Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1738/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
REPARAÇÕES NECESSÁRIAS À CONSERVAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DO LOCAL ARRENDADO
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 06/21/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 334º , 1031º, AL. B), E 1032º DO C. CIV. ; 63º, Nº 2, DO RAU .
Sumário: I – Compete ao locador assegurar ao locatário o gozo da coisa locada para os fins a que se destina .

II – Os vícios que relevam para se poder considerar como não cumprido o contrato quando a coisa apresentar vício que lhe não permita realizar o fim a que se destina, são os definidos nas als. a) e b) do artº 1032º do C. Civ., isto é, aqueles que datem, pelo menos, do momento da entrega e o locador não provar que os desconhecia sem culpa ; e se o defeito surgir posteriormente à entrega, por culpa do locador .

III – Sendo necessária a demolição do edifício para posterior reconstrução, deve o contrato de arrendamento caducar, por perda da coisa locada, de harmonia com o disposto no artº 1051º, al. e), do C. Civ. .

IV – Nos casos em que exista uma colossal desproporção entre a retribuição que o senhorio recebe pela cedência do locado e o custo das obras que teria que efectuar para lograr obter a recuperação do imóvel e poder o arrendatário continuar a usufruir do locado, deve considerar-se como inaceitável a obrigação de efectuar obras pelo senhorio, ocorrendo um flagrante caso de abuso de direito .

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:
1-1- A Herança, aberta por óbito de A..., representada pela cônjuge meeira, B.., viúva, residente na Rua Daniel Comboni, 124, Viseu, e pelos seus filhos C..., casado com D..., residente na Rua dos Moinhos, n.º 65º, S. Mamede Infesta, Matosinhos e E..., divorciada, residente na Rua Dr. Francisco Vale Guimarães, 16º, 1º Aveiro, propõe a presente acção com processo ordinário, contra a Sociedade “F..., com sede na Rua Miguel Bombarda, n.º13, 4º E, 3510 Viseu, representada pelos sócios G... e H..., pedindo a condenação da R. a efectuar as reparações necessárias à conservação e consolidação do local arrendado, aos fins comerciais a que se destina, ao nível, da estrutura de armação e telhado, das estruturas das paredes e tecto, a eliminação das infiltrações de águas, no locado e ainda a condenação da R. no pagamento de todos os prejuízos, a que deu casa, por falta de obras, no estabelecimento locado, a liquidar em execução de sentença.
Fundamenta o seu pedido, em síntese, dizendo que A... faleceu no dia 13 de Novembro do ano de 2000, tendo-lhe sucedido, na herança, ora A., como seus únicos e exclusivos herdeiros, a sua mulher B... e os filhos do casal C... e E.... Por escritura de trespasse, de 28 de Maio de 1948, lavrada no Cartório Notarial de Viseu o referido A..., adquiriu, a José de Almeida, um estabelecimento comercial de mercearia, vinhos e análogos, instalado no rés-do-chão e cave do prédio urbano, sito na Rua Miguel Bombarda, n.º15, e Rua Paulo Emílio, n.º2, freguesia de Ocidental de Viseu ( hoje, freguesia de Coração de Jesus ). Por escritura pública lavrada no 2º Cartório Notarial de Viseu, em 1 de Março de 1993, a R. adquiriu o prédio onde se situa o referido estabelecimento comercial. Esse prédio foi sofrendo, ao longo dos anos, deteriorações a nível da sua estrutura e construção. Nesse estabelecimento ao nível do r/ch e da cave escorrem águas das chuvas, tais águas infiltram-se pelo telhado, descem ao andar superior do estabelecimento do lado sudoeste e também escorrem para o mesmo estabelecimento águas das chuvas pelo lado noroeste da cave, chegando mesmo a cair aí pingas. Todas as paredes e tecto encontram-se rachadas e com fendas, a estrutura do prédio encontra-se deteriorada e o seu telhado não suporta o peso das telhas e não dá escoamento devido às águas pluviais. Em consequência existem ao nível da instalação eléctrica problemas há anos. No Inverno de 2000 a mercadoria ficou inutilizada devido às infiltrações de água, a arca frigorifica ficou queimada e a máquina registadora teve de ser reparada. Além disso, a A. não pode ter mercadorias em “stock” por que se estragam. A R., apesar de ter sido notificada para isso, nunca efectuou obras no locado.
1-2- A R. contestou, referindo, também em síntese, que não reconhece a A. como arrendatária, pois a mesma nunca pagou quaisquer rendas à proprietária da loja e o arrendamento comercial não se transmite aos herdeiros do arrendatário comercial. Invoca, ainda, a excepção do abuso de direito, alegando que a R. recebe pelo arrendamento da loja onde está instalado o dito estabelecimento 8,23 euros mensais e que a reparação do edifício tem de ser ao nível de todo ele o que importa um custo superior a 249.398, 95 euros, ou de, pelos menos, 99,759,58 euros. Acresce que nunca o arrendatário fez qualquer obras de conservação no local arrendado, sendo que quando adquiriu o trespasse, já o prédio apresentava defeitos e deteriorações.
Termina pedindo a procedência das excepções alegadas, absolvendo-se da instância e, caso assim se não entenda, deve a acção ser julgada improcedente, com a sua absolvição do pedido.
1-3- A A. apresentou réplica, onde responde às excepções, sustentando a sua não verificação, terminando pedindo a condenação da R. como litigante de má fé.
1-4- O processo seguiu os seus regulares termos posteriores, tendo-se proferido despacho saneador, em que se julgou improcedente a excepção de ilegitimidade da A. invocada pela R. e se relegou para a sentença final o conhecimento do abuso de direito, após o que se fixaram os factos assentes e a base instrutória, se realizou a audiência de discussão e julgamento, se respondeu ao questionário e se proferiu a sentença.
1-5- Nesta considerou-se julgar a acção procedente por provada e, consequentemente, condenou-se a R., a efectuar as reparações necessárias à conservação e consolidação do local arrendado, aos fins comerciais a que se destina, a nível da estrutura de armação e telhado e das estruturas das paredes e tecto, a eliminar as infiltrações de águas no locado e no pagamento à A. dos prejuízos referidos de 32 a 35 dos factos provados, a liquidar em execução de sentença.
1-6- Não se conformando com esta sentença, dela veio recorrer a R., recurso que foi admitido como apelação e com efeito devolutivo.
1-7- A recorrente alegou, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões, que se resumem:
1ª- Dado o estado de degradação do edifício onde se encontra o locado, a demolição do mesmo é necessária, pelo que não é possível proceder a qualquer reparação do prédio, razão por que uma vez demolido, desaparece o objecto do arrendamento.
2ª- A razão da existência dos vícios, das deteriorações graves e anomalias calamitosas do edifício, não é da responsabilidade da R., dado que o prédio é muito antigo, sendo construído na sua quase totalidade em madeira, sendo que o tempo decorrido desde a construção leva ao colapso desse material, tendo-se até provado que o prédio se foi degradando ao longo do tempo.
3ª- Apesar da gravidade das deteriorações que o prédio apresenta, a A. só em 1998 é que reclamou junto da R. a existência dessas anomalias, apesar de se verificarem há mais de 20 anos.
4ª- Além disso, há mais de 8 anos que no interior do locado vinham caindo pingas de água e mesmo água da chuva, mas apesar do correspondente conhecimento directo, nunca a A. avisou a R., razões por que violou a obrigação que o art. 1038º al. h) do C.Civil lhe impõe.
5ª- A R. violou também os deveres de arrendatária, uma vez que se encontra provado que nunca fez quaisquer obras no interior do local arrendado ( art. 1038º al. d) do C.Civil e art. 63º nº 2 do RAU ).
6ª- Resultou provado que a A. paga à R. a renda mensal de 8,23 euros e a demolição do prédio e a sua posterior construção importa na quantia de 249.398,95 euros.
7ª- Mesmo admitindo-se a hipótese de que à A. assiste o direito de exigir da R. a realização das obras reclamadas pela A., existe uma enorme desproporção entre o valor da renda e o custo dessas obras ( por lapso referiu-se na conclusão 20ª da minuta de recurso “e o custo das obras de demolição e de construção do novo edifício”).
8ª- Tal desproporção constitui uma clamorosa injustiça para a R./proprietária, violando-se o disposto no art. 334º do C.Civil, existindo um manifesto abuso de direito.
9ª- A A. não só não cumpriu as obrigações legais a que está adstrita enquanto locatária, como a eventual obrigação da locadora em proceder à construção de novo edifício para instalação do local arrendado, ofende, objectivamente, o sentimento e os valores éticos e axiológicos da comunidade social e jurídica.
10ª- A decisão no sentido de que o locador é obrigado a efectuar as reparações na coisa locada, conduz, manifestamente, a um resultado injusto e censurável, atenta a desproporção das obrigações referidas.
11ª- A sentença recorrida violou, entre outros, os arts. 762º nº 2, 1033º als. c) e d), 1038º als. d) e h), 1043º nº 1, 334º do C.Civil e 63º nº 2 do RAU.
1-8- A parte contrária respondeu a estas alegações sustentando o não provimento do recurso e a confirmação da decisão recorrida.
Pede a condenação da R. como litigante de má fé, em multa e em indemnização de 2.500 euros a favor dela, apelada.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivos dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas ( arts. 690º nº1 e 684º nº 3 do C.P.Civil ).
2-2- Após as respostas à matéria de facto da base instrutória, ficaram assentes os seguintes factos:
1- A... faleceu no dia 13 de Novembro do ano de 2000, com última residência habitual na Rua Daniel Comboni, n.º 124, da cidade de Viseu.
2- O referido António Marques não fez testamento, nem qualquer outra disposição da sua última vontade;
3- Tendo-lhe sucedido, na herança, ora A., como seus únicos e exclusivos herdeiros, a sua mulher B... e os filhos do casal C... e E...;
4- Não são conhecidos outros filhos ou herdeiros de António Marques.
5- Por escritura de trespasse, de 28 de Maio de 1948, lavrada no Cartório Notarial de Viseu o referido A..., adquiriu, a José de Almeida, um estabelecimento comercial de mercearia, vinhos e análogos, instalado no rés-do-chão e cave do prédio urbano, sito na Rua Miguel Bombarda, n.º15, e Rua Paulo Emílio, n.º2, freguesia de Ocidental de Viseu ( hoje, freguesia de Coração de Jesus ), a confrontar do nascente com Rua Miguel Bombarda, do poente de norte com Georgina da Conceição da Costa Loureiro, e do sul com Rua Paulo Emílio, inscrito na matriz urbana sob o art.º 44;
6- Sendo que, a partir de 1956, através de autorização marital que foi devidamente registada na CRC, tal estabelecimento ficou a ser gerido e explorado, pela cônjuge meeira, Belmira Maria, que também usa o nome comercial de Belmira Marques;
7- Por escritura pública lavrada no 2º Cartório Notarial de Viseu em 1 de Maço de 93 João José Pires Cabral e G...H... na qualidade de sócios gerentes da sociedade comercial por quotas com a firma “ F...”, pelo preço de 50 mil contos compraram um prédio urbano destinado a habitação sito na Rua Miguel Bombarda, freguesia do Coração de Jesus;
8- O prédio onde se localiza o estabelecimento referido na supra al.e) foi sofrendo ao longo dos anos deteriorações a nível da sua estrutura e construção;
9- Nesse estabelecimento ao nível do r/ch e da cave escorrem águas das chuvas;
10- Tais águas infiltram-se pelo telhado, descem ao andar superior do estabelecimento do lado sudoeste;
11- E também escorrem para o mesmo estabelecimento águas das chuvas pelo lado noroeste da cave;
12- Todas as paredes e tecto do aludido estabelecimento encontram-se rachadas e com fendas;
13- Toda a estrutura do prédio referida em 8) encontra-se deteriorada;
14- O seu telhado não suporta o peso das telhas e não dá escoamento devido às águas pluviais;
15- Em consequência existem ao nível da instalação eléctrica problemas há anos;
16- O dito estabelecimento nas condições em que se encontra não tem as mínimas condições de salubridade e solidez;
17- Por isso mesmo, é que já em 20 de Maio de 1998, a R. foi notificada, judicialmente, no sentido de serem feitas as obras julgadas necessárias, à altura;
18- E cuja notificação foi efectuada à R. em 16/6/98;
19- A R. tem conhecimento do estado do estabelecimento constante dos documentos juntos com os n.ºs 7 a 13 cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
20- A R. recebe pelo arrendamento da loja aonde está instalado o dito estabelecimento 8,23 euros mensais;
21- Para além desta renda a R. recebe 34,27 euros mensais pelo arrendamento de uma outra loja contínua;
22- A R. no dito prédio nunca fez obras ao nível da substituição de toda a cobertura e telhado e da substituição das lajes feitas com traves de soalho e madeira;
23- A... e a A. não fizeram quaisquer obras no interior do dito estabelecimento;
24- Os documentos juntos a fls. 35, 64 e 65, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos;
25- No prédio referido em 8) nunca foram pela R. e anteriores proprietários realizadas obras;
26- Na cave do dito prédio chovem pingas como na rua;
27- Esta chuva torna perigosa a utilização do estabelecimento porque a água cai em cima do contador da luz;
28- No mesmo verificam-se infiltrações por todo o lado;
29- A factualidade descrita em 26 e 28 é devida à factualidade descrita em 14);
30- Os factos descrito de 10 a 14 e 26 a 28 põem em risco a segurança e saúde de quem ali trabalha durante o dia;
31- O tecto e as paredes do dito estabelecimento estão sujos e cheios de humidade;
32- No Inverno de 2000/01 ficou inutilizada a mercadoria;
33- Ficou queimada uma arca frigorifica;
34- Uma máquina registadora teve de ser reparada,
35- A A. devido a chover na cave não pode comprar mercadoria para ter em stock;
36- A A. enviou à Câmara Municipal o documento junto a fls. 35;
37- Há mais de 8 anos que caem pingas no dito estabelecimento;
38- Por cima desse estabelecimento residia Maria dos Anjos;
39- Para resolver a factualidade referida em 37) B... telefona à dita Maria dos Anjos que os resolvia;
40- A senhora referida em 38) deixou de ali residir;
41- Recentemente a chuva começou a cair com mais intensidade e frequência no dito estabelecimento;
42- Antes de 1998 o arrendatário do dito estabelecimento não reclamou a existência dos defeitos, deteriorações e anomalias na estrutura do prédio ao nível da cobertura e assentamento do telhado e ao nível das paredes exteriores e das lajes separadoras dos pisos;
43- Tais factos já se verificam naquele prédio há mais de 2 anos;
44- No dito edifício as estruturas de madeira estão degradadas, apresentando-se partidas as vigas e os soalhos estão podres;
45- Ameaçam ruir e desmoronar-se no interior do edifício;
46- Em consequência é necessário substituir toda a ramação que suporta o telhado, proceder à substituição total e completa do telhado, à demolição e substituição das lajes de madeira que dividem o r/ch do 1º andar e do sótão;
47- As paredes exteriores apresentam rachas;
48- O que impõe a sua demolição e a sua posterior reconstrução;
49- Também o travamento das vigas mestras que suportam toda a estrutura do telhado, pavimentos e soalhos já não oferecem segurança;
50- Em consequência desta factualidade a reparação do dito edifício implica a sua total demolição e posterior reconstrução;
51- O que importa um custo superior a 249.398, 95 euros.---------------
2-3- Na douta sentença recorrida, para o que aqui importa, considerou-se que, no caso vertente, atenta a matéria de facto dada como provada, actualmente, o estabelecimento em causa não serve para os fins a que se destina. Tal estabelecimento não tem as mínimas condições de salubridade nem de solidez, pelo que a necessidade de nele proceder a obras, é evidente. Acrescentou-se que, já depois de proposta a presente acção, a Câmara Municipal de Viseu, após vistoria ao locado e ao prédio em causa, notificou a R. para proceder às obras referidas no doc. fls. 178 e que, no essencial, coincidem com as obras pedidas pela A.. Concluiu-se assim que, quer se entenda que tais obras são ordinárias ou extraordinárias, dúvidas não restam que incumbem à R., sendo certo que esta não prova, apesar de o alegar, que as deteriorações existentes se devem à culpa da A.. Só não haveria incumprimento por parte da R. e, consequentemente, as obras a fazer não seriam da sua responsabilidade, se se verificasse alguma das hipótese a que alude o art.º 1032º do CC.. Ora, a R. não prova nenhuma destas circunstâncias, sendo as obras em questão da sua responsabilidade. A isto acresce a circunstância da R. ter sido notificada em 1998 para proceder as obras em causa não o tendo feito. Por consequência, considerou procedente o pedido, condenando a R. a efectuar as obras peticionadas pela A.
Por sua vez a apelante sustenta que não é possível proceder a qualquer reparação do prédio, razão por que uma vez demolido, desaparece o objecto do arrendamento. Acresce que a razão da existência dos vícios, das deteriorações graves e anomalias calamitosas do edifício, não é da sua responsabilidade, dado que o prédio é muito antigo, sendo construído na sua quase totalidade em madeira, sendo que o tempo decorrido desde a construção leva ao colapso desse material. As graves deteriorações que o prédio apresenta, são também imputáveis à A., visto que só em 1998 é que reclamou em relação à existência dessas anomalias, apesar de se verificarem há mais de 20 anos. Além disso, há mais de 8 anos que no interior do locado vinham caindo pingas de água e mesmo água da chuva, mas apesar do correspondente conhecimento directo, nunca a A. avisou a R., razões por que violou a obrigação que o art. 1038º al. h) do C.Civil lhe impõe. A R. violou também os deveres de arrendatária, uma vez que se encontra provado que nunca fez quaisquer obras no interior do local arrendado. Por fim, defende que a A., ao deduzir a sua pretensão, age com manifesto abuso de direito, já que existe uma enorme desproporção entre o valor da renda e o custo das obras, desproporção que constitui uma clamorosa injustiça para a R./proprietária, violando-se o disposto no art. 334º do C.Civil.
Vejamos:
Não existe qualquer dúvida que o prédio onde se encontra o estabelecimento da A. se encontra totalmente degradado. As partes concordam neste ponto.
Pode-se também, sem dúvida, dizer, que essas obras são de índole complexa, já que impõem a demolição do prédio e a sua posterior reconstrução. O custo deste procedimento é muito elevado, visto que ascende a 249.398, 95 euros ( vide factos provados sob o nº 50 e 51 ).
É também certo que compete ao locador assegurar ao locatário o gozo da coisa locada para os fins a que se destina ( art. 1031º al. b) do C. Civil, diploma de que serão as disposições a mencionar sem menção de origem ). Esta disposição está em sintonia com o disposto no art. 1037º que proíbe o locatário da prática de actos que impeçam ou diminuam o gozo da coisa. Estando o prédio dos autos nas condições de degradação em que está, é evidente que não garante ao arrendatário o gozo pleno da coisa para os fins a que se destina. Por isso, numa primeira abordagem à questão, a senhoria teria que fazer as obras indispensáveis para manter o imóvel em estado de poder corresponder a essa finalidade.
Como consequência da obrigação que impende sobre o locador de garantir o gozo da coisa, a lei considera não cumprido o contrato quando a coisa apresentar vício que lhe não permita realizar, cabalmente, o fim a que se destina ( art. 1032º ). Para os efeitos desta disposição, os vícios que relevam são os definidos na al. a) e b) do artigo, isto é, se o defeito datar, pelo menos, do momento da entrega e o locador não provar que o desconhecia sem culpa ( al. a) ) e se o defeito surgir posteriormente à entrega, por culpa do locador.
Somos em crer que estas hipóteses não serão de considerar no caso dos autos ( e, por isso, não desenvolveremos o tema ), dado que o pedido formulado pela A. nada tem a ver com o não cumprimento do contrato por banda da R., com consequente resolução do contrato.
Voltando atrás, reafirmamos que incumbia à R. a realização das indispensáveis obras para que a arrendatária pudesse fruir plenamente do locado.
Provou-se que, em 20 de Maio de 1998, foi pedida a notificação judicial da R., no sentido de serem feitas as obras julgadas necessárias, à altura, notificação foi efectuada à R. em 16/6/98 ( factos provados sob os nºs 17 e 18 ).
A partir dessa data ( pelo menos ) era obrigação da R. efectuar as ditas obras, repete-se, para que se pudesse desenvolver no locado, plenamente, a actividade comercial que presidiu ao arrendamento. Como as não fez, nos termos do art. 798º, tornou-se responsável pelo prejuízo causado ao arrendatário, concretamente pelos danos que este teve em razão dos factos relatados nos nºs 32 a 35 dos factos provados e que ocorreram no Inverno de 2000/01.
Actualmente, no dito edifício, as estruturas de madeira estão degradadas, apresentando-se partidas, as vigas e os soalhos estão podres. Ameaçam ruir e desmoronar-se no interior do edifício. Em consequência é necessário substituir toda a ramação que suporta o telhado, proceder à substituição total e completa do telhado, à demolição e substituição das lajes de madeira que dividem o r/ch do 1º andar e do sótão. As paredes exteriores apresentam racha, o que impõe a sua demolição e a sua posterior reconstrução. Também o travamento das vigas mestras que suportam toda a estrutura do telhado, pavimentos e soalhos já não oferecem segurança. Em consequência desta factualidade a reparação do dito edifício implica a sua total demolição e posterior reconstrução ( sublinhado nosso - factos provados sob os nºs 44 a 50 -).
Estes factos demonstram, somos em crer, que qualquer reparação parcial, designadamente a pedida pela A., não é tecnicamente viável. Note-se que, para além de se ter provado que a reparação do imóvel implica a sua total demolição e posterior reconstrução, também se provou que as paredes exteriores apresentam rachas, o que impõe a sua demolição e a sua posterior reconstrução, pelo que a mesma conclusão de destruição integral do edifício flui desta factualidade. É que demolindo-se as paredes exteriores, o colapso do imóvel, no seu conjunto, será inevitável. Somos, assim, levados a concluir que a condenação da R. no pedido ( que, recorde-se, consistiu, na condenação da R. em efectuar reparações no edifício ) face a essas circunstâncias provadas, não poderia ter sido proferida.
A factualidade dada como assente exclui, pois, a possibilidade de realização de qualquer obra de conservação no imóvel, dado o grau de degradação a que ele chegou.
Chegados aqui, teremos que perguntar se é obrigação da R. demolir e reconstruir o prédio, para continuar a fruição da A.. Apesar de ser uma questão fora do âmbito do objecto do processo ( âmbito que, como se sabe, se afere pelo pedido e causa de pedir ), diremos que, sendo necessária a demolição do edifício para posterior reconstrução, parece-nos que o contrato caducará pelo perda da coisa locada, de harmonia com o disposto no art. 1051º al. e).
Para o que aqui interessa, apenas importará dizer que o pedido de reparação do imóvel formulado pela A., pelos ditos motivos, não poderá proceder e assim, a acção, nessa parte, terá que ser julgada improcedente.
Mas há mais:
Como se provou, a R. recebe pelo arrendamento do locado a renda de 8,23 euros mensais. O custo das obras ( tecnicamente viáveis ) ascendem a 249.398, 95 euros.
Quer dizer que existe aqui uma colossal desproporção entre a retribuição que o senhorio recebe pela cedência do locado e o custo das obras que teria que efectuar. Não há comparação possível entre o sacrifício patrimonial que um e outro têm que suportar. É abissal a diferença.
Daí que, a nosso ver, caso se pudesse entender ( e já se viu que não se pode ) que a R. teria que proceder às obras, para que a A. pudesse continuar a usufruir do locado, a obrigação de efectuar as obras seria, eticamente, inaceitável, ocorrendo um flagrante caso de abuso de direito.
Com efeito, estabelece o art. 334º que “ é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito ”.
Para que ocorra o abuso de direito, é necessário, pois, que o titular do direito o exerça de forma clamorosamente ofensiva da justiça e dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito. Para o que aqui nos interessa, haverá a salientar que o comportamento do titular do direito será abusivo, quando do pretenso exercício do seu direito resulta apenas, ou sobretudo, uma desvantagem para terceiro. Ou, como se refere, lapidarmente, no Ac. da Relação de Lisboa de 2-2-82 “o abuso de direito abrange o exercício de qualquer direito de forma anormal, quanto à sua intensidade, ou à sua execução de modo a poder comprometer o gozo dos direitos e a criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito, por parte do titular e as consequências que outros têm de suportar”.
Haverá pois que comparar, em concreto, a utilidade derivada do exercício do direito para o seu titular, com as consequências que advêm para os outros do exercício desse direito. Quando estas ultrapassam, em muito, a conveniência do exercício do direito pelo seu titular, existirá o abuso de direito.
No caso dos autos não existe qualquer dúvida que a A., ao vir formular o pedido de reparação e conservação do local arrendado para que possa ser exercida, plenamente, a actividade comercial ( finalidade do contrato de arrendamento ) veio, como já vimos, exercer um direito que lhe é reconhecido por lei. O exercício desse direito, implicaria para a R. a necessidade de fazer uma despesa ( elevada ) de quase 250.000 euros, sendo que recebe de retribuição, pela utilização do locado, o ínfimo montante mensal de 8,23 euros ( 98,76 euros anualmente ). Quer dizer, aquela importância, atinge mais de 2.500 anos, da renda paga pela inquilina !!!
A este propósito o Acórdão da Relação de Lisboa de 11-5-95 ( in BMJ, 442º, 244 ) considerou existir abuso de direito, num caso em que as obras exigidas pelo inquilino atingiam um valor correspondente a 30 anos de renda.
Significa isto que existe uma clamorosa desproporção entre o rendimento proporcionado pelo prédio e o custo das obras de reparação/reconstrução, pelo que a condenação da R. na condenação pedida, com os custos inerentes, chocaria a mais embotada sensibilidade, pelo que consideramos estarmos perante um flagrante caso, de abuso de direito.
A este respeito, diz a voz autorizada do Prof. Antunes Varela que “o que está verdadeiramente em causa nestas situações é o próprio direito do proprietário e consiste em saber até que ponto a exigência da reconstrução da coisa parcialmente destruída ou arruinada excede os encargos normais da propriedade. E a tendência dos tribunais é no sentido de exonerar o locador das despesas excessivas, das reparações que excedam os encargos razoáveis e habituais da propriedade” ( in RLJ 100º, pág. 382).
A orientação jurisprudencial que se conhece vai, precisamente, neste sentido ( entre outros, para além do acórdão já referenciado, os Acs. da Rel. de Lisboa de 17-2-94 in Col. Jur. 1994, Tomo I, pág. 122, e de 25-2-86 in Col. Jur. 1986, Tomo I, pág. 104 ).
Claro que as considerações sobre o abuso de direito não têm aplicação práticas aqui, pela razão já dita, isto é, porque o pedido de reparações efectuadas pela A. terá que improceder. O que se pretendeu sublinhar é que, mesmo que assim não fosse, também tal pedido não poderia ser deferido, em virtude de a respectiva efectivação, constituir um ( flagrante ) caso de abuso de direito.
Apenas poderá proceder o pedido de condenação da R. no pagamento dos prejuízos a que dizem respeito os factos provados sob os nºs 32 a 35, pelas razões acima já referidas.
Sublinhe-se que esta condenação se impõe, pese embora o que disse em relação à necessidade de demolição do imóvel, porque, ao momento a que se referem, não está provado que essa destruição já se impusesse. De resto, pelo facto de o imóvel ter que vir a ser demolido, não exime o locador de cumprir a obrigação a que se refere o art. 1031º al. b) ( a que já nos referimos ), dever que se manterá, enquanto a obrigação locatícia perdurar.
Para terminar, de forma muito breve, e quanto à possível violação da obrigação, pela A., do disposto no art. 1038º al. h) do C.Civil ( que impõe ao arrendatário a obrigação de avisar o senhorio dos vícios da coisa ), diremos que a aplicação da disposição só tem interesse para os efeitos das disposições combinadas dos arts. 1033º al. d) e 1032º al. b), isto é, para uma eventual declaração de incumprimento do contrato por banda do locador, hipótese que não se coloca no caso vertente, como já acima salientámos11 A este respeito referem os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela ( in C.Civil Anotado, Vol. II, 3ª edição, pág. 395 ) que “o aviso a que se refere a alínea h) ( ao art. 1038º ) tem importância, quanto aos vícios da coisa ou do direito, em correspondência do disposto na alínea d) do artigo 1033º. Se o aviso não foi feito imediatamente, o locatário não pode aproveitar-se do disposto no artigo 1032º, quanto ao não cumprimento do contrato, por parte do locador”..
Face à posição que tomámos, é evidente, que não se vislumbra qualquer má fé por banda da R.. Pelo contrário, a sua posição foi, quase na totalidade, aceite no presente recurso. A sua litigância foi, por conseguinte, justificada.
III- Decisão:
Por tudo o exposto:
a) Revoga-se a douta sentença recorrida, absolvendo-se a R. do pedido de condenação da R. em efectuar as reparações necessárias à conservação e consolidação do local arrendado.
b) Mantém-se a condenação da R. no que toca ao pagamento à A. dos prejuízos referidos de 32 a 35 dos factos provados, a liquidar em execução de sentença.
c) Não existem indícios de litigância de má fé, designadamente por banda da R., pelo que não se condena nesse âmbito.
Custas na acção e apelação, pelas A. e R., na proporção do respectivo vencimento.