Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
930/04.0TACBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
REENVIO PARA OS TRIBUNAIS CIVIS
Data do Acordão: 02/11/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 71º E 82º DO CPP
Sumário: 1. O art.º 82º do CPP apenas permite a remessa para os tribunais civis, verificando-se os demais requisitos, depois de admitido o pedido. Não sendo admitido não há lugar a remessa.
2. A existência de título executivo, ou título com igual valor (a lei tributária atribui força executiva aos títulos de cobrança das contribuições e impostos), não impede que se demande em acção declarativa, que o é o enxerto cível.
Decisão Texto Integral: Processo nº 930/04.0TACBR-A.C1,do 3º Juízo Criminal do Tribunal da Comarca de Coimbra.
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Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.
No processo supra identificado, no qual são arguidos:
- A..., casado, motorista, nascido em Brasfemes, Coimbra, residente em Coimbra;
- R..., casado, motorista, nascido em Angola, filho de A..., residente em Coimbra;
- "T…Lda", sociedade por quotas, matriculada na Conservatária do Registo Comercial de Coimbra sob o número………, e com sede em B…, Coimbra;
E demandante civil:

- INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL-IP/CENTRO DISTRITAL DE COIMBRA, pessoa colectiva com o nº 505305500 e sede na Rua Abel Dias Urbano, nº 2, 3004-519, Coimbra;

No que ora releva, foi decidido:

Dos autos não consta a resposta ao esclarecimento solicitado a fls. 553.
Tal não permite decidir acerca da admissibilidade do pedido de indemnização apresentado.
Uma vez que apenas se sabe que correm as execuções já referidas no documento anteriormente apresentado pelo ISS-CDC, fica por esclarecer o interesse em agir bem como o âmbito da execução pendente.
O esclarecimento dessas questões, a subsequente, eventual, admissão do pedido e a consequente notificação a que alude o ano 78° do Código do Processo Penal, retardariam intoleravelmente o andamento do processo penal, sendo que a final, redundaria num quase certo desafio à economia processual, sem resultados concretos em termos de efeito prático­-jurídico para o "demandante".
Assim sendo, remeto o pedido apresentado pelo ISS-CDC para os atinentes meios declarativos.
Notifique.
A fls. 553 consta o seguinte despacho:
Os arguidos não foram notificados do pedido de indemnização civil porque o mesmo ainda não foi recebido.

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Fls. 506:
Para melhor compreender o alcance da pretensão (assente no mesmo facto jurídico), bem como o respectivo efeito jurídico (eventual litispendência) e bem assim apurar se não se trata de mero acto inútil, convido o Instituto da Segurança Social/Centro Distrital de Coimbra a esclarecer, em 10 dias, quantas execuções já instaurou ou fez prosseguir com base em decisões de pedidos de indemnização semelhantes ao que agora pretende seja recebido porquanto já corre execução com vista a obter mesmo pagamento coercivo.
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Inconformado, com aquele despacho que remeteu o pedido cível para os meios declarativos, interpôs recurso o magistrado o demandante.
São do seguinte teor as conclusões, formuladas na motivação do recurso, e que delimitam o objecto do mesmo:
1- Foi deduzida acusação pelo digno Procurador Adjunto do Ministério Público junto do 3º Juízo Criminal de Coimbra, em processo comum com intervenção do Tribunal Singular, em co-autoria material, contra "T…Ld.ª", A... e R...;
2- Pelo crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido à data dos primeiros factos pelos art. 27-B n.º 1 e 24° n.º 1 ambos do RJIFNA (Regime Jurídico das Infracções Tributárias Não Aduaneiras), apurado pelo Decreto Lei n.º 20-A/90 de 15 de Janeiro, com a redacção introduzida pelo Decreto Lei n. ° 394/93 de 24 de Novembro, ex vi Decreto Lei n.º 140/95 de 14 de Junho,
Ou,
na sucessão normativa, pelos arts. 105, n.º 1 e 107, n° 1 ambos do RGIT (Regime Geral das Infracções Tributárias), aprovado pela Lei n° 15/2001, de 5 de Junho.
3- Foi o recorrente notificado da douta acusação e esta Instituição, na sua qualidade de ofendido, deduziu nos termos dos art. 74, 75, 76 e 77 do Código de Processo Penal, pedido de Indemnização Civil, que se encontra junto aos autos a fls. 447 e sgts.
4- Tal pedido de Indemnização civil não foi admitido pelo 3° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Coimbra.
5- Ora, o art. 71 do CPP consagra o princípio da adesão obrigatória, só facultando a possibilidade de dedução de pedido de indemnização civil em separado, perante o Tribunal civil nos casos taxativamente previstos no art. 72 do CPP.
6- Sendo incompreensível o despacho proferido pelo Mmo. Juiz a quo, pois de acordo com o regime do art. 72 do CPP supra referido, não existe qualquer fundamento legal para a não admissão do referido pedido.
7- Apesar de o 3º Juízo Criminal de Coimbra não fundamentar legalmente o despacho que recaiu sobre o pedido de indemnização civil (mesmo antes de decorrido prazo para prestar esclarecimentos), tem o aqui recorrente, enquanto Instituto Público, legitimidade para requerer o pedido de indemnização civil. Tanto mais,
8- o aqui recorrente foi lesado no seu património, pois não deram entrada nos cofres da Segurança Social quotizações sociais no montante de € 35.832,84 (trinta e cinco mil oitocentos e trinta e dois euros e oitenta e quatro cêntimos) às quais deve ser acrescido juros de mora vencidos e vincendos os quais, reportados a Janeiro/2008 são no valor de € 22.460,15, tudo no montante global de € 58.292,99 €, conforme se peticionou no pedido de indemnização civil junto aos autos.
9- É notório, que a conduta ilícita dos demandados - não entrega das quantias descontadas das remunerações pagas aos trabalhadores e gerentes da empresa "T…Ld.ª" é causa directa e necessária de um elevado prejuízo patrimonial ao demandante CDSS de Coimbra e,
10- Encontram-se preenchidos todos os requisitos legais que constituem os arguidos na obrigação de indemnizar, designadamente, o consignado no princípio geral consignado no art. 562 do CC e ainda, nos art. 563, n.º 1 do 564 e n.ºs 1 e 2 do art. 566, todos do CC.
11 - O pedido de indemnização civil é um mecanismo legal que qualquer lesado pode utilizar no âmbito de um processo-crime sendo este, um meio eficaz para o recorrente/lesado e ofendido poder ressarcir-se do seu crédito.
12 - Como atrás ficou dito, tanto da letra da lei,
13- Como da doutrina e da jurisprudência supra invocada, tem sido esse o entendimento doutamente trilhado.
14- Assim sendo, mesmo que, eventualmente, exista uma execução fiscal a correr os seus termos onde, se pretenda cobrar os créditos correspondentes à indemnização aqui reclamada (cotizações), tal facto não retira à segurança social o interesse em agir, tanto mais, que relativamente aos membros dos órgão estatutários/e ou gerentes de facto, o lesado não dispõe de título executivo,
15- Resulta cristalino que a segurança social tem todo "o interesse em agir para melhor obter meios de cobrança dos seus créditos". Além disso,
16- O pedido de indemnização civil é um mecanismo legal que qualquer lesado pode utilizar no âmbito de um processo-crime sendo este, um meio eficaz para o recorrente/lesado e ofendido poder ressarcir-se do seu crédito.
17- Em suma, a discordância do ora recorrente, para além de não concordar com a remessa do pedido apresentado pelo ISS-CDC para os atinentes meios declarativos também, com o devido respeito, não entende como a "admissão do pedido e a consequente notificação a que alude o art. 78 do Código do Processo Penal, retardariam intoleravelmente o andamento do processo penal, sendo que a final, redundaria num quase certo desafio à economia processual, sem resultados concretos em termos der efeito prático-jurídico para o "demandante. ""
Deve dar-se provimento ao presente recurso interposto pela ofendida e parte cível, revogando-se parcialmente a decisão recorrida no que respeita ao pedido cível.
Não foi apresentada resposta.
Nesta Instância, o Ex.mº Procurador Geral Adjunto, não emitiu parecer, por se tratar de questão cível.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir.
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Conhecendo:
A questão do recurso respeita à Remessa do pedido cível formulado pelo demandante para os meios comuns.
Indirectamente é posta em causa a possibilidade de formulação de pedido de indemnização civil em processo criminal pelo crime de abuso de confiança fiscal contra a segurança social.
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O artº 71 do CPP estabelece que o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.
É o chamado princípio da interdependência ou sistema da adesão, no caso do CPP –art. 71, da adesão obrigatória da acção civil ao processo penal que apenas sofre as excepções previstas na lei.
Ora com a adesão obrigatória o pedido de indemnização civil passa a submeter-se ás regras do processo penal (Cfr. Ac. STJ 00.05.11, CJ (STJ) tomo II, pág. 186, Ac. STJ 95.01.12, CJ (STJ) tomo I, pág. 181, Ac. RE 00.05.23, CJ tomo III, pág. 277), incluindo as da apreciação da prova.
É que, embora a acção penal e a acção cível se não confundam, ambas têm origem numa mesma infracção, o que lhes impõe uma estreita conexão.
Como refere igualmente o Ac. STJ 96.06.09, proc. 6/95, citado por Maia Gonçalves Código de Processo Penal Anotado, 12ª ed., pág. 243. “a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada quantitativamente e nos seus pressupostos pela lei civil, mas no aspecto processual é regulada pelo CPP”.
Assim, quando se estabelece no artº 129º CP que “a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”, não se pretende com a mesma afastar as regras sobre a apreciação da prova consagradas no CPP, entre as quais se conta a necessidade de todas as provas serem produzidas ou examinadas em julgamento (artº 355º nº 1 CPP) e o respeito pelo direito ao silêncio dos arguidos (Artº 343º nº 1 CPP), mas sim o respeito pelos critérios da lei civil no que concerne à determinação do quantum indemnizatório e dos seus pressupostos.
Contudo o artº 82º nº 3 CPP, veio estabelecer a possibilidade do tribunal remeter as partes para os tribunais civis desde que verificadas determinadas situações, nos seguintes termos:
“O tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal”.
Prevê pois o legislador na referida norma duas situações que podem justificar a remessa das partes para os tribunais civis:
- Quando as questões suscitadas na acção civil sejam de tal complexidade que não permitam uma decisão rigorosa.
- Quando as questões sejam susceptíveis de provocar o retardamento do processo penal.
Trata-se, segundo Maia Gonçalves Obra citada, pág. 247. “de uma disposição cautelar, destinada a evitar que através do sistema de adesão, que em princípio se consagra, se possa entravar a rápida administração da justiça penal.
A remessa para os tribunais civis prevista no nº 3 deve ser ordenada sempre que uma decisão rigorosa ou a necessária celeridade do processo penal sejam postas em perigo pelo processamento da questão civil conjuntamente. Como fundamento da remessa podem apontar-se quaisquer questões, designadamente incidentes da instância, desde que causadoras daquele perigo”.
Ora no caso dos autos não consegue esta Relação vislumbrar na decisão recorrida onde é que as referidas situações se verificam.
É que o Mmº juiz limitou-se a invocar as expressões contidas no preceito em causa, sem que se tivesse preocupado em concretizá-las.
Como é salientado no Ac. desta Relação, Rec. 795/98, in trc.pt “depois de se admitirem os vários pedidos de indemnização, contestações, intervenções, citações dos intervenientes, adiar o julgamento por anos e estando o processo preparado para julgamento, não se justifica a remessa das partes para os meios comuns”.
O despacho em causa é proferido em acta de julgamento, oficiosamente, sem que tivesse sido apresentado qualquer requerimento ou levantado qualquer incidente.
A questão cível só não estava preparada para integrar o julgamento em conjunto com a questão penal, porque o pedido não foi (ainda) admitido e notificado aos demandados.
Admitir o pedido cível e notificá-lo aos demandados faz parte do andamento normal do processo.
Se se entende que o pedido cível não deve ser admitido (seja qual for o motivo entendível), então deve despachar-se nesse sentido.
Mas não induzindo um hipotético retardamento intolerável;
O próprio despacho acaba por ser contraditório. Se o pedido pode ser admitido nos meios comuns (para onde foi remetido), logicamente também o deveria ser no processo-crime em cumprimento do princípio da adesão.
Entendendo-se que não devia ser admitido, deveria decidir-se pela não admissão e não pela remessa para os meios comuns.
Aliás temos que o art. 82 apenas permite a remessa para os tribunais civis, verificando-se os demais requisitos, depois de admitido o pedido. Não sendo admitido não há lugar a remessa.
Não pode por isso o retardamento do processo ser fundamento para remeter as partes para os tribunais civis.
Pelo que entendemos não se verificarem, in casu, os pressupostos previstos no art. 82 nº 3 do CPP, de remessa das partes para os tribunais civis –neste sentido, Ac. desta Relação, recurso 1038/99, in trc.pt.
Pelo que o uso daquela faculdade se mostra manifestamente injustificado.
Motivo de procedência do recurso interposto pelo demandante civil.
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Conforme ensinava o Prof. Castro Mendes, in Direito Procesual Civil, vol. II, pág. 187, edição da AAFDL 1978/79, o interesse processual ou interesse em agir não é, no nosso direito, pressuposto processual e “a acção inútil pode ser considerada procedente, mas as custas e encargos desta acção serão pagas pelo autor”.
Assim o expressa o art. 449 nº 2 do CPC, casos em que o réu não deu causa à acção, nomeadamente o referido na al. c) “quando o autor, munido de um título com manifesta força executiva, use sem necessidade do processo de declaração”.
Em princípio, o autor além de invocar um direito, ou interesse juridicamente protegido, tem de invocar ainda achar-se o seu direito em situação tal, que necessita do processo para a sua tutela.
Mas não tem de ser necessariamente assim.
Assim que a existência de titulo executivo, ou titulo com igual valor (a lei tributária atribui força executiva aos títulos de cobrança das contribuições e impostos), não impede que se demande em acção declarativa, que o é o enxerto cível.
Nos termos do art. 71 do CPP, o tribunal comum (ou tribunal criminal onde se verifica competência especializada) tem competência para decidir qualquer pedido civil “fundado na prática de um crime”.
E, no caso em apreço, os arguidos pessoas singulares praticaram (poderão ter praticado) um crime, do qual resulta responsabilidade civil. Só havendo violação culposa de um ou mais deveres fiscais para com a segurança social, por parte dos representantes da sociedade (a apurar quando da realização do julgamento), pois que só assim se justifica a sua condenação crime.
E, um dos pontos relevantes e que justificam o pedido cível e o interesse em agir do demandante, é colocar todos os arguidos no mesmo grau de responsabilidade de indemnização cível.
E, contra os arguidos pessoas singulares inexiste qualquer título executivo, ou título de cobrança com igual força (este apenas permitia cobrar em execução fiscal intentada contra a arguida pessoa colectiva, que figura como devedora), nos termos do Código de Processo Tributário.
E, nos termos do art. 24 da LGT, os demandados pessoas singulares são responsáveis subsidiários e a sua responsabilidade só se efectiva por reversão do processo de execução fiscal, nos termos do art. 23 da mesma lei.
E mesmo em relação à sociedade, é diferente o titulo executivo sentença, do documento (título de cobrança).
Os meios de oposição a um e a outro são distintos.
Daí que também aqui se verifica o interesse em agir, por parte do demandante, em relação à demanda cível, ou seja, em relação à sociedade.
E, para obter título executivo contra todos os arguidos, o demandante cível tem de os demandar a todos.
Donde se conclui que no processo crime pode ser deduzido pedido civil contra todos os arguidos.
Arguidos/demandados com responsabilidade solidária no pagamento da dívida que vier a ser apurada.
Neste sentido, é vasta a jurisprudência.
Decisão:
Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra:
Em julgar procedente o recurso interposto pelo demandante Instituto da Segurança Social, IP- Centro Distrital de Coimbra e em consequência, julga-se competente o tribunal dos autos, 3º Juízo Criminal do Tribunal da Comarca de Coimbra, para admitir (caso não haja outro fundamento para a não admissão) e conhecer do pedido cível formulado.
Sem custas o recurso.
Coimbra,
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