Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3452/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLIVEIRA MENDES
Descritores: CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES
DESCRIMINALIZAÇÃO
Data do Acordão: 12/15/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1º, 2º, 28º E 29º, DA LEI 30/00, DE 29.11 E 40º, DO DL 15/93, DE 22.01
Sumário: O consumo, a aquisição e a detenção de estupefacientes para consumo próprio, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante 10 dias, constitui contra-ordenação, e não crime.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra.

No processo comum colectivo n.º 597/03, do 2º Juízo da comarca da Figueira da Foz, após a realização do contraditório foi proferido acórdão que absolveu o arguido A..., com os sinais dos autos, dos crimes de passagem de moeda falsa, previsto e punível pelo artigo 265º, n.º1, alínea a), do Código Penal, e de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 21º, n.º1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Mais foi o arguido declarado autor de factos correspondentes ao crime de consumo de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 40º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, tendo sido daquele crime absolvido por inimputável, sem imposição de qualquer medida de segurança.
Interpôs recurso o Digno Procurador da República, sendo do seguinte teor a parte conclusiva da respectiva motivação:
1. Da motivação de facto resulta ter o Tribunal apreendido estarmos perante um cidadão com um quadro de esquizofrenia paranóica e síndroma de dependência de opiáceas e que tal psicopatologia condiciona-lhe as capacidades pessoais de “execução, discernimento e desempenho global, com alterações delirantes e alucinações auditivas” (alíneas j) e a). Daí se concluir estar afastada a hipótese de estarmos perante um arguido com imputabilidade diminuída (art.104º, do C. Penal), uma vez que das alíneas f), g) e j) se conclui que, à data dos factos, sofria o mesmo da psicopatologia mencionada (de que continua a padecer), “não devendo impressionar a coerência do discurso do arguido e a aparente integridade psíquica subjacente” pelas razões invocadas a fls.408/409 do acórdão e de onde se conclui que “fora das crises ou fases agudas a esquizofrenia não é incompatível com o uso aparentemente íntegro das faculdades intelectuais e de um discurso coerente” pelo que das suas declarações não sai “beliscado” o teor do relatório médico-psiquiátrico de fls.287 a 291.
2. Não havendo razões para renovar as prova, a apreciação diversa dos factos atrás mencionados não resulta dos depoimentos produzidos ou documentos juntos aos autos, mas da concreta indagação daqueles no preenchimento dos normativos jurídicos próprios que, salvo melhor opinião, são enquadráveis no art.25º, alínea b), do DL 15/93, de 22/01 e 91º, n.º1, do C. penal, com as consequências que adiante se explanarão.
3. Sendo uma evidência que o arguido não foi interceptado e detido a vender haxixe ou outro produto estupefaciente que, apesar de residente em Coimbra é natural desta cidade e aqui anteriormente referenciado como ligado ao consumo de estupefacientes, não deveria ser o simples facto de não ter na sua posse instrumentos de corte e pesagem da “droga” que indicia que haxixe era apenas para o seu consumo.
4. Desde logo, não há incompatibilidade entre o facto daquele ser consumidor ou toxicodependente e de vender estupefacientes, pois como resulta do respectivo certificado de registo criminal do Antero Alves se é certo que aquele teve condenações anteriores por crimes de consumo de estupefacientes e contra o património, não é menos certo que já teve condenações em de prisão por tráfico de produtos desta natureza (vide fls.123 e 124). Nunca trabalhando de forma continuada, vivendo de uma magra pensão e tendo que ser auxiliado pela associação “Sol Nascente” dado padecer de sida, não deixou porém e, de acordo com o acórdão, de pagar pelo “haxixe” e duma assentada só a quantia de 300 euros (mais de 60.000$00).
5. Vivendo só, não deixava de pagar quarto arrendado e, se é verdade que declarou “arrumar carros” em Coimbra e de onde obteria proventos económicos, certo é que nada se apurou em concreto sobre a veracidade de tal factualidade (onde, em que tempo e que circunstâncias) e sobre os maiores ou menores rendimentos assim conseguidos. Não deixa de ser curioso que, havendo neste particular só a versão do arguido (não foram sequer apresentadas testemunhas de defesa, ainda que meramente abonatórias, deste ou de qualquer outro quadro social e pessoal), não havendo uma única referência o Antero, em todo o processo, sobre “onde e a quem adquiriu o estupefaciente”, nem esclarecendo nada sobre a razão porque é que trazia vinte gramas no bolso quando foi detido e referiu “consumir” apenas entre 3 a 5 gramas diárias” (fls.33), o Tribunal se apressasse a concluir que o mesmo é “um grande consumidor que apenas trazia consigo uma pequena porção”.
6. O Tribunal recorrido refere que, por força do artigo 2º, n.º 2, da Lei n.º 30/2000, de 29/11 (que fixa o consumo diário individual para dez dias com a quantidade máxima dentro da qual existe apenas ilícito contra-ordenacional de mero consumo), há que fazer uma interpretação restritiva do art.28º daquela lei descriminadora no sentido de que, apenas o artigo 40º, n.º1, do Decreto-Lei n.º 15/93, foi revogado, deixando em vigor o seu número 2, pelo que embora a quantidade supere largamente as doses individuais de dez dias, nunca haverá crime de tráfico de estupefacientes, para situações que não integrem inequivocamente actos específicos de comércio ou venda. O art.40º, n.º2, era assim delimitador dos tipos dos arts.21º e 25º, reduzindo-os a esta específica natureza, de acordo com a congruência mínima do sistema e o espírito da Lei n.º 30/2000.
7. Discorda-se de tal posição, primeiro porque se fosse essa a intenção do legislador, devia transparecer da própria Lei n.º 30/2000 uma revogação parcial do teor literal dos arts.21º e 25º do DL 15/93 (que ficariam limitados aos tais actos de venda), o que não sucede, depois porque introduzido o art.2º, n.º 2, da Lei n.º 30/2000, o período de dez dias, se manteve a Portaria n.º 30/2000 ou legislação regulamentar à sua revogação e onde se diz claramente, no seu preâmbulo, que a definição aí vigorante para a dose média individual diária de plantas ou substâncias constantes de tal tabela, constituem elemento de particular importância para a aplicabilidade do n.º 3 do art.26º e n.º 2 do art.40º daquele diploma legal.
8. Uma coisa é saber se a revogação do art.40º, do DL 15/93, de 22/01, por força do art.28º, da Lei n.º 30/2000, é “tout court” ou, se pelo contrário, o n.º 2 daquele art.40º se mantém em vigor (devendo o normativo do art.28º ser interpretado restritivamente) e outra é uma interpretação extensiva, de modo a que aquelas normas saindo dos quadros do sentido literal e do contexto da lei, se sobreponham ao escopo dos arts.21º e 25º, do DL 15/93, e deixem de encontrar nas definições deste artigos juízos de valor atendíveis ao momento da feitura da lei da “droga” ao espírito do legislador.
9. Uma interpretação actualista, por mais vantajosa que se apresente aos olhos de quem a tem, não pode ser um meio de criar “direito” e onde as diversas situações previstas deixam total ou parcialmente de ter alguma correspondência verbal, sob pena de se tratar de uma interpretação de tal modo extensiva e imoderada que deve ser considerada proibida em direito penal.
10. Estamos perante uma situação concreta de tráfico de menor gravidade (art.25º, alínea b), do DL 15/93), a que cabe apenas pena de prisão até dois anos ou multa, não pela quantidade das plantas, mas pela qualidade destas, pelas circunstâncias e modalidade da acção e aqui vemos claramente que o legislador introduziu factores de redução de responsabilidade criminal moderadoras das quantidades e diferenciadoras da relevância concreta de cada tipologia de conduta. A maleabilidade do sistema aqui traduzida e separando o grande traficante dos pequenos “dealers”, ainda que ocasionais, encaixa bem, a nosso ver, na figura e conduta concreta do Antero, não sendo possível enquadrá-la no traficante consumidor face ao teor do art.26º, n.º3, do DL 15/93 (com referência ao art.2º, n.º 2, da Lei n.º 30/2000 e Portaria n.º 94/96, de 20/03).
11. Perante as regras do art.71º, do CP, na determinação da pena mostrar-se-ia adequada, em nossa opinião, a pena de quinze meses de prisão, se o arguido fosse imputável criminalmente, não devendo optar-se por pena não detentiva dada a natureza do ilícito, antecedentes criminais, dependência aditiva concreta e perigo de repetição da conduta.
12. Subsiste receio de repetição de factos da mesma espécie e que, dada a sua probabilidade e facilidade, o Antero Alves foi considerado como apresentando perigosidade social (fls.290), sendo que só a medida de tratamento em comunidade terapêutica estruturada se evidencia, do ponto de vista médico-psiquiátrico, como recomendável para o “equilíbrio da esquizofrenia e abstinência continuada de opiáceas” (fls.291) – sem prejuízo do seu acompanhamento posterior e integração em ambiente adequado com programa terapêutico pré-estabelecido – parece-nos que a mesma deverá ser decretada nos termos dos arts.20º, 91º, n.º1 e 92º, n.ºs 1 e 2, do CP.
13. Considerando a situação pessoal e personalidade daquele (que embora ciente da sua doença e da necessidade do seu “controlo” médico, nada fez além da alegada auto-medicação (?) desde o último internamento em Março de 1990!) a natureza e gravidade do ilícito, o forte receio de repetição de actos delituosos idênticos, parece-nos já não estarmos perante uma “bagatela” penal e os princípios de proporcionalidade, adequação e necessidade imporem o seu internamento e tratamento compulsivo nos termos atrás mencionados e em estabelecimento adequado.
14. Ao não ter aplicado tal medida de segurança e integrado os factos como tráfico de estupefacientes em pequena quantidade, violou o Tribunal recorrido, salvo melhor entendimento, o disposto nos arts.21º e 25º, alínea b), do DL 15/93, conjugados com os arts.20º, 71º, n.ºs 1 e 2, 91º, n.º 1 e 92º, n.ºs 1 e 2, do C. Penal.
Com tais fundamentos, no provimento do recurso, pretende o Digno Magistrado recorrente se considere verificado o crime previsto e punível pelo artigo 25º, alínea b), do Decreto-Lei n.º 15/93, com referência ao artigo 21º e tabela IV anexa, conjugado com a Portaria n.º 94/96 e o artigo 2º, n.º 2, da Lei n.º 30/2000, e, consequentemente, nos termos dos artigos 91º, n.º1 e 92º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, dada a perigosidade social do arguido e o perigo de repetição de factos da mesma natureza, se aplique ao arguido, enquanto inimputável, a medida de segurança de internamento para tratamento da dependência opiácea e controlo da esquizofrenia de que padece.
O recurso foi admitido.
Na contra-motivação apresentada o arguido pugna pela improcedência do recurso.
Igual posição foi assumida pelo Exm.º Procurador-Geral Adjunto.
Colhidos os vistos e realizada a audiência cumpre decidir.
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Delimitando o âmbito e o objecto do recurso, os quais nos são dados pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, verifica-se que aquele se circunscreve ao reexame da matéria de direito, sob a alegação de que os factos perpetrados pelo arguido devem ser qualificados como integrantes do crime de tráfico de estupefacientes e, por via disso, sendo aquele inimputável, com perigosidade, deve o mesmo ser sujeito a medida de segurança de internamento.
É do seguinte teor a decisão proferida sobre a matéria de facto (factos provados):
«a) Na última semana de Maio de 2003, o arguido dirigiu-se à Rua Direita, em Coimbra, onde adquiriu um bloco de haxixe com peso superior a 134,686 grs., que destinava ao seu próprio consumo, e por ele pagando 300,00 €;
b) De posse desse haxixe, levou-o para a sua residência, na Rua António Vasconcelos, 85, quarto n.º 8, em Coimbra, e ali o guardou na sua mesinha de cabeceira, dele retirando porções para consumir;
c) Em 31/05/2003, cerca das 17.40h, na posse de um pedaço de haxixe com 21,088 grs., retirado daquele bloco, e de duas notas de banco com o valor facial de 50,00 € cada, contrafeitas mediante impressão policromática de jacto de tinta e como mesmo número de série M40450920709, o arguido dirigiu-se ao Casino Peninsular, na R. Bernardes Lopes, Figueira da Foz, onde já tinha o hábito de jogar na sala de máquinas de jogo, sendo que uma vez ali, e apesar da existência de máquinas que aceitavam notas, foi à caixa e trocou-as a ambas por fichas, uma de cada vez, indo com elas jogar nas máquinas;
d) Tendo suspeitado da autenticidade das notas o director de jogos do casino chamou a PSP, e na sequência da comparência desta foram apreendidos ao arguido, além do 21,088 grs., de haxixe, 18,00 € em notas e moedas, bem como mais tarde, em 02/06/2003, no quarto do arguido e ainda na mesinha de cabeceira, o restante bloco de haxixe, com 113,598 grs.;
e) Ao tempo o arguido dedicava-se a arrumar automóveis num parque de estacionamento em Coimbra e era consumidor habitual de haxixe;
f) O arguido padece de esquizofrenia paranóide e síndrome de dependência de opiáceos, em ambiente controlado, sendo igualmente portador de SIDA, e tem uma história pessoal e familiar conturbada, que prejudicou o desenvolvimento das suas capacidades psíquicas. Por dificuldades económicas dos progenitores viveu com uma tia e madrinha, no Luso, até aos 7 anos de idade, altura em que veio com os pais viver para a Figueira da Foz, numa pensão que era o local de trabalho daqueles. O pai era alcoólico e batia na mãe, tendo falecido ao 40 anos de idade por cirrose hepática e ela falecido cerca dos 60 anos, com neoplasia gástrica. Frequentou a escola até aos primeiros anos do ensino secundário, sempre contrariado, fugia de casa com frequência e começou a fumar, sendo após 1974 que tomou contacto com drogas, começando a fumar liamba e haxixe. Cerca dos 20 anos começou a fumar heroína, que pouco depois já usava por via endovenosa, fazendo também consumos de alucinogéneos e desde então apresentando alterações psicóticas recorrentes, fazendo medicações intermitentes, mais regulares nos últimos anos. Nos primeiros anos de consumo apenas parou por uma vez, sem acompanhamento e por pouco tempo. Em 2000 iniciou um programa de metadona no CAT de Coimbra, que seguiu durante cerca de ano e meio;
g) Teve o seu primeiro internamento no Hospital Sobral Cid em Janeiro de 1983, com quadro de delírios persecutórios, alucinações auditivas e cinestésicas e embotamento afectivo, e após medicado teve alta com diagnóstico de esquizofrenia. Foi de novo internado em Janeiro de 1985, com sintomatologia semelhante, e foi-o de novo em Março de 1990, mantendo o quadro clínico, mas principalmente pelas alterações decorrentes da dependência de drogas. Ao tempo dos factos não tinha acompanhamento médico continuado, auto administrando-se medicação para controlar as alucinações auditivas, que mantinha. Vinha a ser apoiado pela associação “Sol Nascente”, que lhe prestava auxílio material, facultava medicação para a SIDA, acompanhava a consultas de seguimento, prestava apoio médico pontual e o orientava em projecto pessoal de reintegração social;
h) Vivendo da sua magra pensão, dos referidos apoios e das quantias obtidas a arrumar automóveis, o arguido nunca trabalho de forma continuada, tendo estado preso diversas vezes. Por decisão de 02/12/1987 foi condenado, por crime de tráfico de estupefacientes, em três anos de prisão efectiva, a partir de então iniciando percurso que lhe determinou condenações diversas por crimes de tráfico-consumo e consumo de estupefacientes e contra o património. À data dos factos estava a terminar um período de cinco anos de liberdade condicional;
i) No âmbito deste processo sendo o arguido inicialmente colocado em prisão preventiva, essa medida foi em 16/03/2004 substituída por internamento preventivo, que se vem executando no Centro Psiquiátrico de Recuperação de Arnês, onde é visitado ocasionalmente pelas irmãs;
j) Mesmo não tendo os factos sido praticados em fase aguda da doença, esta condiciona-lhe alteração das capacidades pessoais de execução, discernimento e desempenho global, com deterioração da avaliação crítica face à evolução clínica e ao uso de drogas; sendo deficiente a capacidade de entender e avaliar a ilicitude da sua conduta e agir em conformidade com essa avaliação, acrescendo que o seu quadro lhe facilita a repetição de tais actos;
k) Actualmente mostra-se consciente e orientado, com humor estável mas sinais ligeiros de ansiedade, sem agressividade marcada, tendo a afectividade razoavelmente conservada, adequação de discurso, compreensão dialogante e pensamento sem alterações significativas de forma, posse, curso ou conteúdo, mas alterações delirantes do tipo persecutório, mantendo alucinações auditivas e, no plano das funções cognitivas superiores, sem alterações relevantes da memória, atenção captável e inteligência normal. Se devidamente acompanhado e tratado, em programas de duração alargada, com apoio médico e medicamentoso regular e vigilância de cumprimento e a anuência a essas medidas, pode vir a verificar-se abstinência continuada e equilíbrio do quadro esquizofrénico».
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A primeira questão colocada em recurso, nuclear e prévia, qual seja a da qualificação jurídica dos factos dados como provados na sentença, trata-se de uma questão que tem dividido a doutrina e a jurisprudência, ou seja, de uma vexata quaestio, para a qual têm sido avançadas quatro soluções:
a) A assumida no acórdão recorrido, segundo a qual o artigo 40º, n.º 2, do DL 15/93, se mantém em vigor para os casos em que, como o vertente, a quantidade adquirida ou detida de substância estupefaciente para consumo excede a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias, ou seja, para as situações que, à luz da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, não foram contra-ordenacionalizadas ( - Neste sentido, Cristina Líbano Monteiro, “Consumo de Droga na Política e na Técnica Legislativas: Comentário à Lei n.º 30/2000”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 11, Fasc.1, Maia Costa, “Breve nota sobre o novo regime punitivo do consumo de estupefacientes”, Revista do Ministério Público, Ano 87, 147, e os acs. do STJ de 03.07.03, processo n.º 1799, da RL, de 02.10.01, processo n.º 2274/01, da RP, de 04.02.11, CJ, XXIX, I, 215 e desta Relação de 04.06.16, processos n.ºs 1239/04 e 1416/04.);
b) A defendida pelo Digno Magistrado recorrente, no sentido de que, não sendo o comportamento do arguido integrável no artigo 2º, n.º 2, da Lei 30/2000, deve ser punido como crime de tráfico de menor gravidade, isto é, do artigo 25º, do DL 15/93;
c) A que considera que a conduta do arguido não é sancionável, já que não é subsumível ao artigo 2º, n.º 2, da Lei 30/2000, nem às situações típicas previstas no DL 15/93, e não pode considerar-se punível, nomeadamente pelo revogado artigo 40º, do DL 15/93, sob pena de violação do princípio nullum crime sine lege;
d) A que entende que o comportamento do arguido constitui contra-ordenação, visto que é integrável no artigo 2º, n.º 1, da Lei n.º 30/2000 ( - Neste sentido, Lourenço Martins, “Droga – Nova Política Legislativa”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 11, Fasc.3, 413 a 451, e o ac. da RG, de 03.03.10, CJ, XXVIII, II, 287.).
Atenta a polemização a que a questão sub judice tem vindo a ser sujeita e exposta entendemos desnecessário aqui consignar os fundamentos aduzidos em defesa das quatro aludidas posições.
Certo é que subscrevemos como juiz-adjunto o acórdão desta Relação de 16 de Junho, proferido no processo n.º 1416/04, já referido em nota de rodapé, sendo que então o fizemos com algumas dúvidas e, obviamente, sem embargo de mais atentamente analisarmos a questão nele abordada e decidida.
Do exame mais atento e detalhado que fizemos, com cotejo de todas as posições já conhecidas, concluímos que a posição a que aderimos em Junho passado não é a posição correcta, sendo antes de perfilhar a defendida pelo Conselheiro Lourenço Martins e pela jurisprudência da Relação de Guimarães.
Vejamos.
Antes da entrada em vigor da Lei n.º 30/2000, o consumo, o cultivo, a aquisição e a detenção para consumo de estupefacientes, constituíam actividades criminalmente puníveis, constituindo o crime de consumo previsto no artigo 40º, do DL 15/93 ( - É do seguinte teor o texto do artigo 40º, do DL 15/93:
1. Quem consumir, ou para seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou pena de multa até 30 dias.
2. Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.
3. No caso do n.º1, se o agente for consumidor ocasional, pode ser dispensado de pena.).
Com efeito, aquele diploma legal estabelecia, de forma nítida e inequívoca, uma fronteira entre o tráfico e o mero consumo, sendo certo que perante situação de mero consumo ou de cultivo, aquisição e detenção para (exclusivo) consumo próprio, estava afastado o tráfico, isto é, a possibilidade de incriminação por qualquer um dos tipos legais dos artigos 21º, 22º, 25º e 26º ( - O texto da norma tipo do artigo 21º é claro ao excluir da sua previsão, de forma expressa, os casos contemplados no artigo 40º.).
Com a publicação da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, (re)definiu-se o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, como aliás consta da epígrafe daquele diploma e estabelece o seu artigo 1º, n.º 1, onde se textua que a presente lei tem como objecto a definição do regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas… .
De acordo com a norma do artigo 2º, n.º1, daquele diploma, o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de estupefacientes foram contra-ordenacionalizadosO consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contra-ordenação.
Por outro lado, o artigo 28º, preceito inserto sob a epígrafe de normas revogadas, revogou o artigo 40º (excepto quanto ao cultivo), do DL 15/93 – São revogados o artigo 40º, excepto quanto ao cultivo, e o artigo 41º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, bem como as demais disposições que se mostrem incompatíveis com o presente regime.
Ora, ao revogar-se o artigo 40º, do DL 15/93, nos termos referidos, dúvidas não restam de que se descriminalizou o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de estupefacientes, independentemente da quantidade de produto adquirido ou detido; sendo certo que ao produzirmos esta asserção temos presente que o artigo 2º, n.º 2, da Lei 30/2000, estabelece que para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, preceito que, obviamente, inculca a ideia de que o legislador ao estabelecer aquele patamar máximo, pretendeu sancionar de forma mais gravosa, quiçá com uma pena, a aquisição e a detenção daquelas substâncias para consumo próprio nos casos em que o agente adquire ou detém quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante 10 dias.
É que conquanto resulte da lei que o legislador quis sancionar com maior gravidade aqueles referidos casos, a verdade é que não previu nem estabeleceu, directa ou indirectamente, o respectivo tipo e sanção, sendo certo que em matéria de definição e de criação de ilícitos não pode o aplicador da lei, maxime o julgador, substituir-se ao legislador, sob pena de subversão e de violação dos princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade, razão pela qual não podemos considerar que o artigo 40º, n.º 2, do DL 15/93, se mantém em vigor para casos como o do presente processo e, muito menos, que a situação vertente se deva ter por integrante de um crime de tráfico, o que teria, ainda, um efeito verdadeiramente absurdo e Kafkiano, visto que a Lei 30/2000 é uma lei descriminalizadora, como claramente resulta dos preceitos nela inseridos, particularmente, dos artigos 1º, n.º1 e 29º – artigo 1º, n.º1: A presente lei tem por objecto a definição do regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas…; artigo 29º: A descriminalização aprovada pela presente lei entra em vigor… .
Concluindo-se como concluímos que actualmente não é admissível, em caso algum, censurar e punir criminalmente o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de estupefacientes, uma só solução se nos apresenta nos casos e situações em que o agente consumidor adquire ou detém para consumo próprio produtos estupefacientes em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, qual seja a de os tratar como consubstanciando comportamento contra-ordenacional, aplicando ao respectivo agente o regime constante da Lei 30/2000. Como refere o Conselheiro Lourenço Martins ( - ibidem, nota de rodapé 27.), aquele agente sempre detém (pelo menos) 10 doses médias individuais.
Assim sendo, há que negar provimento ao recuso, revogando porém a decisão recorrida na parte em que considerou o arguido A... como autor de factos correspondentes ao crime de consumo de estupefacientes e declarando aquele como autor de factos que, objectivamente, constituem mera contra-ordenação, ordenando o arquivamento dos autos atenta a inimputabilidade do arguido.
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Termos em que se acorda negar provimento ao recurso, revogando porém o acórdão recorrido na parte em que considerou o arguido A... como autor de factos correspondentes ao crime de consumo de estupefacientes e declarando aquele como autor de factos que, objectivamente, constituem contra-ordenação, ordenando-se, consequentemente, o arquivamento dos autos atenta a inimputabilidade do arguido.
Sem tributação.
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