Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2835/18.9T8CBR-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: INSOLVÊNCIA
PLANO DE INSOLVÊNCIA
HOMOLOGAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Data do Acordão: 04/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.194, 212, 215, 216 CIRE
Sumário: A total indisponibilidade dos créditos tributários não serve de justificação jurídica para a total disponibilidade dos restantes créditos, ou seja, propondo um devedor o pagamento na íntegra de créditos fiscais comuns, a proposta de pagamento residual dos restantes créditos comuns viola o princípio da igualdade constante do art. 194.º do CIRE.
Decisão Texto Integral:





Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

F (…) e esposa F (…), ambos com os sinais dos autos, vieram requerer (em 14/11/2016) processo especial de revitalização.

Nomeado administrador judicial provisório, cumprida a demais tramitação e concluídas as negociações, veio a ser considerado aprovado plano de recuperação conducente às suas revitalizações; plano que foi homologado em 1.ª Instância, decisão de que os credores M (…) e marido J (…)  recorreram, tendo esta Relação de Coimbra, por acórdão de 27/06/2017, revogado tal decisão e decretado a não homologação do plano de recuperação.

Regressados os autos à 1.ª Instância, foi convolado o requerido PER em processo especial de acordo de pagamento (PEAP), o qual foi encerrado sem que tivesse sido aprovado acordo de pagamento, razão pela qual o senhor Administrador Judicial Provisório (AJP) emitiu parecer (a que alude o art. 222.º-G/4 do CIRE) no sentido da declaração de insolvência dos devedores.

Declaração de insolvência a que estes se opuseram, tendo os autos sido “convertidos” no presente processo de insolvência, em que os devedores vieram sustentar a sua solvência.

Cumprida a devida tramitação processual (do presente processo de insolvência), acabaram os devedores/requerentes por ser declarados insolventes por sentença de 18/05/2018, transitada em julgado.

Prosseguindo-se nos autos, foi deliberado, na Assembleia de Apreciação do Relatório, suspender a liquidação e partilha da massa insolvente, tendo em vista a elaboração e apresentação pelos devedores, no prazo de 30 dias, de um Plano de Insolvência que prevendo a recuperação económica dos mesmos, enquanto comerciantes.

Plano de Insolvência cuja proposta os devedores apresentaram.

Designada data para a realização da assembleia de credores para discussão e votação de tal proposta, veio a mesma a ter lugar no dia 05/09/2018, tendo estado presentes credores cujos créditos constituíam mais de um terço do total dos créditos com direito de voto; e tendo-se procedido à votação do aludido plano de insolvência, veio o mesmo a ser considerado aprovado.

Foram efectuadas as notificações e publicações previstas no artigo 213.º do CIRE.

Após o que os credores M (…)  e marido, J (…) apresentaram requerimento a pugnar pela não homologação do plano de insolvência aprovado, alegando, em síntese:

- São ambos credores dos insolventes na quantia de 109.974,51€, acrescida dos respectivos juros moratórios, com origem numa condenação judicial destes;

- Os devedores insolventes estão em dívida para com os ora requerentes desde 04.09.2009, sendo que, já a esta data, eram devedores da Autoridade Tributária (AT) e Instituto da Segurança Social (ISS);

- Os devedores acumularam, em cerca de 7 ou 8 anos, dívidas pessoais no valor de 806.865,37€, sem se terem apresentado à insolvência;

- Os devedores violaram, de forma não negligenciável, as regras procedimentais do PER, porquanto, e desde logo, não apresentaram nos autos as suas declarações de IRS dos anos de 2013, 2014 e 2015, alegando que não as apresentaram à AT, o que não corresponde à verdade;

- Por outro lado, os credores requerentes não foram convidados a participar nas negociações, nem foram notificados pelo AI da aprovação do plano de insolvência;

- Os créditos reconhecidos a C (…)  e a O (…) não existem, não tendo sido efectuada qualquer diligência no sentido de apurar isso mesmo, razão pela qual os devedores fizeram um uso anormal do processo;

- O plano de insolvência, ao prever um pagamento de apenas 20% do seu capital em dívida, com perdão do demais capital e dos juros de mora vencidos e vincendos, a pagar num período de 10 anos, após um período de carência de 3 anos, viola flagrantemente o princípio da igualdade, porquanto beneficia os credores AT e o ISS, cujos éditos serão pagos a 100% e em prestações mensais.

Responderam os devedores/insolventes, pugnando pela homologação do plano de insolvência, alegando, em síntese, o seguinte:

- O requerimento dos credores M (…)  e marido, J (…)  é extemporâneo, uma vez que não foi apresentado antes da aprovação do plano, como exige o artigo 216.º, n.º 1, do CIRE, pelo que não pode ser admitido;

- Ao contrário do que sucede no PER, no plano de insolvência os credores não são convidados a participar em negociações, pelo que não foi violada qualquer norma procedimental respeitante a tal;

- A propósito dos credores C (…)  e a O (…) , este não é o local próprio para impugnar a lista de credores, pelo que também não houve aqui qualquer violação de regras procedimentais;

- Os credores requerentes sempre ficariam em pior situação sem o plano de insolvência do que com o plano de insolvência homologado, pois ainda receberiam 20% do seu crédito, quando no processo insolvencial os créditos da AT e do ISS seriam pagos à frente;

- Por fim, alegam que não se verifica o alegado benefício injustificado dos credores AT e ISS em detrimento dos demais, uma vez que os créditos destas entidades têm natureza indisponível, assim se justificando o tratamento diferenciador dos mesmos.

Após o que, decorrido o prazo do artigo 214.º do CIRE, foi proferida decisão a não homologar o plano de insolvência (que previa a recuperação dos devedores/insolventes através da reestruturação do passivo – perdão de capital e juros, moratória e modificação dos prazos de vencimento).


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Inconformados com tal decisão de recusa de homologação, vieram os devedores/insolventes interpor recurso, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que homologue o plano de insolvência “apresentado pelos devedores por o plano não configurar qualquer violação não negligenciável ao nível do Principio da Igualdade”.

Terminaram a sua alegação com as seguintes conclusões:

1. O prazo para qualquer credor requerer a recusa de homologação do plano de insolvência é de dez dias, contados da data da aprovação em assembleia de credores ou, no caso de ele ter sido sujeito a alterações na própria assembleia, da data da publicação da deliberação; ora se houve votos por escrito, os 10 dias contar-se-iam da data da publicitação da aprovação (24/10/2018) - assim o requerimento dos credores de 08/11/2018 deveria ter sido declarado intempestivo (porque deu entrada no 15º dia) e nessa medida não poderia ter sido apreciado.

2. Ainda assim entendem os devedores, que ainda que tal requerimento de não homologação fosse considerado tempestivo- o que não se pode aceitar- não deveria ter sido admitido porque não souberam os credores respeitar o disposto no art 216 do CIRE, numa vez que os mesmos antes da aprovação limitaram-se a votar contra o plano, não se opondo ao mesmo, isto é, não alegando e demonstrando factos que sustentassem tal pedido.

3. Não lhe bastando o mero voto contra (que aconteceu aquando da assembleia de apreciação e votação do mesmo, em 05/09/2018), sem manifestar a oposição fundamentada ao mesmo.

4. SEM PRESCINDIR, e ainda que se admita a tempestividade e validade do pedido de não homologação, sempre se dirá que não houve qualquer violação princípio da igualdade entre os credores, ao tratar os créditos tributários de forma diferente que os restantes credores comuns, em face do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, previsto no artigo 30.º da Lei Geral Tributária.

5. Com efeito, a Segurança Social e a Autoridades Tributária são diferentes ao ponto de um plano apresentado e homologado possa ser ineficaz em relação a esses credores e portanto não oponível aos mesmos. (Neste sentido o Acórdão do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, no Processo 1786/12.5TBTNV.C2.S1, datado de 18/02/2014.

6. Assim, não existe qualquer violação do princípio da Igualdade de credores, quando o tratamento diferencial é, desde logo, justificado objectivamente pela própria lei, quando no art 47º do CIRE se prevê a diferenciação objectiva de créditos (comuns, garantido, privilegiados, etc)

7. A alegação da violação do princípio da igualdade (a que o douto Tribunal veio corroborar) mais não foi no entender dos devedores senão uma forma encapotada de oposição às condições do plano (perdões e carência), olvidando-se a Requerentes do escopo de um PEAP.

8. Neste tipo de processo dá-se relevância à recuperação dos devedores, em detrimento do anterior objectivo primordial, que era o de, em primeira linha, obter a satisfação dos direitos dos credores, por sobreposição às possibilidades de recuperação dos devedores.

9. Com efeito, hoje “o plano de insolvência, é susceptível de impor aos credores uma compressão generalizada e grave das suas faculdades típicas: pode afectar a esfera jurídica dos interessados e interferir com os direitos de terceiros independentemente do seu consentimento, podendo limitar ou restringir a esfera dos direitos de cada um, ou alguns, dos credores da devedora, na medida em que o plano pode fixar a redução ou o perdão dos créditos e juros, a constituição de garantias e validade e relevância das anteriormente constituídas, nos termos do disposto nos artigos 196.º e 197.º do CIRE.

10. A recuperação surge à frente como mera eventualidade, totalmente dependente da vontade dos credores. Mas esta primazia não funciona apenas em detrimento da empresa: ela exige, também, o sacrifício de terceiros que tenham contratado com a entidade insolvente.


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II – Elementos factuais com relevo:

A) Os créditos reclamados e reconhecidos no âmbito dos presentes autos totalizam o valor de € 806.865,37; sendo constituídos pelos:

1 – Crédito comum do B (…) , no total de € 25.014,08 (sendo de € 25.000,54 de capital e € 13,54 de juros);

2 – Crédito comum de C (…) , no total de € 188.591,90 (sendo de € 130.000,00 de capital e € 58.581,90 de juros);

3 – Crédito comum de C (…) , no total de € 7.803,67 (sendo de € 5.500,00 de capital e € 2.303,67 de juros);

4 – Crédito comum de E (…) , no total de € 35.514,94 de capital;

5 – Crédito privilegiado da Fazenda Nacional (de IRS, IVA, IMI e juros), no total de € 1.940,35 (sendo de € 1.498,17 de capital e € 442,18 de juros);

6 – Crédito comum da Fazenda Nacional (de IRS, IVA, IMI, coimas, custa e juros), no total de € 287.201,13 (sendo de € 253.540,59 de capital e € 33.660,54 de juros);

7 – Crédito privilegiado da Segurança Social, no total de € 6.534,22 (sendo de € 5.688,92 de capital e € 845,30 de juros);

8 – Crédito comum da Segurança Social, no total de € 1.738,74 (sendo de € 1.677,05 de capital e € 5.688,92 de juros);

9 – Crédito comum de M (…) e J (…)  , no total de € 114.240,26 (sendo de € 84.356,57 de capital e € 29.853,69 de juros);

10 – Crédito comum da M(…), no total de € 1.792,11 de capital;

11 – Crédito comum da N(…), no total de € 356,97 de capital;

12 – Crédito comum de O (…), no total de € 136.137,00 (sendo de € 125.000,00 de capital e € 11.137,00 de juros);

B) Os devedores apresentaram Plano de Insolvência, propondo o pagamento dos créditos nos seguintes termos:

Credores Comuns:

O Plano de regularização dos créditos reclamados pelos credores comuns (…) deverá ocorrer nos seguintes termos:

 - Perdão dos juros de mora e outras despesas decorrentes da mora ou incumprimento;

 - Perdão dos juros de mora vencidos[1];

 - Estabelecimento de um período de carência de pagamento de capital e juros[2] de 2 anos com início no mês seguinte ao do trânsito em julgado da decisão que vier a homologar o presente acordo de credores;

 - Perdão incondicional de 80% do capital em dívida;

 - Pagamento de 20% do capital em dívida reclamado, em 10 prestações anuais, iguais, postecipadas e sucessivas, vencendo-se a primeira no último dia útil do ano seguinte ao término da carência estabelecida acima e as seguintes em igual dia dos anos seguintes, sendo de € 8.150,45 cada uma, a ratear pelos credores na directa proporção dos seus créditos;

 - O pagamento das prestações deverá ocorrer nos 30 dias seguintes ao respectivo vencimento.

Autoridade Tributária e Aduaneira

A regularização das dívidas reclamadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira (…), ocorrerá nos seguintes termos:

 - Pagamento de 100% do valor em dívida em 150 prestações mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira até ao final do primeiro mês seguinte à assembleia de credores e corrigindo-se o seu valor mensal na medida do vencimento dos respectivos juros;

 - Não haverá lugar à redução de coimas e custas;

 - Não haverá lugar a qualquer moratória.

Instituto de Segurança Social

A regularização da totalidade das dívidas à Segurança Social (…) ocorrerá nos seguintes termos:

1 – F (…) – A regularização da dívida à Seg. Social é efectuada nos termos já acordados no âmbito dos Processos Executivos Fiscais que correm termos na Secção de Processos de Coimbra do IGFSS.

2 – F (…) – Formalização de acordo junto da Secção de Processo Executivo competente no mês seguinte ao da votação do Plano, vencendo-se a 1.ª prestação até ao final daquele mês, sendo as garantias a apresentar analisadas no âmbito dos respectivos processos de execução.

C) Consta da acta da Assembleia de Credores para discussão e votação do Plano de Insolvência e dos votos escritos depois apresentados que estiveram presentes e votaram os seguintes credores:

C (…) que votou a favor;

O (…), que votou a favor;

C (…) que votou a favor;

Fazenda Nacional, que votou a favor;

M (…)  e marido J (…), que votou a contra;

Instituto de Segurança Social, que votou contra.

D) Em 16/10/2018, foi proferido despacho em que se considerou que “resulta da votação que 83,54% da totalidade dos votos emitidos (correspondente a € 621.664,05) foi favorável à aprovação do plano de insolvência apresentado nos autos pelos próprios devedores/insolventes. Desta feita, porque recolheu mais de 2/3 da totalidade dos votos emitidos considera-se aprovada a proposta do plano de insolvência em causa – cf- art. 212.º/1 do CIRE”.

E) Tendo a publicitação da deliberação de aprovação ocorrido em 24/10/2018.

F) No prazo da votação, não foi solicitada a não homologação do plano por qualquer credor.

G) Plano de Insolvência cuja homologação foi recusada pela decisão aqui sob recurso.


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III – Fundamentação de Direito

No centro da decisão sob recurso de recusa de homologação do Plano (e da prévia solicitação nesse sentido por parte dos credores M (…) e marido), está o tratamento dado pelo Plano (supra transcrito) aos créditos da AT e do ISS; está o ter-se considerado, na decisão sob recurso, que o Plano favorece, sem razões objectivas, tais créditos, o que viola o princípio da igualdade dos credores consagrado no artigo 194.º do CIRE.

O centro do objecto do recurso é pois a interpretação/aplicação prática do princípio da igualdade, porém, antes de abordarmos tal questão, duas breves notas.

Uma primeira nota, a propósito do que os apelantes suscitam nas suas três primeiras conclusões:

Dizem os apelantes que os credores M (…) e marido não podiam ser sequer admitidos a solicitar a não homologação do Plano, “(…) uma vez que os mesmos antes da aprovação limitaram-se a votar contra o plano, não se opondo ao mesmo (…)”; para além do seu requerimento (do art. 216.º do CIRE) a solicitar a não homologação do Plano, ao entrar em 08/11/2018, ser intempestivo, por não ter sido apresentado nos 10 dias seguintes à data da publicitação da aprovação do Plano (24/10/2018).

Não têm razão, quanto a não poderem ser admitidos a solicitar a não homologação do Plano; mas têm razão, quanto à intempestividade do requerimento apresentado.

É verdade que o art. 216.º do CIRE só confere legitimidade para solicitar a não homologação a quem “tiver manifestado nos autos a sua oposição”, porém, é suficiente para preencher tal manifestação de oposição a emissão, na assembleia de credores, de voto contra a aprovação do Plano (como é/foi o caso dos credores M (…)e marido).

É igualmente verdade que o prazo para qualquer credor requerer a recusa de homologação do plano de insolvência é de dez dias (por aplicação do art. 153º/1 do C.P.C.), contados da data da aprovação do Plano (em assembleia de credores ou, tendo havido votos escritos, do despacho que considerou o Plano aprovado), o que significa, tendo havido votos escritos e tendo o despacho a considerar o Plano aprovado sido notificado aos credores em 24/10/2018, que o requerimento dos credores M (...) e marido foi apresentado (em 08/11/2018) para além dos referidos dez dias e que por isso foi intempestivo.

O que, porém, chama-se a atenção, não traz qualquer repercussão sobre o objecto do recurso, uma vez que o controlo de legalidade do Plano é feito oficiosamente pelo juiz (cfr. art. 215.º do CIRE), sendo justamente no estrito âmbito de tal controlo de legalidade que se situa o respeito pelo princípio da igualdade (que a decisão considerou violado), ou seja, a circunstância do requerimento dos credores M (…) e marido a solicitar a não homologação do Plano não dever ser admitido e apreciado[3] não contende em nada com o que foi decidido, com o que aqui está sob recurso e com a tramitação dos autos/recurso.

Uma segunda nota, a propósito da aprovação do Plano, que, embora aprovado, apresenta uma “contagem de votos” ligeiramente diferente da que foi considerada:

Efectivamente, de acordo com o art. 212.º/2/a) do CIRE, não conferem direito de voto os créditos que não sejam modificados pelo Plano; ou seja, a AT e o ISS não tinham, no caso, direito de voto, uma vez que, como resulta da alínea B) dos factos, o Plano, em relação à AT, prevê a liquidação da dívida existente, na presente data, nas condições dos diplomas legais que estabelecem o seu pagamento em prestações e, em relação ao ISS, diz-se que será enquadrada em sede de processo executivo através de plano de pagamento ali acordado.

Não tinham pois tais credores direito de voto, não podendo impor (votando favoravelmente) aos outros credores, afectados, um Plano em que eles não são afectados; sendo pois a partir dos votos dos restantes credores que teriam que ser encontrados/computados o “mínimo de participação” e, depois, o “mínimo de votos favoráveis” (de que fala o art. 212.º/1 do CIRE[4]).

Em todo o caso, não estando, a nosso ver, correcta a percentagem que consta do despacho de 17/10/2018 (transcrito em D)) – uma vez que foram computados, para o “mínimo de participação” e, depois, para o “mínimo de votos favoráveis”, o “voto favorável” da AT e o “voto desfavorável” do ISS – a verdade é que, descontando tais votos (indevidamente considerados), ainda assim, foi claramente ultrapassado o mínimo de participação de 1/3 e o mínimo de votos favoráveis de 2/3, sendo que mais de metade dos votos emitidos corresponderam a créditos não subordinados.

Foi pois o Plano devidamente aprovado (embora com uma percentagem inferior à constante do despacho transcrito em D)) e, sendo assim, podemos passar à questão central do recurso, ou seja, ao fundamento invocado para a não homologação e consistente na violação do princípio da igualdade.

É sabido que toda a disciplina da insolvência e da recuperação de empresas têm como um dos princípios fundamentais o princípio par conditio creditorum ou da igualdade dos credores; e que, em função disso, quer o plano de insolvência, quer o plano de recuperação/revitalização quer o acordo de pagamento devem obedecer ao princípio da igualdade, “sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas” (como se refere no art. 194.º do CIRE, sobre o princípio da igualdade).

Princípio da igualdade – é também sabido – que tem uma dimensão material, o que significa que devem ser tratadas igualmente situações iguais e distintamente situações distintas, sendo que, perante situações distintas, o tratamento distinto pode estar em conformidade com o princípio da igualdade ou ser uma desigualdade justificada.

Assim, haverá casos em que as discriminações contidas no Plano podem ser consideradas justificadas com base numa leitura material do princípio da igualdade; como também haverá casos em que uma diferença ostensiva de tratamento dos créditos configura uma violação não negligenciável, logo, fundamento para a recusa de homologação do Plano.

Nesta linha de raciocínio, os devedores/recorrentes procuram justificar a diferença de tratamento dada à AT e ao ISS “com o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, previsto no artigo 30.º da Lei Geral Tributária” e “com o tratamento diferencial ser justificado objectivamente pela própria lei, quando no art. 47º do CIRE prevê a diferenciação objectiva de créditos”

Trata-se de argumentação que, com todo o respeito, não podemos no caso acompanhar.

A questão dos termos em que um Plano pode (ou não) modificar os créditos tributários tem sido (e continua a ser) amplamente discutida.

E se o sentido útil da intervenção legislativa constante dos art. 123.º e 125.º da Lei do Orçamento de 2011 (Lei n.º 55-A/2010, de 31-12) é o de enfatizar a natureza indisponível dos créditos tributários, indisponibilidade que se mantém mesmo perante a legislação especial contida no CIRE[5], tal não significa, no pólo oposto, que um Plano que proponha o pagamento dos créditos fiscais com total respeito por tal indisponibilidade e pelo que se dispõe na legislação fiscal (só introduzindo as modificações de prazos permitidas pelas leis fiscais) fique de “mãos livres” para poder propor, sem que tal viole o princípio da igualdade constante do art. 194.º do CIRE, toda e qualquer modificação dos restantes créditos.

A propósito do “plano de insolvência” – convenção ou negócio jurídico próprio do direito da insolvência, previsto no título IX do CIRE – atribuiu o legislador a força jurídica especial de afectar os direitos dos credores; uma vez que se pode através dele impor aos credores – aparentemente a todos os credores, com excepção das entidades referidas no art. 196.º/2 do CIRE (em que se incluem o BCE e os Bancos Centrais dos Estados membros) – uma compressão generalizada das suas faculdades típicas.

O que – por tal “compressão” afectar todos os credores e por, por outro lado, não constarem os créditos do Estado, das Instituições de Segurança Social e de outras entidades públicas sujeitas a regimes especiais da expressa ressalva constante do referido art. 196.º/2 do CIRE – de imediato levou a que se passasse a problematizar a questão da sujeição ou não do plano de insolvência à regra da “indisponibilidade” dos créditos tributários (estabelecida nos art. 30.º/2, 36.º/2 e 3 da LGT); ou seja, de imediato se passou a discutir se as dívidas fiscais e as dívidas à segurança social podiam ser ou não comprimidas pelo plano de insolvência, pese embora a referida regra da “indisponibilidade”, sem o respectivo acordo do Estado ou da Segurança Social.

Questão em que o STJ se veio a inclinar, maioritariamente, no sentido afirmativo[6], ou seja, no sentido de ser possível a compressão; para o que se argumentou não existir, no caso do plano de insolvência prever perdões, reduções ou moratórias no pagamento das dívidas fiscais e da segurança social, violação das normas fiscais imperativas por vontade das partes ou dos credores, mas sim a necessidade de observar um regime especial criado pelo próprio legislador (consagrando-se a igualdade de tratamento para todos os credores do insolvente e prevendo-se a possibilidade dos créditos do Estado serem despojados de privilégios, mesmo sem a sua aquiescência, inexistindo assim violação de qualquer princípio constitucional, nomeadamente o estabelecido no art. 103.º/2 do CRP), sendo por isso legítimas, no âmbito do plano de insolvência, quaisquer alterações aos créditos do Estado ou da Segurança Social mesmo, sem o consentimento destes.

Foi pois neste contexto e encadeamento que surgiu e que devem ser “lidos” os referidos art. 123.º e 125.º da Lei do Orçamento de 2011[7], que no fundo vêm dizer que a regra geral tributária constante do art. 30.º/2 – que estabelece a indisponibilidade do crédito tributário e que diz que só no respeito pelos princípios da igualdade e da legalidade tributárias o mesmo poderá ser comprimido – não é alterável por uma qualquer legislação ou regime especial[8]; que no fundo vêm alargar o alcance da protecção dos créditos tributários.

Mais, para que não houvesse lugar a dúvidas – ou veleidades interpretativas – como que se “blindou” a prevalência da regra da indisponibilidade da lei geral tributária sobre qualquer legislação especial com a introdução duma disposição transitória em que se “advertiu” o intérprete para a aplicação/observância de tal prevalência nos processos de insolvência.

Enfim, por mais pertinentes e racionais que sejam os argumentos contrários[9] – efectivamente, não se alcança o mérito do Estado/legislador que impõe aos particulares um regime de excepção, obrigando-os a um plano de insolvência que inclui o perdão ou a redução dos seus créditos sem ou contra o seu acordo, e que, ao mesmo tempo, se “abstém de contribuir para a prossecução dos fins que visou atingir com o processo de insolvência, mantendo intocáveis os seus créditos e impondo aos demais credores todo o esforço de recuperação do insolvente” – não padecendo a lei (neste caso, a Lei 55-A/2010) de patente inconstitucionalidade, impõe-se (cfr. 203.º da CRP e 4 do EMJ), como sempre, respeitá-la e aplicá-la.

Há, é certo, alguma unanimidade em considerar-se a “indisponibilidade” do crédito tributário – nos termos aparentemente inflexíveis impostos pela Lei do Orçamento de 2012 – como contraditória e inconciliável com o reforço das medidas de revitalização e o incentivo legal à aprovação de plano de recuperação de empresas insolventes ou em situação económica difícil; há acordo em dizer que não se justifica manter o credor tributário totalmente à margem dos deveres de cooperação e solidariedade económica e social que devem recair sobre todos os credores, no sentido de possibilitar a recuperação da empresa e evitar o seu encerramento e as consequências económicas que tal pode gerar, nomeadamente, fomentar a insolvência de outras empresas, o acréscimo de desemprego, entre outras consequências nefastas para a economia; todos dizem que o legislador já devia ter “deslindado” esta desarticulação de objectivos e de diplomas legais.

Com o devido respeito pelas soluções já encontradas pelo nosso mais Alto Tribunal, uma adequada ponderação dos interesses que a questão convoca, tendo em conta os fins que as leis falimentares visam (recuperação de empresas) e, por outro lado, o interesse público na arrecadação das receitas fundamentais à preservação e desenvolvimento do Estado Social (o dever geral que todos temos de contribuir para as receitas suficientes para fazer face às necessidades colectivas), tem que permitir, no respeito pelo princípio da proporcionalidade, uma interpretação, em certos casos, restritiva dos art. 30.º/2 e 3, 36.º/3 da LGT; uma interpretação que restrinja o seu pleno campo de aplicação à relação tributária e que permita, em certos casos de confronto com a legislação especial do direito falimentar, uma interpretação restritiva.

Ponderando tudo adequada e proporcionalmente, desde que a intervenção nos créditos do Estado não evidencie uma modificação injusta e desproporcional – tendo em conta o somatório dos créditos dos particulares e a medida em que eles abdicam, visando a recuperação da empresa pré-insolvente – entendemos que será de admitir que o “Plano” possa incluir alguma modificação dos prazos de pagamento ou das taxas de juros (ou mesmo, em casos muito extremos, desde que devidamente justificado/explicado, uma moratória e o perdão ou redução do valor do capital) dos créditos da AT ou da Seg. Social; desde que tal “Plano” também inclua, quer uma cláusula idêntica à do art. 218.º/1/b) do CIRE (nos termos da qual, sendo posteriormente declarada a insolvência do devedor, a “intervenção” no crédito fique sem efeito), quer uma cláusula “de salvo regresso de melhor fortuna”.

Enfim, entendemos que, verificada/apreciada uma concreta, precisa e “exigente” conjugação de circunstâncias, poderemos estar, quando muito, perante uma violação negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do “Plano”.

Seja como for – toda esta retórica vertida em acórdãos já proferidos sobre o tema – a questão aqui é outra, isto é, a inflexibilidade da indisponibilidade dos créditos tributários não vai (não pode ir) ao ponto de servir de justificação jurídica à total disponibilidade dos restantes créditos, ou seja, não vai ao ponto de significar que, propondo um devedor o pagamento da totalidade dos créditos fiscais (no respeito pela sua inflexível indisponibilidade e pelo que se dispõe na legislação fiscal), a proposta de pagamento dos restantes créditos possa, sem violação do princípio da igualdade, ser marginal e residual: numa tal hipótese, tem que se considerar que tal pagamento residual viola o princípio da igualdade constante do art. 194.º do CIRE[10].

Da mesma forma que o valor/importância dos votos dum credor para a aprovação do Plano não pode ser invocado para influenciar ou condicionar o princípio da igualdade entre credores – ou seja, a circunstância de um credor ter um número de votos que, só por si, é suficiente para aprovar ou “desaprovar” um qualquer Plano não é fundamento para, sem desrespeito pelo princípio da igualdade, lhe dar um tratamento mais favorável no conteúdo do Plano – também a indisponibilidade dos créditos tributários não é fundamento, só por si, para dar aos credores tributários um tratamento mais favorável no contexto da globalidade dos credores.

Coisa diferente – como também se invoca – é em função do carácter garantido e/ou privilegiado dos créditos tributários (da AT e do ISS) poder ser-lhes dado um tratamento mais favorável, porém, mesmo aqui, com fundamento em estar-se perante situações/créditos distintos, é preciso encontrar as justas e devidas proporções que respeitem o referido princípio da igualdade.

Ora – é o ponto – basta olhar para os créditos da AT para constatar que a patente violação do princípio da igualdade que o Plano encerra não é sequer uma questão (mais ou menos subjectiva) de “justas e devidas proporções”, uma vez que há situações/créditos idênticos para os quais o Plano propõe pagamentos bem diversos (violando assim, em termos não negligenciáveis, o princípio da igualdade).

A AT (como resulta dos factos) é credora privilegiada (de IRS, IVA, IMI e juros) do montante de € 1.940,35 e credora comum (também de IRS, IVA, IMI, coimas, custas e juros) do montante de € 287.201,13, estando proposto/aprovado que tais créditos – incluindo o comum – sejam pagos a 100% (em 150 prestações mensais, iguais e sucessivas, como o permite a lei fiscal), sem qualquer redução (de juros, coimas ou custas e sem qualquer moratória).

Em contrapartida, para os restantes créditos comuns – ou seja, para créditos com natureza idêntica ao referido crédito comum da AT – foi proposto/aprovado o perdão da totalidade dos juros de mora e o perdão de 80% do capital, sendo pagos os restantes 20% de capital em 10 prestações anuais, após um período de carência de 2 anos, vencendo-se a primeira prestação no último dia útil do ano seguinte ao término da carência.

Enfim, exemplificando:

A AT recebe 100% do seu crédito comum; e

Os credores M (…) e marido, do seu crédito comum de € 114.240,26, receberão € 16.871,32 e ao fim de 13 anos, ou seja, bem vistas as coisas, cerca de 10% do seu crédito (se tivermos presente, na comparação com o pagamento integral dado ao crédito comum da AT, que também os juros vincendos dos outros credores comuns são perdoados).

Como supra se referiu, perante situações distintas, o tratamento distinto pode estar em conformidade com o princípio da igualdade ou ser uma desigualdade justificada, ou seja, se todo o crédito da AT fosse privilegiado, haveria justificação, numa leitura material do princípio da igualdade, para estabelecer/propor pagamentos diferenciados em relação aos restantes créditos “meramente” comuns, colocando-se então a questão de saber se a diferenciação respeitava (ou não) as “justas e devidas proporções”, porém, repete-se, não é sequer este o caso, estando-se “apenas” perante uma ostensiva diferença de tratamento de idênticos créditos comuns, a qual configura uma clara violação não negligenciável do conteúdo do Plano e constitui fundamento para a oficiosa recusa de homologação do Plano.

E, dir-se-á para terminar, da mesma forma que não é o número de votos que deve influenciar e condicionar o funcionamento e a aplicação prática do princípio da igualdade entre credores, também não é a circunstância de certos créditos obterem, na liquidação e partilha, um fraco pagamento que só por si é fundamento para o Plano lhes prometer um pagamento residual.

Concluindo, entendemos que o conteúdo do Plano viola o princípio da igualdade, que estamos perante uma violação não negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo (art. 194.º do CIRE) e, sendo assim, bem andou a sentença recorrida ao recusar a sua homologação.

É quanto basta para julgar improcedente a apelação.


*

IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se julgar improcedente a apelação interposta e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida, que não homologou o Plano de Insolvência aprovado.

Custas pela Massa.


*

Coimbra, 30/04/2019

Barateiro Martins ( Relator )

Arlindo Oliveira

Emídio Santos



[1] Está escrito “vencidos”, porém, em face do que consta dos restantes termos, deve certamente querer dizer-se “vincendos”.
[2] Fala-se em “carência de juros”, porém, face à prestação anual estabelecida, de € 8.150,45, durante 10 anos, não há – uma vez que serão perdoados todos os juros – exactamente “carência de juros”.

[3] Requerimento em que os mesmos, em bom rigor, não invocaram sequer um dos dois fundamentos do art. 216.º do CIRE, ou seja, não alegaram que a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que aquela que adviria da ausência de plano ou que do plano resulta para algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência.
[4] No art. 212.º/2/a) do CIRE procede-se a uma delimitação negativa do universo da lista de créditos incluídos na lista: os créditos não afectados pelo plano, uma vez que não emitem direito de voto, devem ser deduzidos da lista de créditos incluídos na lista para efeitos de voto.
[5] Pelo que um Plano que introduza modificações de prazos de pagamento de impostos – por compreender a violação de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza – não deve ser homologado ou, pelo menos, como tem sido defendido pelo STJ, não deve ser homologado relativamente aos créditos da Fazenda Nacional.
[6] Cfr. v. g. Ac. do STJ de 13/01/2009, 04/06/2009 e 02/03/2010, in DGSI

[7] Passando o art. 30.º da LGT a ter a seguinte redacção:

Objecto da relação jurídica tributária

1 - Integram a relação jurídica tributária:

a) O crédito e a dívida tributários;

b) O direito a prestações acessórias de qualquer natureza e o correspondente dever ou sujeição;

c) O direito à dedução, reembolso ou restituição do imposto;

d) O direito a juros compensatórios;

e) O direito a juros indemnizatórios.

2 - O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.

3 - O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial.

Tendo o n.º 3 sido aditado pelo art. 123.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro.

Lei que também aditou, pelo art. 125.º, a seguinte disposição transitória.

O n.º 3 do artigo 30.º da LGT é aplicável, designadamente aos processos de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objecto de homologação, sem prejuízo da prevalência dos privilégios creditórios dos trabalhadores previstos no Código do Trabalho sobre quaisquer outros créditos.

[8] Como refere Catarina Serra, in Revista do Direito das Sociedades, pág. 96, o art. 30.º/3 da LGT “atingiu, de forma ligeiramente acintosa,” o argumento principal da jurisprudência: a cedência da lei geral (a lei tributária) perante a lei especial (a lei da insolvência).
[9] A sustentar a manutenção da posição que vinha fazendo vencimento no STJ, antes da Lei do Orçamento de 2011 – cfr., v. g., Ac. da Relação de Guimarães de 18/10/2011, In CJ, Tomo IV, ano 2011, pág. 279/82.

[10] É evidente, não se ignora, que o devedor fica colocado, perdoe-se-nos a expressão, entre “a espada e a parede”, ou seja, o respeito pela inflexibilidade da indisponibilidade dos créditos tributários leva a que os restantes créditos, em face do princípio da igualdade dos credores, tenham que ter uma proposta de pagamento robusta, o que, naturalmente, estando ele insolvente, dificultará/inviabilizará o cumprimento dum qualquer Plano de Insolvência, porém, a nosso ver e com todo o respeito por opinião diversa, tal “inviabilidade” tem que ser “debitada” ao modo inflexível como a regra da indisponibilidade dos créditos tributários vem sendo estabelecida/interpretada.