo, o caso paradigmático do DL 272/2001, de 13.10, seus artigos 3º, nº 6, 4º, nº 6, 8º e 10º, nº 1 (“das decisões do conservador cabe recurso para o tribunal judicial da 1ª instância competente em razão da matéria no âmbito da circunscrição a que pertence a conservatória”).».
([11]) Em sintonia também o Ac. TRE de 05/04/2016, Proc. 38/16.6YREVR (Rel. Canelas Brás), em www.dgsi.pt, pronunciando que “No processo de inventário, é da competência do tribunal de 1.ª instância o recurso das decisões do Notário”. O mesmo se diga do Ac. TRG de 26/10/2017, Proc. 2004/17.5T8BRG-A.G1 (Rel. Espinheira Baltar), também em www.dgsi.pt e com o seguinte sumário: “1. As decisões interlocutórias proferidas pelo notário, que envolvam atividade jurisdicional, são controláveis jurisdicionalmente através do recurso para o tribunal competente da 1ª instância. // 2. A Relação só conhecerá das decisões interlocutórias do notário e impugnadas para o tribunal da 1ª instância e aí decididas, com a subida da apelação da decisão homologatória da partilha nos termos do artigo 76 n.º 2 do RJIP.”.
([12]) Proc. 379/18.8T8GDM.P1 (Rel. Aristides Rodrigues de Almeida), também disponível em www.dgsi.pt, aliás, igualmente citado pela Recorrente.
([13]) Consta do respetivo art.º 2.º que “O regime do inventário notarial é aprovado em anexo à presente lei, que dela faz parte integrante”. Já o art.º 15.º estabelece o dia 01/01/2020 como data de entrada em vigor.