Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
195/07.2TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: REIVINDICAÇÃO
ARRENDAMENTO RURAL
Data do Acordão: 12/16/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.1311º CC, DL Nº 385/88 DE 25/10
Sumário: I - Numa acção de reivindicação, o réu que excepciona, como facto impeditivo do pedido de restituição, a qualidade de arrendatário do imóvel reivindicado, em virtude de um contrato verbal de arrendamento rural, terá que alegar simultaneamente haver convocado o autor para reduzir a escrito esse mesmo contrato e a recusa dele em o fazer.

II – Não obsta à restituição a simples invocação de um contrato verbal de arrendamento rural.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

A (…) e mulher B (…) intentaram acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra C (…) e mulher D (…), pedindo a condenação dos RR.: a) a reconhecerem que os AA. são os únicos donos dos prédios id.s no art.1º da petição inicial; b) a não entrarem nos citados prédios dos AA., deixando-os livres e desembaraçados; c) a absterem-se de estorvar por qualquer meio a posse dos AA. sobre estes prédios.
Para tanto invocam ser donos e legítimos possuidores de um prédio urbano e três rústicos que descrevem, que compraram e sempre teriam adquirido por usucapião, como expressamente invocam, ainda que beneficiassem da presunção de registo a seu favor, mais alegando que os RR., desde há cerca de dois ou três anos, sem qualquer título, têm feito incursões nos prédios dos AA., que ocupam ilegitimamente.
Contestaram os RR., defendendo-se por impugnação simples e motivada, excepcionando a existência desde 1971 de um contrato de arrendamento verbal sobre os referidos prédios rústicos e urbano, pela renda anual de esc.15.000$00 que alegadamente sempre pagaram, razão pela qual desde então, na qualidade de arrendatários, habitam e cultivam os ditos prédios.
Replicaram os AA., pugnando pela improcedência da excepção já que não alegaram os RR. que a falta de contrato de arrendamento escrito, de onde decorre a sua nulidade, é imputável à parte contrária (art.35º, nº5, da L.A.R.).
Responderam os RR. mediante articulado de tréplica, no qual alegam ter notificado os AA. para a formalização do contrato.
Foi proferido o despacho de fls. 109, no qual se decidiu:
«Os réus (…) apresentaram articulado de tréplica, na sequência da réplica dos autores.
Todavia, o articulado apresentado pelos réus é legalmente inadmissível e, por isso, deve ser desentranhado, por constituir processado anómalo.
Vejamos porquê.
Estabelece o art.º 503.º, n.º 1, do C PC que, havendo réplica e nesta ocorrer modificação do pedido ou da causa de pedir, nos termos do art.º 273.º, ou se, havendo reconvenção, o autor nela deduzir alguma excepção, tem o réu a possibilidade de responder, para se pronunciar sobre aquela modificação ou sobre a excepção oposta à reconvenção.
No caso vertente, nenhuma destas situações se verifica. Não houve reconvenção e os autores, na sua réplica, não modificaram a causa de pedir ou o pedido. Logo, o último articulado apresentado pelos réus carece de razão de ser.
Pelo exposto, determino se desentranhe a tréplica, uma vez que esta não obedece aos legais requisitos, preceituados no art.º 503.º, n.º 1, do C PC, deixando-se cópia no seu lugar.
Custas do incidente a cargo dos réus, fixando-se a taxa de justiça em ½ UC.»
Foi proferido despacho saneador, no qual se procedeu à organização dos factos assentes e à definição da base instrutória.
Procedeu-se a julgamento, tendo sido proferida sentença que culmina com a seguinte decisão:
«Pelo exposto, de facto e de direito, decide-se:
I) julgar totalmente procedente, por provada, a acção e consequentemente condenar os RR.:
a) a reconhecerem que os AA. são, com exclusão de outrem, donos dos prédios identificados nos pontos 1º e 2º da matéria assente;
b) a não entrar nesses prédios, deixando-os livres e desembaraçados;
c) abstendo-se de estorvar, por qualquer meio, a posse dos AA. sobre esses prédios.»
Inconformados, apelaram os Réus, apresentando as seguintes conclusões:

a) Face ao petitório subscrito pelos A.A. era convicção das partes que se encontrava estabilizada a jurisdição que iria resolver a questão sub-judice de acordo com as regras estabelecidas pelo artº 1311.º para a acção de reivindicação;

b) Tal convicção das partes foi confirmada pelo douto despacho jurisdicional de fls. 167, v.º, transcrito em 1.7;

c) Nesta circunstância, a sentença recorrida foi proferida ao arrepio da convicção e expectativas formadas de boa fé no património das partes em resultado de todo o desenvolvimento processual anterior;

d) Nesta medida, além de injusta o Tribunal a quo emitiu uma decisão surpresa, a qual na sua essência e fundamentação não está conforme com o dever/ princípio da cooperação exigida aos intervenientes processuais pelos artº 3° e 266° Cod. Proc. Civil;

e) Acresce que, no caso de processos judiciais referentes a arrendamento rural, caso o autor não junte um exemplar do contrato nem haja alegado o que quer que seja sobre a falta de redução a escrito,

f) O Sr. Juiz de direito deverá convidar a parte a fazer essa junção e a aperfeiçoar a petição, se tiver havido recusa em formalizar o dito contrato – artº 508° CPC e Ac. RL 07-12-1999:

g) A sentença recorrida deu como provada a existência entre as partes de um contrato de arrendamento verbal, mediante o pagamento de uma renda anual desde 1975, a qual, a partir de 1999, se situa no valor de 15.000$00;

h) Tal acordo de vontades estaria sujeito à forma escrita sob pena de nulidade –art.º 3.° e 36.° DL 385/88 de 25 de Outubro e 220° Cod. Civil;

i) Sucede que, resulta da sentença ora em recurso, que, o contrato não foi reduzido a escrito e nenhum deles alegou sequer ter interpelado a parte contrária para o reduzir a escrito;

j) Acresce que, os A.A. não alegam nem requerem a nulidade do descrito contrato de arrendamento por falta de forma;

k) Tal facto é cominado com uma “nulidade atípica”, ditada “em ponderação da predominância de atendibilidade do interesse das partes contratantes” - Ac. STJ de 01-03-2001;

l) Dai que, seja entendimento da jurisprudência, que não tendo qualquer das partes invocado a nulidade do contrato por falta de forma, não pode a mesma ser decretada oficiosamente pelo Tribunal - Acs. STJ de 28-06-1995 e 06-10-1998 e Ac. RE de 23-09-2004;

m) Acresce que, os A.A. peticionam nesta acção a condenação dos R.R. a reconhecerem o direito de propriedade sobre os prédios descritos na p.i., a não entrar nos mesmos, deixando-os livres e devolutos e a abster-se se estorvar a sua posse;

n) Nesta circunstância, face à causa de pedir (direito real de propriedade) e ao pedido formulado, fácil é concluir que não está em causa uma questão relativa ao arrendamento;

o) A apreciação e decisão desta acção só pode ser feita à luz do pedido formulado pelos A.A., não restando qualquer dúvida de que se trata de uma típica acção de reivindicação instaurada ao abrigo do art.º 1.311.º Cod. Civil;

p) Ora, esta acção deverá seguir a forma de processo comum, sendo irrelevante a existência de um contrato de arrendamento que se considere inválido - Ac. RC de 08-05-1990;

q) Situação que permite concluir, na linha de Ac. de 29-11-2005, não ser aplicável à presente acção o disposto no n°5, art.º 35.º da LAR;

r) Acresce que, não restam dúvidas de que os R.R. desde 1975 pagam urna renda aos A.A. pela ocupação e cultivo dos prédios em causa;

s) Apesar disso, os A.A. nada dizem sobre o dito contrato, optando por acusar os R.R. de há 2/3 anos fazerem urnas “incursões” nos ditos prédios;

t) Certamente na convicção de que por este meio (reivindicação), seria mais fácil desalojar os R.R;

u) Só que, o facto de os A.A. terem fingido desconhecer a existência do dito contrato de arrendamento, não lhes pode aproveitar;

v) Pois, neste caso, a restituição do arrendado só poderá ser obtida através meio processual próprio, ou seja, a instauração da competente acção de despejo - Ac. STJ de 18-12-1994.
Em resposta às alegações dos Apelantes/Réus, vieram os Apelados/Autores apresentar contra-alegações, preconizando a manutenção do julgado.

II. Fundamentos de facto
A 1ª instância considerou provados os seguintes factos:
1. No dia 6 de Agosto de 1993, por escrito, perante notário, os autores declararam comprar a (…) e mulher (…), representados por (…), na qualidade de procurador, que declararam vender, pelo preço de 930.664$00, o seguinte prédio:
 - uma terra de semeadura de milho e centeio, com videiras, oliveiras, macieiras, pereiras, cerejeiras, e uma nogueira, pinhal e mato, sita a Quinta, freguesia de Povolide, com a área de 18.986m2, a confrontar do norte e poente com o caminho, do nascente e sul (…), inscrita na respectiva matriz rústica sob o artigo 000.
2. No dia 4 de Outubro de 2001, por escrito, perante notário, os autores declararam comprar a (…)e mulher (…) , representados por (…), na qualidade de procurador, que declararam vender, pelo preço global de 5.500.000$00, os seguintes prédios:
- uma casa para habitação, com dois pavimentos, três dependências, pátio, dois releixos e forno, sendo o primeiro pavimento com duas divisões e dois vãos, e o segundo pavimento, com duas divisões e quatro vãos, sita em Cadimas, freguesia de Povolide, com a superfície coberta de 73 m2, a confrontar do norte com os próprios, do sul com AAC e outros, do nascente com AAC e do poente com a Rua, inscrita na respectiva matriz urbana sob artigo 111;
- uma terra de semeadura de milho e centeio, com videiras, sita as Chãs, freguesia de Povolide, com a área de 3870 m2, a confrontar do norte, nascente e sul com AAS, e do poente com o caminho e outros, inscrita na respectiva matriz rústica sob o artigo 000;
- pinhal e mato, sito ao Sobrancelo, freguesia de Povolide, com a área de 12.200 m2, a confrontar do norte com Herdeiros de AF, do nascente com CO, do sul e poente com o caminho, inscrita na matriz rústica sob o artigo 222.
3. Os prédios acima identificados encontram-se registados a favor dos autores.
4. Os autores, por si e seus antecessores, têm usado e fruído esses prédios, cultivando os prédios rústicos, lavrando-os, semeando, podando as arvores e recolhendo os seus frutos, e utilizando o prédio urbano para recolha do vinho, lenhas, depósitos de frutos dos prédios rústicos, e cedendo o seu uso e gozo, para habitação, mediante pagamento de uma quantia;
5. O que têm feito à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, dia após dia, ano após ano, sem intermitências, e na convicção de que de tais prédios são donos e de que não prejudicam direitos de terceiros.
6. Em data não concretamente apurada, mas situada depois da compra referida em 2), os RR. cortaram pinheiros, de valor não apurado, no mencionado pinhal do “Sobrancelo”.
7. Em data não concretamente apurada, nunca posterior ao ano de 1975, (…)  e mulher declararam verbalmente ceder aos RR. o uso e o gozo de todos os prédios urbano e rústicos referidos em 1) e 2), mediante o pagamento anual do valor equivalente a uma quantia global não concretamente apurada.
8. Por causa deste acordo, desde então os RR. têm ocupado aquele prédio urbano ali guardando vinho, animais e objectos agrícolas, bem assim cultivado os referidos prédios rústicos designadamente semeando e/ou colhendo os alhos, milho, feijão, batatas, hortaliça e as uvas no terreno sito à "Quinta" e colhendo os frutos das árvores existentes no terreno sito às "Chãs", sendo que após a compra referida em 2) os RR. têm igualmente apanhado a azeitona nestes terrenos.
9. Pelo menos desde então (ano de 1975), os RR. têm pago, a título de renda, o valor equivalente a uma dada quantia anual, a qual a partir de 1999 tem sido equivalente a cerca de esc.15.000$00/ano.
III. Do mérito do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se numa única questão: apreciação da excepção deduzida pelos Apelantes na sua contestação, centrada na apreciação da validade do contrato de arrendamento que invocam.

1. Questão prévia:
A não invocação da interpelação para a formalização escrita do contrato.
Ocorreram sucessivamente três erros no processado, que, definitivamente, não permitem que este tribunal considere invocada pelos Apelantes a interpelação dos Apelados para a formalização do contrato.
Vejamos:
Os Apelados alegaram na petição, que os prédios em causa lhes pertencem e que os Apelantes os ocupam sem qualquer título legitimador.
Os Apelantes na sua contestação, nos artigos 1.º a 6.º, invocam a existência de um contrato de arrendamento rural.
Com o referido articulado, os Apelantes não juntam qualquer documento que prove a forma escrita do contrato, nem alegam ter interpelado os Apelados para a sua formalização escrita.
Salvo o devido respeito, este é o primeiro erro, na medida em que estava vedada aos Apelantes a invocação de um contrato de arrendamento meramente verbal, sem que simultaneamente alegassem ter convocado os Apelados para a redução a escrito desse contrato[1].
Não alegando ter convocado a outra parte para a redução a escrito do contrato de arrendamento rural, não podiam os Apelantes invocar tal contrato em juízo, como adiante melhor se demonstrará.
O segundo erro reside, ressalvando também todo o respeito devido, na omissão do M.º Juiz do Tribunal a quo, que deveria ter proferido despacho de aperfeiçoamento com vista a permitir aos Apelados suprir a omissão apontada.
Tal despacho não foi proferido, e, em resposta à contestação, na réplica, vieram os Apelados invocar a nulidade do contrato, com dois fundamentos: i) por falta do documento escrito; ii) por omissão dos Apelantes, de imputação aos Apelados, da falta de forma escrita do contrato.  
Na sequência de tal articulado, vieram os Apelantes alegar que interpelaram os Apelados para a formalização do contrato, e que o mesmo não foi reduzido a escrito, por culpa dos Apelados.
Foi então proferido o despacho de fls. 109, com o seguinte teor:
«Os réus (…) apresentaram articulado de tréplica, na sequência da réplica dos autores.
Todavia, o articulado apresentado pelos réus é legalmente inadmissível e, por isso, deve ser desentranhado, por constituir processado anómalo.
Vejamos porquê.
Estabelece o art.º 503.º, n.º 1, do C PC que, havendo réplica e nesta ocorrer modificação do pedido ou da causa de pedir, nos termos do art.º 273.º, ou se, havendo reconvenção, o autor nela deduzir alguma excepção, tem o réu a possibilidade de responder, para se pronunciar sobre aquela modificação ou sobre a excepção oposta à reconvenção.
No caso vertente, nenhuma destas situações se verifica. Não houve reconvenção e os autores, na sua réplica, não modificaram a causa de pedir ou o pedido. Logo, o último articulado apresentado pelos réus carece de razão de ser.
Pelo exposto, determino se desentranhe a tréplica, uma vez que esta não obedece aos legais requisitos, preceituados no art.º 503.º, n.º 1, do C PC, deixando-se cópia no seu lugar.
Custas do incidente a cargo dos réus, fixando-se a taxa de justiça em ½ UC.»
Os Apelantes conformaram-se com este despacho, do qual não interpuseram recurso de agravo, pelo que o mesmo transitou em julgado.
Foi assim cometido um terceiro erro (por omissão), que inviabiliza definitivamente a possibilidade de este tribunal considerar validamente alegada a referida convocação dos Apelados para a redução a escrito do contrato.
Ora, o contrato de arrendamento verbal não pode ser invocado, sem que seja simultaneamente alegada a convocação da contra-parte para a sua redução a escrito.
Acompanhamos a argumentação expendida no acórdão do STJ, já citado, de 09.11.2004[2], onde se refere que, no sentido de que se nenhuma das partes convocou a outra para a redução a escrito do contrato de arrendamento rural, nenhuma delas pode invocar em juízo o contrato verbal, e de que a nulidade pode ser invocada pela parte que se apresentou à prática do escrito, ou por ambas se nenhuma delas tiver feito notificar a outra, pode consultar-se também o acórdão do STJ, de 23.1.2001, na revista 1959/00 da 2ª secção (relator o Cons. Roger Lopes). Também no aresto do STJ, de 1.7.2003, no agravo 1771/03 (relator Cons. Nuno Cameira)[3] se expendeu que se nenhuma das partes convocou a outra para a redução a escrito do contrato, nenhuma delas poderá invocar em juízo o contrato verbal.
No mesmo sentido, vide ainda, o Conselheiro Aragão Seia, quer no Arrendamento Rural, 4ª Edição, pág. 33 a 36, quer no voto de vencido que elaborou no ac. do STJ, de 6.10.1998, CJSTJ, 1998, III, 53 a 55.
Mais se refere no aresto citado, um argumento que, para além do fundamento legal, legitima este entendimento: deixar funcionar a favor dos RR, como peremptória, a existência do contrato de arrendamento meramente verbal, seria premiá-los por não terem usado da faculdade de interpelação da contraparte para a redução a escrito, perpetuando uma situação de não formalização não querida pelo legislador, deixando sem alcance prático o novo regime impositivo do contrato escrito em todos os arrendamentos rurais.
Voltando à questão concreta: i) os Apelantes não alegaram na contestação (único articulado onde o poderiam ter feito), a convocação dos Apelados para a redução do contrato a escrito; ii) só após a réplica, na qual os Apelados apontam essa omissão como inviabilizadora da possibilidade de invocação do contrato, daí decorrendo inevitavelmente o naufrágio da excepção deduzida, é que os Apelantes vieram então invocar tal interpelação; iii) foi então proferido despacho a considerar processualmente inadmissível tal articulado (tréplica) e a mandar proceder ao seu desentranhamento; iv) os Apelantes conformaram-se com este despacho, do qual não interpuseram recurso de agravo, pelo que o mesmo transitou em julgado.
Este tribunal está vinculado ao trânsito em julgado do despacho em causa – artigos 671.º e seguintes do CPC – pelo que se considera que os Apelantes invocaram um contrato meramente verbal, não tendo invocado a interpelação dos Apelados para a sua redução a escrito.

2. A questão da nulidade do arrendamento
O n.º 1 do artigo 1.º do DL 385/88, de 25 de Outubro (diploma que aprovou o Novo Regime de Arrendamento Rural, vulgo LAR) define o contrato de arrendamento rural, nestes termos: «a locação de prédios rústicos para fins de exploração agrícola (…), nas condições de uma regular utilização, denomina-se arrendamento rural”.
O contrato em causa nos autos configura-se como cedência onerosa do uso e gozo dos prédios rústicos em discussão, mediante o pagamento de uma dada renda anual.
Provaram-se nos autos elementos integradores da previsão legal referida, que permitem qualificar o contrato celebrado entre as partes, como de arrendamento rural, ao qual é aplicável o regime prescrito na LAR por força do seu art. 36º, nº1.
Antes da vigência do DL 201/75, de 15 de Abril não era exigível qualquer formalidade para a conclusão de um contrato de arrendamento rural, vigorando assim o princípio da liberdade de forma ou da consensualidade (art.s 1064º a 1082º e art. 219º, todos do C. Civil).
Tal princípio foi pela primeira vez afastado pelo citado DL 201/75, de 15 de Abril, que no seu artigo 46.º ditou a obrigatoriedade da redução a escrito de todos os contratos de arrendamento rural, mesmo os do pretérito, devendo os senhorios dar cumprimento a esta exigência até 31/12/75 (art.39.º e art. 2.º, n.º1 e 2), prazo que foi objecto de prorrogações.
Porém, a sanção que o legislador prescrevia para a inobservância da forma escrita, não era a nulidade do contrato resultante do disposto na 1ª parte do art. 220º do C. Civil, mas a impossibilidade de qualquer dos contraentes requerer procedimento judicial relativo ao mesmo, excepto se alegasse e viesse a provar que a falta do documento era imputável à parte contrária (art.s 46º, 2º, nº1, 4º e 39º, todos do citado diploma).
A segunda parte do n.º 4 do artigo 2.º do DL 201/75, de 15 de Abril, estabelecia a seguinte presunção, nos casos de falta de redução do contrato a escrito: «Presume-se que a falta é imputável ao contratante que, tendo sido notificado para assinar o contrato dentro de prazo razoável, injustificadamente se tenha recusado a isso.»
Como pacificamente entendeu a jurisprudência[4], optou, assim, o legislador, de harmonia com a ressalva contida na parte final do art. 220º do C. Civil e por imperativas razões de interesse público, qual seja o da estabilidade da própria relação jurídica locatícia e de protecção do rendeiro, na sua ligação à terra e enquanto parte mais desfavorecida económica, social e até juridicamente, como resulta da leitura do respectivo relatório, por afastar os efeitos da nulidade, criando uma sanção de natureza processual e que se traduzia, conforme a jurisprudência dominante, numa excepção dilatória inominada - arts. 493º, nº2, 495º e 288º, nº1, al. e) do C.P.C.
Entretanto, o art. 53.º da Lei 76/77, de 29 de Agosto, veio revogar o DL 201/75, bem como, toda a legislação existente sobre arrendamento rural, estabelecendo nos seus arts. 3.º, nº1 a 4 e 4º, n.º1, um regime de escalonamento temporal de formalização dos contratos de arrendamento rural celebrados após a sua entrada em vigor, excepto se um dos contraentes optasse pela imediata formalização.
O novo regime aplicava-se, por força do art. 49.º, a todos os contratos existentes à data da entrada em vigor da nova lei, estatuindo o art. 42.º, n.º 3 o não recebimento ou prosseguimento da acção que não fosse acompanhada de um exemplar do contrato, a menos que se alegasse e provasse que a falta era imputável à parte contrária.
Porém, com as alterações introduzidas pela Lei 76/79, de 3 de Dezembro, cujo art. 2.º revogou o supra citado art. 49.º, cessou a aplicação da Lei 76/77 aos contratos anteriores.
Neste contexto, surge o DL 385/88, de 25 de Outubro, com novo regime de obrigatoriedade de redução a escrito dos contratos e com plena aplicação retroactiva a partir de 1/07/89 - arts. 3.º, n.º 1 e 36.º, nº3.
Todavia, ao invés da legislação anterior, a sanção para a inobservância de forma escrita deixou de ser apenas a da ininvocabilidade do contrato em juízo, sem prejuízo da alegação e prova de que a falta de forma é imputável à parte contrária.
Nos termos da L.A.R., tal inobservância passa a implicar a nulidade do contrato, independentemente da data da sua celebração.
Ao contrário, porém, do que sucedia nos diplomas anteriores, a sanção para a inobservância da forma escrita é agora a nulidade do contrato, mas qualquer das partes pode, mediante notificação à contraparte, exigir essa formalização; o notificado para esse fim, que a recuse, deixa de poder invocar a nulidade do contrato (n.º 3 e 4 do art.º 3.º).
A inobservância da forma, para além da nulidade nos termos referidos, acarreta uma outra sanção: nenhuma outra acção pode ser recebida ou prosseguir, sob pena de extinção da instância, se não for acompanhada de um exemplar do contrato, a menos que logo se alegue que a falta é imputável à parte contrária.
Quer dizer que a falta de junção do documento com a petição, ou o suprimento da mesma pela competente alegação de culpa da outra parte por não formalização, deixa de ser motivo de suspensão da instância, em moldes paralelos aos do art.º 280.º do C.P.C., passando a determinar a extinção da instância[5].


Mas esta nulidade, decorrente da falta de forma escrita, é atípica, não estando sujeita ao regime comum previsto nos artigos 286º a 289º do C. Civil, conforme decorre do artigo 3.º do DL 385/88, de 25 de Outubro, que estabelece no n.º 1, que os arrendamentos rurais, incluindo os arrendamentos ao agricultor autónomo, são obrigatoriamente reduzidos a escrito, atribuído o n.º 3 a faculdade a qualquer das partes, de exigir, mediante notificação à outra parte, a redução a escrito do contrato, prevendo o n.º 4 o facto de a nulidade do contrato não poder ser invocada pela parte que, após notificação, tenha recusado a sua redução a escrito.
Decorre da disciplina legal enunciada, que a não redução a escrito não torna automaticamente o contrato nulo, já que a nulidade está sujeita a um regime atípico, de efeitos mitigados: apenas permite que dela se valha quem não tenha dado causa à falta da sua redução a escrito; apenas está impedido de invocar a nulidade do contrato a parte que, após a notificação, se tenha recusado a reduzi-lo a escrito[6].
Apelantes e Apelados tinham a faculdade de exigir a redução do contrato a escrito, mediante a notificação da parte contrária (nº 3 do art.3º do DL 385/88).
Ora, o contrato não foi reduzido a escrito e nenhum deles alegou sequer ter interpelado a parte contrária para o reduzir a escrito (já demonstrámos supra, de forma exaustiva, a total ineficácia – ou mesmo inexistência - da alegação dos Apelantes, já que foi efectuada num articulado que não tinha lugar na estrutura da acção, e que foi desentranhado na sequência de despacho judicial com o qual os Apelantes se conformaram e que transitou em julgado).
Através da presente acção os Apelados reivindicam o direito de propriedade sobre determinados prédios, com a consequente restituição daquilo que lhes pertence.
Reconhecido o direito de propriedade, a restituição da coisa será uma consequência necessária desse reconhecimento, restituição que só pode ser recusada se o seu detentor tiver título que legitime a recusa –art. 1311º C.Civil.

Sem pôr em causa o direito de propriedade dos Apelados, os Apelantes vieram excepcionar a recusa de entrega da coisa reivindicada com fundamento na existência de um contrato de arrendamento.
Ora, apesar de terem provado a existência do arrendamento verbal que invocam, os Apelantes não provaram a convocatória e recusa dos Apelados para o reduzirem a escrito, condição necessária à procedência da excepção que invocam.
A excepção peremptória (impeditiva do direito dos Apelados à restituição da coisa) só aproveitaria aos arrendatários (Apelantes) se estes tivessem provado a existência do contrato de arrendamento escrito, ou em alternativa, tivessem provado a existência de contrato verbal, e, cumulativamente, a convocação dos Apelados para a redução a escrito do contrato, bem como a recusa destes, traduzida na culpa da inexistência da forma escrita do mesmo.
Como bem se refere na douta sentença recorrida, o contrato de arrendamento verbal invocado pelos Apelantes na contestação é nulo por vício de forma.
A questão que se suscita, é a da faculdade de tal nulidade poder ser ou não invocada pelos Apelados.
Defendem os Apelantes, salvo o devido respeito, sem razão, que a nulidade não podia ser invocada pelos Apelados, nem declarada oficiosamente pelo tribunal.
Sobre esta matéria, lapidarmente se pronunciou o Supremo tribunal de Justiça, em acórdão de 10.07.2008[7]:
«… os contratos rurais ainda que celebrados anteriormente à vigência do DecLei 385/88, que não tenham sido reduzidos a escrito após l de Julho de 1989, são nulos. Esta é, porém, uma nulidade atípica não podendo ser invocada pela parte que, após notificada para esse efeito, tenha recusado reduzir a escrito o respectivo contrato. Se nenhuma das partes tiver notificado a outra para a celebração dessa formalidade, ambas se podem socorrer desse vício, podendo elas invocar a nulidade daí decorrente.»
É o que se passa nesta acção: nenhuma das partes demonstrou ter notificado a outra para a redução do contrato a escrito, pelo que ambas podiam invocar a nulidade decorrente da falta de forma.
E os Apelados invocaram expressamente tal nulidade na sua resposta à contestação, pelo que o tribunal a quo podia e devia apreciá-la, o que fez, não merecendo qualquer censura.
Decorre de todo o exposto: i) que o tribunal recorrido podia (e devia) apreciar a nulidade suscitada pelos Apelados; ii) que o fez correctamente, declarando nulo o contrato invocado pelos Apelantes; iii) que tal nulidade deita por terra a tese dos Apelantes, tornando improcedente a excepção que deduziram na contestação; iv) que da improcedência de tal excepção, face ao direito de propriedade dos Apelados, decorre a procedência da pretensão por estes formulada, no sentido de os Apelantes deixarem livres e desembaraçados os referidos prédios, abstendo-se da prática de qualquer acto sobre eles.
Improcedem, face ao exposto, as doutas conclusões de recurso, g) a l).

3. A idoneidade do meio processual utilizado
Referem os Apelantes nas suas doutas conclusões (m a v), que os Apelados apenas poderiam obter a restituição dos prédios através da competente acção de despejo.
Salvo o devido respeito, não lhes assiste razão.
Os Apelados podiam seguir a via processual que utilizaram: invocação do direito de propriedade e pedido de condenação dos Apelantes na entrega dos bens, com base nesse direito.
Na oposição, era legítima por parte dos Apelantes, a invocação de qualquer título que, face ao direito de propriedade dos Apelados, legitimasse a ocupação dos prédios, o que aconteceu com a alegação da existência de um contrato de arrendamento, por via de excepção.
Se o arrendamento fosse válido, a excepção procederia e não restaria aos Apelados outro caminho que não fosse o de em acção de despejo posterior, invocarem eventualmente, algum fundamento susceptível de se configurar como causa de resolução do contrato.
Mas não foi esse o caso, na medida em que, muito correctamente, o tribunal a quo declarou a nulidade do contrato invocado e, em consequência, a improcedência da excepção deduzida.
Veja-se, a propósito, que no acórdão do STJ invocado pelos Apelantes nas suas doutas alegações (3.15), um dos pressupostos referidos é exactamente: «… desde que provada a existência e validade do arrendamento…», o que não é, manifestamente, o caso.
Improcedem, face ao exposto, as doutas conclusões de recurso, m) a v).

4. A alegada “decisão surpresa”
Nas suas doutas conclusões a) a f), os Apelantes alegam que a decisão proferida pelo tribunal a quo, é uma “decisão surpresa”, que viola o princípio da cooperação processual.
Salvo o devido respeito, não se vislumbra fundamento válido para esta alegação, na medida em que não há notícia nos autos de qualquer violação do contraditório, e o despacho proferido a fls. 109, no qual o M.º Juiz considerou que não era processualmente admissível a tréplica apresentada pelos Apelantes, ordenando o seu desentranhamento, transitou em julgado, tendo-se os Apelantes conformado com essa decisão.
Valem nesta sede, todos os argumentos já expendidos no ponto 1. desta decisão, sob a epígrafe “questão prévia”.
Improcedem face ao exposto, as conclusões a) a f).

5. A alegada litigância de má fé.
Pretendem os Apelados a condenação dos Apelantes por litigância de má fé.
Pese embora o facto de termos concluído pela improcedência da tese dos Apelantes, não se vislumbra nos autos qualquer conduta processual integradora do instituto invocado, pelo que se revela manifestamente improcedente o pedido.

IV. Decisão
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso, ao qual se nega provimento, confirmando assim a douta decisão recorrida.
Custas do recurso pela Apelante, e pelos Apelados na proporção do respectivo decaimento (no que respeita aos Apelados, o decaimento restringe-se ao pedido de litigância de má fé).
                                                         *
O presente acórdão compõe-se de dezassete folhas com os versos não impressos e foi elaborado em processador de texto pelo relator, primeiro signatário.


[1] Vide, nesse sentido, acórdão STJ de 9.11.2004, proferido no Processo n.º 04A3067 (http://www.dgsi.pt)
[2] Proferido no Processo n.º 04A3067 (http://www.dgsi.pt)
[3] STJ, Rec. Agravo, Processo n.º 03A1771, acórdão proferido em 01.07.2003 (http://www.dgsi.pt)
[4] Remete-se nesta parte para os acórdãos citados na douta sentença recorrida: STJ 20.03.1979, BMJ 285.º,289; STJ 10.07.1979, BMJ 289.º,282; STJ 19.03.1980, BMJ 295.º, 394; e STJ 2.02.1984, BMJ 334.º, 969
[5] Acórdão da Relação do Porto, de 29.01.1991, CJ, Ano XVI, Tomo I, pág. 244.
[6] Acórdão STJ, de 23.10.2007, proferido no Proc. 07A3090
[7] Proferido no Processo n.º 08B1943 (http://www.dgsi.pt) – no mesmo sentido, veja-se o já citado acórdão do STJ, proferido no Processo n.º 04A3067 (http://www.dgsi.pt)