Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
139/06.9GAACN-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: INQUÉRITO
INSUFICIÊNCIA
FALTA DE PERÍCIA
ACUSAÇÃO
NULIDADE
Data do Acordão: 09/30/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TORRES NOVAS – 1ºº J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 119º, D) CPP,120º, 2, D)
Sumário: 1. Não decorre da lei processual penal que seja obrigatória a perícia a assinaturas pelo que a falta dela não é caso de insuficiência de inquérito.
2. O juiz, ao confrontar-se com a acusação, mesmo que considere que o Ministério Público optou por acusar sem estar devidamente estribado na prova que recolheu durante o inquérito, não pode retirar a consequência da nulidade da acusação.
Decisão Texto Integral: I. Relatório
No âmbito dos autos de Processo Comum (Tribunal Singular) n.º 139/06.9GAACN, do 1º Juízo, do Tribunal Judicial de Torres Novas, por despacho de 13/1/2009, foi declarada a nulidade da acusação proferida nos autos por insuficiência de inquérito, e, consequentemente, determinada a devolução dos autos ao Ministério Público, para os fins tidos por convenientes. ****
A Digna Magistrada do Ministério Público, notificada do aludido despacho, veio, em 4/2/2009, interpor recurso, defendendo a revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que receba a acusação, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões: 1. O artigo 119.º, alínea d), do C.P.P., dispõe que constitui nulidade insanável, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, a falta de inquérito nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade, sendo que a doutrina e a jurisprudência são unânimes em considerar que este vício apenas ocorre quando há uma total omissão do inquérito, o que não sucede neste caso. 2. Já o artigo 120.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), do C.P.P., estabelece que qualquer nulidade diversa das referidas no artigo 119.º deve ser arguida pelos interessados. Por conseguinte, a insuficiência do inquérito por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios é uma nulidade dependente de arguição que teria de ser invocada pelo arguido ou pelo seu defensor, titulares do direito protegido pela norma violada, no prazo da instrução ou nos cinco dias após a notificação da acusação, o que não sucedeu, pelo que em qualquer caso tal nulidade sempre estaria sanada pelo decurso do tempo. 3. De todo o modo, só a falta de actos obrigatoriamente impostos por lei consubstancia uma insuficiência de inquérito, não estando a perícia à escrita inscrita na lei como acto de inquérito obrigatório. 4. Actualmente, o poder de sindicância da acusação pelo juiz do julgamento não abrange uma interpretação tal como a defendida no acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. n.º 4/93, a qual defendia que esse poder incluía a faculdade de rejeição da acusação por manifesta insuficiência de indícios, permitindo-se, assim, que o juiz avaliasse os elementos probatórios constantes do inquérito. 5. A Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, introduziu um n.º 3 ao artigo 311.º, do C.P.P., com o propósito de afastar semelhante jurisprudência, pelo que não pode o juiz de julgamento censurar o modo como foi realizado o inquérito, aquilatando àcerca da suficiência ou insuficiência dos indícios para acusar, pronunciando-se sobre a essencialidade de um meio de prova cuja realização não é obrigatória e devolvendo o inquérito ao Ministério Público. 6. Nos termos do artigo 340.º, do C.P.P., o tribunal pode ordenar, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade ou à boa decisão da causa, podendo o relatório pericial, cuja conclusão se aguarda, ser junto em sede de julgamento.
7. Acresce que, nos termos do artigo 165.º, do mesmo diploma, o documento que não possa ser junto no decurso do inquérito, pode ser junto até ao encerramento da audiência. 8. A decisão recorrida, ao declarar a nulidade da acusação por insuficiência de inquérito, designadamente pela falta de junção de um meio de prova que o Meritíssimo Juiz a quo reputou essencial e que consiste no relatório pericial à assinatura que se encontra aposta no vale postal junto aos autos, que foi solicitado ao Laboratório de Polícia Científica, e que não se encontrava junto antes da prolação da acusação, violou o disposto no artigo 32.º, n.º 5, da C.R.P., nos artigos 118.º, 119.º. alínea d), 120.º, n.º 2, alínea d), 311.º, 313.º, 340.º, n.º 1 e 165.º, todos do C.P.P., na medida em que considerou como acto de inquérito obrigatório a realização de uma perícia à escrita, quando tal acto não é de realização forçosa.
9. A decisão recorrida deveria ter considerado inexistir qualquer nulidade por omissão de inquérito, na medida em que este existiu, bem como, em obediência ao princípio do acusatório que rege o nosso processo penal, não se pronunciar àcerca da suficiência ou insuficiência dos indícios da acusação, na medida em que foram praticados todos os actos de inquérito obrigatórios por lei.
10. Não tendo procedido em conformidade com o supra exposto, deverá o douto despacho ser revogado e, em consequência, recebida a acusação, nos termos do disposto nos artigos 311.º, 312.º e 313.º, todos do C.P.P.
****
Não houve resposta quanto ao aludido recurso, tendo este sido, em 14/5/2009, admitido. Foi sustentada, em 29/5/2009, a decisão impugnada.
Em 23/6/2009, os autos foram remetidos ao Tribunal da Relação de Coimbra.
Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 26/6/2009, emitiu douto parecer em que defendeu a procedência do recurso. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2, do C.P.P., não tendo sido exercido o direito de resposta. Colhidos os vistos, cumpre decidir, em conferência.
****
II. Decisão Recorrida:
Compulsados os autos, constata-se que o Ministério Público solicitou ao Laboratório de Polícia Científica a realização de perícia à escrita constante de o vale postal em causa nos presentes autos, de forma a verificar se a assinatura do ofendido C… que consta do verso do mesmo terá sido efectuada pelo arguido N….
Contudo, em lugar de aguardar pelo resultado do exame pericial à assinatura em causa, o Ministério Público optou por deduzir desde logo acusação contra o arguido N…, imputando-lhe, entre outros, a prática de um crime de falsificação de documento. Consta da acusação, entre outros factos, que o arguido terá imitado a assinatura do ofendido C…, com o próprio punho, apondo a mesma no vale postal em causa.
Todavia, para poder descrever tal facto e poder imputar, consequentemente, ao arguido a prática do referido crime de falsificação de documento, será meio de prova essencial a realização da referida perícia à assinatura do ofendido constante do vale postal de forma a concluir, ou não, sobre se a mesma terá sido imitada pelo arguido ou não. Só o relatório pericial poderá esclarecer de forma objectiva se a assinatura foi efectivamente falsificada pelo arguido.
Sem a junção do relatório pericial, faltará um meio de prova essencial para se concluir se existem indícios se houve, de facto, uma falsificação da assinatura por parte do arguido e prática pelo mesmo do crime de falsificação de documento.
Por outro lado, como o Ministério Público optou por deduzir acusação antes de ser junto aos autos o referido relatório pericial, faltará esse meio de prova essencial para se verificar se existem indícios da prática daquele crime. Além disso, tendo em conta que não o indicou na acusação, na medida em que o mesmo não está ainda elaborado e ainda não se encontra junto aos autos, o Ministério Público não poderá utilizar tal relatório como meio de prova a produzir em sede de audiência de julgamento. Na verdade, nos termos do n.º 3, do artigo 283.º, do C.P.P., o Ministério Público tem que indicar na acusação todas as provas que pretende produzir ou requerer, sob pena de as mesmas não poderem ser consideradas. Ora, verifica-se que, na acusação, o Ministério Público não indica que pretende produzir o relatório pericial (nem o poderia fazer, na medida em que não está ainda junto aos autos), nem faz menção ao mesmo para que ele seja considerado no futuro.
Verifica-se, assim, que se encontra omitido nos autos um meio de prova essencial para se concluir pela existência de indícios da prática pelo arguido N… do crime de falsificação de documento pelo qual veio acusado, consistente no referido relatório pericial à assinatura constante do vale posta.
Perante essa falta de produção de um meio de prova essencial, ter-se-á que concluir pela existência de um vício processual nos presentes autos, consistente na insuficiência de inquérito. Tal constitui um fundamento de nulidade insanável em relação à acusação, nos termos do artigo 119.º, alínea d), do C.P.P.
Consequentemente, e pelo exposto, decide-se declarar a nulidade da acusação proferida nos presentes autos por insuficiência de inquérito, designadamente pela falta de junção de um meio de prova essencial consistente no relatório pericial à assinatura constante do vale postal em causa nos autos, que foi solicitado ao Laboratório de Polícia Científica e que não se encontrava junto antes da prolação da acusação.
Notifique.
Após trânsito, devolva os autos ao Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes.
****
III. Apreciação do Recurso:
De harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigos 403.º, n.º 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal), uma questão vem colocada pelo recorrente à apreciação deste tribunal:
- saber se deve ser recebida a acusação, por não existir fundamento para a declaração de nulidade da mesma por insuficiência de inquérito.
****
O despacho recorrido declara a nulidade da acusação deduzida pelo Ministério Público por entender que a falta de produção de um meio de prova, considerado pelo Meritíssimo Juiz a quo como essencial, configura o vício processual de insuficiência do inquérito, o que constitui nulidade insanável em relação à acusação, nos termos do artigo 119.º, alínea d), do C.P.P.
Desde logo, há que notar que só por mero lapso pode ser entendida a referência ao artigo 119.º, alínea d), do C.P.P.
Na verdade, as nulidades insanáveis estão taxativamente indicadas no artigo 119.º, do C.P.P. E aí, na parte relevante para o caso em apreço, prevê-se como nulidade insanável a falta de inquérito, de acordo com a alínea d) do citado normativo.
Como todos sabem, tal vício só existe quando haja ausência absoluta ou total de inquérito ou falta absoluta de actos de inquérito – ver Souto de Moura, Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 118, Maia Gonçalves, CPP Anotado, 1996, pág. 250, assim como Acórdão do S.T.J., de 11/7/2007, Processo P07P1610, www.dgsi.pt/jstj, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 6/11/2007, Processo 6231/2007 – 5ª Secção, www.dgsi.pt/jtrl.
Acontece que o Ministério Público procedeu a várias diligências de inquérito, conforme resulta dos autos, nomeadamente a constituição e interrogatório de arguido, com prestação de TIR, a inquirição do denunciante, a inquirição de duas testemunhas e a recolha de autógrafos ao denunciante e ao arguido.
Nunca podemos, pois, estar perante o vício que consta do artigo 119.º, alínea d), do C.P.P.
Em boa verdade, o Meritíssimo Juiz a quo, no despacho ora em crise, nunca menciona a falta de inquérito como fundamento da sua decisão, antes considera que existe a falta de junção de um meio de prova essencial, o que, no seu entender, origina uma insuficiência de inquérito. Daí que se entenda como mero lapso a alusão ao artigo 119.º, alínea d), do C.P.P.
****
Acontece que o vício apontado na decisão recorrida integra sim a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do C.P.P.
Dispõe o citado artigo, no que para agora interessa:
1 – Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte:
2 – Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais:
a)…
b)…
c)…
d) A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.
****
Note-se que o despacho recorrido, em resumo, entende que só o respectivo relatório pericial poderá esclarecer de forma objectiva se a assinatura foi efectivamente falsificada pelo arguido.
Logo, segundo o Meritíssimo Juiz a quo, falta um meio de prova essencial para que o tribunal possa concluir pela existência de indícios relativamente ao supra citado crime. Existe, então, nos autos alguma insuficiência de inquérito? No que tange a esta matéria, aderimos ao que o Professor Germano Marques da Silva defende, isto é, “a insuficiência de inquérito é uma nulidade genérica que só se verifica quando se tiver omitido a prática de um acto que a lei prescreve. Assim, só se verifica esta nulidade quando se omita acto que a lei prescreve como obrigatório e desde que para essa omissão a lei não disponha de forma diversa. A omissão de diligências não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência, pois a apreciação dos actos de inquérito é da exclusiva responsabilidade do Ministério Público.” – Curso de Processo Penal, 1999, Volume II, pág. 80. Ora, não decorre da lei processual penal que seja obrigatória a perícia a assinaturas, o que bem se compreende, na medida em que, conforme ensina a experiência dos tribunais, tal acto, em muitos casos, se revela inconclusivo, para além de ser moroso. Por aqui, desde logo, não é caso de insuficiência de inquérito.
****
Avançando um pouco mais, há que ter ponderação na análise da essencialidade dos meios de prova. Não se complique o que é fácil!... Da acusação, constam factos singelos que dizem respeito apenas à falsificação de um vale do correio, no valor de 164,17 euros, numas circunstâncias bem definidas no tempo e no espaço (entre 23 e 28 de Dezembro de 2005, numa casa em Torres Novas, nos Correios da Golegã), sendo certo que, até, o procedimento criminal, na parte referente aos crimes de furto simples e de burla simples, foi já declarado extinto, após desistência de queixa por parte de C... e subsequente aceitação por parte do arguido N..., além de que este admitiu, no inquérito, a prática dos factos. Por conseguinte, nunca poderia ser entendido como essencial o relatório pericial, ainda que se conceda não ser o mesmo totalmente despiciendo, no rigor dos princípios e ao nível teórico.
****
Já vimos que não há insuficiência de inquérito.
Contudo, ainda que a mesma existisse, dispõe o n.º 3, alínea c), do artigo 120.º, do C.P.P., queas nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas, tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito.” Pois bem, o arguido não suscitou a existência de qualquer nulidade, dentro do prazo supra mencionado, pelo que sempre, a existir, estaria sanada pelo decurso do tempo a existência do vício apontado.
****
Por fim, importa sublinhar que, logo após a entrada em vigor da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, remetido o processo para julgamento, o juiz deixou de poder rejeitar a acusação por insuficiência da prova indiciária (artigo 311.º, do C.P.P.). O juízo sobre a insuficiência de indícios que sustentem a acusação passou a ser só da competência do juiz de instrução, nos casos em que esta seja requerida, ou seja, o juiz de julgamento, ainda que discorde do modo como foi realizado o inquérito, designadamente por omissão de diligências com utilidade para a descoberta da verdade, não pode devolver o processo ao Ministério Público para prosseguir a investigação – ver, neste sentido, Maia Gonçalves, CPP Anotado, 13ª edição, 2002, páginas 618 a 620, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 101/2001, de 14 de Março, processo n.º 420/2000, DR, II Série, de 6/6/2001. Significa isto que o juiz, ao confrontar-se com a acusação, mesmo que considere que o Ministério Público optou por acusar sem estar devidamente estribado na prova que recolheu durante o inquérito, não pode retirar a consequência da nulidade da acusação.
****
IV. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 5ª Secção em dar provimento ao recurso e em revogar o despacho recorrido, determinando-se que, no tribunal de 1ª instância, em seu lugar, seja proferido outro que receba a acusação formulada nos autos. Não há lugar a tributação.
****
Coimbra, 30 de Setembro de 2009
(Texto processado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94.º,n.º 2, do CPP.)

________________________________________

(José Eduardo Martins)

________________________________________

(Isabel Santos Valongo)