Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1843/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: FALÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CONFLITO ENTR E OS CRÉDITOS DOS TRABALHADORES E OS GARANTIDOS POR HIPOTECA : PREFERÊNCIA DOS ÚLTIMOS
INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTº 12º DA LEI Nº 17/86
DE 14 DE JUNHO
Data do Acordão: 10/04/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 12º DA LEI Nº 17/86, DE 14 DE JUNHO E ARTºS 749º E 751º, AMBOS DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Os créditos dos trabalhadores por salários em atraso, garantidos por privilégio imobiliário geral (artº 12º da Lei nº 17/86, de 14 de Junho), não preferem sobre o crédito garantido por hipoteca voluntária, em virtude de não ser aplicável àqueles o regime estabelecido pelo artº 751º, mas antes o estabelecido no artº 749º, ambos do Código Civil.
II – A norma do artº 12º da Lei nº 17/86 é inconstitucional quando interpretada no sentido de que o privilégio imobiliário geral nela conferido aos trabalhadores prefere à hipoteca voluntária que garanta os créditos dos bancos recorrentes.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

No âmbito do processo de falência a correr termos pelo 2º Juízo Cível de Coimbra, sob o nº 39/2001, foi, por sentença de 25/07/2002, declarada a falência de A..., com sede no Bairro Industrial da Pedrulha, Coimbra, tendo a mesma sido fixada em 01/07/2001.

Aberto concurso de credores, reclamaram créditos diversos credores, entre eles se contando:

– B..., no valor de 1.247.787,99 Euros (250.159.031 Escudos), proveniente de fornecimentos e cessões de créditos titulados por extracto de conta corrente e juros (fls. 35),
– C..., no valor de 3.810.891,56 Euros (764.015.161 Escudos), sendo o valor de 91.859.168$00 e respectivos juros (72.127.819$00) proveniente de crédito homologado no Processo de Recuperação n.º 767/95 do 1.º Juízo Cível de Coimbra, e o valor de 491.004.957$00 mais o respectivos juros (70.006396$00), o saldo devedor de contrato mútuo concedido à falida pelo ex E... sob a forma de conta corrente, respectivos juros e imposto de selo (fls. 5);
– D..., no valor de 1.435.665,30 Euros (287.825.050$00), proveniente de empréstimos, juros e imposto de selo (fls. 1116);
- e, ainda diversos trabalhadores e o Fundo de Garantia Salarial.

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Foram apreendidos para a massa falida os seguintes bens:


- bens móveis constantes das verbas ns. 1 a 231 do auto de apreensão de fls. 3 a 23 do Apenso C da liquidação do activo;
- imóveis descritos sob as verbas ns. 1 a 9 do auto de fls. 25 a 27;
- veículos descritos sob as verbas ns. 1 a 9 do auto de fls. 29 a 30;
- bens móveis descritos sob as verbas ns. 1 a 7 de fls. 32 e 33.
- a quantia de 2.992,79 €, transferida da execução nº 684/200, 4ª Vara Cível do Porto, 1ª Sec. (fls. 36 do apenso C);
- as quantias de 3.990,38 € e 48,86 €, transferidas da execução nº 747/2000 do 10º Juízo Cível de Lisboa, 1ª Sec..

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Em 28/01/2005 foi proferido despacho saneador/sentença, que procedeu à seguinte graduação de créditos para os bens da massa falida.

a) Do produto da liquidação dos bens apreendidos sairão precípuas as custas e as despesas da liquidação do activo.

b) Do remanescente, dar-se-á pagamento aos credores verificados, pela seguinte forma:

b.1. – Imóvel apreendido sob a verba nº1 do auto de arrolamento (artigos 1219, 1220, 1352 e 1594)

Pelo seu produto se dará pagamento, pela seguinte forma:

1º - créditos emergentes de contrato individual de trabalho e da sua cessação (descritos sob os ns. 36, 83, 85, 91 a 93, 199 a 411, 415 a 425, 461 a 469 e 489);
2º - crédito do FGS (descrito sob o nº 413);
3º - créditos hipotecários do credor D..., nos valores de 78.750.000$00, 38.500.000$00 e 3.152.853$00 (créditos com origem no ex-Banco de Fomento Exterior), até aos valores garantidos e registados para essas garantias, e juros correspondentes a três anos, graduando-se o restante crédito por si reclamado como comum;
4º - crédito hipotecário do credor C... - no valor de 491.004.975$00 e respectivos juros, no valor de 70.006.396$00 -, até aos valores garantidos e registados para essas garantias e juros correspondentes a três anos, graduando-se o restante como crédito comum (note-se que tal credor reclama dois

créditos de origem distinta, sendo que apenas o seu referido crédito no valor de 491.004.975$00 e respectivos juros, proveniente de mútuo concedido pelo ex E.., se encontra abrangido pela hipoteca);
5º - os restantes créditos, porque comuns.

b.2. – Imóvel apreendido sob a verba nº 2 do auto de arrolamento (artigo 1218).

Pelo seu produto se dará pagamento, pela seguinte forma:
1º - créditos emergentes de contrato individual de trabalho e da sua cessação;
2º - crédito do FGS;
3º - crédito hipotecário do credor C..., no valor de 491.004.975$00 e respectivos juros (no valor de 70.006.396$00), até aos valores garantidos e registados para essas garantias e juros correspondentes a três anos, graduando-se o restante como crédito comum;
4º - B...., até ao valor garantido e registado para essas garantias e juros correspondentes a três anos, graduando-se o restante como crédito comum;
5º - os restantes créditos, porque comuns.

b.3. – Imóvel apreendido sob a verba nº 3 do auto de arrolamento (inscritos na matriz sob os artigos 2676 e 2677).

Pelo seu produto se dará pagamento, pela seguinte forma:
1º - créditos emergentes de contrato individual de trabalho e da sua cessação;
2º - crédito do FGS;
3º - crédito hipotecário do credor C..., no valor de 491.004.975$00 e respectivos juros (no valor de 70.006.396$00), até aos valores garantidos e registados para essas garantias e juros correspondentes a três anos;
3 º - os restantes créditos, porque comuns.

b.4. – Demais bens imóveis (verbas ns. 4, 5, 6, 7, 8 e 9) e restantes bens móveis, (incluindo os veículos e quantias em dinheiro apreendidos)

Pelo seu produto, se dará pagamento, pela seguinte forma:
1º – créditos emergentes de contrato individual de trabalho e da sua cessação;
2º - crédito do FGS;

3º – o que vier a sobrar ficará livre para pagamento, rateadamente, aos demais credores, como comuns.

c) Se necessário, proceder-se-á a rateio entre os credores da mesma ordem de graduação e, quando os créditos obtenham plena satisfação deixam de ser considerados nas graduações seguintes.

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Inconformados com a decisão, recorreram os credores C..., B... e D..., tendo concluído as respectivas alegações da forma seguinte:
C...:
1- Decidiu-se na sentença recorrida graduar os créditos emergentes de contrato individual de trabalho e da sua cessação, bem como o crédito do Fundo de Garantia Salarial à frente dos créditos de natureza hipotecária (concretamente, à frente do crédito hipotecário do aqui recorrente).
2- Assim, o pagamento do crédito (de natureza hipotecária) do Banco recorrente seria efectuado pelo produto da liquidação do imóvel apreendido soba a verba nº 1 do auto de arrolamento depois de serem liquidados os créditos dos trabalhadores, o crédito do FGS e o crédito do D...
3- Seguindo a mesma interpretação da sentença recorrida, o pagamento do crédito (de natureza hipotecária) do Banco recorrente seria efectuado pelo produto da liquidação do imóvel apreendido sob a verba nº 2 do auto de arrolamento depois de serem liquidados os créditos dos trabalhadores e o crédito do FGS
4- E ainda segundo a interpretação da sentença recorrida, o pagamento do crédito (de natureza hipotecária) do Banco recorrente seria efectuado pelo produto da liquidação do imóvel apreendido sob a verba nº 3 depois de serem liquidados os créditos dos trabalhadores e o crédito do FGS.
5- O recorrente não aceita esta graduação, porque entende que os créditos emergentes de contrato individual de trabalho e da sua cessação, bem como o crédito do FGS terão e ser graduados depois do seu crédito de natureza hipotecária.
6- Resulta dos autos (cfr. doc. que instruiu a justificação de créditos) que a hipoteca constituída a favor do ex Banco Melo, S.A., foi prestada como garantia do bom pagamento das responsabilidades assumidas pela ora falida, na sequência do empréstimo que lhe foi concedido.
7- Resulta ainda dos autos que a garantia hipotecária incidiu sobre os imóveis onde a ora falida desenvolvia toda a sua actividade industrial.
8- Os trabalhadores da ora falida foram beneficiários da injecção de capital, consubstanciada no empréstimo concedido pelo ex Banco Melo (garantido pela hipoteca constituída).
9- Assim, não é aceitável que os trabalhadores, que beneficiaram efectivamente do financiamento concedido, possam ter uma posição de prioridade sobre o financiador, vendo os seus créditos garantidos por privilégios que relegassem o pagamento do crédito do Banco recorrente (de natureza hipotecária) relativamente aos deles.
10- A regulamentação do Código Civil quanto ao privilégio imobiliário (artº 751º) pressupõe a sua característica de ser sempre especial, pelo que não pode ser aplicável tal privilégio sobre todos os imóveis do devedor.
11- Terá de se recorrer, então, ao disposto no artº 749º, 1 e 2 do C. Civil.
12- Quando a Lei nº 17/86 e a Lei nº 96/2001 atribuiu aos trabalhadores para pagamento dos seus créditos privilégio creditório imobiliário não previu o efeito destas Leis poderem ser interpretadas como estando a conceder uma garantia prioritária sobre so créditos hipotecários – serem pagos sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (artº 686º, 1 do C. Civil), nem certamente quereria tal, se tivesse previsto tal interpretação.
13- Essa interpretação, não só criaria grandes dificuldades à concessão de financiamentos (até desincentivaria esses mesmos financiamentos) como ainda criaria uma medida de consequências negativas para a economia nacional.
14- Face ao exposto, o crédito (de natureza hipotecária) do recorrente deverá ser graduado à frente dos créditos emergentes de contrato de trabalho e da sua cessação, bem como o crédito do FGS, relativamente ao que resultar dos produtos das liquidações dos imóveis apreendidos sob a verba nº 1 do auto de arrolamento (artºs 1219, 1220, 1352 e 1594), sob a verba nº 2 (artº 1218) e soba verba nº 3 (artºs 2676 e 2677).
15- Finalmente, e sem prescindir do referido nos precedentes números e porque se trata de manifesto lapso, importa corrigir o erro existente na sentença recorrida, quando se graduou em 3º lugar os créditos comuns, relativamente ao produto da liquidação do imóvel apreendido sob o nº 3 do auto de arrolamento (inscrito sob os artºs 2676 e 2677), por forma a que esses créditos passem a constar como graduados em 4º lugar, pois é esse o sentido que efectivamente resulta da graduação efectuada, nesta sede, pela sentença recorrida.

B...:
1) Nos presentes autos a recorrente reclamou os respectivos créditos;
2) Tais créditos resultaram de financiamentos e adiantamentos ou entregas em dinheiro efectuados pela recorrente a favor da falida, no âmbito de um processo de recuperação:
3) Pelo que gozam os mesmos de privilégio mobiliário geral, devendo ser graduados antes de qualquer outro crédito;
4) A decisão recorrida não teve em conta tal privilégio, violando o disposto no artº 65º e 200º do CPEREF;
5) Por outro lado a decisão recorrida reconheceu que os créditos emergentes do contrato individual de trabalho, decorrentes quer de remunerações quer de indemnização por antiguidade, gozam de privilégio imobiliário e mobiliário geral e graduou tais créditos em primeiro lugar relativamente aos bens móveis e imóveis.
6) Ora, pese embora os créditos emergentes de remunerações gozem de privilégio imobiliário e mobiliário geral, tal situação já não se verifica relativamente aos créditos emergentes de indemnização por antiguidade.
7) Na verdade, o nº 4 da Lei nº 96/2001, de 20 de Agosto, salvaguarda expressamente os privilégios anteriormente constituídos, sendo que tais privilégios têm direito a ser graduados antes dos privilégios emergentes de indemnização por antiguidade.
8) De qualquer modo e mesmo que assim não se entendesse, o que só por mera hipótese se admite, certo é que a “retroactividade” prevista no artº 4º da Lei nº 96/2001 é inconstitucional.
9) Pois que, a entender-se que o nº 4 da Lei nº 96/2001 permite que os privilégios emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação não abrangidos pela Lei nº 17/86 se sobrepõem aos privilégios anteriormente constituídos com direito a ser graduados antes da entrada em vigor da Lei nº 96/2001 viola expressamente além do mais o disposto no nº 3 do artº 18º da CRP;
10) Inconstitucionalidade que expressamente se arguiu.
D...:
1. O recorrente (por haver sucedido na posição do Banco de Fomento Exterior) tem hipoteca em primeiro grau sobre o imóvel apreendido sob a verba nº 1 do auto de arrolamento (artºs 1219,1220, 1352 e 1594);
2. A hipoteca constituída a favor do D..., está registada pelo que produz efeitos em relação à massa falida e a terceiros, nomeadamente quanto aos outros credores reclamantes que concorrem sobre o referido imóvel – artº 687 do C. Civil;
3. A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo – nº 1 do artº 686 do C. Civil.
4. Assim, o direito de crédito do credor hipotecário relativamente a determinado imóvel só cede perante credores que disponham de algum privilégio imobiliário especial ou prioridade de registo.
5. Os privilégios estabelecidos no Código Civil são sempre especiais – nº 3 do artº 735 do Código Civil.
6. Só os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores – artº 751º do C.C.
7. Dos privilégios, só os especiais, porque envolvidos de sequela, se traduzem em garantia real de cumprimento de obrigações, limitando-se os gerais a constituir mera preferência de pagamento.
8. Os direitos de crédito dos trabalhadores emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação reclamáveis em processos de falência, segundo as Leis nºs 17/86 de 14 de Junho e 96/2001, de 20 de Agosto, gozam em regra, de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário geral.
9. O privilégio imobiliário geral incide sobre os imóveis, e constitui-se aquando da constituição do direito de crédito a que se reporta, embora a sua eficácia dependa e ocorra com o respectivo acto de penhora.
10. As Leis nºs 17/86 e 96/2001 não contêm normas reguladoras do conflito entre o privilégio imobiliário geral garantia de direitos de créditos a que se reportam, da titularidade de trabalhadores, e os direitos de hipoteca garantia de direitos de créditos de outrem sobre os mesmos bens.
11. Os privilégios imobiliários gerais não incidem sobre bens certos e determinados, pelo que não funciona a sequela que é própria dos direitos reais de garantia, pelo que não passam de meras preferências legais de pagamento.
12. A lacuna criada pelas Leis nºs 17/86 e 96/2001 não podia ser suprida por via da aplicação, na espécie, do disposto no artº 751º do C. Civil, porque este normativo se reporta a privilégios imobiliários especiais, cuja estrutura é essencialmente diversa da dos privilégios imobiliários gerais.
13. A ausência de sequela, implica que se impõe ao intérprete recorrer à disciplina dos privilégios mobiliários gerais para colmatar a lacuna relativa aos privilégios imobiliários gerais (artº 10º, nº 2, do C. Civil).
14. A lacuna deixou de existir devido à norma interpretativa constante do Dec-Lei nº 38/03 de 8 de Março, por força da qual o disposto no artº 751º do C- Civil só se aplica a privilégios imobiliários especiais.
15. A decisão recorrida fez errada interpretação do disposto nos artºs 10º, 686º, 687º, nº 3 do 735º e 748º do C. Civil.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Vamos apreciar simultaneamente os recursos dos C... e D..., por versarem, essencialmente, sobre a mesma questão, que consiste em saber se: os créditos emergentes de contrato individual de trabalho e da sua cessação e o crédito do Fundo de Garantia Salarial deverão ser graduados depois dos créditos dos recorrentes, porque garantidos por hipoteca.

Como vimos, os créditos dos trabalhadores e o crédito do Fundo de Garantia Salarial foram graduados primeiro do que os créditos dos recorrentes, não obstante estes estarem garantidos por hipoteca constituída e registada sobre alguns imóveis.
A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (artº 686º, nº 1, do Código Civil – diploma a que pertencerão os restantes normativos citados sem menção de proveniência).

O privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros (artº 733º).
Podem ser mobiliários e imobiliários.
Os mobiliários são gerais se abrangem o valor de todos os bens móveis e especiais se compreendem só o valor de determinados bens móveis.
Os privilégios imobiliários estabelecidos no Código Civil são sempre especiais (cfr. artº 735º).
Depois da entrada em vigor do Código Civil, leis especiais instituíram vários privilégios imobiliários gerais (v. g. Decreto-Lei nº 512/76, de 16 de Junho, Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, e Lei nº 17/86, de 14 de Junho).
No entanto, só os especiais, porque envolvidos de sequela, se traduzem em garantia real de cumprimento de obrigações, limitando-se os gerais a constituir mera preferência de pagamento.
O privilégio geral não vale contra terceiros titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas por eles abrangidas, sejam oponíveis ao exequente (artº 749º, nº 1).
Sobre a solução do conflito entre os privilégios imobiliários especiais e os direitos de terceiro rege o artº 751º, segundo o qual os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores.
Os diplomas que estabeleceram os privilégios imobiliários gerais no regulam o respectivo regime jurídico. Por isso, tem a doutrina (v. Profs. Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 5ª ed., pág. 824, e Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, 2º Vol., pág. 500/501) entendido que se deve aplicar aos privilégios imobiliários gerais o regime estabelecido no Código Civil para os privilégios mobiliários, definido no artº 749º, visto que, dada a sua generalidade, não são direitos reais de garantia nem sequer verdadeiros direitos subjectivos, mas tão só preferências gerais anómalas.
Ora, se aos privilégios imobiliários gerais se deve aplicar o regime estabelecido no artº 749º, tem de se concluir que está afastada a aplicação do regime estabelecido no artº 751º para os privilégios imobiliários especiais.

Neste sentido vai a jurisprudência maioritária dos nossos tribunais superiores (v. g. Acs. do S.T.J. de 13/01/2005, P. 04B4398, de 26/10/2004, P. =4ª2875, de 24/06/2004, P. 04B1560, e de 22/06/2004, P. 04ª1929, in www.dgsi.pt, de 27/06/2002, CJ, T2-146, de 25/06/2002, CJ, T2-135, e da R.C. de 28/0672005, P. 1334/05, e de 17/05/2005, P. 1219/05, in www.dgsi.pt).
A Lei nº 17/86, de 14 de Junho (conhecida por Lei dos Salários em Atraso), dispõe, no artº 12º, na parte que aqui interessa:
1 – Os créditos emergentes de contrato individual de trabalho regulados pela presente lei gozam dos seguintes privilégios:
a)…
b) Privilégio imobiliário geral.
2 - …
3 – A graduação dos créditos far-se-á pela ordem seguinte:
a)…
b) Quanto ao privilégio imobiliário geral, antes dos créditos referidos no artº 748º do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à segurança social.
Tratando-se de privilégio imobiliário geral, o mesmo não prefere, pois, sobre crédito que esteja garantido por hipoteca.
Por isso, no presente caso, os créditos dos trabalhadores (emergentes de contrato individual de trabalho e da sua cessação) não preferem sobre as hipotecas dos recorrentes.
A entender-se de outro modo, aquela norma (artº 12º) seria inconstitucional.
Assim o tem entendido para casos semelhantes o Tribunal Constitucional.
Com efeito, na sequência dos seus Acs. nºs 109/2002, 128/2002 e 132/2002, através do Acórdão nº 362/02 (D.R., 1ª S., de 16/10/2002), declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma tributária segundo cuja interpretação o privilégio imobiliário geral da Fazenda Pública prefere à hipoteca nos termos do artº 751º.
E, na sequência dos seus Acs. nºs 160/00 e 193/02 e decisão sumária nº 67/02, através do Acórdão nº 363/02 (D.R., 1ª S., de 16/10/2002), declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos artºs 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, e 2º do Decreto-Lei nº 512/76, de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à segurança social prefere à hipoteca nos termos do artº 751º.
E isto é assim porque as normas, nas referidas interpretações, violam “o princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artº 2 da Constituição da República. Esse princípio postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias, ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar. Ora, tendo-se por indiscutível que o legislador pretendeu dar alguma preferência aos créditos da segurança social (…), o certo é que sempre se há-de perguntar que segurança jurídica, constitucionalmente relevante, tem o cidadão perante uma interpretação normativa que lhe neutraliza a garantia real (hipoteca) por si registada, independentemente de o ter sido em data posterior ao início da vigência das normas em sindicância”.
E acrescenta-se mais adiante. “O registo predial tem uma finalidade prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas – que, em certa perspectiva, possam afectar a segurança do comércio jurídico imobiliário”.
Assim, tem de se concluir pela inconstitucionalidade da norma do artº 12º da Lei nº 17/86, quando interpretada no sentido de que o privilégio imobiliário geral nela conferido aos trabalhadores reclamantes prefere às hipotecas de que gozam os recorrentes.

É certo que o artº 377º do Código do Trabalho (aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto) veio conceder privilégio imobiliário especial aos créditos emergentes de contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes aos trabalhadores, sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.
Simplesmente aquele preceito não tem aqui aplicação.
Com efeito, desconhece-se se os prédios sobre que incidem as hipotecas eram aqueles onde os trabalhadores reclamantes dos créditos laborais

prestavam a sua actividade.
Além disso, quando o mesmo preceito entrou em vigor (01/12/2003) já a falência tinha sido decretada (25/07/2002). Ora, produzindo-se os efeitos decorrentes da falência no momento em que ela foi decretada (cfr. artºs 147º e ss. do CPEREF), todas as eventuais alterações posteriores serão irrelevantes, de acordo com o disposto no artº 12, nº 1, do Código Civil.

O que acabou de se dizer para os créditos dos trabalhadores tem inteira aplicação ao crédito do Fundo de Garantia Salarial, uma vez que os créditos desta entidade gozam de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário geral, sendo graduados imediatamente a seguir à posição dos créditos dos trabalhadores de acordo com a graduação estabelecida no artº 12º da atrás referida Lei nº 17/86, na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei nº 221/89, de 5 de Julho e pela Lei nº 118/99, de 11 de Agosto (cfr. artº 6º do Decreto-Lei nº 219/99, de 15 de Junho, com a alteração que lhe foi introduzida pelo Decreto-Lei nº 139/01, de 24 de Abril).

Por isso, terão os recursos que ser providos, alterando-se a graduação de créditos em conformidade.
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Recurso da B....
Com o presente recurso pretende a recorrente que os créditos que reclamou resultaram de financiamentos e adiantamentos ou entregas em dinheiro efectuados pela recorrente em favor da falida, no âmbito de um processo de recuperação, gozando, por isso, de privilégio mobiliário geral, devendo ser graduados antes de qualquer outro crédito.
Observa-se, no entanto, da reclamação de créditos (de que se encontra fotocópia autenticada de fls. 101 a 105) que a ora recorrente se limitou a invocar a preferência derivada da hipoteca sobre o prédio urbano identificado sob a verba nº 2 do auto de arrolamento, não invocando, portanto, o referido privilégio mobiliário geral.
Trata-se, portanto, de uma questão nova, que não foi suscitada na 1ª instância, pelo que não foi exercido o contraditório sobre a mesma, nem tratada na sentença.


Ora, os recursos visam alterar as decisões judiciais (cfr. artº 676º, nº 1, do Código de Processo Civil) e não produzir decisões judiciais ex novo.
Por isso, não sendo tal questão de conhecimento oficioso, está este Tribunal da Relação impossibilitado de dela conhecer, por, em princípio, apenas se debruçar sobre questões suscitadas na 1ª instância e não sobre questões novas.
Improcede, assim, o recurso, por impossibilidade de conhecimento do seu objecto.
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Em consequência do atrás exposto, na graduação dos créditos em concurso, e relativamente aos imóveis apreendidos sob as verbas nºs 1, 2 e 3 do auto de arrolamento, há que graduar primeiro os créditos dos recorrentes garantidos por hipoteca e só depois os créditos dos trabalhadores e do Fundo de Garantia Salarial, mantendo-se, em tudo o mais, a graduação efectuada na sentença recorrida.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em:
A) - Negar provimento ao recurso da recorrente B..., condenando-a nas respectivas custas.
B) - Dar provimento aos recursos dos recorrentes C... e D..., procedendo, substitutivamente, à graduação de créditos, relativamente aos imóveis apreendidos sob as verbas nºs 1, 2 e 3, pela forma atrás exposta, nessa medida se revogando a sentença recorrida.
Custas destes recursos pela massa falida.