Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2294/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. CARDOSO DE ALBUQUERQUE
Descritores: CAUSAS DE NULIDADE DE UMA SENTENÇA
CONTRATO DE TRESPASSE E NÃO INCLUSÃO DO PASSIVO NA RESPECTIVA CONTRATAÇÃO
Data do Acordão: 01/20/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Legislação Nacional: ART.º 668.º DO CPC, 595.º E 596.º DO CC
Sumário:

I - A sentença é nula, conforme o disposto no art.º 668°, n° 1, als. b) e d), do C PC, quando não especifique os fundamentos de facto e de direito da decisão, ou quando deixe de apreciar questões de que devesse conhecer .
II - No tocante à primeira dessas causas de nulidade, há que ter em conta que por força do disposto no art. 205°, n° 1, da Constituição, e 158°, n° 1, do C PC, as decisões judiciais devem sempre ser fundamentadas e a falta de fundamentação constitui nulidade. Contudo, a falta de motivação susceptível de integrar essa nulidade é apenas a que se reporta à falta absoluta de fundamentos, quer estes respeitem aos factos quer ao direito, não constituindo tal vício uma fundamentação lacónica, incompleta, deficiente ou errada, a qual apenas afecta o valor doutrinário e persuasivo da decisão .
III - No caso de um contrato de trespasse o chamado " passivo " não integra a " universatis juris " em que o estabelecimento se traduz, pelo que não pode em regra ser transmitido sem o consentimento do credor- art.s 595° e 596° do C. Civ.
Decisão Texto Integral:
“A”, com sede no lugar de C..., Figueira da Foz, intentou em 25/10/02 acção ordinária na Vara Mista do Tribunal Judicial de Coimbra contra a sociedade «B», com sede em Coimbra e os seus únicos sócios e gerentes C, D, E e F, todos também residentes nesta cidade, pedindo a condenação de todos eles e solidariamente a pagarem-lhe a quantia de € 25.998,96 e juros à taxa de 12% ao ano desde 1 de Novembro e até integral pagamento.
Alega que o pedido corresponde a um crédito de fornecimentos á 1ª R já objecto de execução onde apenas pôde receber uma escassa importância pela venda dos únicos bens encontrados e que por essa dívida respondem os demais RR, em função das responsabilidades que estes assumiram na cláusula 11ª da escritura de trepasse do estabelecimento àquela pertencente, à sociedade “G”, com sede em Viseu.
Os RR contestaram, opondo-se , em síntese, à interpretação feita pela A da citada cláusula do contrato, ainda invocando abuso de direito,os 2º a 4ºs RR visto os bens atingidos pela penhora serem suficientes para garantir o pagamento da dívida e que se a exequente não usou o seu direito de adjudicação foi por ter conhecimento do negócio de trespasse
A A replicou, dizendo que a execução por ela intentada era anterior à escritura de trespasse, o mesmo acontecendo com uma outra execução movida pela H que com ela mantem relações privilegiadas e que já após essa escritura mas ainda em 1998 tinha ela e uma outra credora I intentado contra os RR dois processos sumários na Comarca da Figueira da Foz, cujas quantias foram pagas por depósito efectuado pelos RR António Marques e António Lopes
Defende que justamente esse comportamento, inserido numa prática anterior à escritura de trespasse fez surgir nos seus gerentes a convicção dos sócios da 1ª R assumirem pessoal e solidariamente as dívidas da J, ainda negando que o baixo preço obtido com a venda dos bens penhorados se devesse a qualquer negligência sua, motivado pelo conhecimento da escritura de trespasse.
A 5ª R veio depois alegar ser alheia ao pagamento por depósito das quantias em dívida da sociedade peticionadas nas acções propostas na Figueira da Foz e negando ter alguma vez exercido a gerência da J de que era simples sócia, aliás resultando isso da certidões de registo juntas pela A
Esta acabou por reconhecer que lhe atribuira a qualidade de gerente por mero lapso, o que em nada afectaria a responsabilidade assumida com os demais sócios no âmbito do contrato de trepasse.

No seguimento, decidiu o Mma Juiza em sede de saneador, absolver da instância a 1ª R, por existir caso julgado e entrando na apreciação do pedido por os elementos dos autos assim o permitirem, absolver do mesmo os restantes RR.
Para tanto referiu que tudo girava à volta da interpretação da cláusula 11ª da escritura de trespasse, mas que esta apenas vinculava os sócios da 1ª R apenas e só perante a trespassária, por ser esse o único sentido que dela se poderia extrair e ser, de resto, a dita trespasssária única destinatária da dita declaração negocial.
Inconformada com tal desfecho , a A recorreu de apelação, tendo depois apresentado densa e douta alegação e que fez terminar com nada menos do que 57 conclusões e que somente para prevenir mais demoras, com o convite que se impunha para a sua sintetização, nos termos do artº 690º,nº4 do CPC vamos com algum esforço tentar resumi-la aos seus pontos essenciais.
Disse, portanto, a recorrente, de relevante, o seguinte :
1 – Não existe caso julgado, por a execução movida à 1ªR estar ainda em curso, além de serem diferentes a causa de pedir desta acção, fundada no incumprimento de um contrato de compra e venda e naquela execução, que tem por base as letras assinadas pela 1ª R.
2 – A sentença recorrida fez pois , ao absolver da instância a 1ª R, incorrecta aplicação do disposto nos artºs 497º ,498º,510ºnº1, 494º, aln i), 2 494n3º ,nº2 e 288º,nº1 aln c)do CPC.
3 – Os recorridos ( 2º a 5º ) foram, enquanto sócios da J réus em acções movidas pela A e outras credoras tendo até pago as quantias peticionadas em duas acções
4 – Estes factos estão documentalmente provados, mas o tribunal não os atendeu.
5 – De resto , a recorrente por ter muitos elementos comuns – sede e alguns sócios - com outras credoras, tinha pleno conhecimento desses factos.
6 – A postura, pois, dos ditos recorridos frustrou a legítima expectativa da recorrente e violou a confiança no seio da suas relações comerciais, quanto à interpretação da cláusula 11ª do contrato de trespasse.
7 – É sabido também que não há transmissão automática para o trespassário das dividas referentes à exploração do estabelecimento comercial contraídas em momento anterior.
8 – Decorre , aliás dos artºs 424º e 595º do CC que essas dívidas só se transmitem por acordo entre trespassante e trespassário com aprovação dos credores ou por acordo entre o trespassário e os credores.
9 – O Mmo Juiz não se pronunciou sobre esta problemática , nem especificou os fundamentos de direito que justificassem a sua decisão.
10 – A recorrente e as outras sociedades interpretaram a cláusula 11ª de boa fé como traduzindo a vontade dos 2º a 5º Recorridos de assumirem solidaria e pessoalmente com a 1ª Recorrida o pagamento das suas dívidas.
11- E essa interpretação é lícita , à luz da teoria da impressão do destinatário, não relevando que a destinatária de tal declaração negocial fosse a trespassária “Samoves”.
12 – A douta sentença , ao não entender assim , violou no disposto nos artºs 236º e 238º do C Civil.
13 – O cerne da questão não é propriamente o da eficácia relativa das obrigações, mas antes o de saber se a cláusula 11º se limitou a consagrar o príncipio segundo o qual , as dívidas do trespassante não se transmitem ao trespassário.
14 – Os sócios da 1ª R assumiram de forma pessoal a co-responsabilidade das obrigações indicadas no artº 11º, solidariamente com esta e com eficácia de protecção reflexa de terceiros.
15 .- E a A aderiu e ratificou essa assunção de dívidas ao solicitar o pagamento aos recorridos e ao accioná-los como devedores.
16 –Por último, ao pagarem dívidas da “J “ à recorrente e a outros credores por fornecimentos àquela comportarem-se como seus fiadores, donde deverem ser responsabilizados nessa qualidade, com aplicação do artº 627º e ss do CC.
Contra alegaram os 2º a 5 º RR os quais sustentam o acerto da sentença no que directamente lhes tange e clamam contra a introdução de novos factos e excepções.

Foram corridos os vistos legais.
Cumpre , agora , decidir.
Vejamos, antes de mais, os factos considerados como assentes na 1ª instância:
A – A A dedica-se à confecção e venda por grosso de artigos de malha.
B – Os 2ºs a 5ºRR são os únicos sócios da 1ª R.
C – A 1ª R tem, ainda hoje , a sua sede legal na R ... em Coimbra.
D – No exercício da sua actividade industrial, a A forneceu á 1ª R, durante o ano de 1997, diversas peças de vestuário, de seu fabrico, por cujo valor esta lhe ficou a dever a quantia de 3.482.665$00.
E – E para cujo pagamento lhe entregou diversas letras de câmbio, do seu aceite, com vencimentos entre 28/02 e 15/03 de 1998, no valor de tal débito.
F –Letras que vieram a ser devolvidas à A, nas datas dos seus vencimentos , por falta de pagamento.
G – Frustradas as diligências de cobrança extrajudicial do débito, viu-se a A obrigada a intentar em 9 de Abril de 1998, contra a aqui 1ª R (...) execução para pagamento de quantia certa, pelo valor de 3520945$00, correspondente ao valor das letras não pagas e já vencidas e ainda os respectivos juros de mora, contados desde a data de vencimento dos títulos até 15 de Abril de 1998.
H – A essa execução foi atribuido o nº 276/98, do 2ª Juizo Cível de Coimbra.
I – Execução em que foi ordenada penhora sobre bens pertencentes à 1ª R a qual foi efectuada em 20 de Maio de 1999, na sequência de arresto preventivo que havia sido efectuado em 9 de Junho de 1998, tendo os bens penhorados sido avaliados em 3.729600$00.
J – Esses bens foram vendidos , por negociação particular, em Setembro de 2002, pelo valor de €375.
K – Através de escritura pública de trespasse de 29 de Junho de 1998, celebrada no 2º Cartório Notarial de Coimbra os 2 a 5ºs RR na qualidade de únicos sócios da 1ª R, precederam ao trespasse de um estabelecimento montado pela 1ª R e explorado no rés do chão e 1º andar do prédio sito nos nºs ... da R ... , inscrito na matriz urbana sob o artº ....
L – Esse trespasse foi feito `”G “ pelo valor global de 100.000.000$00 que desta receberam.
M – Após o trespasse, ficou a 1ª R sem qualquer património.
N – Do artº 11º da escritura , consta:
“ O estabelecimento comercial é trespassado sem que ao mesmo se mantenha ligado qualquer trabalhador, seja a que titulo for, pelo que todas as dívidas a fornecedores, e entidades bancárias ou financeiras , ao Estado a qualquer entidade pública ou privada , e em geral de qualquer natureza que seja ou venha a ser devedora a sociedade representada pelos primeiros outorgantes e se reportem ao tempo em que esta sociedade explorou o estabelecimento, incluindo vencimentos e subsídios que eventualmente ainda sejam devidos aos trabalhadores que até agora prestavam serviços, bem como as indemnizações inerentes à resolução e rescisão dos respectivos contratos de trabalho continuarão a ser da responsabilidade da sociedade trespassária, e , subsidiariamente , também , da responsabilidade pessoal e solidaria dos ora 1ºs outorgantes, os quais por esta escritura, também assumem nestes termos todas as obrigações atrás indicadas”

IV – São várias as questões que o presente recurso suscita e que podemos agrupar nos seguintes itens:
1 – Indevida absolvição da instância da 1ª R
2 – Desconsideração de factos relevantes alegados na réplica e devidamente documentados
3 – Nulidade da sentença por omissão dos fundamentos de direito justificativos da decisão e de pronúncia sobre a problemática suscitada na réplica.
4 – Errada interpretação da cláusula 11ª do contrato de trepasse.
5 – Preenchimento dos requisitos da fiança unilateral por parte dos contestantes
6 –Abuso de direito
Vejamos, ponto por ponto, cada um deles :

1ª Questão.
A recorrente tem razão em dizer que no caso em apreço não existia caso julgado no que concerne à 1ª R.
Com efeito, não obstante ter já sido proposta acção executiva contra a 1ª R pela A e que aquela não embargou, atinente à mesma dívida mas com base em letra de câmbio que ela aceitou, em nada ela estava impedida de propor nova acção invocando a relação subjacente, ou seja o contrato de fornecimento de diversas peças de vestuário, em ordem a como bem se compreende, estender a responsabilidade aos demais RR, `luz das obrigações que estes assumiram no âmbito do contrato de trespasse do estabelecimento envolvido em tais transacções.
Com efeito, sendo numa e noutra acção, idênticas as partes e o pedido, não há identidade da causa de pedir, e só estas três identidades permitem que se possa invocar e conhecer das eventuais excepções de litispendência ou de caso julgado, conforme o disposto nos artºs 497º e 498ºdo CPC
O que poderá acontecer sim é que, havendo pagamento parcial ou total da dívida no decurso da acção executiva, a mesma deixa de subsistir, pois em regra a e emissão de letras pelo devedor constitui uma forma de «datio pro solvendo» em relação à dívida da relação subjacente, a qual se mantèm em príncipio «qua tale », a menos que se demonstre que a vontade das partes foi substituir a dívida primitiva ( v., além do disposto no artº 840ºdo C.Civil, os acs do STJ de 5/03/76 , BMJ 255º, 168 e da RL de 24/10/78, CJ1978, V, 1361e A Varela , RLJ118º , 30)
Ora no caso em apreço , a A teve já na devida conta que o crédito quer veio exigir da 1ª R trazendo à liça o contrato que celebrou com esta e no âmbito das suas normais relações comerciais, se acha parcialmente pago, ainda que por montante reduzido, por já ter interposto contra esta a pertinente execução cambiária e a razão pela que optou por demandá-la prende-se em exclusivo, como acima dissemos à circunstância que por esta dívida e na sua perspectiva serem também responsáveis solidariamente com ela , os 2º a 5º RR, ou seja os respectivos sócios e por força da clausula 11ª do contrato de trepasse do estabelecimento comercial respectivo.
Assim, porque a 1ªR não deduziu qualquer oposição, sempre ela deveria ser condenada no pedido, acaso os demais RR que negam serem solidariamente responsáveis pela mesma e que a contestaram nessa base, discutindo apenas a taxa de juros aplicável, venham a ser absolvidos.
Procede , pois e nesta parte , o recurso da A

2ª Questão
Além dos factos dados por assentes, está também adquirido por prova documental bastante que :
- Em 2/11/1998 , a sociedade I, também com sede em ... , F... propôs uma acção sumária contra os mesmos RR no Tribunal da F. da Foz, para haver deles a quantia de 537.970$00, valor de fornecimentos feitos à 1ª R, também dizendo que os sócios eram responsáveis solidariamente de acordo com o artº 11º da escritura de trespasse.
- Os 3 e 4º RR procederam em 18de Dezembro seguinte ao depósito da quantia peticionada e com isso fazendo terminar a acção, por inutilidade superveniente da lide
- E em 29/10/1998, idêntica acção fora movida pela A contra os RR, com a mesma causa de pedir sendo a importância peticionada de 1.650.491$00.
- Estas quantia foi igualmente paga pelos 3º e 4º s RR, por depósito e na mesma data, determinando a extinção da instância
Tais factos não foram, de facto, tidos em conta na decisão, sendo de presumir que o não foram por a Mma Juiza lhes não atribuir relevãncia suficiente para decidir o pleito.
De todo o modo e tendo em conta a posição assumida pela A na réplica cremos que deviam ser referidos, já que constituindo suporte da alteração da causa de pedir formulada na réplica.
Na verdade a A veio alegar que eles consubstanciariam abuso de direito, enquanto traduzindo a aceitação da sua responsalidade pelo pagamento das dívidas da sociedade, que nesta acção vieram negar sem embargo de constituir tal comportamento, por si mesmo, a assunção da qualidade de fiadores da mesma.
Se sim ou não eles terão tal significado é o quer iremos ver de seguida.

3ª Questão
A sentença é nula , conforme o disposto no artº 668º, nº1 aln b)e d) do CPC quando não especifique os fundamentos de facto e de direito da decisão ou quando deixe de apreciar questões de que devesse conhecer.
No tocante à primeira causa de nulidade, há que ter em conta que por força do disposto no artº 205º, nº1 da Constituição e 158º, nº 1 do CPC, as decisões judiciais devem sempre ser fundamentadas e a falta de fundamentação constitui, sem a menor dúvida, nulidade.
Contudo, a falta de motivação susceptível de integrar essa nulidade,a aludida no citado artº 668ºnº1 , aln b) é apenas a que se reporta à falta absoluta de fundamentos, quer estes respeitem aos factos quer ao direito, não constituindo tal vício uma fundamentação lacónica, incompleta , deficiente ou errrada, a qual apenas afecta o valor doutrinário e persuasivo da decisão.
No caso , mostram-se descriminados na sentença anulanda os factos tidos por assentes e indicaram-se, ainda que de forma sumária, as razões pelas quais os mesmos nunca poderianm conduzir à procedência do pedido formulado contra os 2ºs a 5ºs RR.
Pode-se discordar dos fundamentos que nela se expressaram , e da interpretação das norma aplicáveis, mas isso tem a ver com o mérito e bondade intrinseca da decisão a acarretar eventual erro de julgamento , que é bem diferente da suscitada nulidade, que logicamente não podemos considerar , de forma alguma, verificada.
O mesmo , porém já não sucede com as questões ligadas ao aventado abuso de direito e da fiança unilateral dos RR por se terem dois deles prestado a pagar dívidas da sociedade para com ela A e para com outro credor.
Com efeito e na réplica , a A veio alterar ou ampliar a causa de pedir, o que sempre lhe seria lícito nos termos do artº273ºdo CPC, pois além de invocar abuso de direito, alegando e documentando que os 3º e 4ºs RR tinham pago voluntariamente dívidas da sociedade, depois de accionados todos eles nos mesmos termos em que o foram nesta acção, constituindo-se, assim, fiadoras da mesma.
Como eles próprios o afirmam na réplica « mesmo que não existisse uma cláusula expressa, como é a cláusula 11ª do contrato de trespasse (...), os RR seriam fiadores visto se terem assumido e comportado como tal »
Deveria , pois , a Mma Juiza debruçar-se sobre essa problemática, o que não fez, pelo que existe, sem dúvida, uma omissão de pronùncia, omissão que consideramos suprida, indo-se analisar adiante as questões jurídicas em que ela se desdobra.

4ª Questão
Vejamos , agora , o que pensar da cláusula 11ª inserta no contrato de trespasse e que a A entende ter o sentido de uma assunção cumulativa pelos outorgantes do contrato de trespasse, sócios da trepassante, de todas as dívidas desta sociedade, ainda que futuras e qualquer que fosse o seu título e natureza desde que respeitantes ao tempo em que ela explorou o estabelecimento de que era dona.
Na douta sentença, decidiu-se , como atrás se disse, que essa obrigação foi, em exclusivo assumida perante a trespassária, na linha da interpretação indicada pelos RR contestantes nos respectivos articulados.
Segundo estes, tal cláusula foi ali inserida por exigência da sociedade trespassária e isto no intuito de se precaver e proteger contra eventuais reclamações de créditos de terceiros relativamente a dívidas constituidas com a exploração do estabelecimento.
E isto porque essas dívidas só não seriam transmitidas quando isso resultasse do contrato, além de que os efeitos destes restringem-se às próprias partes, conforme o princípio do artº 406º ,nº1 do CC
Vejamos.
Diz-se trespasse todo e qualquer negócio jurídico pelo qual seja transmitido definitivamente e inter vivos um estabelecimento comercial como uma unidade ( assim, Pupo Correia, Direito Comercial , 4º ed.183 e Aragão Seia , Arrendamento Urbano, 4ª ed.,531)
Com efeito é a propósito do arrendamento urbano para comércio e industria que o legislador ser reporta a este negócio, para dizer no artº 115º do RAU que no caso de trespasse de estabelecimento comercial, não se torna necessária a autorização do senhorio para a transmissão da posição da arrendatário do titular do estabelecimento, disposição que já constava do artº1118ºdo C.Civil.
Outrossim, é sabido que o passivo que não integra rigorosamente a «universitas juris» em que o estabelecimento se traduz, não pode em regra ser transmitido, sem o consentimento do credor.
Com efeito e ao contrário do que sucede no direito italiano, onde existe uma norma( artº2560ºdo CC) pela qual o adquirente do estabelecimento responde pelos débitos derivados da respectiva exploração e anteriores ao trespasse, sem que o alienante fique liberado, salvo se nisso cconsentirem os credores, nada disso existe no nosso ordenamento, não sendo , pois transmissíveis as dívidas, a menos que nisso concorde o credor , nos termos aplicáveis dos artºs 595º e 596º do CC ( neste sentido os autores e obras já citados ).
Trata–se , de resto de uma orientação perfilhada também pela jurisprudência e segundo a qual , o trespassário apenas assume as dívidas do estabelecimento anteriores ao contrato se as tiver aceite e o credor nisso consentir.
Logo , a inclusão da sobredita cláusula não poderia ser entendida , como uma garantia da trespassária, mas antes a corroboração do princípio de que não haveria uma transmissão de quaisquer dívidas anteriores à escritura, mesmo tendo em conta as excepções da lei no que respeita às obrigações laborais.
É que na verdade existem normas específicas na transmissão de alguns elementos do estabelecimento, que não se restringem ao campo do arrendamento, implicando ainda o sector das relações laborais
De facto e conforme o artº 37º nº1 e 4 do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, então vigente ( Dec. Lei nº 49.408 de 24/11/1969) a posição contratual de entidade patronal transmite-se para o novo empresário em caso de alienação do estabelecimento, ou seja por via do trespasse, tome este o recorte típico de uma compra e venda, como parece ser o caso ( a trespassária pagou pelo trepasse a importância de 1000.000.000$00) ou outro qualquer.
Donde a menção explícita em tal cláusula de que nenhum trabalhador se manteria ligado ao estabelecimento, assumindo a outorgante sociedade toda a responsablidade por quaisquer dívidas incluindo as emergentes da rescisão de tais contratos e assumindo os outorgantes sócios, a título pessoal e solidariamente, entre si , mas subsidiariamente , as ditas obrigações.
A questão que se coloca é , porém , a de saber se com essa estipulação, os 2ºs a 5ºs RR assumiram perante os terceiros credores tal responsabilidade pelas dívidas da sociedade trespassante ou essa vinculação era apenas perante a sociedade trespassária, tendo em conta que os efeitos dos contratos se restringem às partes contratantes.
Nos termos do artº 406º , nº2 do nCCivil, o contrato em relação a terceiros só produz efeitos nos casos e termos previstos na lei.
È evidente que a A é terceiro no que respeita ao trepasse já que nele não interveio.
No entanto , pretende a recorrente que a letra da cláusula 11º implica uma co-assunção de todas as dívidas da sociedade trespassante pelos 2ºs a 5ºs RR com eficácia de protecção reflexa de terceiros, visto segundo alega, ter aderido, ainda que tacitamente a esse acordo, ao exigir-lhes nesta acção o pagamento solidariamente com a sociedade.
È evidente que discordamos , em absoluto, deste entendimento
Antes da mais, não estamos perante nenhuma co-assunção de dívida , mas sim perante uma fiança pois os outorgantes obrigaram-se com aquela cláusula a subsidiariamente responsabilizar-se pelo pagamento das dívidas do estabelecimento.
A fiança, como se sabe é a mais importante e tradicional garantia pessoal das obrigações, enquanto modalidade das garantias especiais, aliás considerada como o protótipo, sendo regulada nos artºs 627º e segs do C Civil, como serão doravante todas as demais que venham a ser citadas.
De facto, reza o dito artº 627º que :
1 – O fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor
2 – A obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o principal devedor
E ficar pessoalmente obrigado significa que o terceiro (fiador) assegura com o seu património ( todo o seu património , em principio ) a satisfação do direito do credor
Por outro lado a referida garantia é uma obrigação acessória da obrigação do devedor, embora de igual conteudo.
Esta característica da acessoriedade é que permite justificar que ela fique subordinada à obrigação principal e que a lei exija que a vontade de prestar fiança deva ser expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal( artºs 628º , 631ºe 632º)
Mas a segunda característica da fiança é sua subsidariedade, referida na lei , através do benefício da excussão prévia ( artº 638º)
Nos termos desta regra , o fiador só responde pelo pagamento da obrigação se e quando se provar que o património do devedor é insuficiente para saldar a obrigação por este contraida.
Coisa diferente é a chamada assunção de dívida, regulada nos artºs 595º e ss.
Como decorre dos ensinamentos de A,. Varela ( Das Obrigações Em Geral, Vol II,7ª ed., 378 e ss) ,a assunção de dívida é a operação através do qual um terceiro (assuntor) se obriga perante um credor a efectuar a a prestação devida por outrem, verificando–se uma co-assunção ou uma assunçãio cumulativa da dívida( também designada por acessão ou adjunção de dívida , ou assunção multiplicadora ou reforçartiva da dívida)quando o assuntor se coloca ao lado do primitivo devedor , mas sem exonerar este, conferindo , por essa forma , ao credor o direito de obter a prestação devida através desse dois vínculos.
È dificel, por vezes, distinguir a fiança da assunção da dívida ou da co-assunção, como de resto se sublinhou no Ac. da R P de 8/05/96 ( CJ, Ano XXI, Tº III, 189) mas no caso em apreço e dos próprios termos usados na estipulação contratual em foco, ou seja a que a responsabilidade dos sócios da trespassante era subsidiária resulta que este se obrigaram como fiadores da mesma e não como co-assuntores das suas dividas
Ora é a própria A que admite na réplica que os RR contestantes foram bastante explícitos em se afirmar fiadores da sociedade trespassante, pelo que nãos entende muito bem que ao mesmo tempo procure ver em tal cláusula uma co-assunção da dívida
Esclarecida esta confusão de conceitos, importa , então averiguar se tal fiança que se apresenta como condicional e genérica, já que dependente da reclamação dos credores à sociedade trespasséria, de dívidas do estabelecimento, não importa de que natureza ou origem presentes ou futuras, desde que atinentes ao tempo anterior à escritura pode beneficiar a A enquanto titular de um crédito de fornecimentos
Ora, como é bom de ver, os 2ºs a 5ºs RR obrigaram-se como fiadores da sociedade 1ª R, mas no âmbito do dito contrato de trespasse, prevenindo , logicamente a eventualidade da trespassária se confrontar e ter de solver dívidas anteriores do estabelecimento trespassado.
Essa fiança foi uma garantia que os sócios da trespassante quiseram dar à trespassária, pelo que ela não pode ter o alcance de garantir os próprios credores do estabelecimento, meros terceiros.
Com efeito há que não esquecer que os contratos apenas vinculam as partes que neles intervieram, a menos que excepcionalmente a lei imponha essa eficácia a terceiros.
`E o que se determina no ar 406ºnº2 do Ccivil, sendo a doutrina que não admite o efeito externo das obrigações amplamente dominante entre nós ( cfr a este propósto o Ac do Supremo de 19/03/2002, CJ /STJ, T.1, 139e e extensa referência doutrinária nele contida)
De facto e no caso em apreço , nem estamos a descortinar que norma legal possa permitir que a A se socorra de tal cláusula para ela própria fazer valer contra os 2ºs a 5ºs RR a fiança que estes acederam a prestar à sociedade trespassária.
Nem faz o menor sentido, com apelo à figura que já explicámos dever rejeitar–se da assunção de dívida , pretender neste caso que a propositura da presente acção traduziria uma aceitação tácita da mesma pela recorrente.
A argumentação da recorrente não é convincente, em suma e, salvo o devido respeito, neste ponto carece o recurso de fundamento bastante.

5ª Questão
Resta, então, indagar se a postura dos 3ºa e 4ºs RR em duas acções anteriores atinentes a dívidas do estabelecimento, inculcava uma clara assunção da qualidade de fiadores da R. devedora gerando uma legítima expectativa da A vir a receber dos mesmos, aliás de todos os sócios , o montante peticionado.
Vejamos.
Como é bem sabido, a fiança brota normalmente de um contrato celebrado entre o fiador e o credor, não prevendo nenhum preceito da lei, como ensinam os autores ( por todos, Pedro Martinez e Pedro Fuzieta da Ponte, Garantias de Cumprimento , 3ª ed., 80 ) que uma pessoa possa assumir posição de fiador e as obrigações daí decorrentes através de uma mera declaração sua.
No entanto , discute-se na jurisprudência se ela pode assumir feição negocial, mostrando-se ela assaz dividida.
Acompanhamos porém o entendimento daqueles autores, ao defenderem que nos negócios unilaterais vigora o príncipio da especialidade, «ex-vi» do artº 457º, princípio que não é compativel com a valoração de situações sem previsão legal, posição também partilhada por Antunes Varela ( v. op. cit. , 487)
Note-se contudo que nada impede que a aceitação da declaração de fiança por parte da parte do credor como declaração negocial que é possa ser tácita, se deduzida de factos que com toda probabilidade a demonstrem.
Ocorre, então, perguntar se alguma declaração foi prestada pelos 2ºs a 5ºs RR senão aquela incluida no apontado contrato de trespasse?
Ora esta declaração destinava-se em exclusivo a conceder condicionalmente essa garantia à trespassária, ou seja , se esta viesse a ser accionada por quaisquer credores por dívidas, entre outras, de fornecedores do estabelecimento.
Certo quer os 3ºs e 4º ºs RR pagaram voluntariamente dívidas da sociedade em duas acções anteriores, contra eles movidas e com invocação da apontada escritura de trespasse.
Só que tal pagamento não nos parece , por si mesmo, revelador de que se tenham assumido perante a A como verdadeiros fiadores
Esta deve ser declarada pela forma exigida pela obrigação principal, ou seja , no caso sem prescrição de forma escrita, por estarmos no domínio de meras transacções comerciais mas a vontade de prestar fiança deve ser expressa, ou seja , sem recurso a presunções , suposições e deduções, como decorre do disposto no artº 217ºnº1em que se destrinçam os conceitos de declaração negocial expressa e declaração negocial tácita.
Será que o simples pagamento na ditas acções postula o reconhecimento da sua qualidade de fiadores de quaisquer outras dívidas da sociedade perante a A nos mesmos termos em que acederam a fazê-lo perante a sociedade trespassária ?
Cremos que não, ou seja, sem outros sinais claros que não foram alegados de que os então ainda gerentes da R ao procederem a esse pagamento se assumiram como fiadores de quaisquer outras dívidas da sociedade 1ª R , não é possivel dar por preenchida a existência de uma declaração expressa de fiança com o alcance daquela que consta da discutida cláusula 11ª da escritura de trespasse.
Logo , também, nesta parte, o recurso não pode proceder

6ª Questão.
Com o devido respeito, não cremos, por último, que a atitude o dosa RR consubstancie um abuso de direito, enquadrável na previsão típica do artº 334º, matéria esta também abordada na réplica e aliás sempre de conhecimento oficioso, por estar em causa um princípio de interesse e ordem publica.
Neste contexto será ilegítimo o exercício de um direito., quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico do direito – artº 334ºcitado
Assim , o exercício de um direito pode ser ilegítimo quando houver manifesto abuso, ou seja quando o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, traduzindo uma gritante ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante ( ª Varela e P. de Lima , C. Civil Anotado , vol.I, 299)
E um destes comportamentos inadmissíveis será o do chamado «venire contra factum proprium».
Só que na caso em apreço , não nos parece que estejamos perante uma hipótese destas.
Já atrás dissemos não haver elementos bastantes para se poder concluir que os pagamentos feitos por dois dos RR demandados para sover dívidas da sociedade 1ª R inculcassem uma assunção da qualidade de fiadores de todos os sócios perante a A por quaisquer dívidas de fornecimentos ao estabelecimento anteriores ao seu trespasse.
E só nessa base , poderiamos entender como contraditória a sua recusa em assumir tal qualidade no presente pleito, por divergente interpretação da cláusula 11ª do contrato de trespasse.
Aliás o «venire contra factum proprium», para ter relevância carece de atingir proporções jurídicamente intoleráveis, como advertem , entre outros autores , Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, vol II, 813 e ª Varela , Das Obr . em Geral , VolI, 9ª ed. 563/567.
No caso em apreço, foi exclusivamente na base de um entendimento interpretativo da citada cláusula 11ª que a A propôs a presente acção, pelo que a defesa da R fundada em argumentos de ordem estritamente jurídica não se nos afigura mera ou mais sofisticada expressão de má fé, iludindo uma eventual confiança fundada pelo pagamento anterior de outras dividas a ela e a um terceiro credor.
O abuso de direito não pode ser banalizado como último recurso para contrariar normas de direito estrito e no caso não estamos a ver que os 2º e 5ºs RR se tivessem de algum modo vinculado a reconhecer perante a A a sua qualidade de fiadores de todas s as dívidas de fornecimentos, anteriores ao trespasse do estabelecimento.
Daí a defesa que eles apresentaram no presente pleito não se apresentar como intoleravelmente ofensiva dos limites impostos pela boa fé.

Nos termos e pelas razões expostas , decide-se:
a) Conceder provimento ao recurso apenas na parte em que a 1ª R foi absolvida , indo pois a mesma condenada no pedido.
b) Confirmar a douta sentença, quanto ao mais ainda que com mais alargada fundamentação jurídica.
c) Condenar a A nas custas, incluindo na 1º instância, e nos termos do artº 449º, nº 2 , aln b) do CPC por não se demonstrar a razão da propositura de uma acção declarativa contra a 1ª R.
Coimbra,