Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2764/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. OLIVEIRA MENDES
Descritores: DIREITO DE QUEIXA
RENÚNCIA
Data do Acordão: 12/10/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ANSIÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIME
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Legislação Nacional: ART.º 116º N.º 1 DO C.P.
Sumário:

Não pode ser entendido como facto revelador de renúncia ao direito de queixa para efeitos da parte final do art. 116.º, n.º 1, do Código Penal, a elaboração e redacção de um texto – na presença da arguida e da ofendida – para publicação em Jornal, no qual a ofendida declara aceitar pedido de desculpas da arguida, designadamente se o texto em questão não chegar a ser publicado por a arguida haver impedido a respectiva publicação.

Decisão Texto Integral:

Recurso n.º 2764/03

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Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra.
No processo comum singular n.º 122/01, do Tribunal Judicial da comarca de A, após a realização do contraditório foi proferida sentença que absolveu a arguida B, com os sinais dos autos, dos crimes de difamação e de injúria por que se encontra acusada, bem como do pedido de indemnização civil contra si deduzido pela assistente C, devidamente identificada.
Interpôs recurso da sentença a assistente, sendo do seguinte teor a parte conclusiva da motivação apresentada:
1. O Meritíssimo Juiz deveria ter dado como provado ter a B atirado um saco para o interior do estabelecimento, contendo as luvas.
2. Tal facto encontra-se demonstrado pelo próprio depoimento da arguida e da assistente, conforme se pode comprovar pela documentação dos actos da audiência, registados magnetofonicamente, cuja transcrição se oferece sob anexo I.
3. O gesto da arguida ao atirar para dentro do estabelecimento comercial, pelas 10h 30m, um saco contendo luvas, sem qualquer motivo, explicação ou justificação, de forma súbita e imprevista, constitui crime de injúria p. e p. pelos arts.181º e 182º, do CP.
4. O facto de ter sido redigido um texto, onde a arguida apresentava desculpas à assistente, tendo a mesma exigido a publicação do mesmo, mas, tendo a arguida dado ordens ao jornalista – passados uns dias – para que tal texto não fosse publicado, não se pode concluir, nem expressamente deduzir, ter existido renúncia ao direito de queixa por parte da assistente.
5. Tendo em conta que, o gesto, as palavras proferidas com a intenção e a culpa da arguida, consubstanciam um crime de injúria e difamação, cometido de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção de ofender a assistente, provocou que a mesma ficasse vexada, angustiada e humilhada, e moralmente lesada, incorre em responsabilidade civil a título de danos não patrimoniais, pelo que o pedido cível deveria ser julgado igualmente procedente.
6. Por erro de interpretação e ou aplicação, não foram correctamente observados, nomeadamente, os comandos legais previstos nos arts.129º, 180º, 181º, do CP; 70º e 483º e ss. do CC.
O recurso foi admitido.
A Digna Magistrada do Ministério Público respondeu, tendo formulado na contra-motivação apresentada as seguintes conclusões:
1. As declarações da arguida e o depoimento da recorrente, agora transcritos, não abalam a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal “a quo”.
2. Da análise destas declarações e do depoimento verifica-se que ambas têm versões contraditórias quanto à forma como os factos ocorreram.
3. Esta visão contraditória dos factos levou a que o Tribunal “a quo” ficasse com dúvidas.
4. Estando o Tribunal com dúvidas numa questão de facto, deve aplicar à arguida o princípio penal “in dubio pro reo”, consagrado constitucionalmente (cf. art.32º, n.º1, da Constituição da República Portuguesas).
5. Atenta a matéria de facto dada como provada não se verificam factos que consubstanciem a prática pela arguida de um crime de injúria, p. e p. pelos arts.181º e 182º, ambos do Código Penal.
6. A arguida não dirigiu quaisquer palavras ou expressões à recorrente, limitando-se a arremessar para o interior do estabelecimento comercial daquela um saco contendo umas luvas.
7. O gesto praticado pela arguida não preenche os pressupostos típicos deste ilícito penal.
8. Atento os parâmetros sócio-culturais da região onde a recorrente e a arguida estão inseridas e todo o contexto em que os factos ocorreram não se verifica que aquele gesto se mostre ofensivo para a honra ou dignidade da primeira.
9. Além de que, não tendo sido a recorrente a oferecer tais luvas ao marido da arguida e desconhecendo a razão pela qual aquela as devolveu, não se descortina neste gesto fundamento para o considerar ofensivo para a sua honra e consideração.
10. Da factualidade dada como provada na douta sentença resulta inequivocamente que a recorrente praticou factos a partir dos quais se deduz a renúncia.
11. Sucede que, o anúncio não chegou a ser publicado, por, posteriormente ao encontro onde aquele foi redigido, a arguida ter dito à testemunha Aires da Silva Castro que não publicasse o referido anúncio, contudo a recorrente já tinha aceite as desculpas daquela anteriormente.
12. Além de que, a renúncia do direito de queixa não pode ficar sujeita a condições, não é um acto condicionado pela prática de actos de terceiros.
13. Desta forma, deve o presente recurso ser rejeitado, mantendo-se na íntegra a douta sentença recorrida.
O Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se pronuncia no sentido da imodificabilidade da decisão proferida sobre a matéria de facto, por incumprimento por parte da recorrente do estabelecido no art.412º, n.º 4, do Código de Processo Penal, bem como da confirmação da decisão de direito, com o fundamento de que houve lugar a válida e relevante renúncia do direito de queixa.
No exame preliminar a que se refere o art.417º, do Código de Processo Penal, relegou-se para audiência o conhecimento de questão respeitante à não admissibilidade do recurso no que tange à vertente civil da sentença.
Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre agora decidir.
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Começando por delimitar o objecto do recurso, o qual nos é dado pelas conclusões extraídas pela recorrente da motivação apresentada, verifica-se que a recorrente pretende ver reexaminada a matéria de facto, com o fundamento de que a prova foi incorrectamente apreciada, bem como a matéria de direito, com o fundamento de que não houve lugar a renúncia do direito de queixa e de que os factos perpetrados pela arguida integram os crimes de difamação e de injúria, pelo que a arguida neles deve ser condenada e, bem assim, no pedido de indemnização civil por si deduzido.
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É do seguinte teor a decisão proferida sobre a matéria de facto:
«Factos Provados
1. No dia 21.12.2000, cerca das 10 horas e 30 minutos, a arguida dirigiu-se à loja da assistente, denominada Lena óptica, sita na Rua Conselheiro António José da Silva – A, e atirou para dentro do estabelecimento um saco, contendo luvas.
2. No dia 21.02.2001, cerca das 10 horas, a arguida dirigiu-se à loja dos 300, sita em A, perguntando à D. Maria do Céu quem era a proprietária da loja dos óculos, a qual respondeu que a óptica Lena era capaz de ser da menina Helena, ao que a arguido repostou que, se fosse da menina, era do dinheiro do marido dela (arguida).
3. A arguida bem sabia que aquela afirmação não correspondia à verdade, actuou de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção de ofender, como ofendeu, a denunciante na sua honra e consideração.
4. Após a ocorrência destes factos, e ainda antes da apresentação da respectiva queixa, e no dia em que identificou a arguida, a assistente pediu à testemunha Aires da Silva Castro para se deslocar ao seu estabelecimento comercial e aí, juntamente com a arguida, foi redigido um texto a fim de ser publicado durante seis meses no Jornal Serras de A, tendo nessa altura, constando também do referido texto, a arguida pedia desculpas à assistente, tendo esta aceitado tal pedido, mediante a publicação do referido anúncio.
5. O referido anúncio não chegou a ser publicado, em virtude de a arguida, passados uns dias, ter dito ao referido Aires para não o publicar.
6. A arguida não tem antecedentes criminais; é casada, doméstica; o marido é reformado, vive em casa própria e tem a 4ª classe como habilitações literárias.
7. A assistente sentiu-se vexada, angustiada e humilhada; explorando o referido estabelecimento comercial denominado “Lena óptica”.
Factos Não Provados
8. De viva e alta voz, a arguida afirmou que a assistente tinha oferecido as referidas luvas ao marido, sendo seu amante.
9. A arguida perguntou aos donos dos estabelecimentos da rua onde se situa a loja dos 300 se os mesmos eram proprietários dessas lojas, nomeadamente a loja dos óculos.
10. A arguida actuou com intenção de causar transtornos de natureza moral e patrimonial à assistente, sendo esta pessoa de dignidade, respeitadora e respeitada, ficando psicologicamente muito abalada.
11. A assistente tem um passado íntegro e digno».
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Primeira e prévia questão a conhecer é a que foi suscitada no exame preliminar, qual seja a da não admissibilidade do recurso no que concerne à vertente civil da sentença.
Decidindo, dir-se-á.
De acordo com o art.400º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
Do exame dos autos resulta que ao pedido de indemnização civil deduzido pela assistente C foi atribuído o valor de € 748,20 (fls.79/81).
A alçada do tribunal recorrido é de € 3 740, 98 (art.24º, n.º1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, na redacção que lhe foi dada pelo art.3º, do Decreto-Lei n.º 323/01, de 17 de Dezembro).
Deste modo, o recurso interposto pela assistente/demandante C na parte em que vem impugnada a vertente civil da sentença é inadmissível.
Assim sendo e posto que a decisão que admite o recurso ou que determina o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior (art.414º, n.º 3, do Código de Processo Penal), sendo o recurso inadmissível na parte em que vem impugnada a vertente civil da sentença, não pode esta Relação conhecê-lo naquela concreta parte.
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Segunda questão a conhecer é a que foi aflorada pelo Exm.º Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer – questão atinente ao reexame da matéria de facto –, ao defender que a decisão proferida sobre a matéria de facto é imodificável, uma vez que a recorrente impugnou-a sem que tenha dado cumprimento ao estabelecido no art.412º, n.º 4, do Código de Processo Penal.
Conhecendo esta questão, dir-se-á.
A Constituição da República Portuguesa em matéria de «direitos e deveres fundamentais», sob a epígrafe de «garantias de processo criminal», consagra princípios básicos e elementares de um Estado de direito democrático, tendo em vista a defesa dos direitos e interesses legítimos, liberdades e garantias dos cidadãos (art.32º).
De entre os princípios consagrados destaca-se o previsto no n.º 1 daquele preceito, segundo o qual o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
Tais princípios têm o sentido de a lei ordinária dever possibilitar ao arguido, em processo penal, o exercício efectivo do direito de defesa, com inclusão do direito ao recurso, o qual tratando-se de um direito fundamental não pode ser restringido a não ser nos apertados limites previstos no art.18º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República ( - Tenha-se presente, contudo, que de acordo com os ensinamentos de Vieira de Andrade, a falta de preceitos constitucionais que autorizem a restrição pela lei pode, todavia, ser colmatada pelo recurso à Declaração Universal dos Direitos do Homem, nos termos do n.º 2, do art.16º, sendo que a Declaração no seu art.29º permite que o legislador estabeleça limites aos direitos fundamentais para assegurar o reconhecimento ou o respeito dos valores ali enunciados: «direitos e liberdades de outrem», «justas exigências da moral, da ordem pública e do bem estar geral numa sociedade democrática» - Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 (1987), 232.), podendo e devendo, no entanto, não só ser regulamentado ( - Cf. Vieira de Andrade, ibidem, 228 (nota 28).), como clarificado, disciplinado e adaptado à vida real, para que não conflitue com direitos da mesma matriz, funcione de forma eficaz e se desenvolva e concretize sem abusos ( - Cf. Vieira de Andrade, ibidem, 227.), pelo que à lei ordinária cabe, inequivocamente, fixar os pressupostos ou condições de exercício dos recursos.
Daí que o legislador ordinário na sua actividade de regulamentação, conquanto não possa, em princípio, actuar de forma a afectar ou a modificar o conteúdo essencial daquele direito fundamental, qual seja o direito ao recurso, não só por tal redundar em verdadeira restrição, como por constituir uma inversão da ordem constitucional, pode no entanto concretizá-lo e discipliná-lo, designadamente através da imposição de condições ao seu exercício, desde que não atinja com elas o seu conteúdo essencial, isto é, desde que não estabeleça limitações ou condicionalismos que impeçam o seu regular exercício.
Ora, o que a lei processual penal impõe em matéria de recursos, no que ao caso interessa – impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto – é que o recorrente especifique os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida e as provas que devem ser renovadas, sendo que, no caso de as provas haverem sido gravadas, estabelece, ainda, que as especificações atinentes às provas que impõem decisão diversa da recorrida e às provas que devem ser renovadas sejam feitas por referência aos suportes técnicos (art.412º, n.ºs 3 e 4).
Tais imposições ou condicionamentos, como nos parece evidente, não constituem restrição ao direito ao recurso, mas sim mera regulamentação do mesmo, isto é, disciplinação e adaptação à realidade processual, consabido que não impedem, minimamente, o seu regular e eficaz exercício, sendo que, ao invés, têm em vista uma precisa e expedita actividade decisória do tribunal superior, mediante a indicação clara e concreta por parte do recorrente dos pontos de facto que entende incorrectamente julgados e das razões da respectiva discordância, isto é, das provas que entende terem sido incorrectamente valoradas e/ou apreciadas, bem como através da referência aos suportes técnicos, caso as provas hajam sido objecto de gravação, para além de visarem, também, o dever de colaboração do recorrente e a sua responsabilização, de modo a que as impugnações judiciais não constituam mais uma forma de entorpecimento e de protelamento da justiça.
Certo é que o incumprimento daquelas imposições ou condicionamentos, como temos vindo a decidir, acarreta a impossibilidade de o tribunal de recurso modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto ex vi art.431º, al.b) ( - Cf. entre outros o ac. desta Relação de 00.05.31, publicado na CJ, XXV, III, 43.), sem convite à correcção ou aperfeiçoamento da motivação ( - No sentido da constitucionalidade deste entendimento ou interpretação dos textos legais, veja-se o ac. do Tribunal Constitucional n.º 259/2002, publicado no DR – II, de 13 de Dezembro de 2002.).
Com efeito, aquela sanção – impossibilidade de modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto – surge como uma consequência lógica e natural, resultante do ilegal exercício do respectivo direito, isto é, do exercício do direito ao recurso com postergação das exigências ou condicionalismos legais.
A não se assim, dizem-nos as regras da experiência, passariam os recorrentes, em grande parte, a não cumprir as exigências legais, de forma deliberada, a fim de ganharem mais algum tempo, decorrente do convite ao aperfeiçoamento da motivação e apresentação de motivação complementar, a qual implicaria a notificação do recorrido para responder e decurso do prazo para apresentação da resposta e, ainda, nova vista ao Ministério Público nos termos do n.º 2, do art.417º ( - Tenha-se em conta que o atraso provocado seria de vários meses.).
A verdade é que toda e qualquer norma jurídica para que se imponha e seja cumprida terá de conter mecanismo coactivo ou sancionatório, sob pena da sua validade não passar de letra morta.
Do exame da motivação apresentada (corpo e conclusões) verifica-se que a recorrente não observou integralmente as imposições a que vimos de aludir, pois que, tendo sido gravadas as declarações prestadas oralmente na audiência, em parte alguma da motivação especificou, por referência aos suportes técnicos, as provas que impõem decisão diversa da impugnada, isto é, não indicou a localização (início e termo) da gravação das declarações através das quais fundamenta a sua discordância relativamente aos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
Nesta conformidade, sendo imodificável a decisão de facto proferida, improcede o recurso na parte em que se pretende o reexame daquela com o fundamento de que a prova foi incorrectamente apreciada.
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Cumpre, pois, passar ao conhecimento das questões de direito submetidas à nossa apreciação.
Renúncia ao Direito de Queixa
Em sentença considerou-se ter a ora recorrente renunciado ao direito de queixa, com o fundamento de que:
«(…) antes de apresentada a respectiva queixa, a assistente voluntariamente organizou um encontro com a arguida no seu estabelecimento comercial, onde conversaram juntamente com um jornalista, tendo sido elaborado um texto – a fim de ser posteriormente publicado no jornal – como um pedido de desculpas por parte da arguida, aceites pela assistente».
Alega a recorrente não haver renunciado ao direito de queixa, quer de forma expressa quer de forma tácita, pois não praticou qualquer acto expresso de renúncia nem qualquer acto ou facto donde a renúncia necessariamente se deduza, posto que ao ser redigido o texto referido em sentença, como resulta da sensibilidade e da experiência comuns, as desculpas no mesmo insertas só seriam por si aceites após o texto ser publicado no jornal, de acordo, aliás, com o combinado entre si e a arguida, arguida que agiu de má fé, pois passados alguns dias telefonou ao jornalista encarregue da publicação do texto dando ordens para que tal texto não fosse publicado.
Estabelece o art.116º, n.º 1, do Código Penal, que:
«O direito de queixa não pode ser exercido se o titular a ele expressamente tiver renunciado ou tiver praticado factos donde a renúncia necessariamente se deduza».
Tal preceito contempla duas formas de renúncia ao direito de queixa – expressa e tácita –, sendo certo que a esta concreta opção legislativa, como resulta das Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal ( - Acta da Sessão 35. ), subjazem instantes imperativos de ordem moral, visando-se com a mesma evitar injustiças e obstar aos maiores negócios.
Como referiu então o Autor do Projecto, a não admissão da renúncia tácita redundaria numa injustiça e, em certos casos, em situação imoral.
Certo é que a renúncia ao direito de queixa, precludindo a possibilidade de o ofendido se queixar, isto é, de exercer a acção penal contra o arguido, constitui uma forma de perdão, tal qual a desistência da queixa.
Daí que se entenda que o legislador ao aludir a factos donde a renúncia necessariamente se deduza, pretende referir-se a factos através dos quais se possa e deva concluir que o ofendido perdoou ao arguido.
Como referem Leal Henriques e Simas Santos ( - Código Penal Anotado (1995), 1º, 813.), é inimaginável a enumeração desses factos, atenta a sua multiplicidade e variável significação, pelo que só caso a caso e atendendo aos usos locais se poderá apurar se este ou aquele comportamento do titular do direito de queixa implica a intenção de não exercer o direito.
Vem provado que antes da apresentação da respectiva queixa foi redigido um texto para publicação no Jornal Serras de A, na presença da recorrente, da arguida e da testemunha Aires da Silva Castro (jornalista), texto em que a arguida pedia desculpas à recorrente.
Mais vem provado que aquando da redacção daquele texto a recorrente aceitou o pedido de desculpas da arguida mediante a sua publicação no referido jornal.
O texto em questão não chegou a ser publicado, uma vez que a arguida, dias depois de o mesmo ser redigido, disse ao jornalista Aires da Silva Castro para o não publicar.
Ora, a partir de tais factos o que se pode e deve concluir é que entre recorrente e arguida se estabeleceu um acordo através do qual a primeira declarou aceitar pedido de desculpas, inserido num texto, por parte da segunda, mediante a publicação desse texto no jornal Serras de A, acordo que não chegou a ser cumprido por a arguida haver impedido a publicação do texto em que pedia desculpas à recorrente.
A ser assim, e dúvidas não temos de que o é, torna-se evidente que a recorrente não renunciou ao seu direito de queixa, pois que não praticou qualquer facto de onde se possa deduzir haver perdoado à arguida, consabido que a aceitação do pedido de desculpas apresentado pela arguida ficou dependente da publicação do respectivo texto no jornal Serras de A, publicação que não teve lugar por a arguida a haver impedido.
Aliás, do ponto de vista jurídico-penal, as desculpas, os esclarecimentos ou explicações, mesmo que dados em juízo e aceites pelo ofendido, não produzem os efeitos do perdão ou desistência da queixa, constituindo causa de mera dispensa de pena – art.186º, n.º 1, do Código Penal.
Finalmente, uma última observação cumpre fazer.
Como ficou dito, o legislador entendeu admitir a renúncia tácita ao direito de queixa como causa impeditiva do exercício deste mesmo direito por imperativos de justiça e de ordem moral.
Ora, no caso em apreciação a conceder-se relevância de renúncia tácita ao facto atrás referido estar-se-ia, indubitavelmente, a dar cobertura a uma injustiça, isto é, a um acto reprovável da arguida que, após haver dado o seu acordo à publicação em jornal de texto contendo o seu pedido de desculpas à recorrente, voltou com a sua palavra atrás, impedindo a publicação daquele. Isto é, estar-se-ia a subverter completamente a mens legislatoris.
Assim sendo, há que conceder provimento ao recurso nesta parte.
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Estabelecido que não houve lugar a renúncia ao direito de queixa, cumpre analisar a decisão proferida sobre a matéria de facto (factos provados), tendo em vista apurar se a arguida cometeu os crimes pelos quais foi acusada.
Quanto ao crime de injúria é por demais evidente que os factos provados não integram o seu elemento material.
Com efeito, apenas vem provado que a arguida atirou para dentro do estabelecimento da assistente um saco contendo luvas, e não também, como da acusação consta, que a arguida ao atirar aquele saco afirmou, de viva voz, que a assistente tinha oferecido aquelas luvas ao seu marido (dela arguida), sendo seu amante.
Ao invés, relativamente ao crime de difamação é claro que os factos provados preenchem os seus elementos constitutivos, visto vir provado que a arguida, após haver perguntado à D. Maria do Céu quem era a proprietária da loja dos óculos e esta lhe haver respondido ser aquela loja da menina Helena, repostou que se fosse da menina era do dinheiro do marido dela (arguida), o que fez sabendo que aquela afirmação não correspondia à verdade, actuando de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção de ofender, como ofendeu, a assistente na sua honra e consideração.
Ao crime de difamação – art.180º, n.º1, do Código Penal – cabe pena de prisão até 6 meses ou pena de multa até 240 dias.
De acordo com o art.70º, do Código Penal, no caso de ao crime serem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, o que equivale por dizer que são considerações ou finalidade exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação de culpa, que impõe a preferência por uma pena alternativa.
Por outro lado, como refere Figueiredo Dias ( - Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime (1993), 332/333.), é inteiramente distinta a função que as exigências de prevenção especial e de prevenção geral exercem na escolha da pena, sendo que deve ser atribuída prevalência a considerações de prevenção especial de socialização, por serem sobretudo elas que justificam, em perspectiva politico-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão, prevalência que, antes de tudo o mais, impõe que o tribunal sé deve negar a aplicação de uma pena alternativa quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas; coisa que só raramente acontecerá se não se perder de vista o já tantas vezes referido carácter criminógeno da prisão, em especial de curta duração.
Quanto à prevenção geral ela funciona como conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização, o que significa que a pena alternativa só não será aplicada, quando aconselhada à luz das exigências de socialização, se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.
No caso em apreciação é por demais evidente que a pena de multa realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
A determinação da sua medida faz-se com recurso ao critério geral estabelecido no art.71º, do Código Penal, tendo em vista as finalidades próprias das respostas punitivas em sede de Direito Penal, quais sejam a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – art.40º, n.º 1 – sem esquecer, obviamente, que a culpa constitui um limite inultrapassável da medida da pena – art.40º, n.º 2.
Com efeito, a partir da revisão operada em 1995 ao Código Penal, a pena passou a servir finalidades de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena, no sentido de que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, pelo que dentro desse limite máximo a pena é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, em regra positivas ou de socialização, excepcionalmente negativas ou de intimidação ou de segurança individuais.
É este o critério da lei fundamental – art.18º, n.º 2 – e foi assumido pelo legislador penal de 1995 ( - Vide Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal (2001), 104/111.).
Numa sociedade em que se perdeu a noção daquilo que se pode e não pode dizer e escrever, com destaque para aquilo que se diz e escreve nos média, são elevadas as necessidades de prevenção geral, pelo que há que censurar com firmeza comportamentos ofensivos do direito à honra.
No entanto, no plano da prevenção especial, atenta a primariedade da arguida e as demais circunstâncias pessoais, são insignificantes as necessidades de intimidação, tanto mais que na base do facto estão razões sentimentais ou de afecto.
Tudo ponderado entende-se ajustado fixar a pena em 100 dias de multa.
Relativamente ao montante diário da multa, certo é que o critério a seguir tem de partir da situação económica e financeira do condenado – art.47º, n.º 2, do Código Penal – sem esquecer, obviamente, a função que as respostas punitivas desempenham e assumem em sede de Direito Penal ( - Cf. o ac. desta Relação de 96.06.27, publicado na CJ, XXI, III, 56.).
Relativamente à vertente patrimonial do condenado a mesma tem de ser apreciada em função dos rendimentos e dos encargos pessoais.
Quanto à função da pena há que ter presente que esta deve ser doseada de forma a representar um sacrifício para o condenado, já que se assim não for se está a desacreditar esta pena, os tribunais e a própria justiça, gerando um sentimento de desconfiança, de inutilidade e de impunidade ( - Cf. o ac. desta Relação de 95.07.13, publicado na CJ, XX, IV, 48.).
Tendo em vista o critério enunciado fixa-se a taxa diária da multa em € 5.
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Termos em que se acorda:
a) Não conhecer o recurso na parte em que vem impugnada a vertente civil da sentença;
b) Conceder parcial provimento ao recurso quanto à vertente criminal da sentença, condenando a arguida como autora material de um crime de difamação previsto e punível pelo art.180º, n.º1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de € 5 (cinco).
Custas pela recorrente.
A arguida/recorrida pagará taxa de justiça em 1ª instância decorrente da condenação ora decretada, a qual se fixa em 2 UCs – art.87º, n.º 4, do Código das Custas Judiciais.
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