Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
283/04.7TBSAT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HÉLDER ROQUE
Descritores: VENDA DE COISA ALHEIA
RESTITUIÇÃO
COMPRA E VENDA COMERCIAL
RESERVA DE PROPRIEDADE
VEÍCULO AUTOMÓVEL
Data do Acordão: 02/19/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SÁTÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 562º, 563º, 564º, NºS 1 E 2 E 566º, Nº 1, DO CÓDIGO CIVIL, E 661º, Nº 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL .
Sumário: 1. Celebrado entre as partes um contrato de compra e venda de um veículo automóvel, a respectiva propriedade não chegou a transferir-se para o comprador e, por isso, a venda do bem realizada pelo vendedor, a favor daquele, que era propriedade de outrem, com reserva de propriedade, em benefício de entidade financiadora, traduziu-se na venda de uma coisa alheia.
2. A venda de bem alheio, situada na esfera do direito comercial, não transfere logo a propriedade do mesmo para o comprador, o que só virá a ocorrer, mais tarde, eventualmente, «ipso iure», por via da eficácia translativa da convenção, quando o vendedor, por qualquer título legítimo, adquirir a propriedade da coisa e fizer a sua entrega ao comprador, sob pena de responder, por perdas e danos, perante este.
3. Não tendo o vendedor procedido à aquisição da viatura, por forma a operar-se o subsequente cancelamento do registo da reserva de propriedade do automóvel por ele vendido, o comprador tem direito à restituição do preço pago pela sua aquisição, ou, em todo o caso, operando-se a restituição da quantia com que o vendedor se locupletou.
Ainda que a declaração de distrate só possa ser emitida pela entidade financiadora do empréstimo, não se exclui que o vendedor, pagando o montante das prestações em dívida aquela, venha a obter esse documento e, consequentemente, a cumprir a obrigação de entrega da coisa, que compreende, salvo estipulação em contrário, os documentos relativos à mesma, sob pena de se verificar uma situação de cumprimento defeituoso da prestação
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


“Joaquim P. Amaral, Lda”, sociedade comercial, com sede na Rua Dr. Hilário de Almeida Pereira, nº 75, 1º, Esq., no Sátão, propôs a presente acção comum, sob a forma de processo ordinário, contra “Araújo & Capelo, Lda”, com sede no lugar de Porto Martim, Cabreiros, em Braga, pedindo que, na sua procedência, a ré seja condenada a entregar à autora documento legal, no prazo a fixar pelo Tribunal, que permita o cancelamento da reserva de propriedade constante do registo da respectiva viatura, ou, caso tal não se verifique, dentro do referido prazo, a entregar à autora a quantia de 42.397,82€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo pagamento, e, em qualquer caso, a pagar à autora a quantia de 2.500€, relativa aos prejuízos ocorridos, alegando, para o efeito, em suma, que, em Agosto de 2002, comprou à ré, que se dedica à comercialização de veículos, um automóvel, marca BMW, série 5, pelo preço de 42.397,82€, que seria pago pela autora, mediante a entrega de um automóvel, marca Ford, modelo Modeo, avaliado, em retoma, na importância de 6.234,97€, de um cheque de 14.964€ e da quantia, em numerário, de 21.198,91€.
No dia 14 de Agosto de 2002, a autora entregou à ré o veículo de retoma, o cheque, no valor de 14.964€, e a quantia, em numerário, de 21.198,91€, recebendo desta o veículo automóvel adquirido.
Mais acordaram que a ré trataria de toda a documentação necessária à transferência da propriedade da viatura para a autora, remetendo-lhe, posteriormente, os respectivos documentos, circunstância essa que, apesar da insistência, jamais ocorreu, vindo, entretanto, ao conhecimento da autora que o referido BMW, série 5, se encontrava registado, em nome da “Finicrédito SFAC, SA”, por ter sido objecto de um contrato de locação financeira, com reserva de propriedade a seu favor.
A ré, apesar das sucessivas promessas de que resolveria o assunto com a locadora, pagando-lhe as prestações em dívida, no total de 30.000,00€, a fim de que esta pudesse emitir a declaração de extinção de reserva de propriedade que detém sobre a viatura, não cumpriu esse compromisso.
Conclui que, de acordo com o negócio celebrado entre as partes, a autora tem direito a registar, definitivamente, a viatura, a seu favor, sem qualquer ónus, designadamente, de reserva de propriedade, a favor da locadora.
Devendo, para isso, a ré entregar à autora documento legal, a fim de ser cancelada a reserva de propriedade existente, dentro do prazo a fixar pelo Tribunal, sob pena de, não o fazendo, dever entregar à autora a quantia que pagou pelo automóvel, ou seja, 42 397,82€, e bem assim como ser condenada a pagar-lhe a importância de 2.500,00€, em virtude desta situação lhe ter acarretado inúmeros prejuízos, designadamente, com pessoal, deslocações, telefone, etc., que não podem computar-se em montante inferior.
Na contestação, a ré alega, no essencial, que foi mera intermediária na venda do veículo em causa, o que aconteceu, a pedido da sua locatária, “Embalbraga, Lda”, que lhe entregou o livrete e o título de registo com a promessa do gerente desta de que liquidaria à locadora/proprietária, “Finicrédito SFAC, SA”, o montante em dívida, circunstância jamais verificada.
De qualquer modo, a compra e venda do veículo foi firmada entre a “Embalbraga, Lda” e a autora, sendo a ré mera mandatária daquela sociedade, pelo que só a “Finicrédito SFAC, SA”, beneficiária do contrato de locação financeira, poderá requerer o cancelamento da reserva de propriedade.
Na réplica, a autora conclui como na petição inicial, requerendo, a final, a condenação da ré no pagamento de indemnização condigna, a seu favor, a título de litigância de má fé, já que, em seu entender, alterou, intencionalmente, a verdade dos factos.
A sentença julgou a acção, totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, absolveu a ré de todos os pedidos, incluindo o de condenação como litigante de má fé.
Desta sentença, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª – O Tribunal a quo errou na apreciação da matéria de facto, ao não dar como provados em toda a sua extensão os factos constantes dos artigos 1o, 2o, 3o, 4o, 5o, 6° e 15° da base instrutória.
2ª - Relativamente ao artigo 1o de acordo com o depoimento das testemunhas da apelante e da prova documental junta pela mesma, ficou amplamente provado que aquela entregou à apelada, para além da quantia referida na alínea d) dos factos assentes, o montante de 21 198,196€.
3ª - De resto, a não ser assim, certamente que a apelante não tinha contabilizado na sua escrita a factura de compra que a apelada emitiu, nem esta teria entregue àquela os documentos, incluindo a declaração de compra e venda, relativos à viatura em causa.
4ª - Do mesmo modo, perante os depoimentos apresentados e documentos juntos pela apelante, os artigos 2o, 3o, 4o, 5o, 6o e 15° da base instrutória teriam de ser dados como provados. Na verdade,
5ª - Os depoimentos das testemunhas, relativas a estes pontos, foram claros e precisos, tendo ambas respondido de forma unânime que o legal representante da autora, aquando da celebração do negócio em apreço, não se apercebeu da existência da reserva de propriedade que impendia sobre o dito veículo, só tendo conhecimento da existência da mesma, quando em conversa com um funcionário da ré, este o alertou para tal situação.
6ª - Além disso, o comportamento assumido pelo legal representante da ré, ao pretender ser ele a tratar da legalização da viatura, quando o próprio legal representante da autora se prontificou para tal, só vem corroborar os factos descritos na conclusão anterior.
7ª - Por outro lado, resulta claramente do depoimento das testemunhas que, por causa de toda esta situação criada pela apelada, a autora teve despesas com pessoal, com deslocações e telefones; de resto, ainda que as testemunhas nada tivessem referido a este respeito, o que não se concede, a igual conclusão chegaríamos atrás do recurso aos elementos da experiência comum.
8ª - Elementos da experiência comum que, também seriam mais que suficientes para que o quesito 15° da base instrutória fosse dado como provado, pois, estamos em crer que ninguém emite uma factura a favor de outrem, como o fez a aqui apelada, se não se assumir como proprietária do bem que está a vender.
9ª - Pelo que, e atento o exposto, a apelante logrou provar cabalmente os artigos em apreço.
10ª - Face também ao exposto, temos necessariamente de concluir que o Tribunal a quo errou na interpretação dos factos e na subsunção destes ao direito, ao julgar improcedente todos os pedidos formulados pela ora apelante, com excepção da condenação da ré a título de litigância de má fé.
11ª - Na verdade, e no que concerne ao primeiro pedido formulado pela autora - tendo em conta que a relação jurídica que fez emergir os presentes autos foi um contrato de compra e venda de um veículo automóvel e que a ré, de acordo com os efeitos previstos no artigo 874° do Código Civil, estava obrigada, entre outras coisas, a entregar à autora os documentos relativos à coisa vendida (artigo 882° do Código Civil) -, não era impossível à apelada, como o considerou o Tribunal a quo, obter junto da entidade a favor de quem se encontrava registada a reserva de propriedade a declaração necessária ao cancelamento daquela, devendo para o efeito, como é óbvio, pagar as prestações que estavam em atraso.
12ª - O mesmo sucede em relação ao pedido subsidiário deduzido pela ora apelante, caso não se verifique, dentro do referido prazo, a entrega daquele documento para cancelar o registo da reserva de propriedade, que a ré seja condenada a restituir à autora a quantia de 42397,82€, acrescida de juros de mora, pois, dos factos provados, facilmente se conclui que a restituição daquela quantia, não obstante a autora reconhecer que não identificou de forma clara o facto constitutivo da obrigação de devolução da quantia entregue à ré, tem por facto constitutivo a resolução do contrato de compra em venda celebrado com a aqui apelada.
13ª - Ou, em todo o caso, operando-se a restituição da quantia, ou seja, 42397,82€, com que a ré vendedora se locupletou, em conformidade com o estipulado no artigo 473° do referido diploma legal.
14ª - Por último, o Tribunal a quo, também deveria ter condenado a ré a pagar à autora os prejuízos que esta teve em consequência da conduta assumida por aquela, pois, dos factos dados como assentes, designadamente, alíneas i), k) e m), bem como, dos depoimentos das testemunhas que, a este respeito, foram unânimes, precisos e claros, é mais que evidente que tais prejuízos existiram.
15ª - Prejuízos esses que, como não foram apurados em concreto, deveriam ser liquidados em execução de sentença.
16ª - Por último, a sentença recorrida violou, entre outros, o disposto nos artigos 433°, 289°, 874°, 879°, 882°, 885° e 473°, todos do Código Civil.
A ré não apresentou contra-alegações.

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Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente apelação, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil (CPC), são as seguintes:
I – A questão da alteração da decisão sobre a matéria de facto.
II – A questão da condenação no cancelamento da reserva de propriedade.

I. DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

A autora sustenta que o Tribunal «a quo» deveria ter dado como provada a matéria constante dos artigos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º e 15º da base instrutória, com base nos depoimentos das testemunhas, prova documental, regras de experiência e no facto dado como assente, sob a alínea K).
Resulta da audição da prova objecto de gravação, no que contende com os pontos da matéria de facto em que a autora suscita a respectiva alteração, que a testemunha Carlos Lopes, encarregado de pessoal da autora, referiu que “o negócio foi, em Agosto de 2002, tendo a autora pago o BMW com um cheque de cerca de 15000,00€, dinheiro em notas e o Mondeo de retoma”, que “a autora insistia junto da ré pela vinda dos documentos, e que esta dizia que ia resolver tudo”, que “a autora fez vários telefonemas e foi, várias vezes, falar com a ré” e que “teve prejuízos”.
Esta testemunha não mencionou o processo causal, através do qual teve acesso ao conteúdo do depoimento que prestou, referindo, tão-só, que sabia dessa factualidade, o que faz presumir, razoavelmente, atendendo a que a sua profissão é a de encarregado do pessoal das obras que a autora executa, que tenha sido o sócio-gerente da apelante o autor da informação que prestou em audiência.
Por sua vez, a testemunha João Pereira de Sousa, contabilista da autora, disse que “o carro foi pago com cheque e, segundo lhe disse o sr. Joaquim, também com dinheiro”, que “o sócio da ré ofereceu-se para tratar da legalização dos documentos”, e que “a autora teve prejuízos porque precisou de comprar outra viatura para poder andar de uma forma legal”.
Os depoimentos analisados revelam pouca consistência, retratando, manifestamente, uma realidade que traduz, mesmo no caso do contabilista, a não presencialidade aquando da ocorrência dos factos relatados, por ocasião da realização do negócio da compra e venda do veículo.
Por outro lado, a afirmação da testemunha João Pereira de Sousa, segundo a qual “a autora teve prejuízos porque precisou de comprar outra viatura para poder andar de uma forma legal”, resiste mal à alegação da autora, constante do artigo 12º da petição inicial, segundo a qual a ré “enviava, apenas, todos os meses - a fim da autora poder circular com o veículo – uma declaração que substituía os documentos…”.
Finalmente, os documentos existentes nos autos, designadamente, os que constam de folhas 11 a 16 do procedimento cautelar de arresto apenso, e de folhas 40 da presente acção, conjugadamente com o teor dos depoimentos já considerados, mesmo não subestimando as regras da experiência de vida, não permitem sustentar, com aquele grau de verosimilhança que caracteriza a prova assumida pelo Tribunal, que a autora tenha entregue à ré a importância, em numerário, de 21198,91€.
Aliás, consta da declaração de folhas 13 do aludido procedimento cautelar de arresto, subscrita pela ré, que “vendemos com reserva do direito de propriedade até integral pagamento do seu preço a …Joaquim P. Amaral, Ldª”, ou seja, à autora.
Assim sendo, não se encontra demonstrado que “a autora entregou à ré a quantia de 21198,91€, em numerário, além do referido na alínea D) dos factos assentes?” [1º], que “na data e local referido na al. K) que foi dito ao sócio gerente da autora, por um funcionário da ré, que a propriedade da viatura adquirida pela autora estava, ainda, registada em nome da Finicrédito SFAC, SA, por ter sido objecto de locação financeira?” [2º], que “a autora nunca se tinha apercebido, apesar de ter os documentos, do facto referido no ponto 2º?” [3º], que “…, tendo aquele dito que tal reserva consistia numa situação meramente formal, que nada era devido à sociedade locadora, pelo que, dentro de dias iria resolver o assunto?” [4º], que “o que não sucedeu?” [5º], e que “durante o decurso das negociações sempre a ré se assumiu como proprietária da viatura?” [15º].
Porém, relativamente ao ponto nº 4, passará a constar do mesmo “provado apenas o que consta do teor das alíneas I) e K) dos factos assentes”, enquanto que o ponto nº 6 ficará redigido, em termos de que “a situação, referida em I), J) e K), tem acarretado para a autora prejuízos, designadamente, com deslocações e telefone”.
Nestes termos, este Tribunal da Relação entende que se devem considerar como demonstrados os seguintes factos, incluindo aquele que agora se adita, com base no teor dos documentos constantes dos autos:
A ré é uma sociedade comercial que se dedica à comercialização de veículos automóveis – A).
Em inícios do mês de Agosto de 2002, autora e ré estabeleceram negociações para a compra e venda de um veículo automóvel ligeiro de passageiros, usado, da marca BMW, modelo 5/D 5 SERIES, com o n° de matrícula 60-44-PP – B).
Consistiram tais negociações em a autora adquirir à ré o veículo automóvel, identificado em B), pelo preço de 8.500000$00 ou 42.397,82€, e esta aceitar de retoma um veículo ligeiro de passageiros da autora, da marca FORD, modelo MONDEO, avaliado em 1.250 000$00 ou 6.234,97€ – C).
No dia 14 de Agosto de 2002, nas instalações da autora, esta entregou à ré o veículo, referido em C), e o montante de 14.964,00€, através de um cheque – D).
Por sua vez, a ré entregou à autora a viatura, identificada em B), e seus documentos – E).
Autora e ré acordaram que a ré trataria de toda a documentação necessária à transferência da propriedade – F).
Após a autora ter reconhecido, notarialmente, a assinatura do seu sócio gerente, devolveu à ré os mesmos documentos – G).
A ré, após a conclusão do processo de transferência da propriedade, deveria enviar os documentos para a sede da autora – H).
Apesar das insistências da autora, junto do sócio gerente da ré, para proceder ao envio dos documentos, tal não aconteceu – I).
A ré enviava, todos os meses, a fim da autora poder circular com o veículo, uma declaração que substituía os documentos, alegando que o registo ainda não estava pronto – J).
O sócio gerente da autora, três ou quatro meses após o dia 14 de Agosto de 2002, dirigiu-se ao stand da ré para saber o motivo pelo qual esta não lhe enviava os documentos – K).
A viatura, identificada em B), encontra-se registada, em nome de "Embalbraga, Embalagens e Derivados, Lda”, com reserva de propriedade, a favor de "FINICRÉDITO SFAC, SA" – L).
A autora dirigiu-se à Finicrédito, tendo esta informado que tal reserva correspondia à verdade, uma vez que ainda não estavam pagas as prestações que originaram a dita reserva e que, no momento, somavam a quantia de 30.000,00€ – M).
Já depois da autora ter instaurado a providência apensa, a ré entregou àquela os documentos da mencionada viatura (livrete e registo de propriedade) e a respectiva declaração de venda – N).
A situação, referida em I), J) e K), tem acarretado para a autora prejuízos, designadamente, com deslocações e telefone – 6º.
A ré subscreveu um documento, onde consta que “Declaramos que vendemos com reserva do direito de propriedade até integral pagamento do seu preço à autora um veículo usado, marca BMW, modelo 5/D 5 séries, matrícula 60-44-PP” – Documento de folhas 14 a 16 do procedimento cautelar de arresto apenso.

II. DO CANCELAMENTO DA RESERVA DE PROPRIEDADE

O pedido principal formulado pela autora, na presente acção, consiste na condenação da ré a entregar aquela documento legal, no prazo a fixar pelo Tribunal, que permita o cancelamento da reserva de propriedade constante do respectivo registo da viatura vendida.
Efectuando uma síntese da factualidade que ficou consagrada, importa reter que a ré, no exercício da actividade a que se dedica, no dia 14 de Agosto de 2002, vendeu à autora um veículo automóvel ligeiro, da marca BMW, pelo preço de 42.397,82€, aceitando aquela de retoma um veículo ligeiro da autora, da marca FORD, avaliado em 6.234,97€, que lhe entregou, também, para além desta viatura, o montante de 14.964,00€, através de cheque.
Tendo a ré entregue à autora o BMW, e seus documentos, acordaram ainda que aquela trataria de toda a documentação necessária à transferência da propriedade do mesmo, devolvendo a autora à ré os documentos, após haver reconhecido, notarialmente, a assinatura do seu sócio gerente.
A ré, após a conclusão do processo de transferência da propriedade, deveria remeter os documentos para a sede da autora, o que não aconteceu, apesar das insistências desta, não obstante lhe enviar, todos os meses, uma declaração substitutiva daqueles documentos, alegando que o registo ainda não estava pronto, a fim da autora poder circular com o veículo, sendo certo que a viatura se encontrava registada, em nome de "Embalbraga, Embalagens e Derivados, Lda, com reserva de propriedade, a favor de "Finicrédito SFAC, SA”, em virtude de ainda não se acharem pagas as prestações que originaram a dita reserva.
Entretanto, depois da autora ter instaurado a providência cautelar apensa, a ré entregou-lhe os documentos da mencionada viatura - livrete e registo de propriedade - e a respectiva declaração de venda.
Celebrado entre as partes um contrato de compra e venda de um veículo automóvel, a respectiva propriedade não chegou a transferir-se para a autora, adquirente do mesmo, e, por isso, a venda do bem realizada pela ré, a favor daquela, mas que era propriedade de outrem, a empresa "Embalbraga, Embalagens e Derivados, Lda”, em nome de quem se encontrava registado, mas com reserva de propriedade, a favor de "Finicrédito SFAC, SA”, entidade financiadora do mútuo, traduziu-se na venda de uma coisa alheia.
Ora, o comprador de boa-fé, sendo este o estado psicológico da autora, e que a ré não ilidiu, como lhe competiria, nos termos do disposto pelo artigo 342º, nº 2, de veículo automóvel alheio goza, para tutela dos seus interesses, da faculdade de recorrer aos meios previstos, nos artigos 892º e seguintes, todos do Código Civil (CC) RC, de 28-4-87, CJ, Ano XII, T2, 97..
Dispõe, efectivamente, o artigo 892º, do CC, que “é nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar; mas o vendedor não pode opor a nulidade ao comprador de boa fé, como não pode opô-la ao vendedor de boa fé o comprador doloso”.
E o artigo 894º, nº 1, do mesmo diploma legal, acrescenta que “sendo nula a venda de bens alheios, o comprador que tiver procedido de boa fé tem o direito de exigir a restituição integral do preço, ainda que os bens se hajam perdido, estejam deteriorados ou tenham diminuído de valor por qualquer outra causa”.
Esta disposição está em sintonia, aliás, com o estatuído pelo artigo 289º, nº 1, do CC, segundo o qual “tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente”.
Tratando-se de venda de coisa propriedade de outrem, portanto, de uma venda de bem alheio, a mesma situa-se na esfera do direito comercial, pelo menos, pelo lado da ré-vendedora, atento o estipulado pelo artigo 463º, 1º, como tal regulada, quanto a todos os contraentes, pelas disposições deste, como determina o artigo 99º, válida, por sua natureza, conforme dimana do estipulado pelo artigo 467º, nº 2, todos do Código Comercial, mas que não transfere logo a propriedade do bem para o comprador, porque o mesmo não pertencia ao vendedor, o que só virá a ocorrer, mais tarde, eventualmente, «ipso iure», por mero efeito do contrato de compra e venda, quando o vendedor, por qualquer título, adquirir o objecto, então, já sem necessidade de uma nova manifestação de vontade tendente a esse fim, por via da eficácia translativa da convenção Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 1997, 184; Baptista Lopes, Do Contrato de Compra e Venda, 1971, 136 e 393; Armando Braga, Contrato de Compra e Venda, 190 e ss..
Efectivamente, o artigo 408º, nº 1, do CC, estipula que “a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei”.
Porém, esta eficácia real, «quod effectum», do contrato de compra e venda conhece como uma das suas excepções, desde logo, como vem estabelecido pelo artigo 409º, do CC, a situação de reserva da propriedade da coisa, até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento, não operando a transferência da propriedade enquanto a reserva se mantiver válida.
Inicialmente concebida para as situações de venda a prestações, a cláusula de reserva de propriedade tem sido fixada, como acontece na hipótese em apreço, nos contratos de mútuo, servindo o capital para pagar o preço da aquisição do bem, enquanto que a reserva da propriedade fica estabelecida, a favor do mutuante, e não do vendedor, que, naturalmente, recebe o preço da coisa vendida.
Aliás, ainda que a venda ajuizada revestisse natureza, meramente civil, o que não acontece, como se expôs, não se colocaria a hipótese da sua nulidade, por eventual venda de coisa alheia, porquanto a ré tinha ainda a legítima expectativa jurídica de vir a adquirir o automóvel Pessoa Jorge, Obrigações, 67., de que não era proprietária, mas, alegadamente, mandatária desta, celebrando o contrato na suposição de que poderia adquirir o bem, titularidade de terceiro, que, assim, ficaria sujeito ao regime da venda de bens futuros, nos termos das disposições combinadas dos artigos 880º, 893º e 904º, todos do CC.
Trata-se, então, de uma venda sob condição suspensiva, cujo destino último depende da verificação ou não da condição, em relação à qual o proprietário, que não interveio no negócio, não pode ver operar-se, juridicamente, a transferência do seu direito real, sendo o acto jurídico de outrem insusceptível de produzir quanto a ele efeitos sobre o seu património Baptista Lopes, Do Contrato de Compra e Venda, 1971, 141. .
Com efeito, é válida a compra e venda de bem alheio se as partes tiverem presente que se trata de coisa relativamente futura, por se estar perante um contrato aleatório, dependente de um facto futuro e incerto, ou seja, a aquisição da propriedade sobre a coisa, por parte do vendedor, para a sua posterior transmissão ao comprador Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos, 2000, 105..
Nesta hipótese, impõe-se ao vendedor, por força do disposto no artigo 467º, e seu § único, do Código Comercial, a obrigação de adquirir, por título legítimo, a propriedade da coisa vendida e de fazer a sua entrega ao comprador, sob pena de responder por perdas e danos STJ, de 11-4-2000, CJ (STJ), Ano VIII, T2, 37..
De facto, está-se em presença de um declarado desvio às regras do Código Civil, porquanto a proibição destas vendas importava o desconhecimento das necessidades reais do comércio, criando-se um obstáculo perigoso à rapidez e desenvolvimento das suas operações, em prejuízo do próprio interesse dos comerciantes Adriano Antero, Comentário ao Código Comercial Português, II, 246..
Quer isto dizer que, ficando a venda celebrada submetida à disciplina do artigo 467º, do Código Comercial, a ré-vendedora é responsável, por perdas e danos, perante o comprador da coisa, ou seja, a autora, a menos que a adquira e a restitua a esta, condição essa, porém, que, até ao momento, não ocorre, no caso em apreço.
É que a ré, para libertar o automóvel vendido do registo de propriedade que o onera, de que é titular "Finicrédito SFAC, SA”, importaria que estivesse munida de uma declaração de distrate, que opere a extinção ou renúncia dessa garantia, e que, seguramente, pressupõe o pagamento do preço da quantia mutuada.
De todo o modo, não tendo a ré procedido à aquisição da viatura, por forma a operar-se o subsequente cancelamento do registo da reserva de propriedade do automóvel vendido, a autora tem direito à restituição do preço pago pela sua aquisição, como resulta, taxativamente, do preceituado pelo artigo 864º, nº 1, ou, em todo o caso, operando-se a restituição da quantia com que a ré vendedora se locupletou, em conformidade com o estipulado pelo artigo 473º, ambos do CC Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 1987, 454 e ss..
Ainda que a declaração de distrate só possa ser emitida pela entidade financiadora do empréstimo, não se exclui que a ré, pagando o montante das prestações em dívida aquela ou à entidade em nome de quem o veículo está registado, venha a obter esse documento e, consequentemente, a cumprir, em plenitude, uma das obrigações que advêm da celebração do contrato de compra e venda, que consiste na entrega da coisa, e que compreende, salvo estipulação em contrário, os documentos relativos à mesma, sob pena de se verificar uma situação de cumprimento defeituoso da prestação Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso, em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, 520..
Procede, assim, em primeira linha, o pedido principal formulado pela autora, que a ré satisfará, no prazo de trinta dias.
Caso contrário, a ré pagará à autora, no âmbito do pedido subsidiário, o montante indemnizatório por aquela devido, a favor desta, que se fixa no quantitativo monetário de 21198,97€, a quanto ascendeu o total da entrega demonstrada efectuada pela autora, a título de preço, e do qual esta se encontra, efectivamente, desembolsada, para além da importância devida, em sede de juros legais peticionados, desde a respectiva citação, devendo, portanto, a ré restituir à autora a importância de 21198,97€, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, sucessivamente, em vigor, desde a citação e até integral cumprimento.
Considerando ainda que se demonstrou que, em consequência da situação decorrente do atraso na entrega do documento de suporte com vista ao cancelamento do registo de propriedade do veículo, a autora sofreu prejuízos que se consubstanciaram, designadamente, em deslocações e telefone, mas de montante indeterminado, condena-se a ré a pagar à autora, a título de danos emergentes, um montante a liquidar, em conformidade com o estipulado pelos artigos 562º, 563º, 564º, nºs 1 e 2 e 566º, nº 1, do CC, e 661º, nº 2, do CPC.

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CONCLUSÕES:

I - Celebrado entre as partes um contrato de compra e venda de um veículo automóvel, a respectiva propriedade não chegou a transferir-se para o comprador e, por isso, a venda do bem realizada pelo vendedor, a favor daquele, que era propriedade de outrem, com reserva de propriedade, em benefício de entidade financiadora, traduziu-se na venda de uma coisa alheia.
II - A venda de bem alheio, situada na esfera do direito comercial, não transfere logo a propriedade do mesmo para o comprador, o que só virá a ocorrer, mais tarde, eventualmente, «ipso iure», por via da eficácia translativa da convenção, quando o vendedor, por qualquer título legítimo, adquirir a propriedade da coisa e fizer a sua entrega ao comprador, sob pena de responder, por perdas e danos, perante este.
III – Não tendo o vendedor procedido à aquisição da viatura, por forma a operar-se o subsequente cancelamento do registo da reserva de propriedade do automóvel por ele vendido, o comprador tem direito à restituição do preço pago pela sua aquisição, ou, em todo o caso, operando-se a restituição da quantia com que o vendedor se locupletou.
IV - Ainda que a declaração de distrate só possa ser emitida pela entidade financiadora do empréstimo, não se exclui que o vendedor, pagando o montante das prestações em dívida aquela, venha a obter esse documento e, consequentemente, a cumprir a obrigação de entrega da coisa, que compreende, salvo estipulação em contrário, os documentos relativos à mesma, sob pena de se verificar uma situação de cumprimento defeituoso da prestação.

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar procedente a apelação e, em consequência, condenam a ré a entregar à autora, no prazo de trinta dias, o documento legal que permita a obtenção do cancelamento da reserva de propriedade constante do registo da viatura em causa, ou, subsidiariamente, caso tal não se verifique, dentro do referido prazo, a entregar à autora o quantitativo monetário indemnizatório de 21198,97€, acrescido de juros moratórios, à taxa legal, sucessivamente, em vigor, desde a respectiva citação e até integral cumprimento, para além de uma importância indeterminada, a título de danos emergentes, proveniente dos prejuízos que a situação tem acarretado para a autora, designadamente, com deslocações e telefone, a liquidar, oportunamente, em conformidade com o estipulado pelo artigo 661º, nº 2, do CPC.

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Custas, a cargo da ré-apelada