Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1525/07.2TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME FERREIRA
Descritores: PENSÃO DE SOBREVIVÊNCIA
SEGURANÇA SOCIAL
DIREITO
UNIÃO DE FACTO
MORTE
Data do Acordão: 04/01/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU – 4º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 3º, AL. E), E 6º, Nº 1, DA LEI Nº 7/2001, DE 11/05; 2020º DO C. CIV..
Sumário: I – Estando provada a existência de uma união de facto entre a A. e um beneficiário da S.S., para que aquela tenha direito a receber a pensão de sobrevivência da S. S. precisa de reunir as condições constantes no artº 2020º do C. Civ., uma vez demonstrada a inexistência de bens na herança do dito beneficiário.

II - O entendimento dominante, nesta matéria, e ultimamente uniforme no STJ, é o de que, além do mais, cabe ao autor neste tipo de acções alegar e provar que não pode obter alimentos do seu cônjuge ou ex-cônjuge, dos seus descendentes, dos seus ascendentes e dos seus irmãos.

III - Neste tipo de acções não é razoável a exigência e rigor probatórios, no sentido da alegação e prova dos rendimentos e despesas do agregado familiar, sendo de admitir, para o efeito, a prova da primeira aparência, tanto mais que a prova da impossibilidade pode ser feita por presunções; os pressupostos do artº 2020º do CC devem ser aplicados com as necessárias adaptações, para efeitos da atribuição da pensão de sobrevivência.

IV - Verificando-se um total afastamento entre mãe (Autora na acção) e filha, desde há cerca de 50 anos, afigura-se que tal tipo de vínculo familiar não é mais do que formal, podendo até entender-se que o dito se terá extinto, à semelhança do que sucede com os casos de adopção plena – artº 1986º, nº 1, do C. Civ.-, pelo que pretender-se “obrigar” essa filha a prestar alimentos a esta mãe, nessas circunstâncias, até poderia configurar um abuso de direito por parte desta “mãe”.

V - Logo, não se pode considerar que essa “filha” esteja obrigada ou vinculada à prestação de alimentos à Autora, que se limitou a pô-la no mundo, a dar-lhe um nome e uma indicação de maternidade, mas tão só, pois nunca mais houve qualquer tipo de relacionamento materno-filial entre ambas.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


I


            No Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, A......, residente em ....instaurou contra o Instituto de Segurança Social, IP - Centro Nacional de Pensões, com sede ......, a presente acção declarativa, com processo ordinário, pedindo que seja declarada a existência de uma união de facto entre a Requerente e B..., este falecido em 20/08/2006, a qual terá perdurado mais de 25 anos e até à referida data; que se reconheça que inexistem quaisquer pessoas a quem a Autora possa exigir alimentos, nos termos das als. a) e d) do artº 2009º do C. Civ; que se reconheça que a herança deixada pelo falecido B... é inexistente ou manifestamente insuficiente para lhe proporcionar alimentos; e que, por isso, tem a Requerente direito à atribuição das prestações por morte do dito B..., a serem pagas pelo CNP, o que pede.

            Alegou para tanto e muito em resumo, que viveu com o falecido durante mais de 25 anos consecutivos, até à morte deste, ocorrida em 20/08/2006, como se fossem marido e mulher, portanto em união de facto, sendo ele viúvo e não tendo deixado bens.

            Que viviam ambos dos rendimentos provenientes da actividade profissional de camionista do falecido e, desde a sua reforma e até ao seu falecimento, da pensão que ele recebia, além da pensão também auferida pela Requerente, de € 230,00, auxiliando-se mutuamente, e que com o óbito do dito B... a Requerente já não dispõe de meios suficientes para se sustentar, nem o falecido deixou quaisquer bens ou rendimentos, razão da presente demanda.

            Que durante o tempo em que exerceu a sua profissão o falecido descontou para a segurança social, onde tinha o nº 00312543600.

            Que após a morte do dito companheiro a Requerente passou a residir sozinha na casa onde antes viveram ambos, pagando uma renda mensal de € 100,00, a qual teve de deixar, por não conseguir pagar a dita renda.

            Que actualmente vive em casa de um sobrinho, por favor deste e a título temporário, enquanto a presente causa se não decide.

            Que a Requerente é uma pessoa doente, idosa, sem rendimentos a não ser a sua dita pensão, pelo que carece do auxílio pretendido.

            Que a A. não tem nem tinha à data do falecimento do seu companheiro quaisquer outros parentes que lhe possam prestar alimentos, pois que tem uma irmã, mas esta não tem possibilidades económicas de lhe prestar alimentos, e tem uma filha (sua, não do falecido) com a qual a A. nunca conviveu e de quem até desconhece o respectivo paradeiro.

           


II

            Contestou o CNP onde alegou, muito em resumo, que não sabe se correspondem à verdade os factos alegados pela autora.

            Terminou o Réu pedindo a acção seja julgada de acordo com a prova a produzir.


III

            Terminados os articulados foi proferido despacho saneador, no qual foi reconhecida a regularidade processual da acção, com selecção da matéria de facto alegada e tida como relevante para efeitos de instrução e de discussão da causa, posto que teve lugar a realização da audiência de discussão e julgamento, com decisão sobre a matéria de facto constante da base instrutória.

            Proferida a sentença sobre o mérito da causa, nela foi decidido julgar a acção improcedente, por não provada, com a consequente absolvição do Réu do pedido.


IV


Dessa sentença interpôs recurso a Autora, recurso que foi admitido como apelação e com efeito devolutivo.

           

Nas alegações que apresentou a Apelante concluiu do seguinte modo:

(…)


V

            Não foram apresentadas contra-alegações e nesta Relação foi aceite o recurso interposto, tal como foi admitido em 1ª instância, tendo sido dispensados os “vistos” dos senhores Desembargadores Adjuntos, nos termos do artº 707º, nº 2, do CPC.

           

            Nada obsta, pois, a que se conheça do objecto do recurso interposto, o qual passa pela apreciação das seguintes questões:

            A – Impugnação da matéria de facto.

            B – Saber se deve ou considerar-se como provada a impossibilidade de a A. obter alimentos através das pessoas enumeradas nas als. a) a d) do artº 2009º do C. Civ., bem como da própria herança do falecido, especialmente de uma filha sua.

(…)


***

            Prosseguindo a nossa apreciação, consta da sentença recorrida que “a questão essencial a apreciar e a decidir consiste em saber se estão ou não preenchidos os pressupostos de direito tendentes a poder ser conferido à A. o direito ao recebimento das prestações da Segurança Social por morte de B...”.

            É esse, com efeito, o fim ou o objecto da presente acção e do recurso interposto pela A., sendo certo que na referida sentença já consta como demonstrada a necessidade de alimentos da autora, assim como que o convívio “more uxorio” entre a A. e o falecido B... perdurava há mais de 2 anos no momento da morte deste último.

            Também se deu como demonstrada a impossibilidade de a autora obter alimentos da herança do falecido, questões estas que não são postas em causa pelo recurso interposto e que os factos supra enunciados confirmam.

            Porém, do que a Apelante discorda na sentença proferida é quando nesta se diz que “a autora não logrou demonstrar que as pessoas a si ligadas por relações de parentesco, enunciadas nas alíneas a) a d) do nº 1 do artº 2009º do C. Civ., não lhe possam prestar alimentos, designadamente a filha”.

            É, pois, este o cerne do presente recurso.

            Assim, é claro e já resulta da sentença recorrida, que a A., com a propositura da presente acção, pretendeu que lhe seja reconhecido o direito a receber uma pensão de sobrevivência, a ser-lhe paga pelo Instituto de Solidariedade e Segurança Social, pelo facto de ter vivido em união de facto, durante mais de dois anos, com um beneficiário da Segurança Social, entretanto falecido, nos termos dos artº 3º, al. e), e 6º da Lei nº 7/2001, de 11/05.

            Este tipo de pensões tem em vista a protecção das uniões de facto na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social e da lei, conforme resulta dos dispositivos citados.

            Estando provada a referida união de facto entre a A.e um beneficiário da S.S., para que aquela tenha direito a receber esse tipo de pensão precisa de reunir as condições constantes no artº 2020º do C. Civ. (uma vez também está demonstrada a inexistência de bens na herança do dito beneficiário).

            Assim o entendemos, apesar de também haver um outro entendimento jurisprudencial que defende que os requisitos exigíveis ao membro sobrevivo da união de facto, para o referido efeito, se deverem reconduzir à prova relativa ao estado civil do beneficiário e à circunstância de o respectivo interessado ter vivido em união de facto com o dito beneficiário desde há mais de dois anos à data da sua morte.

            Esta é, porém, uma corrente minoritária, que não seguimos.

            O entendimento dominante, nesta matéria, e ultimamente uniforme no STJ, é o de que, além do mais, cabe ao autor neste tipo de acções alegar e provar que não pode obter alimentos do seu cônjuge ou ex-cônjuge, dos seus descendentes, dos seus ascendentes e dos seus irmãos.

            Neste sentido, entre muitos outros arestos, podem ver-se: Ac. Rel. Év. de 22/01/1998, in BMJ 473, pg. 586; Ac. STJ de 23/05/2006, in C.J.STJ, ano XIV, tomo II, pg. 100; Ac. STJ de 28/06/2007, in www.dgsi,pt; o Ac. STJ de 20/09/2007, proferido no Proc. nº 07B1752, disponível em www.dgsi.pt; Ac. Rel. Co. de 3/02/2009, proferido na Apelação nº 204/05, subscrito pelo Des. Jorge Arcanjo, onde se defende, também, que “neste tipo de acções não é razoável a exigência e rigor probatórios, no sentido da alegação e prova dos rendimentos e despesas do agregado familiar, sendo de admitir, para o efeito, a prova da primeira aparência, tanto mais que a prova da impossibilidade pode ser feita por presunções; os pressupostos do artº 2020º do CC devem ser aplicados com as necessárias adaptações, para efeitos da atribuição da pensão de sobrevivência – acórdão não disponível na Net.          

            E compreende-se este entendimento dominante, porquanto assim se dispõe no artº 6º, nº 1, da Lei nº 7/2001, de 11/05, onde se remete para o disposto no artº 2020º do C. Civ., preceito este que pressupõe ou impõe que “o autor não possa obter alimentos das pessoas referidas nas als. a) a d) do artº 2009º”, isto é, do cônjuge ou ex-cônjuge, dos descendentes, dos ascendentes e dos irmãos.

            Aliás, este entendimento também resulta do disposto no Dec. Regulamentar nº 1/94, de 18/01 (Regula o acesso às prestações por morte, no âmbito da segurança social, por parte das pessoas que se encontram na situação de união de facto), conforme seu artº 3º, nº 1.

            Por conseguinte, o que está em discussão neste recurso (e na acção) é saber se a A. logrou ou não provar que não pode obter alimentos das referidas pessoas.

            Está assente que a A. apenas vive de uma pensão de € 230,00 é viúva e não foi posto em causa que não pode obter alimentos da herança do seu companheiro falecido e dos seus irmãos, uma vez que já não tem pais (a própria autora conta já com 77 anos), além de que viveu em união de facto, por mais de dois anos, com B..., falecido no estado de viúvo, em 20/08/2006, que era pensionista da S.S. - conforme pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 a 21, 27, 28, 31 e 32.

            Apenas foi referido na sentença recorrida, como fundamento da decisão de improcedência da acção, que “estando provado que a autora tem uma filha, competia à A. demonstrar que não pode obter alimentos dessa filha, o que não foi logrado”.

            Ora, acerca desta filha o que a A. alegou foi que “nunca conviveu com a dita, desconhecendo o seu paradeiro e a respectiva situação económica, já que …essa filha, ainda muito pequena, ficou a residir com os avós paternos e desde então que não sabe do seu paradeiro, já que apesar de a autora ter tentado contactar essa filha, esta não quis estabelecer qualquer tipo de relação com a mãe”.

Dos factos supra enunciados resulta como provado que “a Autora tem uma filha, de nome C..., nascida em 25/12/1951, com quem a A. nunca conviveu, desconhecendo até o paradeiro dessa filha e bem assim da respectiva situação económica”.

Será que estes factos, por si só, permitem-nos considerar que a A. não pode obter alimentos dessa dita filha?

É claro que o dito paradeiro sempre seria fácil de se saber, pois temos a certidão de registo de nascimento dessa filha, que actualmente conta 56 anos, sendo casada desde 1975.

E mesmo a sua situação económica também é possível de ser apurada.

Porém, afigura-se-nos não são verdadeiramente estes aspectos que relevam, mas sim saber-se se esta filha deve ser considerada como estando vinculada à prestação de alimentos, nos termos do artº 2009º, nº 1, do C. Civ..

Ora, verificando-se um total afastamento entre mãe e filha, desde há cerca de 50 anos, como ressalta da prova produzida, afigura-se que tal tipo de vínculo familiar não é mais do que formal, podendo até entender-se que o dito se terá extinto, à semelhança do que sucede com os casos de adopção plena – artº 1986º, nº 1, do C. Civ..

A verdadeira família da “filha” da autora é a sua família paternal, não a Autora, que “negou” esse tipo de relações familiares desde a idade de criança daquela.

Pretender-se “obrigar” essa filha a prestar alimentos a esta mãe, nestas circunstâncias, até poderia configurar um abuso de direito por parte desta “mãe”, razão pela qual nem a A. pretendeu ou terá alguma vez querido que assim acontecesse.

E entende-se que assim seja, dado tal afastamento absoluto entre ambas e desde há cerca de 50 anos.

Logo, não se pode considerar que essa “filha” esteja obrigada ou vinculada à prestação de alimentos à Autora, que se limitou a pô-la no mundo, a dar-lhe um nome e uma indicação de maternidade, mas tão só, pois nunca mais houve qualquer tipo de relacionamento materno-filial entre ambas.

Donde se afigurar que também está demonstrado que a A. está “impedida” de obter alimentos dessa filha, isto sem descurar que até se poderia vir a provar que esta não pode, em concreto, ajudar economicamente a mãe.

Concluindo, não podemos concordar com a sentença recorrida, mas sim com a tese da Recorrente, no sentido de que estão demonstrados todos os requisitos necessários ao reconhecimento do invocado direito da A. a receber as prestações por morte, no âmbito da Segurança Social, derivadas do falecimento do seu ex-companheiro de facto, B..., falecido em 20/08/2006.

Logo, procede o presente recurso, assim como a acção, impondo-se a revogação da sentença recorrida.


VI

            Decisão:

            Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e julgando-se procedente a acção, com declaração de que a Autora é titular do direito às prestações por morte, no âmbito do Regime da Segurança Social, por morte de B..., falecido em 20/08/2006 e que era beneficiário da S.S. com o nº 00312543600, nos termos do disposto nos artºs 3º e 6º da Lei nº 7/2001, de 11/05.

            Custas da acção e do presente recurso pelo Réu.