Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1897/07.9TBVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VÍTOR
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
OBRIGAÇÃO FISCAL
Data do Acordão: 10/20/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OURÉM - 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 610º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1) São requisitos da impugnação pauliana: 1) Que haja um prejuízo causado pelo acto impug­nado à garantia patrimonial; 2) Anterioridade do cré­dito ou caso o crédito seja posterior ter sido o acto dolosa­mente realizado com o fim de impedir a satisfação do crédito pelo mesmo acto. 3) Impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito ou agravamento dessa impossibilidade.

2) Tratando-se de uma garantia geral das obrigações a impugnação pauliana conta-se de entre os meios que o Estado tem ao seu dispor para efectivar os seus créditos fiscais.

3) Na obrigação fiscal não deve confundir-se o momento da sua génese - coincidente com o início da actividade sujeita a tributação – com aquele em que a mesma se torna exigível, momento da respectiva liquidação.

4) É ao momento genético da obrigação in casu 2003, ano em que se verificou a actividade dos RR. sujeita a imposto que deve reportar-se a acção de impugnação pauliana quando se pretende aquilatar da anterioridade do crédito do Estado em relação ao acto de alienação dos RR.

Decisão Texto Integral:      1. RELATÓRIO.

     Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

     O Ministério Público em representação da Fazenda Nacional intentou acção de impugnação pauliana sob a forma de processo comum ordinário contra A..., B... , C..., D... e E..., pedindo que:

     - Seja declarada ineficaz em relação à Fazenda Nacional, na medida do seu interesse, a escritura de doação celebrada em 12/03/2007 no Cartório Notarial da Batalha pelos Réus A... e B....

     - Seja reconhecida à Fazenda Nacional o direito de se ressarcir do seu crédito através dos imóveis doados, praticando relativamente a eles todos os actos.

     Alegou, em suma, que no dia 12 de Março de 2007, através de escritura pública lavrada no Cartório Notarial da Batalha, os Réus A... e B... fizeram doação aos demais Réus de 17 prédios.

     Invoca ainda que os dois primeiros Réus desenvolveram a actividade de aquisição, construção e venda de imóveis, sendo que nas escrituras de venda dos prédios que procederam declararam, conjugadamente com os compradores, valores inferiores aos dos negócios reais, o que se veio a traduzir numa diminuição dos valores de incidência do IRS relativamente aos Réus e de SISA (IMT) relativamente aos compradores.

     Foi emitida uma ordem de serviço da Divisão da Inspecção Tributária I (DIT I) da Direcção de Finanças de Santarém, visando comprovar a situação tributária dos sujeitos passivos A... e B....

     No decurso da inspecção realizada foram coligidos elementos demonstrativos da omissão de proventos nas declarações de rendimentos apresentadas por aqueles dois Réus que apenas declararam a cessação da actividade de compra e venda de imóveis em 31/12/2003 e em 31/12/2006, respectivamente.

     Das diligências de investigação efectuadas pela Administração Tributária apurou-se que em relação ao ano de 2003 o rendimento auferido pelos dois primeiros Réus foi de € 1.596.609,97 sendo devido imposto no valor de € 425.601,72.

     O património imobiliário do Réu A... passou de € 91.496,75 em 2005 para € 215.455,55 em 2006, sendo que em 2007 apenas detém dois prédios urbanos e dois prédios rústicos.

     Por sua vez, a Ré B..., vendeu entre 2003 e 2006 pelo menos 13 prédios urbanos no exercício da sua actividade, sendo actualmente proprietária de um prédio rústico em Alvaiázere, presumindo-se co-titular dos prédios inscritos em nome do seu marido.

     Também desde o ano de 2003 que os Réus em referência deixaram de ser titulares de participações sociais.

     Na escritura de doação supra referida doaram os bens imóveis geradores de rendas para o agregado familiar

     Assim, atendendo ao imposto apurado para o ano de 2003, existe fundado receio de perda da garantia patrimonial, pois que os Réus doaram os bens de que eram proprietários e susceptíveis de penhora para a satisfação do mencionado crédito.

     Além do mais era do conhecimento dos Réus a omissão dos montantes que deveriam estar mencionados na declaração de rendimentos, com base na qual deveria ser calculado o montante de imposto devido.

     Também os donatários (filhos dos 1º e 2º Réus), ao aceitarem as doações sabiam que estavam a prejudicar o Estado na medida em que impediam a Administração Fiscal de obter a satisfação de tal crédito.

     Agiram, segundo o Autor, todos os Réus de má fé,

pois que, anteriormente à data em que foi celebrada a escritura de doação, por carta aviso de 30/01/2007 tinha sido dado conhecimento aos doadores que seriam visitados pelos serviços de finanças com a finalidade de verificação tributária referente ao ano de exercício de 2003.

     A existência do crédito do Estado funda-se na informação realizada pela DIT l.

     Contestaram os Réus impugnando a matéria vertida na petição inicial, sendo que, até ao momento, nenhum dos Réus foi notificado para liquidar qualquer quantia de imposto, além de que, sendo notificados, impugnaram os valores fixados no Tribunal competente, o Autor terá de conceder o prazo de 90 dias para que os Réus liquidem a dívida, podendo reclamar graciosamente ou impugnar junto do Tribunal Administrativo e Fiscal.

     Assim, segundo os Réus, não existe qualquer dívida dos mesmos à Fazenda Nacional.

     Por outro lado, não é pelo facto de os Réus terem doado os imóveis aos filhos que se pode concluir que tal negócio foi realizado com o fim de subtrair estes bens à acção da Fazenda Nacional, pois que, mesmo que os Réus quisessem proceder ao pagamento da quantia que o Autor alega ser devida, não o poderia fazer, pois que não existe qualquer acto de liquidação.

     Acresce que os Réus têm mais bens aptos a satisfazer uma eventual dívida que venha a existir.

     Replicou o Autor dizendo que os Réus alegaram a sua ilegitimidade uma vez que não assinaram as escrituras públicas de compra e venda de imóveis e tal não corresponde à verdade.

     Segundo o Autor alegam também os Réus a excepção da litispendência pois que se encontra pendente um procedimento cautelar de arresto no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria. No entanto, tendo em conta os diferentes fins a obter, tal não se verifica.

     No saneador o Sr. Juiz declarou-se habilitado a conhecer do pedido e assim julgou a presente acção improcedente absolvendo os RR. do mesmo.

     Daí o presente recurso de apelação interposto pelo Ministério Público, o qual no termo da sua alegação pediu que se revogue a sentença em crise substituindo-se a mesma por outra que determine o prosseguimento dos autos com a prolação do despacho saneador.

     Foram para tanto apresentadas as seguintes,

     Conclusões.

     1) A decisão recorrida julgou improcedente a acção de impugnação pauliana que o Ministério Público em representação do Estado, Fazenda Nacional instaurou contra os Réus A..., B..., C..., D... e E... porque “não se encontram reunidos os pressupostos de que a lei faz depender a procedência da acção de impugnação pauliana, pois não existe o direito de crédito do Autor, uma vez que o mesmo está dependente de liquidação".

     2) Contudo, o argumento em que se alicerça a decisão recorrida carece de apoio factual e jurídico.

     3) Os Réus A... e B..., enquanto sujeitos passivos de IRS, no exercício das respectivas actividades, venderam, no decurso do ano de 2003, diversos imóveis por si construídos e, em conluio com os demais Réus, todos seus filhos (que intervieram nas escrituras de compra e venda na qualidade de Procuradores dos seus pais), declararam nas respectivas escrituras públicas de compra e venda, valores de venda muito inferiores aos efectivamente cobrados aos adquirentes.

     4) No decurso de uma acção inspectiva efectuada Serviço da Divisão de Inspecção Tributária I (DIT I) da Direcção de Finanças de Santarém, com vista a comprovar a situação tributária dos Réus A... e B... foram detectados factos fiscalmente relevantes, que alteravam significativamente os valores indicados por estes contribuintes na declaração de rendimentos respeitante ao ano de 2003, situação que determinou que Administração Fiscal procedesse a novas liquidações.

     5) Pelo que, na sequência dos resultados apurados e respectivas correcções aritméticas relativamente ao ano de 2003, a Administração Fiscal considerou não o valor de € 117.423,28 que fora declarado pelos Réus A... e B..., mas sim o valor apurado de € 1.045.800,00, fixando-se o imposto IRS a pagar no valor de € 378.876,38, valor que foi posteriormente fixado em € 425.601,72 [após simulação].

     6) No dia 12 de Março de 2007, por escritura pública lavrada no Cartório Notarial da Batalha, os dois primeiros Réus, A... e B..., doaram aos terceiro, quarto e quinto Réus, todos seus filhos, dezassete prédios devidamente identificados nos autos.

     7) Sucede, porém, que anteriormente à data da outorga da escritura pública de doação outorgada pelos Réus no Cartório Notarial da Batalha [a qual, recorde-se, foi realizada em 12 de Março de 2007], a Direcção de Finanças de Santarém por carta-aviso enviada no dia 30 de Janeiro de 2007 deu conhecimento aos doadores, os ora Réus A... e B..., de que a muito curto prazo seriam visitados por técnicos dos Serviços de Inspecção Tributária com a finalidade de lhes ser efectuada inspecção ao exercício respeitante ao ano de 2003.

     8) Os Réus A... e B... sabiam, assim, que tinham declarado à Administração Fiscal rendimentos muito inferiores aos que realmente auferiram no ano de 2003 e que tal conduta iria ter reflexos no apuramento do seu lucro tributável e, como tal, no montante de imposto [IRS] a pagar, assim como sabiam que iriam ser inspeccionados pelos Serviços de Inspecção da Administração Fiscal, relativamente ao exercício do ano de 2003, pelo que se apressaram a passar para a esfera jurídica dos seus três filhos - os ora Réus D..., C... e E... - os bens de valor susceptíveis de penhora de que eram proprietários, de modo a evitar que o credor a Administração Fiscal, pudesse garantir com tais bens, a satisfação dos seus créditos, créditos estes que se constituíram em data anterior à doação que efectuaram.

     9) O segundo requisito da impugnação pauliana - que é aquele que ora nos interessa, porquanto a questão fulcral consiste em apurar se existe anterioridade do crédito em relação à doação efectuada - é o da anterioridade do crédito em relação ao acto impugnado.

     10) A este propósito, o Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Janeiro de 2004, no Acórdão proferido no processo com o número convencional JSTJ000, acessível em www.dgsi.pt decidiu que "o crédito deve preexistir ao acto a impugnar. Esta prévia existência não é sinónimo de crédito vencido.

     11) Ao contrário do que afirma a Mta. Juiz a quo na decisão recorrida, no caso em apreço, o crédito do Estado [Administração Fiscal] existe e constituiu-se em data anterior à doação efectuada pela escritura pública de 12 de Março de 2007, já que o nascimento do crédito fiscal não está dependente de liquidação, como necessariamente precede a liquidação, não tendo, pois, a liquidação o sentido que se lhe pretendeu atribuir na decisão recorrida. Tal crédito existe, pese embora ainda não esteja definitivamente apurado.

     12) A anterioridade do crédito afere-se da data da sua constituição e não pela data do seu vencimento, isto é, afere-se à data do facto tributário.

     13) De resto, o artº 614º nº l do Código Civil preceitua que “não obsta ao exercício da impugnação o facto de o direito do credor não ser ainda exigível".

     14) À luz deste comando legal, reconhece-se ao titular de um crédito ilíquido a faculdade de lançar mão do instituto da acção da impugnação pauliana, uma vez que tal característica da dívida não obsta à verificação dos requisitos essenciais de tal instituto.

                   15) Deste modo, não obsta ao exercício da impugnação o facto de o direito do credor não ser ainda exigível, por o vencimento do crédito ainda não ter ocorrido.

     16) No caso dos autos, os Réus bem sabiam que tinham declarado à administração fiscal rendimentos do ano de 2003 muito inferiores aos que efectivamente auferiram, e que, desse modo, estavam a causar um prejuízo patrimonial ao Estado, pelo que dúvidas não restam de que já existia, na esfera jurídica dos Réus A...e Alice, uma obrigação de prestar.

     17) Logo, falece o argumento em que se estriba a decisão recorrida, de acordo com a qual não estão verificados, in casu, os requisitos da acção de impugnação pauliana.

     Contra-alegaram os apelados pugnando pela confirmação do julgado.

     Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

                           *

     2. FUNDAMENTOS.

     Com interesse para a decisão da causa mostram-se provados os seguintes,

     2.1. Factos.

     2.1.1. No dia 12 de Março de 2007, através de escritura pública lavrada no Cartório Notarial da Batalha, que consta de fls. 93 a 97 verso, livro de notas para escrituras diversas n° 79"_B, os dois primeiros Réus, A...e B..., declararam fazer doação aos terceiro, quarto e quinto Réus, dos seguintes imóveis:

     a) Prédio urbano, sito na freguesia, concelho de Ourém, inscrito na matriz predial sob o artº 1568, com o valor patrimonial tributário de €: 1.751,03;

     b) Prédio urbano, sito na freguesia de Freixianda, concelho de Ourém, inscrito na matriz predial urbana sob o artº 2.620, com o valor patrimonial tributário de € 44.543.00;

     c) Prédio misto, sito na freguesia de Freixianda, concelho de Ourém, inscrito na matriz predial urbana sob o artº 2.861 e na matriz rústica sob o artigo 114, e descrito nessa Conservatória sob o n° 568, com o valor patrimonial tributário de € 27.349,50

     d) Prédio urbano, sito na freguesia de Freixianda, concelho de Ourém, inscrito na matriz predial urbana sob D artº 3619, com o valor patrimonial tributário de €: 134.680,00;

     e) 2/3 indivisos de um prédio urbano, sito na freguesia de Freixianda concelho de Ourém, inscrito na matriz predial urbana sob o artº 755, com o valor patrimonial tributário de €: 899,49;

     f) 1/36 avos indivisos do prédio rústico, sito em Casal Pinheiro, na freguesia de Freixianda, concelho de Ourém, inscrito na matriz predial rústica sob o artº 6.646, com o valor patrimonial tributaria de €: 18,69;

     g) Prédio rústico, sito em Casal Pinheiro, na freguesia de Freixianda, concelho de Ourém, inscrito na matriz predial rústica sob o artº 6822, com o valor patrimonial tributário de € 464,65.

     h) Prédio rústico, sito em Cabeceiras – Casal Pinheiro, na freguesia de Freixianda, concelho Ourém, inscrito na matriz predial rústica sob o artº 6.831, com o valor patrimonial tributário de € 164,02;

     i) Prédio rústico sito em Carrasqueiras Cova da Raposa, na freguesia de Freixianda, concelho de Ourém, inscrito na matriz predial rústica sob o artº 25896, com o valor patrimonial tributário de € 60,60;

     j) Prédio rústico, sito em Valongo, na freguesia de Freixianda, concelho de Ourém, inscrito na matriz predial rústica sob o artº 27914, com valor patrimonial tributário de €: 1.700,00;

     k) Prédio rústico, sito em Valongo, na freguesia de Freixianda, concelho de Ourém, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 24627, com o valor patrimonial tributário de € 787,82;

     l) Prédio rústico, sito em Casal Pinheiro, na freguesia de Freixianda, concelho de Ourém, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 26754, com o valor patrimonial tributário de € 42.65;

     m) Prédio rústico, sito em Casal Pinheiro na freguesia de Freixianda, concelho de Ourém, inscrito na matriz predial rústica sob o artº 26755, e com o valor patrimonial tributário de € 74,82;

     n) Prédio urbano, sito na freguesia de Palmela, concelho de Palmela, inscrito na matriz predial urbana sob o artº 10836, com o valor patrimonial tributário de € 57.566,70;     

     o) Prédio urbano, sito na freguesia de Palmela, concelho de Palmela, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1 0837, com o valor patrimonial tributário de € 57.566.70;

     p) Metade indivisa da nua propriedade do prédio rústico, sito em Casais do Vento ou Vento, na freguesia de Pelmá, concelho de Alvaiázere, inscrito na matriz predial sob o valor patrimonial tributário de € 158,23 e

     q) Prédio rústico, sito em Galegas, na freguesia de Freixianda, concelho de Ourém, inscrito na matriz predial sob o artº 6516, com o valor patrimonial tributário de €: 2.214,92.     

    

     2.1.2. Sendo os prédios mencionados em n) e o) doados ao Réu C... (Doe 5), os mencionados em c), e), i), j), k), p), e q) doados ao Réu D...(Docs. 6, 24 e 25), e os mencionados em a), b), d), t), g), h), 1), e m) doados ao Réu E...(DOC. B e 25).

     2.1.3. Os dois primeiros Réus, marido e mulher, desenvolveram a actividade de aquisição, construção e venda de imóveis, sendo que nas escrituras de venda dos imóveis a que procederam declararam, conjugadamente com os compradores, valores inferiores aos dos negócios reais, o que veio a traduzir-se em diminuição dos valores de incidência de IRS relativamente aos vendedores, e de Sisa (agora IMT) relativamente aos compradores.

     2.1.4. No decurso de uma acção inspectiva efectuada ao Serviço da Divisão de Inspecção Tributária I I pIT I) da Direcção de Finanças de Santarém, com vista a comprovar a situação tributária dos Réus A... e B... foram detectados factos fiscalmente relevantes que alteravam significativamente os valores indicados por estes contribuintes na declaração de rendimentos respeitante ao ano de 2003, situação que determinou que a Administração Fiscal procedesse a novas liquidações.

     2.1.5. Na sequência dos resultados apurados e respectivas correcções aritméticas relativamente ao ano de 2003, a Administração Fiscal considerou não o valor de € 117.423,28 que fora declarado pelos Réus A... e B..., mas sim o valor apurado de € 1.045.800,00, fixando-se o imposto IRS a pagar no valor de € 378.876,38, valor que foi posteriormente fixado em € 425.601,72 [após simulação].

     2.1.6. Anteriormente à data da outorga da escritura pública de doação outorgada pelos Réus no Cartório Notarial da Batalha [a qual, recorde-se, foi realizada em 12 de Março de 2007], a Direcção de Finanças de Santarém, por carta aviso enviada no dia 30 de Janeiro de 2007 deu conhecimento aos doadores, os ora RR. A... e B... de que a muito curto prazo seriam visitados por técnicos dos Serviços de Inspecção Tributária com a finalidade de lhes ser efectuada inspecção ao exercício respeitante ao ano de 2003.

     2.1.7. Tal notificação foi remetida por via postal registada, não tendo a mesma sido devolvida pelo que, por força da lei, presume-se que os RR. A... e B... a receberam e como tal tomaram conhecimento do seu teor.

                           +

     2.2. O Direito.

     Nos termos do preceituado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

     - Os requisitos da impugnação pauliana. A anterioridade do crédito do Estado em relação ao acto impugnado.

     - O caso vertente e o preenchimento dos requisitos de que depende a procedência da acção. Prosseguimento do processo.

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     2.2.1. Os requisitos da impugnação pauliana. A anterioridade do crédito do Estado em relação ao acto impugnado.

    

     Através da presente acção pretende o Ministério Público em representação do Estado que:

     - Seja declarada ineficaz em relação à Fazenda Nacional, na medida do seu interesse, a escritura de doação celebrada em 12/03/2007 no Cartório Notarial da

Batalha pelos Réus A... e B... como doadores, sendo donatários os filhos C..., D... e E....

     - Seja reconhecida à Fazenda Nacional o direito de se ressarcir do seu crédito através dos imóveis doados, praticando relativamente a eles todos os actos.

     Esta acção deve-se ao facto de a referida escritura de doação ter sido intencionalmente outorgada a fim de obstar ao pagamento de impostos dos RR. referentes ao ano de 2003, colocando o património daqueles ao abrigo das execuções fiscais.

     Pretende-se pois exercer a impugnação pauliana relativamente ao acto notarial em causa. Este instituto, que radica na actio pauliana inscreve-se no contexto das garantias gerais das obrigações e visa obstar aos actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do cré­dito e não sejam de natureza pessoal; tais actos podem, à face do artigo 610º do Código Civil, ser impug­nados pelo credor se concorrerem as circunstâncias seguintes:

     1) Que haja um prejuízo causado pelo acto impug­nado à garantia patrimonial; 2) Anterioridade do cré­dito ou caso o crédito seja posterior, ter sido o acto dolosa­mente realizado com o fim de impedir a satisfação do crédito pelo mesmo acto[1]. 3) Impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito ou agravamento dessa impossibilidade.

     Também nos termos do artigo 612º nº 1 do Código Civil – Diploma ao qual pertencerão doravante os restantes normativos citados sem menção de origem - "o acto oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé; se o acto for gratuito, a impugnação procede, ainda que um e outro agissem de boa fé".

     A prova dos requisitos da acção de impugnação pau­liana pertence ao Autor com excepção do último a que acima fizemos referência; tratando-se de um facto nega­tivo e considerando a dificuldade que existe na respec­tiva prova pelo lado do credor, a lei nesta parte faz incumbir sobre o devedor interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor – artigo 611º, 2ª parte.

     A sentença apelada julgou improcedente a acção fundamentada essencialmente no facto de o acto impugnado, a escritura de doação em análise, ser anterior à dívida fiscal, o que tiraria viabilidade à garantia pela ausência do requisito enumerado em primeiro lugar. O decidido remete-nos para a análise da "relação jurídica fiscal" que iremos fazer, procurando surpreender na mesma os seus elementos essenciais com particular relevo para o respectivo momento genético.

     A "relação jurídica fiscal" tem vindo a registar uma evolução que acentuando os seus contornos a tem progressivamente aproximado da figura da relação jurídica em geral. Na verdade os próprios sujeitos passivos que eram nas relações fiscais tradicionais meros sujeitos do dever de prestação, vêem-se hoje integrados num complexo jurídico normativo de direitos e deveres que regulamentando as respectivas obrigações procuram também de certo modo e com alguma eficiência fornecer-lhe os meios de defesa real contra a actuação eventualmente lesiva dos sujeitos activos, nomeadamente o Estado, através da impugnação dos actos tributários desde logo por via dos meios impugnatórios administrativos e judiciais, contrapolo moderador do poder do Estado na administração fiscal, o qual tem genericamente no património do contribuinte a garantia geral dos créditos tributários. – artigo 50º da Lei Geral Tributária.

     Integrando-se a impugnação pauliana no contexto das garantias gerais das obrigações fiscais[2] o requisito da anterioridade do crédito face ao acto que se pretende impugnar terá que ser analisado procurando surpreender o momento genético da relação tributária em que se traduz a obrigação fiscal dos RR. Ora a este respeito diremos que a mesma se constitui com o facto tributário em si, ou seja a verificação da situação que dá origem à obrigação tributária[3]. O imposto é pago em função do lucro obtido num determinado período, considerando-se realizado logo que decorra tal lapso de tempo. Isto não obsta a que a obrigação fiscal possa de imediato ser exigível; os momentos da respectiva constituição e exigibilidade não têm que coincidir. Com o nascimento do facto tributário surge para o sujeito activo v.g. o Estado, uma pretensão de natureza fiscal que se não efectiva até que a obrigação possa ser considerada vencida, o que sucede com a liquidação do imposto e respectiva notificação feitas pela Administração fiscal.

     Revertendo ao caso em análise, verificamos que a alienação patrimonial ora em crise teve lugar no dia 12 de Março de 2007, por escritura pública lavrada no Cartório Notarial da Batalha - que consta de fls. 93 a 97 verso, livro de notas para escrituras diversas n° 79"_B – através da qual os dois primeiros Réus, A... e B..., fizeram doação aos terceiro, quarto e quinto Réus, dos imóveis ali identificados.

     Muito embora tenha sido impugnado pelos RR. A... e B..., sendo pois matéria controvertida, o Autor alega que aqueles enquanto sujeitos passivos de IRS, e no exercício das respectivas actividades, venderam, no decurso do ano de 2003, diversos móveis por si construídos e, em conluio com os demais Réus, todos seus filhos (que intervieram nas escrituras de compra e venda na qualidade de Procuradores dos seus pais), declararam nas respectivas escrituras públicas de compra e venda, valores de venda muito inferiores aos efectivamente cobrados aos adquirentes. Tudo isto terá sido detectado através de uma acção inspectiva ao serviço da Divisão de Inspecção Tributária de Santarém, apurando-se nomeadamente aqueles factos que alteravam significativamente os valores indicados por estes contribuintes na declaração de rendimentos respeitante ao ano de 2003, situação que determinou que a Administração Fiscal procedesse a novas liquidações. Foi assim que na sequência dos resultados apurados e respectivas correcções aritméticas relativamente ao ano de 2003, a Administração Fiscal considerou não o de € 117.423,28 a título de lucro que fora declarado pelos Réus A... e B..., mas sim o valor apurado de € 1.045.800,00, fixando-se o imposto IRS a pagar no valor de € 378.876,38, que foi posteriormente fixado em € 425.601,72 [após simulação]. A tributação (o crédito fiscal do Estado) reporta-se pois inequivocamente a 2003 sendo anterior à doação que ora se pretende impugnar, essa datada de 12 de Março de 2007.

     Este entendimento, que reporta a génese do crédito fiscal à data em que a actividade tributável tem lugar, além de ser o mais justo do ponto de vista material é também aquele que se impõe do ponto de vista teleológico e o que decorre do espírito do sistema fiscal atestado aliás por várias normas a que já fizemos referência. Ora o equívoco do saneador-sentença consistiu, salvo o devido respeito, em se confundir no fundo exigibilidade fiscal com a origem da obrigação tributária de que aquela é apenas o seu momento final, fazendo coincidir este último com o seu momento genético.

     É bem certo que em abono da sua tese de inexistência do crédito alegam os RR. que é seu intuito impugnarem a liquidação nos termos dos artigos 70º e 102º do Código de Procedimento e Processo Tributário. Só que também aqui a sua argumentação não colhe; efectivamente, nos termos do disposto no artigo 614º nº 1, "Não obsta ao exercício da impugnação o facto de o direito do credor não ser ainda exigível", norma que terá que entender-se como aplicável aos créditos ilíquidos como o do caso vertente[4].

     Nesta conformidade se conclui que o crédito do Estado a existir é anterior ao acto de alienação que ora se impugna.

     Aliás mesmo que assim não fosse, sempre se poderia colocar a questão de o acto impugnado ter sido realizado com o intuito de prejudicar o Estado, uma vez que o Autor alega – mau grado tal tenha sido impugnando pelos RR. na sua contestação - que pouco antes da celebração da escritura por carta-aviso enviada no dia 30 de Janeiro de 2007, a Administração Fiscal deu conhecimento aos doadores, os ora Réus A... e B... [e que a muito curto prazo seriam visitados por técnicos dos Serviços de Inspecção Tributária com a finalidade de lhes ser efectuada inspecção ao exercício respeitante ao ano de 2003]. A provar-se tal, ver-se-ia o acto abrangido pela segunda parte do nº 1 artigo 610º do Código Civil onde se prevê possa ser impugnado o acto posterior ao crédito desde que realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;

     Claudica pois o fundamento que esteve na base da improcedência da acção decretada em primeira instância.

     Verificadas a possível existência do crédito e respectiva anterioridade à doação que se pretende impugnar, nas condições supra-apontadas, haverá que revogar o saneador em crise a fim de que o processo prossiga, devendo Sr. Juiz apreciar as restantes questões que são colocadas nos autos, decidindo em seguida o que tiver por conveniente.

    

     Poderá assim concluir-se:

     1) São requisitos da impugnação pauliana: 1) Que haja um prejuízo causado pelo acto impug­nado à garantia patrimonial; 2) Anterioridade do cré­dito ou caso o crédito seja posterior ter sido o acto dolosa­mente realizado com o fim de impedir a satisfação do crédito pelo mesmo acto. 3) Impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito ou agravamento dessa impossibilidade.

     2) Tratando-se de uma garantia geral das obrigações a impugnação pauliana conta-se de entre os meios que o Estado tem ao seu dispor para efectivar os seus créditos fiscais.

     3) Na obrigação fiscal não deve confundir-se o momento da sua génese - coincidente com o início da actividade sujeita a tributação – com aquele em que a mesma se torna exigível, momento da respectiva liquidação.

     4) É ao momento genético da obrigação in casu 2003, ano em que se verificou a actividade dos RR. sujeita a imposto que deve reportar-se a acção de impugnação pauliana quando se pretende aquilatar da anterioridade do crédito do Estado em relação ao acto de alienação dos RR.

                           *

     3. DECISÃO.

     Pelo exposto acorda-se em revogar o saneador sentença na medida em que decidiu pela improcedência da acção com o fundamento na inexistência do crédito do Autor a fim de que o processo prossiga, devendo Sr. Juiz apreciar as restantes questões que são colocadas nos autos decidindo em seguida o que tiver por conveniente.

     Custas pelos RR.



      [1] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela "Código Civil Anotado" Coimbra Editora, 4ª Edição pags. 625 Ss. Antunes Varela "Das Obrigações em Geral" Almedina, Coimbra, 4ª Edição pags. 434 ss e Romano Martinez e Fuzeta da Ponte "Garantias de Cumprimento" 3ª Edição pags. 15 ss.            
      [2] Cfr. artigo 50º nº 1 da LGT, embora decorra da lei geral - artigos 601º e 817º do Código Civil – Cfr. v.g. José Casalta Nabais "Direito Fiscal" Almedina Coimbra 5ª Edição  2009, pags. 295.
      [3] Cfr. neste sentido Saldanha Sanches "Manual de Direito Fiscal" Coimbra Editora, 2ª Edição, pags. 133.
      Frisando em sede geral o momento da constituição do crédito como o relevante para o localizar no tempo Cfr. Acs. STJ 9-12-2004 in Col. de Jur, 2004, S III, 134; da Rel. do Porto de 1-4-1997 (R. 395/96) in Col. de Jur., 1997, 2, 20; da Rel. Évora de 22-10-1998 in Col. de Jur., 1998, IV, 261.




      [4] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela Código Civil Anotado I, 4ª Edição pags, 631 in fine. De igual modo Antunes Varela frisando o relevo do nascimento do crédito na impugnação pauliana in "Das Obrigações em Geral" II, Almedina, 4ª Edição, pags. 438; e Menezes Leitão quando coloca o momento relevante da preexistência do crédito em relação ao acto na sua constituição que não na sua exigibilidade – Cfr. "Direito das Obrigações" II, Almedina Coimbra, 4ª Edição 2006 pags. 306. e vincando a mesma orientação escreve agora em "Garantias das Obrigações" Coimbra, Almedina, pags. 90 A "é apenas relevante a data da constituição do crédito e não a data em que o credor obteve um título executivo sobre o devedor, dado que essa circunstância não se inclui entre os pressupostos da impugnação pauliana".