Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
681/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: PROMOÇÃO E PROTECÇÃO DE MENORES
ADOPÇÃO
CONDIÇÃO DO SEU DECRETAMENTO
Data do Acordão: 05/03/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU - 3ª JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 35º, AL. G), 38º-A E 62º-A DA LPJCP (LEI Nº 147/99, DE 1/9), E 1978º DO C. CIV. .
Sumário: 1) - A medida de promoção e protecção de confiança a pessoa seleccionada para adopção, prevista no art.35 alínea g) da LPJCP ( Lei nº147/99 de 1/9 ), foi introduzida pela Lei nº31/2003 de 22/8, sendo de aplicação imediata aos processos iniciados antes da sua entrada em vigor, porquanto visa estabelecer o vínculo de adopção, pressupondo, nos termos do art.38-A, que se verifique qualquer das situações previstas no art.1978 do Código Civil.
2) - É condição de decretamento da medida de confiança judicial que se demonstre não existir ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação ( requisito autónomo ), através da verificação objectiva ( independente de culpa da actuação dos pais ) de qualquer das situações descritas no nº1 do art.1978 do CC.

3) - Apesar de na alínea d) do nº1 do art.1978 ( na redacção da Lei nº31/2003 ) estar previsto apenas a incapacidade dos pais por doença mental, o espectro normativo, numa interpretação teleológica, abrange outras situações similares, como por exemplo, a toxicodependência ou o alcoolismo.

4) - O perigo exigido na alínea d) do nº1 do art.1978 do CC é aquele que se apresenta descrito no art.3º da LPCJP, conforme expressamente se remete no nº3 do art.1978 do CC, sem que pressuponha a efectiva lesão, bastando, assim, um perigo eminente ou provável.

5) - A medida de promoção e protecção de confiança a pessoa seleccionada para a adopção ou a instituição com vista a futura adopção ( arts.38-A e 62-A da LPCJP ), para além de afastar o perigo do menor, visa simultaneamente a “ confiança pré-adoptiva “, dispensando a acção prévia de confiança judicial destinada à adopção, significando que o instituto da adopção é agora cada vez mais orientado para protecção das crianças e dos jovens.

6) - Toda a intervenção deve ter em conta o “interesse superior da criança”, princípio consagrado no art.3º nº1 da Convenção Sobre os Direitos da Criança, que a Lei de Protecção das Crianças e Jovens em Perigo coloca à cabeça dos princípios orientadores ( alínea a) do art.4º ), e enquanto conceito jurídico indeterminado carece de preenchimento valorativo, cuja concretização deve ter por referência os princípios constitucionais, como o direito da criança à protecção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral ( art.69 nº1 da CRP ), reclamando uma análise sistémica e interdisciplinar da situação concreta de cada criança, na sua individualidade própria e envolvência externa.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I - RELATÓRIO

1.1. - O Ministério Público instaurou ( 30/3/00 ) no Tribunal de Família e Menores de Lisboa, ao abrigo do art.47 nº3 da OTM, processo tutelar a favor do menor A..., nascido em 23 de Janeiro de 2000, filho de B... e C..., porquanto estando a viver aos cuidados e guarda do pai, após o seu nascimento, e dado que a mãe tinha sido sujeita a internamento na Unidade de Psiquiatria do Hospital S. Teotónio, em Viseu, foi levado pelo pai para Lisboa, encontrando-se numa situação de perigo.
O Tribunal de Lisboa declarou-se territorialmente incompetente, por decisão transitada em julgado, remetendo o processo à Comarca de Viseu ( fls.206 ).
1.2. - Realizadas diligências instrutórias e debate judicial, o Tribunal Colectivo proferiu acórdão que decidiu:
a) - Aplicar ao menor, A..., ao abrigo do disposto nos artigos 35.º, n.º 1, alínea g), 38º, 38º-A, alínea b), da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, a medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista a futura adopção, ficando o menor colocado sob a guarda do CDSS de Viseu e, através deste, mantido aos cuidados e guarda do casal já seleccionado e com o qual o menor reside desde Maio de 2003.
b) - A Segurança Social deverá remeter relatórios semestrais de acompanhamento (artigo 62.º-A, n.º 3, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo).
c) - Manter como curador provisório o já nomeado nos autos.

1.3. - Inconformados, B... e C..., pais do menor, recorreram de agravo, formulando, em resumo, as seguintes conclusões:
1º) - Impugnam os factos provados constantes do acórdão sob os nºs 2, 3, 4, 6, 18, 19, 21, 23, 31, 33, 38, 39, 40, 41, 42, 43 e 44, que com base no depoimento das testemunhas que indicam, devem ser alterados para não provados.
2º) – Os fundamentos estão em clara oposição com a decisão.
3º) – A decisão não especifica os fundamentos de facto e de direito, limitando-se a uma mera adesão de factos alegados pelo Ministério Público e a invocar de forma genérica na motivação para documentos e testemunhos.
4º) – A motivação indicada para a formação da convicção do tribunal é merecedora de censura.
5º) – O tribunal limitou-se a uma simples adesão aos fundamentos alegados pelo Ministério Público, havendo falta de fundamentação, nos termos do art.158 do CPC.
6º) – Não se verificam os requisitos que permitam decretar a medida de confiança a instituição para futura adopção.
7º) – A sentença recorrida violou, por erro de interpretação, as normas dos arts.1978 do CC, 36 nº5 e 6 da CRP, 158, 659 nº2 e 3 e 668 nº1 b) e c) do CPC.
8º) – Não é justo para os pais do menor, e muito menos para este, que sendo todos vítimas do sistema da segurança social, do ostracismo social das delongas processuais, se separe uma família biológica só porque em devido tempo não foi dada uma oportunidade de se provar a estabilidade do menor no seio da família, violando-se o princípio constitucional da manutenção dos filhos, previsto no art.36 nº5 da CRP, pelo que deve ser revogada a sentença e decretar-se a entrega do menor aos pais biológicos.
Contra-alegou o Ministério Público, sustentando a manutenção do acórdão recorrido e a improcedência do recurso.



II - FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – Delimitação do objecto do recurso:
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes:
1ª) - A nulidade do acórdão;
2ª) - A impugnação da matéria de facto;
3ª) - A medida de protecção aplicada.

2.2. – Os factos provados ( descritos no acórdão ):
1) O menor A... nasceu no dia 23 de Janeiro de 2000, sendo filho de C... e de B....
2) À data da instauração deste processo – 30 de Março de 2000 -, o menor A... tinha sido levado pelo pai, sem o consentimento da mãe, para Lisboa, para casa da avó paterna.
3) Na ocasião referida em 2), o menor apresentava-se mal cuidado, em muito mau estado de higiene e carecendo de alimentação adequada, tendo sido encontrado numa alcofa sobre uma cama onde todo o tipo de objectos se amontoavam e apresentando-se alagado de suor e urina.
4) Na ocasião referida em 3), o pai do menor havia deixado o A... aos cuidados da avó paterna, que então era já pessoa de idade, com dificuldades de locomoção.
5) O pai do menor era toxicodependente.
6) A casa onde o menor se encontrava apresentava-se desorganizada e com falta de limpeza.
7) Nessa altura C... encontrava-se internada no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental de S. Teotónio, em Viseu, por sofrer de depressão psicótica pós-parto.
8) Em 30 de Março de 2000, foi proferida decisão a determinar a confiança provisória e urgente do menor à guarda da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, tendo o menor sido acolhido no Centro de Acolhimento de Santa Joana, em Lisboa.
9) Em 4 de Dezembro de 2000, foi decidido confiar provisoriamente o menor à guarda do CRSS de Viseu.
10) Em 9 de Janeiro de 2002, foi decidido confiar provisoriamente o menor aos cuidados do Centro de Acolhimento Temporário de Viseu.
11) Em 28 de Janeiro de 2003, foi proferida decisão que determinou a confiança do menor à guarda de pessoa seleccionada para adopção a indicar pelo CRSS.
12) Dessa decisão foi interposto recurso, tendo sido decidido pelo tribunal da Relação de Coimbra que os Juízes Criminais seriam incompetentes para decidir este tipo de processos, anulando-se determinados actos.
13) Na data referida em 11), os pais do menor viviam juntos num apartamento T 3, mobilado, onde existia um quarto para criança.
14) Na data referida em 11), o pai do menor era assistido no Centro de Atendimento de Toxicodependentes de Viseu, onde iniciou um tratamento de desintoxicação, que ainda hoje mantém, embora com doses mais reduzidas de medicação de substituição.
15) A mãe do menor continuava a receber apoio psiquiátrico e tratamento medicamentoso, no Departamento de Psiquiatria do S. Teotónio, de Viseu.
16) O internamento da mãe do menor na sequência do nascimento do A..., foi o terceiro por motivos de depressão.
17) O primeiro processo depressivo ocorreu aos 16 anos de idade.
18) O pai e a madrasta da C... recusaram-se a assumir os cuidados do menor A..., de forma definitiva.
19) Até à data referida em 11), as visitas dos pais ao menor não eram gratificantes para este, já que este recusava a interacção com eles.
20) O menor estava institucionalizado desde os dois meses de idade, encontrando-se bem integrado no Centro de Acolhimento Temporário de Viseu, mas com claros problemas ao nível de linguagem e na relação com os outros – era uma criança retraída em termos afectivos, não reagia favoravelmente às solicitações afectivas dos adultos, revelava atraso na expressão verbal, não reconhecia os progenitores como figuras significativas, evidenciando alguma rejeição quanto à mãe.
21) Enquanto esteve institucionalizado, o menor reagia mal às visitas da mãe, rejeitando todas as tentativas de interacção daquela e, por vezes, chorava, não tratando os pais como “pai” e “mãe”, revelando grandes sinais de carência afectiva.
22) Durante esse período, era visível o quadro de grave sofrimento psico-afectivo precoce do menor.
23) Há receio de que, por via da patologia de que padece a mãe do menor, esta não consiga dar ao menor o acompanhamento de que este necessita.
24) O menor foi entregue, em 16 de Maio de 2003, à guarda de um casal seleccionado para adopção, em virtude de decisão proferida nos autos.
25) Até essa data, o menor apresentava grave dificuldade da relação com os adultos, chegando a ser agressivo na interacção com pares e adultos, não reagia favoravelmente às solicitações afectivas do adulto, não apreciando o contacto físico, apresentava variações de humor súbitas e frequentes.
26) O menor tinha um sono agitado e apresentava um atraso no desenvolvimento do controlo esfincteriano, verbalizando um número muito reduzido de palavras.
27) O menor reagiu inicialmente de forma indiferente à nova família.
28) Passado pouco tempo, o menor apresentava-se muito diferente, apelidava “pai” e “mãe” às pessoas às quais foi confiado e estabeleceu com as mesmas uma relação de pais/filho; reagia com grande ausência à ausência da “mãe”, com quem estabeleceu forte ligação afectiva; estabeleceu relação com todos os elementos da família alargada, a quem trata por “avós” e “primos”; não obstante a adaptação inicial ter sido difícil, está integrado no jardim de infância e é ali descrito como uma criança meiga, cooperante e prestável; apresentava inicialmente algumas limitações ao nível da expressão, que entretanto ultrapassou.
29) O menor regista mudanças muito positivas desde que se encontra aos cuidados do referido casal, tendo conseguido ultrapassar o atraso de desenvolvimento global que anteriormente apresentava e colmatar a perturbação emocional de que era portador.
30) É visível a dificuldade do menor em separar-se dos “pais”, sobretudo da “mãe”.
31) O menor nunca falou dos pais biológicos, sendo certo que nunca os identificou ou reconheceu como tal.
32) Os exames médicos realizados na pessoa do progenitor revelam que este possui um nível intelectual superior à média e traços de personalidade de estabilidade emocional, com níveis de ansiedade acima da média, sem atingir níveis patológicos, e que sofre de um quadro clínico de toxicodependência por opiáceos, em tratamento há mais de dois anos e não apresenta patologia psiquiátrica que o incapacite para o exercício da função parental.
33) A progenitora do menor reconhece da alguma forma a sua incapacidade ou receio em assumir a educação do menor, ao requerer a entrega do menor à sua guarda e protecção, ainda que sob uma medida de vigilância ou protecção.
34) Os exames médicos realizados na pessoa da progenitora revelam que esta tem agora capacidade intelectual e funcionamento cognitivo dento de parâmetros de normalidade, estando a sua personalidade assente em traços de estabilidade emocional e não tendo sido detectada sintomatologia patológica.
35) Contudo, o exame às faculdades mentais da progenitora revelou que esta sofre de um quadro de doença afectiva bipolar, com início na adolescência e várias descompensações ao longo da vida, sendo a mais grave no pós-parto sob a forma de psicose pós-parto.
36) O menor estabeleceu vínculos afectivos muito fortes com a família que o acolheu, tratando como “pais” o casal com o qual reside e sendo pelo mesmo tratado como se filho fosse.
37) Com a sua saída da instituição para uma família, o menor estabeleceu pela primeira vez na sua vida laços afectivos estáveis, assistindo-se a uma melhoria considerável do quadro anterior e uma remissão do quadro patológico apresentado anteriormente.
38) Os pais do A... têm consciência de que não reúnem para já condições para assumir o menor, visando poder visitar o filho regularmente, de forma a manterem laços com o mesmo até se reorganizarem.
39) Presentemente, os pais do menor encontram-se desempregados, estando o progenitor a tirar um curso de formação profissional.
40) Desde a data referida em 11) até Janeiro de 2004, os progenitores não procuraram saber do menor, não se inteirando do seu paradeiro ou do seu estado de saúde física ou psíquica.
41) O pai do menor ausentou-se para o estrangeiro, não fornecendo ao processo a sua nova morada, manifestando total indiferença às diligências em curso nos presentes autos.
42) O menor não conhece os pais, não os identifica como tal, não fala deles nem sequer tem dos mesmos qualquer referência.
43) Os pais do menor não se dirigiram ao ISSS para saber do estado ou desenvolvimento do menor.
44) Só agora, e de forma incipiente, começam os pais do menor a tentar reunir condições para ter o menor na sua companhia.

2.3. – 1ª QUESTÃO / A nulidade do acórdão:
Os agravantes arguíram a nulidade do acórdão por falta de fundamentação ( art.668 nº1 b) do CPC ).
Conforme orientação jurisprudencial e doutrinária, só releva, para o efeito, a falta absoluta de fundamentação de facto ou de direito, e já não a fundamentação deficiente, medíocre ou errada, que apenas afecta o valor doutrinal da sentença ou despacho
O processo judicial de promoção e protecção de menores é de jurisdição voluntária, sendo que a decisão deve conter a fundamentação que consiste na enumeração dos factos provados e não provados, bem como na sua valoração e exposição das razões que justificam o arquivamento ou a aplicação de uma medida de promoção e protecção, terminando pelo dispositivo ( arts.100 e 126 da Lei nº147/99 de 1/9 ).
O acórdão recorrido apresenta-se estruturado com relatório, fundamentação de facto, descrevendo os factos provados e não provados, com uma exposição da respectiva motivação, e fundamentação de direito, indicando-se as disposições legais aplicáveis.
Constata-se, sem grande esforço, que o acórdão não enferma de erro de construção ou actividade, visto conter a fundamentação de facto e de direito.
A nulidade cominada no art.668 nº1 c) do CPC ( fundamentos em oposição com a decisão ) verifica-se quando os fundamentos de facto e de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão.
A contradição lógica entre a fundamentação e a decisão, corresponde, em certa medida, à contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora da ineptidão da petição inicial ( art.193 nº2 b) CPC ).
Trata-se de um vício estrutural da sentença, por contradição entre as suas premissas, de facto e de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria seguir um resultado diverso.
Porém, esta nulidade não abrange o erro de julgamento, seja de facto ou de direito, designadamente a não conformidade da sentença com o direito substantivo ( cf., por ex., Ac STJ de 21/5/98, C.J. ano VI, tomo II, pág.95 ).
Sucede que para justificar a nulidade os agravantes invocaram não só o erro de facto, como também o erro de direito, ou seja, a não conformidade da sentença com as normas substantivas, o que desde logo afasta a referido vício formal.
Improcedem as arguidas nulidades do acórdão.

2.4. - 2ª QUESTÃO / A impugnação da matéria de facto:
2.4.1. – Considerações gerais:
O poder de cognição do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto.
Desde logo, a possibilidade de conhecimento está confinada aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados, com os pressupostos adrede estatuídos no art.690-A nº1 e 2 do CPC.
Por outro lado, o controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar ( até pela própria natureza das coisas ) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte, por isso, o princípio da livre apreciação da prova ( art.655 do CPC ) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervém apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também factores não materializados, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.
Na verdade, o depoimento oral de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, as suas reacções imediatas, o sentido dado à palavra e à frase, o contexto em que é prestado o depoimento, o ambiente gerando em torno da testemunha, o modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo contribuindo para a formação da convicção do julgador.
Daí que em termos semióticos, a comunicação vá para além das palavras e mesmo estas devem ser valoradas no contexto da mensagem em que se integram, pois como informa LAIR RIBEIRO, as pesquisas neurolinguísticas numa situação de comunicação apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra sendo que o tom de voz e a fisiologia, que é a postura corporal dos interlocutores, representam, respectivamente, 38% e 55% desse poder ( "Comunicação Global", Lisboa, 1998, pág. 14).
Por isso, já ENRICO ALTAVILLA escrevia que " o interrogatório como qualquer testemunho, está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras" (" Psicologia Judiciária", vol. II, Coimbra, 3ª ed., pág. 12 ).
Contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que se torna necessário é que no seu livre exercício da convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção do facto como provado ou não provado, possibilitando, assim, um controle sobre a racionalidade da própria decisão ( cf. MICHEL TARUFFO, “La Prueba De Los Hechos”, Editorial Trotta, 2002, pág.435 e segs. ).
De resto, a lei determina a exigência de objectivação, através da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador ( art.653 nº2 do CPC ).
Nesta perspectiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.
Conforme orientação jurisprudencial prevalecente, o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância deve restringir aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respectiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, pelas razões já enunciadas, está em melhor posição.

2.4.2. – O caso concreto:
(…)

2.5. – 3ª QUESTÃO / A medida de protecção aplicada:
Ao menor A... foi aplicada a medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista a futura adopção, ficando o menor colocado sob a guarda do CDSS de Viseu e, através deste, mantido aos cuidados e guarda do casal já seleccionado e com o qual o menor reside desde Maio de 2003 ( arts. 35 nº1 g), 38, 38-A b) da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo ( Lei nº147/99, com as alterações da Lei nº31/2003 de 22/8 ).
Consideram os agravantes ( pais do menor ) não se verificarem os requisitos legais, tendo sido violado o direito fundamental, previsto no art.36 nº5 da CRP.
Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos e não podem deles serem separados, salvo quando não cumpram os deveres fundamentais para com eles ( arts.36 nº5 e 6 da CRP ).
O poder paternal apresenta-se como um efeito da filiação ( art.1877 e segs. do CC ), sendo concebido como um conjunto de poderes-deveres que competem aos pais relativamente à pessoa e bens dos filhos menores não emancipados, e que na moderna terminologia se designa por “ responsabilidade parental “.
Não se trata de um puro direito subjectivo, visto que o seu exercício não está dependente da livre vontade do seu titular, mas antes de um poder funcional, ou seja, de “um conjunto de faculdades de conteúdo altruísta que tem de ser exercido de forma vinculada, de harmonia com a função do direito, consubstanciada no objectivo primacial de protecção e promoção dos interesses do filho, com vista ao seu desenvolvimento integral “ ( cf. ARMANDO LEANDRO, Poder Paternal, Temas de Direito da Família, 1986, pág.119 ).
Quando os pais não cumprem com tais deveres fundamentais, a ordem jurídica confere às crianças, enquanto sujeitas de direito, mecanismos de protecção, podendo os filhos deles serem separados, como determina o nº6 do art.36 da CRP.
Na verdade, as crianças têm o direito fundamental à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral ( art.69 nº1 da CRP ).
Também a Convenção Sobre os Direitos da Criança ( adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20/11/89, assinada por Portugal em 26/1/90, aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº20/90 de 12/9 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº49/90, ambos publicados publicada no DR I Série nº211/90, de 12/10/90 ) impõe que os Estados tomem medidas de protecção das crianças contra todas as formas de violência, quer na família, quer fora dela (art. 19 º nº 1).
A Lei de Protecção das Crianças e Jovens em Perigo ( Lei nº147/99 de 1/9 ), assume um novo paradigma no direito dos menores, cujo art.35 prevê um conjunto de medidas de promoção e protecção, com o objectivo, expressamente assinalado no art.34, de afastar o perigo em que estes se encontram ( alínea a/ ), proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral( alínea b/), garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso ( alínea c/ ).
A medida decretada de confiança a pessoa seleccionada para adopção, prevista no art.35 alínea g) da LPJCP, foi introduzida pela Lei nº31/2003 de 22/8 ( de aplicação imediata aos processos iniciados antes da sua entrada em vigor, porquanto visa estabelecer o vínculo de adopção ) pressupõe, nos termos do art.38-A, que se verifique qualquer das situações previstas no art.1978 do Código Civil.
O art.1978 ( na redacção da Lei nº31/2003 ), estatui no nº1 que “ com vista a futura adopção, o tribunal pode confiar o menor a casal, a pessoa singular ou a instituição quando existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação, pela verificação objectiva de qualquer das seguintes situações”, entre as quais se destaca a alínea d) - “ Se os pais, por acção ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento do menor “.
Apesar de apenas se prever a incapacidade dos pais por doença mental, o espectro normativo, numa interpretação teleológica, abrange outras situações similares, como por exemplo, a toxicodependência ou o alcoolismo.
Refira-se que a “ não existência ou sério comprometimento dos vínculos afectivos próprios da filiação “, postulado no corpo do nº1 do art.1978 do CC é um requisito autónomo comum a todas as situações tipificadas
Por isso é condição de decretamento da medida de confiança judicial que se demonstre não existir ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação, através da verificação objectiva ( independente de culpa da actuação dos pais ) de qualquer das situações descritas no nº1 do art.1978 do CC.
O perigo exigido na alínea d) do nº1 do art.1978 do CC é aquele que se apresenta descrito no art.3º da LPCJP, conforme expressamente se remete no nº3 do art.1978 do CC, sem que pressuponha a efectiva lesão, bastando, assim, um perigo eminente ou provável.
Dispõe o nº1 do art.3º da LPCJP que a intervenção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo tem lugar “ quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de acção ou omissão de terceiros ou da própria criança ou jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo “.
E o nº2 exemplifica situações de perigo, designadamente quando a criança “não recebe os cuidados ou afeição adequados à sua idade e situação pessoal” ou “ está sujeita, de forma directa ou indirecta, a comportamentos que afectem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional “.
Neste contexto, a medida de promoção e protecção de confiança a pessoa seleccionada para a adopção ou a instituição com vista a futura adopção ( arts.38-A e 62-A da LPCJP ), para além de afastar o perigo do menor, visa simultaneamente a “ confiança pré-adoptiva “, dispensando a acção prévia de confiança judicial destinada à adopção, significando que o instituto da adopção é agora cada vez mais orientado para protecção das crianças e dos jovens.
Por outro lado, toda a intervenção deve ter em conta o superior interesse da criança, princípio consagrado no art.3º nº1 da Convenção Sobre os Direitos da Criança - “ Todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança “.
E a Lei de Protecção das Crianças e Jovens em Perigo coloca à cabeça dos princípios orientadores da intervenção, na alínea a) do art.4º, o “ interesse superior da criança ou do jovem”, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto.
Também o nº2 do art.1978 do CC estatui que na verificação das situações previstas no número anterior o tribunal deve atender prioritariamente aos direitos e interesses do menor.
O “ interesse superior da criança “, enquanto conceito jurídico indeterminado carece de preenchimento valorativo, cuja concretização deve ter por referência os princípios constitucionais, como o direito da criança à protecção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral ( art.69 nº1 da CRP ), reclamando uma análise sistémica e interdisciplinar da situação concreta de cada criança, na sua individualidade própria e envolvência.
Como acentuam RUI EPIFÂNIO/ANTÓNIO FARINHA ( Organização Tutelar de Menores, 1987, pág.326 ), “ trata-se afinal de uma noção cultural intimamente ligada a um sistema de referências vigente em cada momento, em cada sociedade, sobre a pessoa do menor, sobre as suas necessidades, as condições adequadas ao seu bom desenvolvimento e ao seu bem estar material e moral “.
Perante a factualidade apurada, é por demais evidente que aquando da aplicação da medida provisória de acolhimento em instituição, o menor A... se encontrava em situação de perigo, na acepção já definida, devido à incapacidade dos pais, motivada pela toxicodependência do pai e aos problemas do foro psiquiátrico da mãe ( cf. pontos 2) a 7) dos factos provados ).
Daí a necessidade imperiosa da intervenção precoce, com vista a salvaguardar o bem estar e o normal desenvolvimento do menor, tendo estado institucionalizado desde os dois meses de idade até 16 de Maio de 2003, altura em que foi colocado na família seleccionada para adopção, em consequência da decisão proferida em 28/1/03.
Apesar de nessa altura os pais viverem juntos numa casa mobilada com um quarto para o menor, a verdade é que o pai era assistido no CAT de Viseu, iniciando um tratamento de desintoxicação, e a mãe continuava a receber tratamento psiquiátrico e medicamentoso no Departamento de Psiquiatria do Hospital de S. Teotónio, em Viseu, sendo certo que não foi possível o recurso à família alargada, visto que o pai e a madrasta da C... se recusaram a assumir os cuidados do menor A..., de forma definitiva.
Assume particular relevância o facto do menor A..., desde que foi confiado aos cuidados da família seleccionada para adopção, em 16 de Maio de 2003, registar mudanças significativas, estabelecendo pela primeira vez na sua vida laços afectivos estáveis, assistindo-se a uma melhoria considerável do quadro anterior e uma remissão do quadro patológico apresentado anteriormente, pois criaram-se laços afectivos muito fortes, trata como pais o casal que o acolheu, tem dificuldade em separar-se deles, sobretudo da mãe, sendo certo que nunca falou dos pais biológicos, nem os identificou ou reconheceu como tal.
Sendo assim, o menor está hoje plenamente integrado na nova família, base indispensável para o seu desenvolvimento harmonioso, pois é nela que se situa o seu o locus de afectividade.
Por isso, a revogação da medida decretada implicaria “consequências graves ao nível do seu desenvolvimento global”, conforme consta do relatório de exame médico legal de 24/5/04 ( fls.652 a 654 ), o que por si só justifica a sua manutenção, determinada pelo superior interesse do JA....
Por outro lado, a mãe do menor reconhece de alguma forma a sua incapacidade ou receio em assumir a educação do filho ao requerer a entrega do menor à sua guarda e protecção, ainda que sob uma medida de vigilância ou protecção, a que porventura não será alheia a patologia que sofre, doença afectiva bipolar, desde o início da adolescência e com várias descompensações ao longo da vida.
Acresce que os pais do A... têm consciência de que não reúnem para já condições para assumir o menor, visando poder visitar o filho regularmente, de forma a manterem laços com o mesmo até se reorganizarem.
Só que este propósito não se coaduna com o superior interesse do menor A..., dada a plena integração na família seleccionada para a adopção e a assumida “ vinculação afectiva “.
Como se advertiu no acórdão recorrido, não está em causa o direito dos pais a terem de novo consigo o menor, mas antes definir o que é melhor para ele, numa perspectiva de são desenvolvimento físico, psíquico e afectivo.
Perante os elementos factuais disponíveis, mostram-se seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação biológica, em consequência das condições de vida dos pais do menor e da situação de perigo inicialmente criada, verificando-se, assim, os requisitos legais para a medida decretada ( arts.35 g), 38-A da LPCJP e art.1978 nº1 d) e nº2 e 3 do CC ), revelando-se proporcionada e adequada, atendendo prioritariamente aos superiores interesses do menor A..., conforme se justificou no acórdão recorrido.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar improcedente o agravo e confirmar o acórdão recorrido.
2)
Condenar os agravantes nas custas, sem prejuízo do apoio judiciário.
3)
Remunerar a Ex.ma advogada, patrona oficiosa dos agravantes, com os honorários que se fixam em 4,00 UR ( Portaria nº1386/04 de 10/11).
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Coimbra, 3 de Maio de 2006.