Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1263/08.9TBVIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
HIPOTECA
Data do Acordão: 05/12/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU – 2º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 749º, Nº 1, DO C.CIV. E 108º DO CIRC
Sumário: I – O privilégio imobiliário de que goza a Fazenda Nacional por créditos provenientes de IRC (artº 108º do CIRC) tem natureza geral.

II – No confronto entre créditos beneficiados com esse privilégio e créditos garantidos por hipoteca tem aplicação não o artº 751º do C. Civ., mas antes o artº 749º, nº 1, do mesmo diploma legal.

III – A alteração dos artº 735º, nº 1, e 751º do C. Civ., resultante do D.L. nº 38/2003, de 8/03, que entrou em vigor em 15/09/2003, veio tornar claro que, embora os privilégios imobiliários estabelecidos no C. Civ. sejam sempre especiais, pode haver, e há, privilégios imobiliários estabelecidos em legislação avulsa que, incidindo não sobre bens concretos e determinados mas antes sobre todos os bens de que o devedor seja titular à data da penhora ou outro acto equivalente, têm natureza geral.

IV – Como tal, os créditos garantidos por hipoteca preferem aos créditos beneficiados com privilégio imobiliário geral, sendo, portanto, aqueles graduados à frente destes.

Decisão Texto Integral:          Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

         Por apenso à execução em que é exequente A...e executada B... – na qual se encontram penhoradas a fracção autónoma identificada pela letra “J” do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito em S. Salvador, inscrito na matriz sob o artigo 1837 e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Viseu com o nº 1193/20010216, da freguesia de S. Salvador e a fracção autónoma identificada pela letra “G” do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito em S. Salvador, inscrito na matriz sob o artigo 1848 e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Viseu com o nº 1194/20010216, da freguesia de S. Salvador – foram deduzidas as seguintes reclamações de créditos:

         a) Pela C...., um crédito de € 732.636,82, de capital (€ 722.990,05), juros (€ 9.638,77) e comissões (€ 8,00), relativos a um empréstimo concedido à executada, garantido por hipotecas sobre os prédios onde as fracções autónomas penhoradas se inserem, incidindo também sobre estas;

         b) Pelo Instituto de Segurança Social, I.P., um crédito de € 8.733,27, de contribuições para a segurança social relativas ao período de Janeiro de 2007 a Janeiro de 2008 (€ 7.530,94) e de juros de mora vencidos (€ 1.202,33), beneficiário de privilégio creditório imobiliário;

         c) Pelo Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, um crédito de € 3.948,20, de IRC respeitante ao ano de 2006 (€ 3.743,96) e de juros de mora (€ 204,24), beneficiário de privilégio mobiliário geral e imobiliário.

         Não tendo qualquer das reclamações sido objecto de impugnação, foi proferida a sentença de fls. 68 a 71, reconhecendo todos os créditos reclamados, com juros vencidos e vincendos e procedendo à sua graduação pela forma seguinte:

         1º - Crédito privilegiado da Fazenda nacional;

         2º - Crédito hipotecário da C...;

         3º - Créditos da Segurança Social;

         4º - Crédito exequendo.

         Inconformada, a C.... interpôs recurso, logo oferecendo a pertinente alegação que encerrou com as seguintes conclusões:

(…)

O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

O Ministério Público apresentou douta resposta, reconhecendo razão à recorrente e opinando no sentido de que o recurso merece provimento.

Nada obstando a tal, cumpre apreciar e decidir.


***

         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada apenas a questão de saber se, encontrando-se penhorados numa execução bens imóveis e tendo sido reclamados créditos de IRC e créditos garantidos por hipoteca sobre os imóveis penhorados, devem ser graduados em primeiro lugar os créditos de IRC ou os créditos hipotecários.


***

         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         É a seguinte a factualidade relevante para a decisão do recurso fornecida pelos autos:

(…)


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         2.2. De direito

         Foi na sentença sob recurso entendido que “a Fazenda Nacional, para cobrança dos créditos relativos a impostos indirectos, como é o caso do IRC, goza de privilégio creditório mobiliário geral e imobiliário, para garantia dos seus créditos – artºs 736º, nº 1, 1ª parte do C. Civil e artº 108º do CIRC – em relação aos impostos inscritos para cobrança no ano da penhora ou nos três anos anteriores, que no caso concreto se reporta ao ano de 2005, tendo presente a data a partir da qual se vencem juros de mora – ver citados preceitos. E o identificado privilégio estende-se aos juros de mora relativos aos três últimos anos”.

         E, com o argumento de que “em caso de concurso sobre a mesma coisa imóvel, o privilégio imobiliário é graduado em primeiro lugar, seguindo-se o direito de retenção e a seguir a hipoteca e a consignação de rendimentos (…)”, graduou-se o crédito reclamado pela Fazenda Nacional antes do crédito hipotecário reclamado pela C....

         A recorrente, não pondo em causa que a Fazenda Nacional goza, relativamente ao crédito de IRC, de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário, sustenta, contudo, que o privilégio imobiliário em questão deve classificar-se de privilégio geral e, por isso, no confronto com o crédito hipotecário também reclamado, não tem aplicação o disposto no artº 751º do Cód. Civil, antes se aplicando o artº 749º do mesmo diploma legal, pelo que é o crédito hipotecário que deve prevalecer e ser graduado prioritariamente. A entender-se, continua a recorrente, que o privilégio imobiliário geral de que beneficia a Fazenda Nacional relativamente ao crédito de IRC prevalece sobre o crédito garantido por hipoteca, incorrer-se-ia em inconstitucionalidade, por violação do princípio da confiança ínsito na noção de Estado de direito democrático consagrada no artº 2º da Constituição.

         Como muito bem reconheceu o Ministério Público na sua douta contra-alegação, não pode deixar de dar-se razão à recorrente.

         A difícil compatibilização das normas dos artºs 735º, nº 3 e 751º do Cód. Civil, na redacção anterior ao Decreto-Lei nº 38/2003, de 08/03[1] com a consagração em numerosa legislação avulsa de privilégios imobiliários de natureza claramente geral[2], conduziu a que surgissem dúvidas sobre a graduação dos créditos beneficiados com aqueles privilégios, levando mesmo à prolação dos Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 362/2002 (referido na alegação da recorrente e na contra-alegação do Mº Pº) e nº 363/2002 (referido na sentença recorrida).

         A alteração dos mencionados artºs 735º, nº 1 e 751º do Cód. Civil, operada pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 08/03[3]e[4], veio tornar claro que, embora os privilégios imobiliários estabelecidos no Código Civil sejam sempre especiais, pode haver – e há – privilégios imobiliários estabelecidos em legislação avulsa que, incidindo não sobre bens concretos e determinados mas antes sobre todos os bens de que o devedor seja titular à data da penhora ou outro acto equivalente, têm natureza geral.

         É inquestionavelmente o caso do privilégio imobiliário consagrado no artº 108º do CIRC, norma segundo a qual “Para pagamento do IRC relativo aos três últimos anos, a Fazenda Nacional goza de privilégio geral e privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro acto equivalente”.

         Ora, assente que o privilégio imobiliário em questão tem natureza geral e não especial, fica claro que não tem aplicação in casu o preceituado no artº 751º do Cód. Civil, norma legal que se refere apenas aos privilégios imobiliários especiais. Antes se aplica o disposto no artº 749º, nº 1 do Cód. Civil, de acordo com o qual o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente[5].

         As hipotecas de que é titular a recorrente recaem sobre as coisas abrangidas pelo privilégio e são oponíveis ao exequente. Consequentemente, o privilégio imobiliário geral de que goza a Fazenda Nacional não vale contra a C..., não podendo o crédito de IRC daquela prevalecer contra o crédito hipotecário desta[6].

        

         Se não se entendesse assim e se considerasse que o privilégio imobiliário geral de que goza a Fazenda Nacional relativamente aos créditos de IRC prevalece sobre os créditos garantidos por hipoteca, incorrer-se-ia em inconstitucionalidade por violação do princípio da confiança ínsito na noção de Estado de direito democrático consagrada pelo artº 2º da Constituição. É o que, por identidade de razões, claramente resulta dos Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 362/2002 e 363/2002, publicados no D.R. nº 239, Série I-A, de 2002/10/16, que declararam a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do CIRS (Ac. 362/2002) e dos artºs 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 09/05 e 2º do Decreto-Lei nº 512/76, de 03/07 (Ac. 363/2002), na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral neles conferido à Fazenda Nacional, no caso dos créditos de IRS, ou a Segurança Social, no caso dos créditos por contribuições, prefere à hipoteca, nos termos do artº 751º do Cód. Civil.

         Logram êxito, portanto, as conclusões da alegação da recorrente, o que conduz à procedência da apelação, à revogação da sentença na parte impugnada e à graduação do crédito hipotecário da C.... à frente do crédito privilegiado da Fazenda Nacional.

         Cumprindo o disposto no artº 713º, nº 7 do Cód. Proc. Civil, elabora-se o seguinte sumário:

         I – O privilégio imobiliário de que goza a Fazenda Nacional por créditos provenientes de IRC (artº 108º do CIRC) tem natureza geral.

         II – No confronto entre créditos beneficiados com esse privilégio e créditos garantidos por hipoteca tem aplicação não o artº 751º do Cód. Civil, mas antes o artº 749º, nº 1 do mesmo diploma legal.

         III – Como tal, os créditos garantidos por hipoteca preferem aos créditos beneficiados com privilégio imobiliário geral, sendo, portanto, aqueles graduados à frente destes.


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         3. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e, consequentemente, em, mantendo-a no mais, revogar em parte a sentença recorrida, de forma que a graduação dos créditos reclamados fique pela ordem seguinte:

1º - Crédito hipotecário da C....;

2º - Créditos privilegiados da Fazenda Nacional e da Segurança Social;

3º - Crédito exequendo.

As custas da apelação são a cargo da C...., nos termos do artº 449º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, já que o recorrido não deu causa ao recurso e na sua contra-alegação reconheceu razão à apelante.


[1] O artº 735º, nº 3 estabelecia que “Os privilégios imobiliários são sempre especiais”; e o artº 751º estabelecia que “Os privilégios imobiliários são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores”.
[2] Artº 11º do DL nº 103/80, de 09/05, artº 30º do DL nº 165/85, de 16/04, artº 111º do CIRS, artº 108º do CIRC, artº 12º da Lei nº 17/86, de 14/06.
  Os privilégios gerais são aqueles que se estendem a todos os bens de que o devedor seja titular à data da penhora ou de outro acto equivalente, enquanto que os privilégios especiais incidem apenas sobre um determinado bem do património do devedor (Cláudia Madaleno, A Vulnerabilidade das Garantias Reais, 2008, pág. 15.
[3] A redacção do artº 735º, nº 3 passou para: “Os privilégios imobiliários estabelecidos neste Código são sempre especiais” (sublinhado nosso); e a do artº 751º passou para: “Os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores” (sublinhado nosso).
[4] O Decreto-Lei nº 38/2003, de 08/03, entrou em vigor em 15/09/2003 e, consequentemente, aplica-se aos presentes autos.
[5] Os direitos oponíveis ao credor exequente  são aqueles que não podem ser atingidos pela penhora. Neles estão compreendidos não só os direitos reais de gozo que terceiros tenham adquirido, como os próprios direitos reais de garantia que o devedor haja entretanto constituído (Pires de lima – Antunes Varela, Código Civil anotado, Vol. I, 3ª edição, pág. 738).
[6] O próprio nº 1 do artº 686º do Cód. Civil estabelece que “a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo” (sublinhado nosso).