Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6/05.3PTVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
EXAME SANGUÍNEO
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 11/21/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 32º DA CONSTITUIÇÃO E 156º DO CÓDIGO DA ESTRADA(D.L. 44/05-25/2)
Sumário: 1- A recolha de sangue para determinação do grau de alcoolemia não ofende nem viola o direito à integridade e à autodeterminação corporal. A extensão do conteúdo da análise, comprovação da existência de álcool na sangue, o fim a que destina, a fixação do resultado em quaisquer bases de dados, o fim preventivo que se pretende alcançar são alguns dos argumentos que poderiam ser aduzidos a favor desta tese.
2- A prova de colheita de sangue realizada nos termos e sob a alçada da lei estradal, ainda que sem consentimento do arguido, não viola nenhum preceito constitucional .
Decisão Texto Integral: Acordam, na secção criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.
I. – Relatório.
Em dissensão com a decisão prolatada no processo supra epigrafado em que, na procedência da pronúncia constante de fls. 75 a 83, se decidiu condenar o arguido A..., solteiro, filho de B... e de C..., natural da freguesia de Santa Maria, concelho de Viseu, nascido a 14 de Novembro de 1972, residente na Rua do Caixa, n.º 18, Santiago, Viseu, portador do Bilhete de Identidade n.º 9816363, emitido em 2002/09/17, pelo Arquivo de Identificação de Viseu, como autor de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º/1 do Código Penal, na pena de sete (7) meses de prisão, cuja execução lhe viria a ser suspensa pelo período de 3 (três) anos e ainda, ao amparo do disposto no artigo 69.º/1, a) do Código Penal aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de condução de quaisquer veículos motorizados pelo período de um (1) ano e seis (6) meses, recorre o apenado tendo rematado o veio recursivo com a síntese conclusiva que se deixa extractada a seguir.
1 – A decisão recorrida, não pode deixar de ser revogada.
2 – E o Recorrente deve ser absolvido. Na verdade.
3 – Salvo melhor opinião, o Tribunal a quo, não valorou devidamente a prova carreada e produzida em Audiência de Julgamento.
4 – Pela análise crítica da prova documental, há um manifesto erro da interpretação da prova produzida que levou o Tribunal a quo a extrair conclusões que não podem considerar-se como provadas, designadamente nos pontos 1, 6, 8 e 13.
5 – De facto, a prova obtida mediante recolha de sangue, é nula uma vez que o Recorrente não deu o seu consentimento à realização de tal exame.
6 – O seu estado de Saúde diagnosticado “Traumatismo Crânio Encefálico com perda de conhecimento, não lhe permitiu dar discernimento, que não deu, o respectivo consentimento.
7 – Aliás a prova obtida é nula, porque obtida em contravenção ~~$)!B a Lei. Ordinária (Artigo 122º C.P.P.) e princípios fundamentais (Artigos 1, 2 e 25, 32 da Constituição da República Portuguesa).
8 – Não foi valorado o princípio “In dúbio pró reo”
9 – Sempre e em qualquer caso a Pena Principal aplicada – 7 meses de prisão ainda que suspensa na sua execução por 3 anos – é desproporcionada e exageradíssima.
10 – O mesmo ocorrendo, quanto à pena acessória de inibição aplicada de 15 meses de proibição de condução.
11 – Porque na eventualidade de não se considerar a existência da invocada nulidade por ilegal e inconstitucional, o que só por mera hipótese académica se admite, em caso algum e segundo um critério de razoabilidade, deveria ser escolhida uma pena principal não privativa da liberdade – A Pena de Multa, determinada com as condicionantes sócio-económicas do Recorrente.
12 – De igual modo a Pena Acessória de proibição de condução, segundo um critério de razoabilidade, deveria ser determinada entre 6 – 8 meses.
· 13 – Ambas as penas – prisão e acessória – aplicadas, vão para além da culpa do Recorrente.
14 – De todo o exposto e sobretudo, julgando procedente a invocada Nulidade da obtenção de prova, por ilegal e inconstitucional, deve ser o Recorrente absolvido do crime de que vem acusado.
Normas Violadas: Artigo 40º, 50º, 69º, 70º, 71º e 292º do C.P.; Artigo 12r do C.P.P.; Artigos 1º, 2º, 25º e 32º da C.R.P”.
Desprovido de conclusões a resposta do Ministério Público, junto da comarca, pugna pela improcedência do recurso no que tange á reapreciação da matéria de facto “visto o disposto no artigo 431º, al. b) do Código de Processo Penal (…)”; não deve ser atendida a esgrimida nulidade e/ou inconstitucionalidade; não foi violado o princípio in dubio pro reo; e as penas (principal e acessória) impostas ao arguido mostram-se adequadas, pelo que conclui que “A não ser rejeitado por manifesta improcedência de acordo com o previsto no artigo 420º do Código de Processo Penal, como nos parece que deve ser, o recurso do arguido também não poderá merecer provimento”.
Nesta instância, o distinto Procurador-geral Adjunto, em sagaz parecer, opina pela improcedência do recursivo, para o que desenvolve o argumentário que a seguir se extracta.
“[…]
O arguido põe em causa, em bloco, toda a matéria de facto julgada provada e que consubstancia o tipo legal de crime acima referido.
Desde logo convém lembrar que os recursos são, como se sabe, meros remédios jurídicos e, o denominado duplo grau de jurisdição não se confunde nem se traduz, de modo algum, num novo julgamento de toda a matéria de facto nesta instância, como parecem crer os arguidos. (Cfr. Simas Santos e Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, 5ª ed., 2002, pag. 25 e Cunha Rodrigues in “ Lugares do Direito “, pago 498, Coimbra Editora, 1999, bem assim entre outros, o Ac. ReI. Porto de 21-04-04 in www.dge.dsi.pt.; o Ac. Do Supremo Tribunal de Justiça de 30-06-99, Boletim do Ministério da Justiça 488, 22 e Germanos M. Silva, in “ Aplicação das Alterações ao Código de Processo Penal” revista Fórum & Iustitiae, Direito & Sociedade, Ano I, nº O, pag. 22)
O recorrente pretende, segundo parece, que o Tribunal julgue a causa de acordo com a sua própria convicção, fazendo tábua rasa da regra quase intangível do processo penal hodierno consagrada no artigo 127º citado, para se usar a expressão de Paulo Saragoça da Matta in “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, in Jornadas de DPP e Direitos Fundamentais, pag. 239, Almedina.
Contudo, a simples leitura da cuidada e extensa fundamentação da decisão (fls. 122 v.) permite concluir que o Tribunal recorrido não teve dúvidas sobre os pontos de facto que deu como não provados e como assentes.
Analisando, por outro lado, a motivação de recurso e suas conclusões, terá de se reconhecer que o impugnante não deu satisfação aos comandos fixados no artigo 412º do Código de Processo Penal para que pudesse este Tribunal modificar a decisão relativa aos factos. Nada se diz, designadamente, quanto á prova que impõe decisão diversa nem quanto á prova a renovar, bem ainda se não indica qualquer suporte técnico a que se refere o nº 4 daquele preceito.
Dando-se como fixada a matéria de facto tendo em conta a globalidade da prova produzida, o recurso interposto só poderá ter por objecto matéria de facto no âmbito da revista alargada, e oficiosa, a que se reporta o nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal. O mesmo é dizer que a este Tribunal resta apreciar a decisão de facto apenas na medida em que «do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum» resulte a existência de algum dos vícios elencados naquele nº 2 do citado arte 410º do Código de Processo Penal.
Ora, analisada a esta luz a referida peça processual, não se vislumbra, manifestamente, a existência de nenhum dos enunciados vícios: a matéria considerada provada permite fundamentar a decisão jurídica, não existe contradição na fundamentação ou entre esta e a decisão, nem se vislumbra qualquer erro notório na apreciação da prova.
Nada a referir quanto á qualificação jurídica da conduta do arguido e quanto às penas impostas, remetendo para as judiciosas considerações a este propósito expendidas na resposta da nossa Ema. colega em 1ª instância.
Nestes termos se conclui, como já o M.º P.º concluiu, pela improcedência do recurso”.
O quadro conclusivo extractado supra permite escandir para conhecimento deste tribunal as seguintes questões:
- Rejeição do recurso no concernente à impugnação da matéria de facto adquirida para a decisão;
- Nulidade da obtenção de prova por violação dos artigos 162º do Código da Estrada e 32º da Constituição da República Portuguesa;
- Violação do Principio in dubio pro reo;
- Individualização Judicial da pena.
II. – Fundamentação.
II.A. – De facto.
Para justificar a decisão que prolatou o tribunal a quo considerou adquirida a sequente factualidade:
“1. Da instrução e discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1) No dia 17 de Dezembro de 2004, cerca das 01:50 horas, na Estrada de Santo Estêvão, Viseu, via aberta à circulação pública de trânsito rodoviário, neste concelho e comarca de Viseu, o arguido conduzia o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, serviço particular, de matrícula 30-43-GP, propriedade do arguido, aí tendo sido interveniente em acidente de viação – despiste – sozinho, tendo “caído” na antiga linha de comboio;
2) Chamada a P.S.P. e o LN.E.M., foi o arguido transportado, por este último, para o Hospital de São Teotónio de Viseu, uma vez que o seu estado de saúde o exigia;
3) Tendo sido fiscalizado por elemento policial da P.S.P.-D.T. de Viseu, a testemunha D..., já no Hospital de São Teotónio de Viseu, pelas 03:45 horas, sido submetida ao teste de pesquisa de álcool no sangue – teste do “balão” (“SD-2”) – que revelou a presença de álcool no sangue em valor superior ao legalmente permitido – de 2.55 g/I;
4) Após o que o referido agente lhe disse que teria de ser submetido a analisador quantitativo, face à taxa de álcool que apresentava, o arguido – após ter procurado evitar que o agente o sujeitasse a tal exame, após lhe ter “apelado ao coração” e não ter tratado bem tal agente -, solicitou que fosse então submetido a exame sanguíneo, pelo que, seguidamente, pelas 04:40 horas, foi-lhe extraída a quantidade necessária de sangue para exame;
5) Tal amostra de sangue foi remetida ao LN.M.L., Delegação de Coimbra, e aí efectua das as legais análises toxicológicas, veio a revelar uma concentração de álcool etílico (TAS.) de 2,33 gramas por litro;
6) O arguido sabia que a quantidade de bebidas alcoólicas que havia ingerido nesse dia. Até momentos antes do exercício da condução do referido veículo, lhe determinava necessariamente uma taxa de álcool no sangue superior a 1,20 g/l e, não obstante, não se absteve de conduzir o referido veículo naquele estado;
7) Havia ingerido bebidas alcoólicas antes de iniciar o exercício da condução;
8) O arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que não lhe era permitida – antes lhe era vedada por lei – a condução de veículos automóveis sob a influência do álcool, em, bem assim, que a sua conduta era proibida e punida por Lei;
9) O arguido é bancário, trabalha no “Banco Millenium BCP”, em Viseu, auferindo mensalmente o salário não inferior a € 850;
1O) Referiu ter despesas mensais de cerca de € 800, vivendo com a ajuda dos pais;
11) De prestação da compra da casa, referiu pagar mensalmente a quantia de € 600;
12) Tem os antecedentes criminais que constam do seu CR.C de fls. 114118 (condução em estado de embriaguez – duas condenações);
13) Negou os factos, referindo “não se lembrar de nada”, apenas que esteve em casa com amigos e que bebeu bebidas alcoólicas, mas não disse que alguém tenha conduzido o seu veículo e tenha tido o acidente…;
A convicção do Tribunal para considerar provados os factos acima referidos resultou:
1. – Do teor do Auto de Noticia, de fls. 4 elaborado nos termos do disposto no artigo 243º do Código de Processo Penal, cuja genuinidade não foi posta em causa, a qual, obedecendo às prescrições legais goza de força probatória que é conferida aos documentos autênticos ou autenticados, isto é fazem prova plena dos factos de que documentam, enquanto a sua autenticidade e veracidade não forem postos em causa (cfr. artigo 169.º do Código de Processo Penal);
2. - Do teor do documento junto a fls. 11, anexo à Participação de Acidente de fls. 9 e 10, da qual constam declarações escritas pelo punho do próprio arguido, datadas do próprio dia 17-12-2004, no qual o arguido escreveu «não me recordo de absolutamente nada” rubricando de seguida, o que confirma que o arguido estava plenamente consciente aquando da colheita de sangue, documento cuja genuinidade e fidedignidade não foi posta em causa:
3. - Do teor da Participação de Acidente de fls. 9-10, cuja genuinidade e não foi posta em causa;
4. – Do teor do documento junto a fls. 4, do qual consta o dia e hora da colheita de sangue efectuado ao arguido (17-12-2004; 04:40), bem como, o dia e hora de resultado do teste do balão (17-12-2004: 03:45; 2.55 g/l), da medicação efectuada antes da colheita e após a entrada no hospital (nenhuma) e a administrada nas últimas 48 horas (as aí referidas) estas apostas por médico daquela unidade hospitalar, a quem o arguido (naturalmente estando consciente lhas terá indicado, o que permite concluir que o arguido, aquando da colheita de sangue, estava perfeitamente consciente), documento cuja genuinidade e fidedignidade não foi posta em causa;
5. - Do teor da ficha clínica, de fls. 36-39, da assistência hospitalar ao arguido da qual resulta que o arguido foi admitido no Hospital de São Teotónio de Viseu em 17-12-2004, às 02:53 horas; foi efectuada triagem por enfermeiro às 03:05 horas, cuja queixa”era vitima de acidente de viação, com perda de conhecimento”; da nota de enfermagem consta “Consciente. Foi suturado, 2 pontos. Couro cabeludo. Fez Colheitas. Vai fazer TAC” o que revela que o arguido estava perfeitamente consciente, para além de que consta da mesma que o arguido “ausentou-se do serviço entre mais ou menos as 5,30 e as 7.30 H.”, o que mais uma vez revela que estava consciente, documento cuja genuinidade e fidedignidade não foi posta em causa;
6.- Do resultado do exame de determinação quantitativa da presença de álcool no sangue do arguido, quanto à TAS de que o arguido era portador, sendo que “o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador’ (artigo 163.°/1 do Código de Processo Penal):
7. - Do teor do C.R.C. do arguido junto a fls. 114-118 cuja genuinidade e fidedignidade não foi posta em causa:
8. - O arguido referiu “não se recordar de nada”;
9. - Depoimento, da testemunha D..., agente principal da P.S.P. de Viseu, o agente autuante, o qual confirmou que foi chamado ao local do acidente, onde verificou estar o veículo onde o arguido se encontrava no seu interior, no lugar do condutor, carro esse que se havia despistado sozinho, tendo “caído” na antiga linha de comboio (antiga linha do Vouga), tendo ajudado a retirar o arguido do veículo, tendo sido conduzido para o Hospital de São Teotónio pelo I.N.E.M.. Não havia mais ninguém no interior do carro. Nem no local ninguém dizia que o condutor do veículo tivesse sido outra pessoa. Ficou ainda no local tendo o veículo sido içado por um reboque. Após deslocou-se ao hospital de São Teotónio de Viseu, a fim de cumprir as suas obrigações profissionais, designadamente do apuramento de o arguido, enquanto condutor do veículo acidentado, estar sob influência do álcool ou em estado de embriaguez. Aí chegado, encontrou o arguido perfeitamente consciente, estando sentado numa maca, tendo-lhe dito que teria de ser submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue. Efectuado o teste de despistagem (teste do “balão - SD 2) veio o mesmo a revelar uma taxa de álcool superior à legalmente permitida, pelo que disse ao arguido que tinha de ser submetido a analisador quantitativo ou a exame de sangue. Logo o arguido manifestou ao agente vontade de lhe não ser feito tal exame, tendo ainda tentado”apelar ao coração” do depoente, não tendo mostrado colaboração “e não me tratando bem” Todavia, o arguido veio a dizer ao agente que pretendia fazer exame de sangue - o que fez de forma plenamente consciente e explicita – pelo que um médico procedeu à colheita de sangue, elaborando o correspondente formulário legal. Depôs com conhecimento directo dos factos, de forma clara, isenta, convicta e desapaixonada sendo que o seu depoimento é corroborado pelos elementos documentais juntos aos autos;
10. – Fundou ainda o tribunal a sua convicção nas demais declarações do arguido, relativamente à sua situação profissional e pessoal:
11. - Do teor da “informação policial” de fls. 45-46 solicitada oficiosamente pelo tribunal, relativa à situação pessoal, familiar, profissional e social, cuja genuinidade e fidedignidade não foi posta em causa.
II.B. – De Direito.
II.B.1. – Rejeição do recurso no concernente à impugnação da matéria de facto adquirida para a decisão.
Suscita o Ministério Público, junto do tribunal a quo, a questão da rejeição parcial do recurso interposto, por inobservância, por parte do recorrente, do estipulado nos nºs 3 e 4 do CPP. Isto porque, pese, embora, pretendendo ver sindicada a matéria de facto assente e adquirida para a douta decisão impugnada, não cumpre na sua motivação e nomeadamente nas conclusões respectivas, em termos cabais, o ónus de especificação consignados no art. 412º, nº 3 e 4 do CPP, limitando-se, nas conclusões, a apelar para o principio in dubio pro reo.
A jurisprudência tem vindo a tomar posição sobre a questão que vem suscitada pelo respondente no sentido de que o recurso quanto á matéria de facto não será de rejeitar, antes o tribunal da Relação tem o dever dela conhecer, e se tal for o caso, modificá-la, se o recorrente, embora não tendo especificado nas conclusões os concretos pontos de que dissente, não deixa de, na motivação, (ao longo dela), assinalar e pontuar os pontos de discrepância, indicando os troços da matéria de facto transcrita, que razoa haverem sido enviesadamente julgados. Neste sentido, e por lidimar se transcreve, na íntegra, o Acórdão do STJ, de 7.10.2004, prolatado no processo 3286/04,5ª Secção:”I – O STJ tem vindo a considerar inconstitucional, por violação dos direitos a um processo equitativo e do próprio direito ao recurso, as normas dos nºs 3 e 4 do art. 412º do CPP, na interpretação segundo a qual o incumprimento dos ónus aí fixados, conduz á rejeição do recurso, sem a possibilidade de aperfeiçoamento (cfr. Acs. De 26.9.01, proc. nº2263/01, de 18.10.01,proc.nº 2374/01, de 10.04.02, proc. nº 152/00 e de 5.6.02, proc. nº1255/02); II – Se o recorrente não deu cabal cumprimento às exigências do nº3 e especialmente do nº4 do art. 412º do CPP, nas conclusões da motivação, mas o fez no texto dessa motivação, a Relação não pode, sem mais rejeitar o recurso em matéria de facto, nem deixar de conhecer, por ter por imodificável a matéria de facto, nos termos do art. 431º do CPP; III – Este último artigo, como resulta do seu teor, não toma partido sobre o endereçar ou não do convite ao recorrente, em caso de incumprimento pelo recorrente do ónus estabelecido nos nºs 3 e 4 do art. 412º, antes vem prescrever, além do mais, que a Relação pode modificar a decisão da 1ª instância em matéria de facto, se, havendo documentação da prova, esta tiver sido impugnada, nos termos do art. 412º, nº3, não fazendo apelo, repare-se, ao nº4dquele artigo, o que no caso teria sido infringido; VI – Saber se a matéria de facto foi devidamente impugnada à luz do nº3 do art. 412º, é questão que deve ser resolvida à luz deste artigo e dos princípios constitucionais e de processo aplicáveis, e não à luz do art. 431º, al. b) cuja disciplina antes pressupõe que essa questão foi resolvida a montante; V – Entendendo a Relação que o recorrente não forneceu os elementos legais necessários para reapreciar a decisão de facto nos pontos questionados, a solução não é a improcedência, por imodificabilidade da decisão de facto, mas o convite para a correcção das conclusões; VI – A ausência de tal convite e a subsequente ausência de pronúncia sobre matéria que devia conhecer torna nulo o acórdão da relação; VII – Assim vem decidindo também o TC, Acs nº259/03, DR, IIS, de 13.2.02 e 140/04, DR, IIª Série, de 17.4.04, que distingue a deficiência resultante da omissão na motivação dessas especificações caso em que o vício seria insanável, da omissão de levar as especificações constantes do texto da motivação às conclusões, situação que impõe o convite à correcção”.
No mesmo sentido se pronunciaram os Acórdãos do STJ, de 16.10.2003, proc. nº 3295/04; de 15.5.2003, proc. nº 985/03 -5ª Secção; de 13.5.04, proc.nº1633/04, 5ª Secção; de 16.2.2005, proc nº3131/04 – 3ª secção, bem assim o Ac.de 17.11.2004, proc.nº 3195/04 – 3ª Secção, onde, lapidarmente, se escreveu que: “I - O TC e o STJ têm considerado constitucionalmente inaceitável, por violação do direito a um processo equitativo e do próprio direito ao recurso (arts.20º, nº4 e 32º, nº1 da CRP), a interpretação do art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP segundo o qual o incumprimento das exigências processuais relativas às conclusões da motivação do recurso conduz imediatamente à sua rejeição, sem conceder ao recorrente a possibilidade de aperfeiçoamento; II – Só assim não será quando a deficiência não for apenas relativa à formulação das conclusões da motivação, mas se referir à própria motivação; neste caso, a deficiência da estrutura da motivação equivale a uma falta de motivação na plenitude dos seus fundamentos, pondo em crise a delimitação do âmbito do recurso”.
Porém alguma atinência à exigência jurídico-processual de especificação na motivação e nas conclusões terá de ser observada de modo a que seja conferido o mínimo de observância com o preceituado nos dispositivos supra referidos. A não ser conferido esse mínimo de arrimo ou correspondência ao estatuído na norma reguladora com a pragmática judiciária, ter-se-ia por frustrada a intenção do legislador de prescrever regras de comportamento processual destinadas a percintar o âmbito de cognoscibilidade do recurso por parte do tribunal ad quem. A exigência que a lei prescreve destina-se precisamente a confinar e delimitar o âmbito de cognoscibilidade do recurso da matéria de facto, dando a conhecer ao tribunal de recurso os concretos pontos de facto que, na perspectiva do recorrente, não obtiveram adequado e atinado julgamento se confrontados com as provas, que a eles dizem respeito, e que terão sido produzidas em audiência. Daí que a lei exija que o recorrente faça uma especificação dos pontos de facto que considera terem obtido divertido julgamento e, do mesmo passo, deia conta ao tribunal superior das provas que, em seu juízo, contraminam o juízo probatório que conduziu à impugnação da decisão relativamente aqueles concretos pontos de facto Cfr. entre muitas decisões do nosso mais Alto Tribunal quanto à exigência legal de o recorrente especificar na motivação e/ou nas conclusões os pontos de facto que reputa deverem merecer reapreciação pelo tribunal de recurso os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 05.07.2007, proferido no processo nº 07P1766; de 04.10.2006 e de 20.09.2006, que por significativo se deixa transcrito a seguir. “I – As exigências que a lei impõe (no art. 412.º do CPP) para as conclusões da motivação (com a consequência, quando faltem e não sejam devidamente completadas, da rejeição do recurso) estão predeterminadas à finalidade de prevenir o uso injustificado do recurso, pela identificação, precisa, dos pontos de discordância e das razões da discordância, e assim delimitando o objecto do recurso e os termos da cognição do tribunal de recurso, tudo na perspectiva do uso racional e justificado do meio e não como procedimento dilatório.
II – As referidas imposições, só aparentemente formais, destinam-se também a permitir a fluidez da decisão do recurso, contribuindo para a celeridade de processo penal na realização dos fins de interesse público a que está determinado.
III – No caso de impugnação da decisão proferida em matéria de facto, o recorrente deve especificar nas conclusões da motivação pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida, e as provas que devem ser renovadas - art. 412.º, n.º 3, als. a), b) e c), do CPP.
IV – Quando as provas tenham sido gravadas, dispõe o n.º 4 do art. 412.º, as especificações previstas nas als. b) e c) do n.º 3 fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.
V – O recurso em matéria de facto não pressupõe, todavia, uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento da decisão recorrida, mas apenas, em plano diverso, uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) - art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP -, ou determinando a renovação das provas nos pontos em que entenda que deve haver renovação da prova.
VI – A reapreciação da matéria de facto, se não impõe uma avaliação global, também não se poderá bastar com meras declarações gerais quanto à razoabilidade do decidido na decisão recorrida, requerendo sempre, nos limites traçados pelo objecto do recurso, a reponderação especificada, em juízo autónomo, da força e da compatibilidade probatória entre os factos impugnados e as provas que serviram de suporte à convicção.
VII – Se, apreciando no âmbito dos pressupostos e condições do recurso da decisão em matéria de facto, se verifica que:
- na motivação de recurso para o Tribunal da Relação o recorrente identifica o objecto do recurso através da afirmação da discordância relativamente à decisão tomada sobre alguns factos (que indica) que, na sua perspectiva, estão «incorrectamente julgados»;
- em seguida, no desenvolvimento da motivação, o recorrente especifica, autonomamente em relação a cada um dos pontos de facto que identificou, os meios de prova (transcrevendo os depoimentos) por que considera a matéria a que respeitam «incorrectamente julgada»;
- e as afirmações são feitas de modo explícito, pela referência directa aos concretos meios de prova que, na posição que defende, imporiam decisão diversa relativamente a cada um dos pontos concretizados da matéria de facto; estão, assim, identificados na motivação os fundamentos e o objecto do recurso quanto à parte impugnada da decisão em matéria de facto, em termos processualmente prestáveis e aptos a delimitar o âmbito da cognição do tribunal ad quem.
VIII – Se as conclusões da motivação não contêm, pelo modo exigido por lei, as especificações referidas nos arts. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, o recurso não poderia ter sido rejeitado com tal fundamento, por violação do art. 32.º, n.º 1, da CRP, sem previamente conceder ao recorrente a possibilidade de completar as conclusões (cf. Ac. do TC n.º 803/03, de 02-06-2004).
IX – Impõe-se revogar o acórdão recorrido, devendo a Relação convidar o recorrente a ampliar as conclusões da motivação se considerar que não respeitam as exigências do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, e decidir em conformidade”.
.
Não constitui um ónus excessivo ou anormal para quem pretenda impugnar uma concreta decisão de pontos fácticos, fazer a indicação especificada de quais, em seu juízo, foram, ou são, esses pontos de facto e fazer corresponder essa impugnação com a indicação dos suportes materiais onde estejam insertos os elementos de prova que tendam a demonstrar o diverso julgamento que deveriam ter obtidos os apontados e assinalados factos.
A necessidade dessa especificação prende-se com o princípio da economia processual e da delimitação do âmbito de cognoscibilidade dos recursos. Se pelo primeiro se intenta evitar a prática de actos que se revelem desnecessários para os fins para que tende a actividade processual, através do segundo procura-se evitar a dispersão do objecto dos recursos, confinando a actividade cognoscível do tribunal superior à matéria que se constitui como ponto de discórdia relativamente ao julgado na instância de que se recorre.
A Constituição da República Portuguesa consagra princípios básicos e elementares de defesa dos sujeitos involucrados num processo criminal, consagrando no capitulo dos direitos liberdades e garantias o direito a impugnar as decisões judiciais que lhe sejam desfavoráveis e que sejam susceptíveis de lesar os direitos e liberdades da pessoa humana, erigidas como pedra angular do edifício do Estado de Direito democrático.
Na concreção dos princípios constitucionalmente consagrados o legislador ordinário, estabeleceu no ordenamento adjectivo, as regras e deveres que os sujeitos a quem a lei confere o direito deverão cumprir para que o princípio possa ser levado à prática. Dentre essas regras e procedimentos estabeleceu o legislador ordinário, de acordo com a doutrina, quais as decisões que admitem recurso, limitando os graus de recurso permitidos em função dos actos processuais impugnados e da pena concreta aplicada, os prazos em que o direito pode ser exercitado, o direito à resposta e (na parte em que para o presente recurso interessa) a forma e o modo como a expressão processual do direito de defesa deve ser organizada e estruturada no requerimento em que se plasma a pretensão do recorrente. As limitações, regulamentação e disciplina processual não podem ser encaradas como restrições ao direito de defesa do arguido, antes o deverão ser como assumpção de conformação do direito constitucional pelo direito ordinário e pela modelação de um princípio ao fazer e agir da prática jurisdicional, enquanto executora do sentido de justiça que a lei fundamental lhe atribui, podendo e devendo, a lei adjectiva, clarificar, disciplinar e adaptar os princípios gerais à vida real, para que não conflitue com direitos da mesma matriz, funcione de forma eficaz e se desenvolva e concretize sem abusos, fixando os pressupostos ou condições de exercício dos recursos.
Não sendo legitimo e vedando a lei, pelo inarredável valor dos princípios consagrados na lei fundamental, que o legislador restrinja e coarcte o direito ao recurso, não impede, antes exige, que o concretize e discipline, designadamente através da imposição de condições ao seu exercício, desde que não atinja com elas o seu conteúdo essencial, isto é, desde que não estabeleça limitações ou condicionalismos que impeçam o seu regular exercício.
No atinente ao caso que nos ocupa – impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto –, a lei processual penal impõe, em matéria de recurso, que o recorrente especifique os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida e as provas que devem ser renovadas, sendo que, no caso de as provas haverem sido gravadas, estabelece, ainda, que as especificações atinentes às provas que impõem decisão diversa da recorrida e às provas que devem ser renovadas sejam feitas por referência aos suportes técnicos (art.412º, n.ºs 3 e 4).
A específica regulamentação do modo como o recurso há-de ser organizado e estruturado por forma a que o tribunal de recurso adquira balizas precisas e concretas relativamente à pretensão do recorrente, não constituem restrição ao direito ao recurso, mas sim mera regulamentação do mesmo, isto é, disciplinação e adaptação à realidade processual, consabido que não impedem, minimamente, o seu regular e eficaz exercício, sendo que, ao invés, têm em vista uma precisa e expedita actividade decisória do tribunal superior, mediante a indicação clara e concreta por parte do recorrente dos pontos de facto que entende incorrectamente julgados e das razões da respectiva discordância, isto é, das provas que entende terem sido incorrectamente valoradas e/ou apreciadas, bem como através da referência aos suportes técnicos, caso as provas hajam sido objecto de gravação, para além de visarem, também, o dever de colaboração do recorrente e a sua responsabilização, de modo a que as impugnações judiciais não constituam mais uma forma de entorpecimento e de protelamento da justiça.
A inobservância da imposição legalmente estipulada, deverá conduzir à inviabilização da parte do tribunal de recurso do poder de modificação da decisão de facto, por ausência de indicação dos concretos pontos de facto que o tribunal deva conhecer – cfr. art.431º, al.b). Na verdade, como vem sendo jurisprudência do nosso mais Alto tribunal os recursos são remédios que se destinam a modificar ou alterar as decisões dos tribunais inferiores e não novos julgamentos que se sobreponham ao já decidido na sua totalidade Cfr. quanto à natureza dos recursos o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.2007; proferido no processo nº 07P1412, que na parte concernente aqui se deixa transcrito. “1 – Como tem sido repetidamente dito por este Supremo Tribunal de Justiça, os recursos são remédios jurídicos que se destinam a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são especificamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados (quanto à questão de facto), ou com referência à regra de direito respeitante à prova, ou à questão controvertida (quanto à questão de direito) que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada.
2 – É que o julgamento em recurso não o é da causa, mas sim do recurso e tão só quanto às questões concretamente suscitadas e não quanto a todo o objecto da causa, em que estão presentes, face ao Código actual, alguns apontamentos da imediação (somente na renovação da prova, quando pedida e admitida) e da oralidade.
3 – Se o recorrente excluiu do objecto do recurso para a Relação a questão da forma pela qual fora apreciada a pena única conjunta, quando o devia ter feito, face à assinalada natureza dos recursos penais, se pretendesse criticá-la, não pode depois suscitar essa questão perante o Supremo Tribunal de Justiça.
.
A argumentação expendida serve para justificar a decisão de rejeição do recurso na parte respeitante à decisão de facto prolatada pelo tribunal a quo, dado que como se extrai do requerimento de recurso o recorrente não especificou na motivação, nem nas conclusões, quais os pontos de facto que pretendia ver reapreciadas pelo tribunal ad quem, cerzindo-os às provas concretas, vale por dizer aos elementos de prova – testemunhos, elementos documentais ou outros – que entende poderiam infirmar os pontos de interrogação que indica na parte final de fls. 133. A simples alusão a interrogações e pontos de dúvida não servem a necessidade legal expressa no normativo adrede e não é passível de infirmar os processos lógico-dedutivos que terão estado na base da tomada de decisão do tribunal na decisão que firmou. Adiante, no apartado em que se irá conhecer do fundamento de recurso atinente com o principio in dubio pro reo desenvolveremos as razões porque entendemos que a forma utilizada pelo recorrente para pôr em crise a matéria de facto adquirida pelo tribunal não poderá servir o fim almejado, qual fosse o de abalar a credibilidade na motivação que cevou a decisão de facto extractada supra.
II.B.2. – Nulidade da obtenção de prova por violação dos artigos 162º do Código da Estrada e 32º da Constituição da República Portuguesa.
Com algum brilho, que não vemos espelhado na acídia e dessorada alegação do recorrente, a questão da inconstitucionalidade do artigo 159º do Código da Estrada já foi suscitada no Tribunal Constitucional em acórdão que não obteve decisão de mérito – cfr. Ac. nº 512/2006, proferido no processo nº 568/05.
Por ilustrativo da arte de bem argumentar transcrevemos a pertinente e adrede motivação alentada perante aquele tribunal.
“1- Vem o presente recurso interposto do, aliás, douto acórdão proferido pelo venerando Tribunal da Relação [o acórdão a que se pretende fazer referência foi proferido pelo Tribunal da relação de Lisboa] que decidiu inexistir no caso sub judice qualquer violação do disposto no artigo 126.º, nºs 1 e 2, do CPP e do artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da Repú­blica Portuguesa.
2 - O acórdão recorrido foi suscitado por recurso de sentença proferida em primeira instância em cujo processo havia sido já suscitada a ilegalidade e inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual seriam admissíveis as provas obtidas através da recolha de sangue ao arguido sem o consentimento deste.
3 - A sentença de primeira instância decidiu que tal consen­timento não era exigível legalmente por entender ser talo resultado da interpretação que fazia do artigo 159.º n.º 7, do Código da Estrada na anterior sistematização.
4 - Em recurso da decisão proferida em primeira instância o ora recorrente, sustentou a ilegalidade, face ao disposto no artigo 126.ºdo Código de Processo Penal, e a inconstitucionalidade, face ao artigo 32.º n.º 8, da Constituição da República Portuguesa, de tal interpretação.
5 - O acórdão recorrido, analisou tal problema e concluiu “Ine­xiste portanto qualquer violação do disposto no artigo 126.º nºs 1 e 2, do CPP e do artigo 32.°, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa”.
6 - Em suma o que está em causa no presente recurso é saber se:
a) Sendo um qualquer cidadão encontrado inconsciente na via pública, aos comandos de um veículo motorizado imobilizado, que acabou de ser interveniente num sinistro, é admissível, à luz do ordenamento penal, constitucional e infra-constitucional, a submis­são do mesmo cidadão em estado de inconsciência à recolha de sangue para aferição da taxa de alcoolemia respectiva?
b) Na afirmativa, poderão os resultados do exame médico assim realizado constituir prova existente, válida e eficaz para sustentar uma acusação e uma condenação pela prática de um crime de condução de veículo a motor em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal?
Exposto o que se extraem as seguintes conclusões:
A) A lei processual penal considera nulas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa.
B) O nosso ordenamento jurídico considera tão importante o respeito pela civilidade dos meios de obtenção de prova que con­sagrou constitucionalmente no artigo 32.º a nulidade das provas obtidas por meios que de uma forma ou de outra violam a dignidade da pessoa humana, os princípios de direito processual penal, ou outros direitos constitucionalmente consagrados.
C) Não pode considerar-se estado de direito democrático, mas antes estado e polícia ou pior, o estado que permite que os seus cidadãos sejam condenados com base em provas obtidas por meios desumanos, desleais ou violadores de princípios constitucional­mente consagrados.
D) O edifício jurídico-constitucional é demasiado precioso para se permitir que possa ser alvo de embates cíclicos por força de interesses de investigação criminal mais ou menos prementes em cada momento da vida do País.
E) A recolha de sangue para exame como procedimento de obten­ção de prova implica necessariamente uma violação da integridade física da pessoa.
G) O conceito de ofensa da integridade física deve ser preenchido através do recurso ao tipo de crime com o mesmo nome.
H) No caso da recolha de sangue para efeitos de determinação do estado de influenciado pelo álcool, para efeitos jurídico-penais, o elemento subjectivo intenção terapêutica inexiste, razão pela qual, no entendimento do recorrente, este meio de obtenção de prova, desacompanhado do consentimento do arguido, é proibido e a prova assim obtida é nula e a sua valoração processual para condenação de um arguido é inconstitucional.
I) Mas ainda que assim não se entenda sempre terá que con­cordar-se com as conclusões do parecer que se junta e aqui se dá como integralmente reproduzido, considerando-se que a uti­lização do resultado do exame de recolha e análise de sangue como meio de prova para efeitos criminais, quaisquer que estes sejam, viola a integridade moral do arguido protegida expressamente nos artigos 25.°, 32.°, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa e 126.°, nº 1, do Código de Processo Penal.
J) A utilização de prova extraída do corpo do arguido sem con­sentimento deste viola este princípio e viola a integridade moral do arguido a qual é também protegida constitucionalmente pelo artigo 25.°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, em anotação ao qual os autores Jorge Miranda e Rui Medeiros (in Constituição Portuguesa Anotada), consideram que os testes de alcoolemia que vão para além da pesquisa do teor de álcool no ar expirado “não resistem ao crivo do juízo de inconstitucionalidade”.
K) Ao aceitar a admissibilidade da prova obtida através de recolha e análise de sangue a arguido inconsciente sem autorização deste, estar-se-ia a violar o princípio fundamental e estruturante da proi­bição de diligências conducentes à auto-incriminação do arguido e por arrasto ver-se-iam violados os princípios da dignidade da pessoa, o princípio da presunção da inocência e o princípio do contraditório, declarados e garantidos nos artigos 1.º, 25.º, 32º nºs 1, 2, e 8 da Constituição da República Portuguesa e no artigo 126º do Código de Processo Penal in totum.»
A questão é pertinente e em recurso similar em que era discutida a constitucionalidade da normas que permitem a intrusão na integridade e autodeterminação corporal – no caso concreto a colheita de saliva através zaragatoa para determinação do ADN – o Tribunal Constitucional decidiu: “a) - Julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 25º, 26º e 32º, nº 4, da Constituição, a norma constante do artigo 172º, nº 1, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de possibilitar, sem autorização do juiz, a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil genético, quando este último tenha manifestado a sua expressa recusa em cola­borar ou permitir tal colheita; b) - Consequencialmente, julgar inconstitucional, por violação do dis­posto no artigo 32º, nº 4, da Constituição, a norma constante do artigo 126º, nºs 1, 2, alíneas a) e c), e 3, do Código de Processo Penal, quando interpretada em termos de considerar válida e, por conseguinte, susceptível de ulterior utilização e valoração a prova obtida através da colheita realizada nos moldes descritos na alínea anterior”.
Para a declaração que ditou, e em que colocou em crise o acórdão da Relação do Porto de 03.05.2006; proferido no recurso nº 6541/05, o qual tinha seguido de perto a argumentação expendida no acórdão desta relação proferido no recurso nº 3261/01, relatado pelo Exmo. Snr. Cons. Oliveira Mendes, desenvolveu o Tribunal Constitucional a seguinte argumentação:
“As questões de constitucionalidade são suscitadas a partir da formulação segundo a qual violam a Constituição [os artigos 26º, nºs 1 e 3, 18º, nºs 1, 2 e 3, 25º, nº 1, 27º, nºs 2 e 3, 32º, nº 8, 115º, 167º, 168º, nº 1, alínea b), 283º, nº 3], as normas constantes dos artigos 53º, 61º, nºs 1, alínea 1), e 3, 154º nº 1, 172º, nº 1, e 126º, nºs 1, 2, alíneas a) e c), e 3, do CPP, nos termos das quais se possibilita ao Ministério Público ordenar a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para tipificação e comparação do seu perfil genético, quando este tenha manifestado a sua oposição à dita colheita, com base na ausência de suporte legal expresso por ser matéria - muito específica - atinente aos direitos, liberdades e garantias fundamentais, que está sujeita a reserva de lei formal e material, não sendo, consequentemente, valorável como prova.
A partir desta longa formulação destacam-se, porém, três questões de constitucionalidade: a eventual violação de proporcionalidade na restrição de direitos fundamentais do arguido; a eventual violação de uma legitimação legal para a intervenção em causa; e, por último, a questão da violação do espaço de competência do juiz de instrução, nos termos do artigo 32º, nº 4, da Constituição, na realização de tal intervenção.
O Acórdão nº 155/2007 do Tribunal Constitucional, debruçando-se sobre caso idêntico, respondeu às duas primeiras questões de modo negativo, não julgando inconstitucional a norma em causa e respondeu, positivamente, à última das questões, julgando inconstitucional a dimensão normativa questionada.
O Tribunal adere aos fundamentos do juízo de inconstitucionalidade formulado nesse aresto. Tal perspectiva situa-se na linha de anterior jurisprudência relativa à articulação dos poderes do Ministério Público com os do juiz de instrução (cf., entre outros, Acórdãos nºs 7/87, 23/90 e 395/2004). Decisivamente, entende o Tribunal que, tratando-se de uma intervenção significativa nos direitos fundamentais do arguido, se impõe um controlo prévio pelo juiz como expressão da separação de poderes e competências decorrente da estrutura acusatória do pro­cesso penal consagrada no artigo 32º, nºs 4 e 5, do Código de Processo Penal.
4 - Por outro lado, o Tribunal adere, no essencial, às razões que justificaram a conclusão pela não inconstitucionalidade das restantes questões, tendo em consideração a dimensão normativa concreta­mente questionada. Assim, admite-se que, em si mesmo, não existirá desproporcionalidade na utilização de tais métodos invasivos do corpo da pessoa (mas não lesivos da integridade física), da sua liberdade e privacidade, como único meio para obtenção da prova em situações (tal qual a do presente caso) de extrema gravidade dos factos per­petrados, com base numa ponderação de todas as circunstâncias a efectuar por um juiz imparcial que não tem a seu cargo ou sob o seu domínio a investigação do processo, e sendo assegurado o controlo de todo o aproveitamento possível dos resultados de tal intervenção.
Tratando-se, no presente caso de fiscalização concreta de cons­titucionalidade, sempre haverá que tomar em consideração os espe­cíficos critérios normativos subjacentes à decisão judicial. Ora, entre tais critérios salvaguardam-se dois que o Tribunal considera essenciais: o interesse do Estado na realização da justiça em face de um crime com a elevada gravidade patenteada nos autos e a medida diminuta de afectação dos direitos à autodeterminação corporal e à própria intimidade pessoal, a par da utilização exclusiva para tais fins do material biológico recolhido.
Por outro lado, a menor densificação da lei existente que autorize tais intervenções, nomeadamente ao prever critérios de ponderação, procedimentos e limitação da utilização de tais materiais, não redunda, no caso concreto, em inconstitucionalidade porque a <<norma do caso» formulada pelo tribunal recorrido quanto a critérios de proporcio­nalidade, necessidade e adequação, integrou os elementos substanciais que, de modo suficiente e exigente, poderiam assegurar a adequação e proporcionalidade que são exigidas pelo artigo 18.º, nº 2, da Constituição.
Também não é determinante, no presente caso, em face da dimen­são normativa em causa, o facto, em si mesmo, de a lei não densificar os critérios de recolha de prova com esta natureza, com efeito, não estamos perante uma intervenção restritiva de direitos fundamentais não autorizada legalmente nem da ausência de densificação resultou, segundo os critérios fixados, uma intervenção arbitrária. Finalmente, tratando-se de recolha de prova, sem alternativas, dada a falta de testemunhas, em matéria de crime de muita elevada gravidade, a exigência de densificação da lei como exigência de constitucionalidade não consideraria a «necessidade investigatória» urgente em confronto com a medida diminuta de sacrifício dos direitos fundamentais no caso concreto.
Não estamos, assim, perante situação comparável, qualitativa e quantitativamente, a qualquer substituição do legislador pelo julgador em sede de definição do tipo legal de crime. Aí, o valor da segurança democrática relativamente ao que é proibido impõe-se sem quaisquer restrições. Nesta matéria, é admissível que, em circunstâncias de neces­sidade investigatória, o juiz ainda possa fazer uma ponderação que, segundo os padrões garantísticos da mais exigente das ponderações de acordo com os critérios da Constituição, o legislador nunca poderia excluir ao densificar a lei que autoriza a recolha de tais materiais como meios de prova.
Assim, em face destes critérios normativos, e tendo presente o que se disse no Acórdão nº 155/2007, o Tribunal entende não ser inconstitucional a dimensão normativa agora em causa”.
Com interesse e atinado com a problemática versada no recurso que nos é dado apreciar escreveu-se no Ac. do Tribunal Constitucional nº 155/2007, para o qual o acórdão acabado de citar remete, que relativamente ao privilégio contra a auto-incriminação (nemo tenetur se ipsum accusare), “[…] é inquestionável que o citado princípio tem consagração constitucional, conforme resulta da jurisprudência deste Tribunal (cfr., por exemplo, os acórdãos 695/95, 542/97, 304/2004 e 181/2005). Não é, portanto, o reconhecimento da consagração constitucional do princípio que suscita dificuldades mas sim, como reconhece Costa Andrade (cfr. Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra Editora, 1992, pág. 127), “a definição da sua compreensão e alcance”. E, aqui, como reconhece este autor, as dificuldades aumentam à medida que nos aproximamos da “zona de fronteira e concorrência entre o estatuto do arguido como sujeito processual e o seu estatuto como objecto de medidas de coacção ou de meios de prova. Nesta zona cinzenta deparam-se, não raramente, situações em que não é fácil decidir: quando se está ainda no âmbito de um exame, revista, acareação ou reconhecimento, admissíveis mesmo se coactivamente impostos; ou quando, inversamente, se invade já o campo da inadmissível auto-incriminação coerciva”.
Este Tribunal já teve, como vimos, ocasião de se pronunciar sobre o princípio da não auto-incriminação, embora em associação com o direito a não prestar declarações. Assim, no Acórdão nº 695/95, o Tribunal pronunciou-se pela inconstitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 342º do Código de Processo Penal, “enquanto impõe ao arguido, o dever de responder às perguntas do presidente do tribunal no início da audiência de julgamento sobre os seus antecedentes criminais e sobre outro processo penal que contra ele corra nesse momento”. Ponderou, então, o Tribunal:
“O princípio constitucional de que o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa tem como conteúdo essencial a exigência de que o arguido seja tratado como sujeito e não como objecto do procedimento penal, garantindo-lhe a Constituição, com essa finalidade, não só um direito de defesa (artigo 32º, nº1), a que a lei confere efectividade através de direitos processuais autónomos a exercer durante o processo e que lhe permitem conformar a decisão final do processo, mas também a presunção de inocência até ao trânsito em julgado da condenação, elemento fundamental naquela perspectiva.
[…] Este direito ao silêncio está directamente relacionado com o princípio constitucional da presunção de inocência (artigo 32º, nº 2 da Constituição). Com efeito, o interrogatório do arguido - exceptuadas as declarações finais antes do encerramento da audiência de julgamento, em que é perguntado se tem mais alguma coisa a alegar em sua defesa (artigo 361º do CPP) - pode vir a ser utilizado como um meio de prova: as declarações do arguido podem constituir um importante meio de obter a verdade material dos factos, ponto é que se respeite a livre determinação da sua vontade.
Assim, o arguido deve ser informado, antes de qualquer interrogatório, de que goza do direito ao silêncio (artigos 141º, nº 4, 143º, nº2, 144º, nº1, e 343º,nº1, do CPP), devendo também ser esclarecido de que o seu silêncio não pode ser interpretado desfavoravelmente aos seus interesses, não podendo, por isso, o arguido ser prejudicado por ter exercitado o seu direito a não prestar quaisquer declarações (o silêncio não pode ser interpretado como presunção de culpa).
De facto, o princípio da presunção de inocência ínsito no nº 2 do artigo 32º da Constituição, não só obsta a tal tipo de interpretação como também, se conexionado com o princípio da preservação da dignidade pessoal do arguido, leva a que a utilização do arguido (v.g., das suas declarações) como meio de prova seja sempre limitada pelo integral respeito da sua decisão de vontade. [...]
O Tribunal entende que a imposição ao arguido do dever de responder a perguntas sobre os seus antecedentes criminais formulada no início da audiência de julgamento viola o direito ao silêncio, enquanto direito que integra as garantias de defesa do arguido.
Como se referiu, o conteúdo essencial do direito de defesa do arguido assenta em que este deve ser considerado como «sujeito» do processo e não como objecto; ora, a obrigatoriedade de declarar, no início da audiência de julgamento, os antecedentes criminais do arguido e bem assim, informar sobre processos pendentes implica a transformação do arguido de sujeito em objecto do processo.[...]”
No acórdão nº 181/05, o Tribunal decidiu “não julgar inconstitucional o artigo 133.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de não exigir consentimento para o depoimento, como testemunha, de anterior co-arguido cujo processo, tendo sido separado, foi já objecto de decisão transitada em julgado”. Afirmou-se então:
“[…] 4 – A importância de que se reveste a produção de prova em processo penal, enquanto superação de um modelo inquisitorial do processo e conquista basilar do processo de estrutura acusatória, tem subjacente a ideia da existência de limites intransponíveis à prossecução da verdade em processo penal, limites que se traduzem nos conceito e regime das proibições de prova. [...]
Em particular, quanto à liberdade de declaração do arguido, ela é analisada pela doutrina numa dupla dimensão, positiva e negativa. Pela positiva, abre ao arguido o «mais irrestrito direito de intervenção e declaração em abono da sua defesa», e, pela negativa, a liberdade de declaração do arguido veda todas as tentativas de obtenção, por meios enganosos ou por coacção, de declarações auto-incriminatórias.
A vertente negativa (nemo tenetur se ipsum accusare) assume particular relevância em matéria de proibições de prova, não podendo o arguido ser fraudulentamente induzido ou coagido a contribuir para a sua incriminação.
De novo com Costa Andrade, o que está em jogo “é garantir que qualquer contributo do arguido, que resulte em desfavor da sua posição, seja uma afirmação esclarecida e livre de autoresponsabilidade.” (cfr. ob. cit., pág. 121).
E isto porque, na liberdade de declaração espelha-se o estatuto do arguido como autêntico sujeito processual decidindo, por força da sua liberdade e responsabilidade, sobre se e como quer pronunciar-se.
[...] O conteúdo material do referido princípio (nemo tenetur...) é assegurado através da imposição dos deveres de esclarecimento ou de advertência às autoridades judiciárias e aos órgãos de polícia criminal [cfr. artigos 58º, n.º 2; 61º, n.º 1, alínea g); 141º, n.º 4, e 343º, n.º 1], estabelecendo-se a sanção de proibição de valoração, nos termos do artigo 58º, n.º 4, e da nulidade das provas obtidas mediante tortura, coacção ou ofensa da integridade, física ou moral (cfr. artigo 126º, n.º 1, todos do CPP).
[...] A justificação do impedimento de o co-arguido depor como testemunha tem como fundamento essencial uma ideia de protecção do próprio arguido, como decorrência da vertente negativa da liberdade de declaração e depoimento, a que acima se fez referência e que se traduz no brocado latino nemo tenetur se ipsum accusare, o também chamado privilégio contra a auto-incriminação (cfr. neste sentido, Costa Andrade, ob. cit., pág. 121).
A proibição de o arguido ser ouvido como testemunha, enquanto limitação dos mecanismos de constrangimento inerentes à prova testemunhal, constitui expressão do privilégio contra a auto-incriminação. [...]
A consagração do impedimento representa uma renúncia do Estado à «colaboração forçada» na investigação de factos criminosos de quem é alvo dessa mesma investigação.[...]”
Por seu turno, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), em sentença proferida em 17 de Dezembro de 1996 (caso Sauders v. Reino Unido), concluiu que o citado direito à não auto-incriminação se refere, em primeira linha, ao respeito pela vontade do arguido em não prestar declarações, ao direito ao silêncio, acrescentando que esse direito se não estende ao uso, em processo penal, de elementos obtidos do arguido por meio de poderes coercivos, mas que existam independentemente da vontade do sujeito, por exemplo as colheitas, por expiração, de sangue, de urina, assim como de tecidos corporais com finalidade de análises de A.D.N..
E o Tribunal Constitucional Espanhol, nomeadamente a propósito da obrigatoriedade de submissão a testes de alcoolémia, afirmou que a realização dos mesmos não constitui, em si mesmo, uma declaração ou incriminação, para efeitos deste privilégio, uma vez que não se obriga o detectado a emitir uma declaração que exteriorize um conteúdo, admitindo a sua culpa, mas apenas a tolerar que sobre ele recaia uma especial modalidade de perícia (STC 103/1985). E, reiterando tal doutrina, analisou em 1997 (STC 191/1997) - depois de citar jurisprudência do TEDH, onde se reconhece que o direito ao silêncio e o direito à não auto-incriminação, embora não expressamente mencionados pelo artigo 6º da CEDH, se situam no coração do direito a um processo equitativo e se relacionam estreitamente com o direito à defesa e à presunção da inocência - a questão na perspectiva, que é também a do agora recorrente, da violação do princípio da presunção de inocência. Neste contexto, considerou, então, que as garantias face à auto-incriminação só se referem às contribuições do arguido de conteúdo directamente incriminatório, não tendo o alcance de integrar no direito à presunção da inocência a faculdade de se poder subtrair a diligências de prevenção, indagação ou de prova. A configuração genérica de um tal direito a não suportar nenhuma diligência deste tipo deixaria desarmados os poderes públicos no desempenho das suas legítimas funções de protecção da liberdade e convivência, lesaria o valor da justiça e as garantias de uma tutela judicial efectiva […].
No mesmo sentido se pronunciou Gomes Canotilho no parecer que o ora recorrente juntou aos autos, onde, depois de dar conta que “a doutrina dominante e uma boa parte da jurisprudência nacional e internacional de direitos humanos têm entendido que a presunção de inocência do arguido abrange apenas o direito a permanecer calado e a beneficiar da existência de uma dúvida razoável, não impedindo a recolha de material biológico para efeitos de análise de DNA” (pág. 8), conclui precisamente que “a presunção de inocência do arguido abrange apenas o direito a permanecer calado e a beneficiar da existência de uma dúvida razoável, não impedindo a recolha de material biológico para efeitos de recolha de DNA” (cfr. conclusão 10).
Ora, entende o Tribunal, no seguimento da jurisprudência e doutrina acabada de citar, que o direito à não auto-incriminação se refere ao respeito pela vontade do arguido em não prestar declarações, não abrangendo, como igualmente se concluiu na sentença do TEDH supra citada, o uso, em processo penal, de elementos que se tenham obtido do arguido por meio de poderes coercivos, mas que existam independentemente da vontade do sujeito, como é o caso, por exemplo e para o que agora nos importa considerar, da colheita de saliva para efeitos de realização de análises de A.D.N.. Na verdade, essa colheita não constitui nenhuma declaração, pelo que não viola o direito a não declarar contra si mesmo e a não se confessar culpado. Constitui, ao invés, a base para uma mera perícia de resultado incerto, que, independentemente de não requerer apenas um comportamento passivo, não se pode catalogar como obrigação de auto-incriminação. Assim sendo, não se pode sustentar, ao contrário do que pretende o recorrente, que as normas questionadas contendam com o privilégio contra a auto-incriminação”.
“[…] Costa Andrade, admitindo “que a Constituição não se opõe, em definitivo, à recolha coactiva de substâncias biológicas e à sua análise genética não consentida”, considera, contudo, que “estas medidas são portadoras de um potencial de danosidade e de devassa que está muito para além da que foi pressuposta pelo legislador ao regular os «normais» exames e perícias ou, mesmo, ao prescrever a recolha de sangue para determinar se um condutor está influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas”, pelo que a sua legitimação não pode “pura e simplesmente pedir-se às normas que prevêem a submissão a exames da pessoa” (artigo 6º da Lei nº 45/2002, de 19 de Agosto ou artigo 152º do Código da Estrada), sendo “indispensável”, para que aquelas medidas fossem juridicamente admissíveis, “uma lei específica que as autorizasse e prescrevesse o respectivo regime (pressupostos materiais, formais, orgânicos e procedimentais)”. Gomes Canotilho, após afirmar que “o recurso ao Ácido Desoxirribonucleico (DNA) é, pelo seu elevado grau de fiabilidade, certamente o caminho do futuro, discutindo-se, quando muito, os limites que devem rodear a informação assim obtida”, conclui, partindo do pressuposto de que as restrições aos direitos liberdades e garantias estão subordinadas a “uma reserva de lei qualificada […] devendo ser expressamente previstas, claramente determinadas, devidamente fundamentadas e objecto de interpretação restritiva […]”, igualmente no sentido de que “o quadro normativo existente não é suficiente, por si só, para legitimar a recolha compulsiva de material biológico para efeito de recolha de DNA […], já que “as diferenças que existem entre a análise de DNA e os demais meios de prova, métodos de identificação civil de uma pessoa ou testes de avaliação da sua condição física e psicológica são mais do que suficientes para justificar a exigência de uma lei especial. Com efeito, a necessidade de uma lei específica sobre a recolha de DNA assume o maior relevo, tendo em conta o facto de que, embora se possa considerar que a extracção de material biológico não é, em si mesma, uma actividade excessivamente intrusiva ou lesiva da privacidade ou integridade física dos indivíduos, as utilizações potenciais que podem ser dadas ao DNA são muitas e necessitam de ser devidamente reguladas”.
Tomando posição no dissídio temos para nós que recolha de sangue para determinação do grau de alcoolemia não ofende nem viola o direito à integridade e à autodeterminação corporal. A extensão do conteúdo da análise, comprovação da existência de álcool na sangue, o fim a que destina, a fixação do resultado em quaisquer bases de dados, o fim preventivo que se pretende alcançar são alguns dos argumentos que poderiam ser aduzidos a favor da tese por que propugnamos. Ainda assim não evitaríamos contra-argumentação retorsiva pois que sempre se poderá argumentar que através de uma recolha de sangue se poderão obter uma série de resultados que, usados de má-fé, poderiam ser lesivos da intimidade e da privacidade do sujeito submetido a exame.
A discussão seria academicamente interessante se não ocorresse a circunstância de o arguido invocar a nulidade da prova em contra mão com o que está considerado provado e adquirido na decisão da matéria, nomeadamente no item 4:”Após o que o referido agente lhe disse que teria de ser submetido a analisador quantitativo, face à taxa de álcool que apresentava, o arguido – após ter procurado evitar que o agente o sujeitasse a tal exame, após lhe ter “apelado ao coração” e não ter tratado bem tal agente -, solicitou que fosse então submetido a exame sanguíneo, pelo que, seguidamente, pelas 04:40 horas, foi-lhe extraída a quantidade necessária de sangue para exame”.
Tendo o arguido solicitado a sua sujeição a exame e devendo este facto ter-se dado como adquirido torna-se espúrio manter uma discussão acerca de um motivo de recurso cuja tese se encontra derruída e esbagoada pela verificação de um facto denotativo de um expresso consentimento do acto fundador com que se pretende cevar o fundamento alentado. Da decisão da matéria de facto resulta inequívoco que o arguido solicitou, depois de ter manifestado uma atitude e um comportamento de rejeição e recusa, que lhe fosse efectuado recolha de sangue par a aferição da percentagem de álcool no sangue. Não colhe a alegação produzida em sede de recurso a invocação de uma nulidade da prova obtida por intrusão abusiva na integridade corporal do sujeito examinado.
Ainda que entendendo que a prova de colheita de sangue realizada nos termos e sob a alçada da lei estradal, ainda que sem consentimento do arguido, não viola nenhum dos preceitos constitucionais invocados pelo arguido, no caso concreto não houve violação do direito á integridade física do autor por este haver dado, expressamente, consentimento na colheita do sangue para verificação do nível de alcoolemia.
Falece este fundamento do recurso.
II.B.3. – Violação do Principio in dubio pro reo.
O ordenamento adjectivo penal adoptou, embora com restrições –“salvo quando a lei dispuser diferentemente” -, o princípio da livre apreciação da prova, segundo o qual “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Para Massimo Nobili, o “principio del convencimento del giudice”, assenta em dois pilares axiais, na lógica do juiz e na crítica reflectida (“critica ragionata”). Massimo Nobili, in “Il principio del Convencimetno del Giudice”, Giuffrè Editore, Milano, 1974, p. 284. “A propósito de tal lógica e razoabilidade se realça que o convencimento do juiz é livre somente no sentido em que ele será fruto e meta derradeira de individual razoamento. Em particular se o critério do livre convencimento equivale a uma ausência de prova legal, isso “não dispensa o juiz da observância daqueles critérios que obedecem ás exigências de ordem lógica”, os quais se colocam como um verdadeiro e próprio limite á liberdade do juiz. Assim, com maior precisão, é exactamente numa qualidade razoável extranormativa (ou seja não prefixada legalmente), obtida mediante um processo indutivo-dedutivo que se encontra a verdadeira substância do novo método; “de tal modo se alcançará a prova aquelas circunstâncias que de outro modo não são verificáveis (pelo juiz) e é nesta actividade que se substancia a essência lógica da sua função” (tradução nossa).
Por regras de experiência, ou “massima de esperienza”, entende-se uma regra de comportamento que exprime aquilo que acontece na maior parte dos caos (id quod plerumque accidit); mais precisamente, trata-se de uma regra que é extraída de casos similares. Cfr. Paolo Tonini, in La Prova penale, CEDAM, Padova,2000, p. 35. Reportando uma decisão do Tribunal de Cassação italiano, nota este autor que a diferença entre máximas de experiência e mera conjectura “reside no facto que no primeiro caso o dado já aconteceu (è già stato), ou vem de qualquer maneira submetido a verificação empírica e portanto a máxima pode ser formulada sob a escolta do id plerumque accidit, enquanto no segundo caso tal verificação não está estabelecida, nem pode estar, e fica afiançada a um mero cálculo de possibilidades, de modo que a máxima permanece insusceptível de verificação empírica e portanto de demonstração” (tradução nossa). A jurisprudência afirma a necessidade de que a máxima de experiência seja uma regra de comportamento humano e não uma “consideração de ordem sócio-cultural”, na medida em que os indícios inseridos numa série causal, constituem anéis de cadeia de relações naturais constantemente uniformes do comportamento humano que segundo o id plerumque accidit conduzem a um resultado segundo a lei da psicologia pelo qual, em linha com a máxima, dada (acontecida) uma acção pode-se formular um juízo provável sobre outros que o precederam e que se lhe seguirão. Do mesmo modo para Stein F., in “El Convencimento Privado del Juez, citado por Carlos Climent Durán, em “La prueba penal”, (a quem este autor atribui o desenvolvimento do conceito “máximas de experiência”), as máximas de experiência ”são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo geral, desligados dos factos concretos que se julgam no processo, procedentes da experiência, mas independentes dos caos particulares de cuja observação se induziram e que, por cima (para além) desses casos, pretendem ter uma validade para outros novos”.
As provas que se produzem em audiência de julgamento assumem, para além da inspecção ao local, o formato de provas testemunhais e documentais. A valoração da prova engolfa duas etapas básicas: “a primeira trata de depurar a eficácia probatória de cada meio de prova, até chegar ao convencimento de que um determinado facto é certo, ou não, em vista do que resulta de cada meio probatório; e a segunda centra-se na valoração probatória propriamente dita, comparando cada um dos factos reputados certos com os factos afirmados pelas partes. Carlos Climent Durán, in “La Prueba Penal”, Tomo I, 2ª edición, Tirant lo Blanch,p.85 Na depuração dos instrumentos probatórios (controle de legalidade e silogismos probatórios) trata-se, afinal de comprovar a credibilidade das provas aportadas pelas partes, e este juízo de credibilidade aparece integrado em vários silogismos probatórios, o primeiro dos quais está referido à fiabilidade ou confiança que gera cada um dos meios probatórios, estando referido o segundo á determinação da significação que deve outorgar-se aos factos expostos ao julgador por cada um de esses meios de prova e referindo-se o terceiro á verosimilhança ou crença de que são verdadeiros ou falsos os factos aportados ao processo. Vide op. loc. cit. P. 86.
Da inabarcável jurisprudência dos nossos tribunais superiores penso que se pode extrair uma síntese extractando a síntese seguinte: o juiz está vinculado ao séquito probatório que lhe é aportado pelos sujeitos processuais, sem prejuízo do dever de indagar, pela produção de meios de prova não carreados pelos intervenientes processuais, pela verdade histórico-material Vide, para mais desenvolvimentos Winfried Hassemer, Fundamentos del Derecho Penal, Bosch, p. 147 e segs. (Producción y Presentación del caso) e Paolo Tonini, op.loc. cit., p.29. - cfr. art. 340º do CPP –; essa vinculação impele uma necessidade de razoamento lógico-dedutivo e indutivo que, baseado nas regras ou máximas da experiência comum, permita a compreensão das razões empírico-racionais que conduziram ao resultado probatório adquirido; e o juiz está adstrito a explicitar, na decisão, as razões e os meios de prova em que se fundou para se alcandorar à posição de liquidez probatória que firmou a sua convicção. Acerca da motivação das decisões judiciais, por todos, vide Chaïm Prelman, in Lógica Jurídica, Edições Martins Fontes, s.Paulo p. 210. Por lidimar, transcreve-se a doutrina expressa no Ac. do STJ de 7.1.2004, Proc. nº 3213/03-3ª secção : “A livre apreciação da prova não significa apreciação segundo as impressões, nem inexistência de pressupostos valorativos, ou a desconsideração do valor de critérios, ainda objectivos ou objectiváveis, determinados pela experiência comum das coisas e da vida, e pelas inferências lógicas do homem comum suposto na ordem jurídica. Antes pressupõe a concorrência de critérios objectivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação da convicção, que emerge da intervenção de tais critérios objectivos e racionais; apenas a fundamentação racional e lógica, que possa fazer compreender a intervenção e o sentido das regras de experiência, permite formar uma convicção motivada e apreensível, afastando as conclusões que sejam susceptíveis de se revelar como arbitrárias, ou em formulação semântica marcada, meramente impressionistas”.
Por seu turno o princípio in dubio pro reo “acha-se intimamente ligado ao da princípio da livre apreciação da prova do qual constitui faceta e este último apenas comporta as excepções integradas no princípio da prova legal ou tarifada ou as que derivem de uma apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova produzida e ofensiva das regras da experiência comum”. Cfr Ac. do STJ, de 15.6.2000, proferido no processo nº 92/2000, 5ª secção. No mesmo sentido o Ac. do STJ, de 28.4.2004, proferido no processo nº 1116/04-3ª secção, onde se escreveu que”o princípio do in dubio pro reo constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova inscrito no art. 127ºdo CPP, impondo orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos, e que nessa medida, de imposição de sentido (pro reo), limita a liberdade de apreciação do juiz”.
Na análise a que procede das dificuldades que decorrem para os tribunais de 2ª instância Cfr. op. loc. cit., p. 195 e segs., constata o autor que se torna muito difícil operar um controle efectivo da prova testemunhal, dadas as suas peculiaridades, e por isso considera que, de alguma forma o tribunal de recurso, que não presencia a produção de prova testemunhal, ainda seja possível aceder-lhe (através das transcrições), será sempre um tribunal limitado na sua amplitude cognoscente. No caso do direito processual penal português, o tribunal de recurso (da matéria de facto), esta habilitado a controlar a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, mas só quem não teve oportunidade de ler umas transcrições pode afirmar a plenitude deste forma de controle de prova. Uma análise mais exaustiva levar-nos-ia tão longe que receamos afrontar a incipiência legislativa e próprio modelo adoptado, pelo que nos quedamos nos limites do recurso.
A convicção do julgador, escorado nos vectores das máximas da experiência, no seu conhecimento ciência jurídica, na sua mundividência sócio-cultural, na capacidade de percepção das reacções das pessoas que perante si depuseram, não abalizam o tribunal de recurso, depois delidas as declarações das testemunhas a formular juízo diverso, ainda que anotando algumas discrepâncias nos depoimentos prestados.
É entendimento do Supremo Tribunal, que “o processo de formação da convicção” das instâncias não é alheio ao poder de cognição dos tribunais de recurso na medida em que sempre deverá ser sindicado o processo de formação da convicção de modo a detectar-lhe o iter enformador e a necessidade de objectividade e motivação de modo a atestar que o resultado final está em consonância com essa objectivação suficiente e racionalmente motivada.
É o que pode ver-se por exemplo no acórdão deste Supremo Tribunal, de 8/11/01, proferido no recurso n.º 2634/01 e também no acórdão de 20/2/03, proferido no recurso n.º 360/03-5, (...), este publicado em texto integral em www.verbojurídico.net tendo o sumário na parte que ora importa a seguinte redacção: "o que o princípio da "livre convicção" ordena ao juiz é que decida sobre a matéria de facto que não se veja afectada pela dúvida, tendo a regra da prova livre como último horizonte a verdade histórica ou material.
A livre apreciação das provas há-de ser, porém, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e controlo.
Do mesmo modo, a dúvida relevante para desencadear o funcionamento o princípio "in dubio pro reo", também controlável em via de recurso, há-de ser portadora da marca de razoabilidade ou racionalidade devidamente objectivada na sentença". - Ac. Supremo Tribunal de Justiça, 14.XI.2002; P. 3316/02
O princípio in dúbio pro reo, constitui um princípio probatório, segundo o qual a dúvida em relação à prova da matéria de facto, tem de ser sempre valorada favoravelmente ao arguido, traduzindo o correspectivo do princípio da culpa em direito penal, a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena.
A intervenção deste principio opera somente a nível da apreciação da matéria de facto - sejam os pressupostos do preenchimento do tipo de crime, sejam os factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
O arguido na sua alegação não refere em que ponto da prova o juiz deu como provado uma qualquer ponto de facto e devê-lo-ia ter dado noutro sentido ou com feição factual distinto por a prova produzida não tr sido conclusiva quanto àquele concreto ponto de facto. Isto é, o arguido, tal como já acontecera com a putativa impugnação da decisão de facto – cfr. interrogações formuladas a fls. 133- limita-se a formular as dúvidas sem as sequenciar com um sustento probatório que permitissem ao tribunal de recurso sindicar o processo de formação da convicção do julgador. Não basta suscitar ou equacionar pontos dubitativos ou induzir um quadro nebuloso e não devidamente explicitado na sentença para que se considere cumprido o ónus de impugnação prescrito nos nºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal. É mister que quem questiona contramine ou aduza em favor da formulação dubitativa que estabelece prova que haja sido produzida e que abalance um juízo distinto daquele a que o tribunal chegou. O arguido limita-se a instalar a questão ou a formular uma interrogação sem outra consequência que não seja essa hipótese.
Poder-se-ia dar o caso de ocorrer alguma da situações previstas nas alíneas a) a c) do artigo. 410º do Código de Processo Penal. Ocorrendo esta situação estaria o tribunal de recurso obrigado a oficiosamente conhecer do vício de julgamento que das situações previstas no apontado normativo pudessem decorrer. Só que não se descortina qualquer dos vícios elencados no mencionado preceito.
Não colhe provimento o invocado fundamento de recurso.
II.B.4. – Individualização Judicial da pena principal e acessória.
“A pena há-de entender-se acima de tudo como marginalização do facto no seu significado lesivo para a norma e, com tal, como constatação de que a estabilidade normativa da sociedade permanece inalterada; a pena é confirmação da identidade da sociedade, isto é, da estabilidade normativa, e com a pena se alcança sempre este –si se quer - fim da pena.
A função manifesta da pena de confirmar a identidade da sociedade não exclui o aceitar como função latente una direcção da motivação: a repetida marginalização do facto e a confirmação da estabilidade social exclui formas de comportamento delitivas do repertório das sugeridas por donde quer, quando não incluso recomendadas, em outras palavras, na planificação quotidiana normal não se reflecte em primeiro lugar acerca da possibilidade de um proceder delitivo. Esta é a denominada prevenção geral positiva como função latente da pena. A ela também se lhe pode associar ainda um efeito intimidatório, quer dizer, una prevenção negativa, e outros mais”. Cfr. Günther Jakobs, in “Dogmática de Derecho Penal y la Construcción Normativa de la Sociedad”, Thompson- Civitas, Madrid, 2004, pág. 41
A propósito dos fins das penas, da medida concreta da pena e do princípio da proporcionalidade, doutrinou o nosso mais Alto Tribunal em dois arestos que se deixam transcritos a seguir.
“A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada (a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor – a medida da pena tem de corresponder às expectativas da comunidade) e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (é a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário. Dirige-se ao próprio condenado para o afastar da delinquência e integrá-lo nos princípios dominantes na comunidade)”(Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.02.2007; proferido no processo nº 28/07)
“O princípio da proporcionalidade do art. 18.º da Constituição refere-se à fixação de penalidades e à sua duração em abstracto (moldura penal), prendendo-se a sua fixação em concreto com os princípios da igualdade e da justiça.
[Deve na determinação concreta da pena atender-se ao] “grau de ilicitude do facto (o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente); – A intensidade do dolo ou negligência; – Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; – As condições pessoais do agente e a sua situação económica; – A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; – A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
4 – A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada (a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor – a medida da pena tem de corresponder às expectativas da comunidade) e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (é a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário. Dirige-se ao próprio condenado para o afastar da delinquência e integrá-lo nos princípios dominantes na comunidade) assim se desenhando uma sub-moldura. (Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 22.02.2007).
A defraudaçãos na vigência das normas manifestada pela conduta infraccional de um sujeito devem conferir ao órgão formal de controle a possibilidade de aquele concreto individuo se manter numa atitude de afirmação negativa e portanto reflectir na escolha da pena o grau de necessidade de validação da norma violada pela intensificação do sancionamento com que o sujeito deve reflectir a sua assumpção e recolocação no espectro vivencial positivo que o ordenamento vigente lhe impõe.

A pena constitui-se como um instrumento para resolver defraudações de expectativas que não podem ser estabilizadas de outra maneira. Trata-se de um expediente jurídico-social que consiste em demonstrar à custa do defraudante que se mantém a expectativa comunitária que reverbera no ordenamento jurídico. «O autor determinou-se e executou a sua conduta sem consideração pela vigência do Direito. Na medida em que isso implica a afirmação que a norma o não vincula, haverá que contraditá-lo através da pena (este é o significado da pena)» Cfr. Günther Jakobs, “La Pena Estatal: Significado e Finalidad”, Tradução de Manuel Cancio Meliá e Bernardo Feijoo Sánchez, Thompson, Civitas, 2006, pag. 142.Com a aplicação de uma pena pretende-se alcançar a manutenção da norma como esquema de orientação, prevenção «porque se persegue um fim, precisamente, a manutenção da fidelidade á norma, e isso, concretamente, com respeito á sociedade no seu conjunto, por isso, geral».
A pena terá que, ao assumir-se como função de manutenção da vigência da norma, ter como medida o peso da norma violada e a medida da sua vulneração; a situação de asseguramento cognitivo dessa norma; a responsabilidade do autor pela sua motivação do cometer o crime. O princípio da culpabilidade, ou a densificação da materialidade volitiva posta na execução de uma conduta, no que quer que isso possa ser mensurável, há-de, segundo o artigo 40º do código vigente, conferir a medida da pena.
Na especificação destes ensinamentos, mais de feição funcional e pragmática do que de elucubração etérea, recapitulemos o percurso vivencial do arguido atentando na sua actuação pessoal/social, nível de vulneração das normas violadas e grau de afirmação do facto (delitivo) em contradição com as normas orientadoras.
O grau de alcoolemia de que era portador é considerado segundo uma classificação da Físcalia do Tribunal Supremo espanhol como “franca borrachera de 2º período (de 1,50 a 3 grs/litro). Cfr. “El Delito de Conducción bajo la Influencia de Beb idas Alhólicas, Drogas Tóxicas o Estupefacientes”, Pilar Gómez Pavón (Professora Titualr de Derecho Penal de la Universidad Complutense de Madrid), Bosch, 1998, pag. 71; e “Medicina Legal. Libro de casos. I. Psiquiatria Forense e Drogodependencias”, Universidad Europeia de Madrid, p.49.
Com o quadro descrito a restauração da confiança nas normas violadas só é possível, em nosso juízo, com a imposição de uma pena que se situe no nível médio da pena abstracta mais gravosa cominada na norma incriminadora.
Daí que consideremos que o tribunal ponderou com razoabilidade e definiu o grau de insistência de defraudação das expectativas na afirmação da norma ao fixar a pena de prisão ao nível médio da pena cominada na norma incriminadora.
Apesar de estar demonstrado, em estudos realizados em países avançados, que não é a agravação das penalidades que dissuade os condutores da prática de condutas viárias infraccionais Cfr. a este propósito o exemplo citado na monografia supra referida de Pilar Gómez Pavón extraído de um estudo realizado na Alemanha, citada por Kaiser, em que se dá conta que “os dados obtidos pela praxis judicial na República Federal da Alemanha, no sentido do escasso efeito da agravação de sanções, já que depois de um primeiro momento em que o número de delitos diminuiu este voltou a aumentar até quedar na situação anterior” – pag. 215 da op. loc. cit. , não podemos deixar de aquiescer que não poderá a complacência assumir-se como parâmetro orientador na aplicação de sanções àqueles que tendo responsabilidade acrescida pelo facto de fazerem da circulação viária a sua actividade quotidiana se desresponsabilizam de forma tão flagrante e despudorada do seu sentido e dever de um arrimado cumprimento das normas e regras que regem para este sector da vida comunitária.
A medida da pena mostra-se equilibrada e ajustada ao comportamento desmesurado que o arguido assumiu para prevenir e acautelar os fins a função das penas, nos termos sobreditos.
“A pena de privação da carta de condução (permisso de conducir) apareceu com os chamados delitos de tráfico, e tem sido considerada como a mais adequada para a sua sanção (…). Para Kaiser é a única que pode ser eficaz em ordem à prevenção geral, «apesar da sua motivação primeira para a prevenção especial», já que é a mais temida pelos potenciais delinquentes de tráfico, e a única que se aplica com uma relativa uniformidade, ainda que sobre a sua eficácia não existam dados empíricos precisos. Também Beristain se mostra partidário da pena de privação da licença de condução, que é «sem dúvida, a mais eficiente e necessária […]”. Pilar Gómez Pavón, in op. loc. Cit. pag. 240. Para a autora da monografia que vimos citando “com todos os inconvenientes que possa apresentar a pena de privação de licença de condução […] é a mais adequada para o castigo do delito de condução sob a influência de bebidas alcoólicas, drogas tóxicas ou estupefacientes e, em geral, dos delitos contra a segurança do tráfico, junto com as penas pecuniárias. Com ambas se evitam os efeitos prejudiciais cm que se achacam as (penas) curtas privativas de liberdade, não separando o condenado do seu entorno social, familiar e laboral. Por outra parte, e sobretudo, a privação da licença de conduzir está directamente relacionada com o delito cometido e parece ser a mais temida por sujeitos, cumprindo além disso a missão de afastar da circulação do condenado […]”.
Estando, ou sendo que deva estar, a medida concreta da pena de proibição de condução de veículos motorizados (a doutrina continua a discutir, pelo menos nos ordenamentos mais avançados, se se trata de pena ou de medida de segurança, com Cuello Calón a propugnar pela tese de “medida de seguridad” e Conde-Pumpido (Fiscal General de Espanha) a defender que se trata de uma pena) correlacionada com o delito de que é ancilar, dever-se-ão, na operação de determinação da sua medida, levar em conta os mesmos factores que intervêm na ponderação da individualização.
Ao arguido foi imposta uma pena de proibição de um (1) ano e seis (6) meses sendo que o mínimo previsto na lei é de três meses –cfr. artigo 69º, nº1, al. a) do Código Penal e o máximo 3 anos.
As razões que justificam a pena principal hão-de servir para justificar o doseamento da sanação acessória pelo que tendo aquela ficado situada um pouco acima da média cominada na norma a sanção terá de lhe seguir o critério. O critério de proporcionalidade e correspondência aconselha a que no doseamento da sanção acessória se acompanhe a operação de aferição da pena principal pelo que, embora desbordando do inócuo pendor tabelar apanágio na determinação da medida concreta evidenciado na sentença, deve ser mantida a sanção aplicada.
Queda por ponderar, à luz do nº 4 do artigo 2º do Código Penal, a duração do período de suspensão da pena. O artigo 50º, nº 1 do Código Penal alterou a moldura penal limite possibilitadora da suspensão da execução da pena, alargando o prazo anteriormente fixado de três (3) para cinco (5) anos., fixando no nº 5 do mesmo preceito limite mínimo a partir do qual pode ser fixada a suspensão da execução da pena e indexando o período da suspensão à medida da pena efectivamente aplicada.
Em nosso juízo o novo nº 5 do artigo 50º do Código Penal constitui-se como um desvio ao princípio ínsito no artigo 71º do mesmo livro de leis, na justa medida em que adopta um critério objectivo e automático de indexação do período da suspensão da execução da pena à medida da pena efectivamente aplicada. Com este critério a lei retira ao juiz, único aferidor da culpa jurídico-penal do agente, a possibilidade de adequar o período da suspensão às necessidades de prevenção exigíveis para o concreto agente a quem cabe dosear a concreta medida da pena, com a correlata ponderação da culpabilidade do agente, da gravidade do crime cometido, da personalidade doa agente e das circunstâncias anteriores e posteriores que rodearam a prática do ilicito. Deixa o juiz de poder ponderar se, mesmo aplicando uma pena concreta de, por exemplo um (1) ano de prisão, não deveria, em faces das circunstâncias atinentes ao agente, à necessidade de prevenção e às demais condicionantes concretas não seria adequado suspender a execução da pena por período superior a um ano e até ao máximo de cinco.
Com esta norma, que reputamos pouco feliz e de efeitos perversos, em face dos fins das penas e do princípio da culpabilidade, o juiz, se considerar que no caso concreto se mostra ajustada uma pena de prisão e devendo essa pena ser suspensa, mas por um período longo ou pelo menos superior a um ano, poderá ser tentado, para cumprir a indexação objectiva e automática contida no nº 5 do artigo 50º a aplicar uma pena de prisão superior a um ano e de medida igual aquela que estima ser aquela que deveria ser o período adequado de suspensão da pena. Assim seria, ou poderá ser tentado para cumprir a referenciação totalitária e vinculada estabelecida no novo nº 5 a prejudicar o arguido para assegurar os fins preventivos da pena sem descurar a necessidade de assegurar uma correcta defesa social e asseguramento na confiança das normas e das expectativas que a sociedade coloca na função do sistema penal. Violando com isto o sacrossanto princípio da culpabilidade.
Mais preocupante e gravoso se nos afigura constituir a solução consagrada uma clamorosa amputação e uma desvirtuação de uma pena que o regime instituído com o Código de 1982 como uma pena substitutiva, é dizer a pena de substituição de suspensão da execução da pena. Como categoria autónoma no leque de panas ao dispor do tribunal a pena de substituição de suspensão da execução da pena deixa de ter a capacidade de cumprir o fim para que tendia. Na ponderação da sua escolha o tribunal deixa de ter uma variante opcional que, de ordinário, influía na hora de fazer uma convocação da sua especial virtualidade para o fim pretendido, nomeadamente assegurar que a ameaça que ela constituía operava o efeito dissuasor pretendido. Dessora-se uma categoria do leque de penas porque o legislador lhe diminuiu a ductilidade e expansividade que até ao momento lhe andavam enlaçadas.
Talvez se queiram assumir outras correntes doutrinais, a nosso ver bem mais aptas a actuar no sociedade de risco e tecnocrática em que nos é dado viver (ou sobreviver, no dizer de alguns mais avisados) mas, se assim é, seria conveniente que se expurgassem os resquícios da teoria das penas que tem como referente uma dimensão ético-juridica e que mantém a matriz informadora do nosso sistema de penas.
Seja, porém, como for não sendo este o momento adequado para explanação de outras teorias que nos parecem começar a aflorar em algumas das soluções plasmadas no “novo” Código Penal, haveremos de, em obediência ao princípio da lex favorabilia, adequar o período da suspensão da pena ao comando contido no novo nº 5 do artigo 50º do Código Penal.
III. – Decisão.
Na defluência do exposto decidem os juízes que constituem este colectivo, na secção criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra, em:
- Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido mantendo, em consequência, a decisão impugnada;
- Por injunção do nº 4 do artigo 2º do Código Penal altera-se o período da suspensão da pena imposto na sentença para um (1) ano.
- Condenar o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em dez (10) Uc’s.



Coimbra, 28 de Novembro de 2007
.........................................................................

(Gabriel Catarino, relator)