Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3503/16.1T8VIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
CHEQUE
QUIRÓGRAFO
MÚTUO
NULIDADE FORMAL
Data do Acordão: 10/09/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JUÍZO EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.703 Nº1 C) CPC, 1143 CC
Sumário:
O cheque, mero quirógrafo, não constitui título executivo quando para o negócio subjacente à sua subscrição a lei exija a celebração de escritura pública, sendo este nulo por falta de forma.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

M (…)por apenso à execução para pagamento de quantia certa, sob a forma ordinária, movida por J (…) e A (…), veio deduzir embargos, alegando, em síntese:
Este cheque não serve à execução do mútuo, sendo este nulo por falta de forma;
O cheque foi entregue como garantia;
O embargante não preencheu quaisquer dos campos desse cheque para além de lhe ter aposto a sua assinatura;
Já pagou €47.500,00 da dívida que serve de base à execução;
Não existe fundamento para que a dívida seja comunicada à sua mulher, por dela não ter retirado qualquer benefício.
Os exequentes contestaram, em síntese, que a quantia titulada refere-se a vários empréstimos de valor inferior ao indicado no cheque e, por conseguinte, não carentes de forma legal; o executado e a mulher comprometeram-se a pagar a dívida até ao final de 2015, o que nunca fizeram.
No saneador foi decidido que existia título executivo válido, ordenando-se o prosseguimento dos embargos para julgamento.
Realizado este, foi proferida decisão a julgar os embargos parcialmente procedentes e a reduzir a quantia exequenda para € 37.000,00 (trinta e sete mil euros), com juros de mora à taxa civil, a contar da respectiva citação.
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Inconformado, o Embargante recorreu e apresenta as seguintes conclusões:
(…)
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Contra alegaram os Embargados, defendendo a correção do decidido.
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Questões a decidir:
O valor do cheque como mero quirógrafo, para com ele se recorrer desde logo à execução.
(Nota: a decisão respetiva no saneador não transitou em julgado. Não sendo caso que caiba nos nº 1 e 2 do art.644º do Código de Processo Civil (CPC), tendo os embargos prosseguido para o conhecimento do mérito, aquela decisão é impugnada no recurso da decisão final, como o foi.)
A reapreciação da matéria de facto.
As consequências desta reapreciação.
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Os factos considerados provados pelo tribunal recorrido são os seguintes:
A) Os exequentes são portadores de um cheque com o número …, sacado sobre o Banco (…), entregue pelo executado aos exequentes, assinado pelo executado e à ordem do exequente marido, datado de 31 de Dezembro de 2015, no montante de 50.000,00 euros (Cinquenta mil euros).
B) O cheque foi emitido pelo executado, com excepção da data nele aposta, para garantia do valor de um empréstimo que os exequentes fizeram ao executado e mulher, a pedido destes, em … .2010, no montante de €50.000,00.
C) Apesar do cheque ter sido emitido apenas pelo executado marido, o empréstimo foi solicitado aos exequentes pelo executado e pela sua mulher.
D) O mencionado cheque não foi apresentado a pagamento.
E) O executado, para pagamento do empréstimo aludido em B), no ano de 2013 e nos meses de Fevereiro, Abril e Julho de 2015 transferiu para a conta do Banco (…), n.º (…), do embargado J (…), a quantia total de € 11.000,00 (onze mil euros).
F) No mês de Fevereiro do ano de 2016, o embargante, para pagamento do empréstimo aludido em B) entregou aos embargados a quantia de 2000€, através de transferência bancária, para conta dos mesmos na C (…).
G) Em datas anteriores, à do empréstimo aludido em B), os embargados já haviam emprestado dinheiro aos embargantes, da mesma forma, e o embargante e sua mulher pagaram o cheque que lhes passaram.
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Também com interesse, consta do requerimento executivo:
1.º Os exequentes são donos e legítimos portadores e possuidores de um cheque emitido e entregue pelo executado e mulher aos exequentes, assinado pelo executado e à ordem do exequente marido, datado de 31 de Dezembro de 2015, (Cfr. Doc. nº 1 que se anexa).
2.º Ora do referido cheque, considerado título executivo nos termos do art. 703.º n.º1 al. c) do CPC, resulta reconhecida a dívida do executado e sua mulher a favor dos exequentes no montante de 50.000,00 euros (Cinquenta mil euros) e como efectivamente assim foi pretendido, acrescida dos respectivos juros de mora à taxa legal civil, desde a data da respectiva emissão até efectivo e integral pagamento.
3.º O cheque datado de 31 de Dezembro de 2015, no montante de 50.000,00 euros (Cinquenta mil euros), foi emitido para pagamento do valor de vários empréstimos que os exequentes foram fazendo ao executado e mulher, a pedido destes e no decorrer dos anos de 2011 a 2014 e que ficaram de liquidar até ao final do ano de 2015, tendo para o efeito o executado emitido, assinado e entregue este cheque com o número (…) aos exequentes.
4.º Apesar do cheque ter sido emitido apenas pelo executado marido, a verdade é que os valores emprestados foram entregues ao executado e à sua mulher, enquanto casal, para estes fazerem face a encargos do agregado familiar de que ambos fazem parte, pelo que é a presente dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges, nos termos do art. 1691.º n.º 1 alíneas a) e b) do Código Civil.
5.º Ocorre que, na data do pagamento, os exequentes deslocaram-se ao Banco e aí foram informados que o executado e sua mulher não possuíam depositadas quantias e ou saldo para o pagamento desse valor, pelo que, decidiram não o apresentar a pagamento e, pese embora, disso hajam dado conhecimento ao executado e mulher e após, os haverem interpelado, por mais do que uma vez, para que procedessem ao pagamento dos valores em dívida e titulada pelo cheques em questão, a verdade é que o executado e sua mulher, nem na data do vencimento do cheque e acordada entre ambos, nem até à presente data, procederam ao pagamento da dívida que possuem para com os exequentes, não tendo estes apresentado o cheque a pagamento uma vez que mesmo depois da informação bancária supra, o executado e sua mulher lhes diziam que seria devolvido por falta de provisão, comprometendo-se porém a efectuar o pagamento a breve trecho, o que não se veio a verificar.
(…)
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O valor do cheque como mero quirógrafo, para com ele se recorrer desde logo à execução.
A questão tem já tratamento vasto na jurisprudência e na doutrina.
Rui Pinto (Execução e Despejo, Coimbra Editora, a páginas 199 e seguintes) dá conta daquelas, distinguindo o entendimento correto do entendimento maioritário e do que foi consagrado na reforma do Código de Processo Civil (art.703º, nº 1, c)), esta com vista a eliminar a polémica existente.
O entendimento maioritário está também expresso nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 27.5.2014 e de 07.05.2014, nos proc. 268/12 e 303/2002, respetivamente, disponíveis em www.dgsi.pt.
Temos consolidado o entendimento (acórdão de 27.2.2018, no proc. 1411/16.5T8PBL-A.C1), para que o título prescrito possa valer como título executivo, da necessidade de preenchimento dos seguintes requisitos:
O documento esteja assinado;
A relação subjacente seja invocada no requerimento executivo, pois assim o exequente não está apenas a invocar a relação cambiária;
Esteja presente uma forma da declaração equivalente à exigida para o negócio, pois só assim se respeitará o mínimo de formalidade legal;
A questão seja colocada entre os contraentes (imediatos), pois nas relações mediatas não há negócio com o devedor originário.
(No caso do acórdão desta Relação, de 16.03.2016, proc. 3053/12, naquele sítio digital, em que o presente relator participou, faltava a escritura pública exigida por lei para o negócio, o que consubstanciava a falta de uma forma de declaração equivalente àquela.)
Neste caso, aqueles requisitos não estão presentes.
A relação causal, expressão de mútuos, foi invocada no requerimento executivo, tendo ficado demonstrado que “o cheque foi emitido pelo executado, com excepção da data nele aposta, para garantia do valor de um empréstimo que os exequentes fizeram ao executado e mulher, a pedido destes, em 19.05.2010, no montante de €50.000,00.”
Para o mútuo deste valor, na data de maio de 2010, a lei exigia uma escritura pública (art.1143º do Código Civil).
A assinatura do mutuário no cheque não satisfaz essa exigência, de forma equivalente.
A relação causal estabelece-se entre os exequentes (mutuantes) e o executado e a mulher (mutuários) mas o cheque tem aposta apenas a assinatura do executado.
Na própria perspetiva dos exequentes, conforme alegado no requerimento executivo, o cheque não representa o mútuo mas diferentes mútuos (não concretizados) e não inclui a mutuária, que é convocada para a execução por outra via ou por outro título.
Depois, os exequentes não pedem o valor reclamado com base na invalidade formal, fazem-no com base em diferentes mútuos realizados ao longo de diferentes anos.
Ora, se a obrigação reconhecida no título tem por fonte um negócio nulo por falta de forma, o juiz da execução só pode limitar-se a reconhecê-lo.
Não há título válido do invocado mútuo.
A concreta pretensão executiva aqui exercida consiste no cumprimento do mútuo, não na restituição derivada da nulidade do negócio.
A causa da obrigação executada é aquele mútuo que, sendo nulo por falta de forma, não produzirá efeitos executivos, não sendo permitido ao juiz a “convolação” da causa de pedir da ação executiva.
Sendo assim, por falta de título válido, não podemos manter a decisão recorrida.
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Decisão.
Julga-se o recurso procedente, revoga-se a decisão recorrida e declara-se extinta a execução.
Custas pelos recorridos, vencidos (art.527º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Coimbra, 2018-10-09


Fernando Monteiro ( Relator )
Carvalho Martins
Carlos Moreira