Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2300/05.4TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME FERREIRA
Descritores: REGISTO PREDIAL
DECLARAÇÃO
AQUISIÇÃO
USUCAPIÃO
COMPETÊNCIA MATERIAL
Data do Acordão: 05/22/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL – 2º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 116º E 117º DO C. R. PREDIAL, NA REDACÇÃO DO D. L. Nº 273/2001, DE 13/10
Sumário: I – A acção declarativa pela qual se pretende ver reconhecida e declarada a aquisição de um determinado prédio por usucapião é uma acção declarativa simultaneamente de simples apreciação positiva e constitutiva, nos termos do artº 4º, nº 2, als. a) e c), do CPC.

II - Tal tipo de acção corresponde à anteriormente chamada “acção de justificação judicial”, prevista no artº 116º, nº 1, do Código de Registo Predial, mediante a qual “o adquirente que não dispusesse de documento para a prova do seu direito poderia obter a primeira inscrição por meio de acção de justificação judicial ou de escritura de justificação notarial”.

III - Com a publicação do D.L. nº 273/2001, de 13/10, foi revogado o D.L. nº 284/84, tendo passado a ser objecto de decisão por parte do conservador o antigo processo de justificação judicial, tendo saído da competência material dos tribunais comuns a decisão conducente às justificações para efeitos registrais.

IV - Donde resulta que, actualmente e desde 1/01/2002, não são da competência dos tribunais comuns o tipo de acções de justificação em que não haja litígio sobre o reconhecimento da constituição de novos direitos reais adquiridos por usucapião.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
I
No Tribunal Judicial da Comarca de Pombal, A... e mulher B... , residentes na ......, freguesia do Carriço, concelho de Pombal, e C... , residente na Rua .......freguesia de Bidoeira de Cima, concelho de Leiria, instauraram a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra D... e marido E... , residentes na Rua ........; e contra a herança ilíquida e indivisa por óbito de F... , falecida em 17/12/2003, residente que foi no lugar de ........, freguesia do Carriço, concelho de Pombal, cujos herdeiros se identificam na acção, pedindo que se declare que os 1ºs A.A. são legítimos possuidores e proprietários do prédio identificado no artigo 1º da petição, que adquiriram por usucapião; que o 2º A. é legítimo possuidor e proprietário do prédio identificado no artigo 2º da petição, que adquiriu por usucapião; Que se declare que esses prédios se autonomizaram do inscrito na matriz predial rústica da freguesia do Louriçal sob o artigo 14698, prédio este também descrito na Conservatória do Registo Predial de Pombal sob o nº 02717/031292 da freguesia do Carriço; que se declare que os demandantes têm direito a proceder à inscrição matricial desses prédios e sua respectiva descrição na C.R.P.
Para tanto e muito em resumo, alegaram os A.A. que os primeiros são donos e possuidores de um prédio rústico sito ao Cabecinho, freguesia do Carriço, concelho de Pombal, com a área de 2.247,29 m2, e que o 2º A. é dono do prédio rústico sito no mesmo lugar, com a área de 1736,53 m2, ambos fazendo parte do prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia do Louriçal sob o artigo 14698 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Pombal sob o nº 02717/031292 da dita freguesia.
Que os sobreditos prédios resultaram da divisão do prédio com o artigo 14698 em 4 parcelas, por óbito de G..., ocorrido em 29/07/1984, tendo para o efeito os interessados colocado marcos a fazer essa divisão, que se tem mantido até ao presente e tendo cada uma dessas parcelas passado a ser possuída pelo respectivo interessado.
Que desde há mais de 20 anos que os A.A. estão na posse das referidas parcelas, que cavam, lavram, onde semeiam, plantam e colhem frutos, à vista de toda a gente, continuadamente e de forma pacífica, na convicção de serem donos dessas ditas parcelas.
Que, por isso, se autonomizaram as ditas, por usucapião, o que pretendem ver reconhecido.
II
Citados os R.R., por eles não foi deduzida qualquer oposição.
III
Foi então proferido o despacho de fls. 123 a 126, no qual foi entendido que é aos Conservadores do Registo Predial que compete conhecer da matéria em causa nesta acção e não aos Tribunais Judiciais, em face do que foi decidido julgar o Tribunal Judicial da Comarca de Pombal incompetente em razão da matéria, com a consequente absolvição dos R.R. da instância.
IV
Desta decisão recorreram os A.A., recurso este que foi admitido como agravo, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Nas alegações que apresentaram os Agravantes concluíram do seguinte modo:
(…)
V
Nesta Relação foi aceite o recurso interposto e tal como foi admitido em 1ª instância, tendo-se procedido à recolha dos necessários “vistos” legais, pelo que nada obsta a que se conheça do seu objecto.
Tal objecto consiste apenas na reapreciação da decisão que julgou o Tribunal a quo incompetente em razão da matéria para apreciar os pedidos formulados na presente acção.
No despacho em crise defende-se que: “ atendendo aos artigos 116º, 117º-A a 117º-P, 118º, 120º a 131º, e 132º-A a 132º-D, do Código de Registo Predial, na nova redacção do D.L. nº 273/01, de 13/10, é aos conservadores do registo predial que compete conhecer da matéria que os autores pretendem e já não aos tribunais, … existindo um processo próprio para os autores fazerem valer os direitos que alegam assistir-lhes.
Desses normativos decorre que a competência material para o processo de justificação de registo, designadamente daquele em que seja invocada a usucapião como causa de aquisição, cabe às Conservatórias do Registo Predial, que … adquiriram competência para o efeito, com a garantia da possibilidade de recurso.
Que a partir de 1/01/2002 os tribunais comuns deixaram de ter competência material para o processo de justificação de registo previsto no nº 1 do artº 116º do C.R.P.”.
Os Autores discordam de tal tese e defendem, como já faziam na sua petição inicial, que apenas o Tribunal Judicial Comum goza de competência material para proferir decisão sobre os pedidos formulados na acção.
Cumpre, pois, apreciar tais pontos de vista acerca da referida (in)competência material do Tribunal comum.
Conforme já transparece do relatório supra, os factos alegados pelos A.A. resumem-se aos seguintes, face ao objecto do presente recurso:
1 – Na freguesia do Louriçal, concelho de Pombal, sob o artigo 14698 rústico, encontra-se inscrito um prédio sito ao Cabecinho, composto de terra de cultura, com árvores de fruto, oliveiras e videiras, com a área de 5640 m2, cujos titulares inscritos são A...(1/4), E... (1/4), H... (1/4), e C... (1/4) – doc. de fls. 31.
2 – Tal prédio acha-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Pombal sob o nº 02717/031292 da freguesia do Carriço – certidão de fls. 33 a 37 -, embora na inscrição G-3 relativa à aquisição a favor deE... e mulher D... apenas conste como quota-parte adquirida 1/8 (o que não corresponde à realidade e, por isso, carece de ser devidamente corrigido), conforme resulta da certidão judicial de fls. 39 a 46.
3 – O referido prédio foi objecto de partilha no inventário sob o nº 101/1990 do Tribunal Judicial de Pombal, em que foi inventariada G... e cuja sentença homologatória da partilha é datada de 29/04/1991, devidamente transitada em julgado, no qual a verba relativa a esse prédio (verba nº 34) foi adjudicada na proporção de ¼ a cada um dos interessados H... e mulher F...; A...e mulher B...; I... e marido J... ; e D... e marido E... – certidão de fls. 39 a 46.
4 – Por escritura pública de 13/06/2003, celebrada no Cartório Notarial de Ansião, os herdeiros de I..., devidamente habilitados para o efeito, declaram vender a C..., entre outros prédios, ¼ do prédio rústico identificado no ponto 1 supra – doc. de fls. 47 a 51.
5 – Tal prédio foi dividido entre os apontados herdeiros logo após o óbito de G..., ocorrido em 29/07/1984, e em quatro parcelas, com as áreas e a configuração que são indicadas no documento de fls. 38 – levantamento topográfico do prédio correspondente ao artigo rústico nº 14698.
6 – Para o efeito foram colocados marcos e estabelecidas linhas divisórias no terreno e desde então tais parcelas passaram a andar na posse de cada um dos referidos herdeiros, o que se tem mantido até ao presente, cada qual ocupando, cavando, lavrando, semeando e colhido os frutos da parcela que assim lhe foi atribuída, de forma pacífica, pública, continuada e de boa fé, cada qual na convicção de ser apenas dono da sua fracção resultante de tal divisão.
7 – Na presente acção não foi apresentada qualquer oposição, pelo que não se verifica qualquer litígio entre os interessados directos na questão que é colocada para decisão.

Pretendem os Autores, com esta acção, que lhes seja reconhecido o direito à aquisição das respectivas parcelas, que identificam no documento de fls. 38, por áreas, localização e confrontações.
Trata-se, pois, de uma acção declarativa simultaneamente de simples apreciação positiva e constitutiva, nos termos do artº 4º, nº 2, als. a) e c), do CPC, porquanto com esta acção os Autores visam obter a declaração da existência de um direito relativamente a cada um deles (pedidos 1 e 2), resultante do instituto da usucapião, mas também com ela visam atingir uma efectiva mudança na ordem jurídica existente, declarando-se novas situações jurídicas (a vigorar para o futuro), com o que se modificam direitos fundados em situação jurídica anterior (pedidos 3, 4 e 5).
Será que para tal fim tem competência o Tribunal Judicial Comum?
Afigura-se-nos, com o devido respeito por opiniões contrárias, que tal tipo de acção correspondia à anteriormente chamada “acção de justificação judicial” prevista no artº 116º, nº 1, do Código de Registo Predial, mediante a qual “o adquirente que não dispusesse de documento para a prova do seu direito poderia obter a primeira inscrição por meio de acção de justificação judicial ou de escritura de justificação notarial”.
E assim sucedida porque a chamada “aquisição por usucapião” se traduz numa forma de aquisição originária, portanto desprovida de trato sucessivo, resultante da apropriação por alguém de uma coisa abandonada ou deixada ao abandono pelo seu anterior proprietário ou por virtude do desaparecimento deste sem linha de continuidade na posse dos seus bens, o que levou a ter-se transformado essa coisa ou bem em “res nullius”.
Uma vez verificado tal abandono ou corte na cadeia de transmissões regulares derivadas, impõe-se o estabelecimento de um novo trato registral sucessivo e a partir do novo direito titulado por uma justificação resultante da usucapião (forma de aquisição originária do direito).
Foi precisamente com vista a obter-se este novo trato registral que o D.L. nº 284/84, de 22/08, veio estabelecer as regras processuais conducentes a tal fim, diploma no qual até se previa a sua futura inclusão no CPC (o que não chegou a suceder), como processo especial, a ser processado nos tribunais - no preâmbulo deste diploma refere-se expressamente que o processo de justificação judicial está estritamente dirigido aos juízes.
Logo, dúvidas não havia acerca da competência material dos tribunais comuns para o processamento desse tipo de acções, embora elas próprias não admitissem um qualquer litígio – ver artº 4º, nº 2, do dito diploma.
É o que resulta do disposto no artº 66º do CPC, já que para o efeito em questão não era atribuída competência a outra ordem jurisdicional.
Porém, com o passar dos tempos e a “mudança de vontades”, entendeu o legislador, em 2001, mediante a publicação do D.L. nº 273/2001, de 13/10, que era tempo de “operar a transferência de competências em processos de carácter eminentemente registral dos tribunais judiciais para os próprios conservadores de registo, inserindo-se (tal transferência) numa estratégia de desjudicialização de matérias que não consubstanciam verdadeiro litígio”.
E nesse entendimento foi revogado o citado D.L. nº 284/84, tendo passado a ser objecto de decisão por parte do conservador o anterior processo de justificação judicial, aplicável à maioria das situações de suprimento de omissões de registo não oportunamente lavrado, …, e no âmbito do registo predial … o processo de justificação, anteriormente efectuado notarial ou judicialmente ou pelo conservador, passou a ser, em regra, decidido pelo próprio conservador, mantendo-se paralelamente o processo de justificação notarial previsto na lei do emparcelamento e o processo de justificação administrativa para inscrição de direitos sobre imóveis a favor do Estado – ver relatório do D.L. nº 273/2001.
Desta forma, foi, pois, revogado o anterior processo de justificação judicial, tendo “saído” da competência material dos tribunais comuns a decisão conducente às justificações para efeitos registrais.
E foi com esse entendimento que o artº 116º do C. R. Predial foi alterado, dispondo agora que “o adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo, e caso exista inscrição de aquisição, …, a usucapião implica novo trato sucessivo a partir do titular do direito assim justificado” – nºs 1, 2 e 3.
Assim, com a entrada em vigor do D.L. nº 273/2001, em 1/01/2002, as normas referentes à anterior justificação judicial foram incluídas no C.R.P. (artºs 117º-A e segs.) – ver, neste sentido, Isabel Pereira Mendes, in “Código do Registo Predial anotado e comentado”, 15ª edição, pg. 399.
Resulta do artº 117º-A, nº 1, que “a justificação de direitos que, nos termos da lei fiscal, devam constar da matriz só é admissível em relação aos direitos nela inscritos ou relativamente aos quais esteja pedida, à data da instauração do processo, a sua inscrição na matriz”, pelo que cumprirá aos Autores agir em conformidade.
E do artº 117º-B, nºs 1 e 2, al. c), resulta que “o processo se inicia com a apresentação de requerimento dirigido ao conservador competente, em razão do território, para efectuar o registo ou registos em causa, … , requerimento esse no qual o interessado pede o reconhecimento do direito em causa, oferece e apresenta os meios de prova e indica as circunstâncias em que baseia a aquisição originária, bem como as transmissões que a tenham antecedido e as subsequentes, se estiver em causa o estabelecimento de novo trato sucessivo nos termos do nº 3 do artº 116º ”.
Do nº 3 deste mesmo preceito resulta que “ sendo invocada a usucapião como causa da aquisição, são expressamente alegadas as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, quando não titulada, bem como, em qualquer caso, as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião”.
Instaurado tal processo, “abre-se a descrição do prédio ainda não descrito e, se a descrição resultar de desanexação de outro prédio, faz-se a anotação da desanexação na ficha deste último “ – artº 117º-E, nº 2.
Tal tipo de processo comporta decisão do conservador do registo competente (a qual tornando-se definitiva conduz a que o conservador lavre oficiosamente os consequentes registos), a não ser que haja oposição, situação em que o processo será declarado findo e só então os interessados são remetidos para os meios judiciais – nºs 2 e 6 do artº 117º-H.
Donde resulta que, actualmente e desde 1/01/2002, não são da competência dos tribunais comuns o presente tipo de acções de justificação em que não haja litígio sobre o reconhecimento da constituição de novos direitos reais adquiridos por usucapião, nos termos do artº 66º, à contrário, do CPC, competência essa que apenas cabe aos conservadores do registo predial ou a notários e que apenas caberá aos meios judiciais nos casos de litígio ou de oposição (o que justifica, pois, a judicialização do processo).
Conclui-se, face ao exposto, que só em caso de oposição (portanto de litígio) é que pode haver recurso aos meios judiciais, nos termos do nº 2 do artº 117º-H, do C. R. P.
Sendo assim, desde 1/01/2002, data da entrada em vigor do D.L. nº 273/2001, de 13/10, que a presente causa é da competência das Conservatórias do Registo Predial, por não haver litígio entre os interessados, como bem resulta do relatório do referido diploma, pelo que carecem os Tribunais Judiciais de competência material para o efeito, nos termos do artº 66º, à contrário, do CPC.
Consequentemente, bem andou a 1ª instância ao ter decidido a sua incompetência em razão da matéria, do que podia conhecer oficiosamente – artº 102º, nº 1, do CPC -, o que importa manter, pelo que falecem os argumentos apresentados pelos Recorrentes, cujo agravo não merece, por isso, provimento.
VI
Decisão:
Face ao exposto, acorda-se em negar provimento ao presente recurso de agravo, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelos Agravantes.