Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
116/15.9GTLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO LIMA
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
DECLARAÇÃO AMIGÁVEL DE ACIDENTE RODOVIÁRIO
FALSAS DECLARAÇÕES
TIPO OBJECTIVO
OUTRA QUALIDADE
PERDA DE VANTAGENS DE FACTO ILÍCITO TÍPICO
NATUREZA JURÍDICA
INCREMENTO PATRIMONIAL EFECTIVO
Data do Acordão: 01/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA -J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 110.º [REDACÇÃO DA LEI 32/2010, DE 02/09], 255.º, AL. A), 256.º E 348.º-A, DO CP
Sumário: I – A declaração amigável de acidente rodoviário é uma mera declaração dirigida às seguradoras pelos intervenientes no sinistro, mediante a qual lhes participam o evento e as características dele, não se destinando, logo à partida, de modo algum, a provar, nem a terceiros nem àquelas entidades, os termos e condições da produção do acidente.

II – Deste modo, o preenchimento do crime de falsificação de documento tem de afastar-se, logo no plano objectivo, porque a declaração corporizada no escrito em causa não corresponde ao conceito legal de documento, por ser inidóneo a provar facto juridicamente relevante.

III – A referência normativa “outra qualidade” integrante do tipo de crime de falsas declarações compreende, para além de dados como a filiação, a naturalidade, a nacionalidade, a data de nascimento, a profissão, a residência e o local de trabalho ou similares, outros elementos identificativos a que a lei atribui efeitos jurídicos, nomeadamente cargos, funções, títulos, categorias ou meras condições como a de proprietário, de possuidor, representante legal ou voluntário e a de condutor de um veículo.

IV – O arguido, ao declarar, com falsidade, a órgão de polícia criminal, sobre a identidade de quem conduzia um veículo automóvel interveniente em acidente de viação, afirmando ser terceira pessoa quando esse acto era executado pelo próprio, incorreu, como autor material, na prática do crime p. e p. no artigo 348.º-A do CP.

V – A perda de vantagens de facto ilícito típico não é uma pena acessória, mas uma medida sancionatória análoga à medida de segurança.

VI – A noção de vantagem a que alude o art. 111.º, n.ºs 2 e 4, do CP (redacção da Lei 32/2010, de 02/09), tendo o sentido de um incremento patrimonial efectivo, envolve duas implicações: (i) que seja tomado em conta o património do agente do crime; e (ii) que haja um real aumento desse património.

VI – Assim, a perda a favor do Estado prevista naquela norma só é juridicamente permitida quanto tenha havido em sentido próprio uma vantagem e, nessa medida, não só exista um mínimo de utilidade nessa perda, como, sobretudo, não resultem prejudicados os direitos do ofendido.

VII – Quando o agente (ou terceiro beneficiado) vê o seu património incrementado apenas com o valor subtraído à vítima e é ou possa vir a ser condenado, a título de indemnização civil, a restituir-lho, não existe (não sobra) qualquer vantagem.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

1. No Juízo Local Criminal ... (J...), do Tribunal Judicial da Comarca ..., foi a 20/06/2022 e em processo comum com intervenção de juiz singular proferida sentença em cujos termos os arguidos

AA, solteiro, militar da GNR, natural do ..., nascido a .../.../1978, filho de BB e de CC, residente na Rua ..., ..., ..., ...,

e

DD, solteiro, director de obra, natural de ..., nascido a .../.../1978, filho de EE e de FF, residente na Urbanização ..., ...,

Foram condenados:

a) O arguido AA: como coautor de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 1, do Código Penal (CP), na pena de nove meses de prisão; como coautor de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, al. d), do CP, na pena de seis meses de prisão; como autor de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348.º-A, n.º 1, do CP, na pena de cinco meses de prisão; como coautor de um crime de abuso de poder, p. e p. pelos art. 28.º, n.º 1, 382.º e 386.º, n.º 1, al. d), do CP, na pena de doze meses de prisão; e em cúmulo jurídico dessas penas, na pena única do concurso de vinte meses de prisão, cuja execução todavia ficou suspensa pelo período de dois anos, com sujeição a regime de prova.

b) O arguido DD: como coautor de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 1, do Código Penal (CP), na pena de doze meses de prisão; como coautor de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, al. d), do CP, na pena de seis meses de prisão; como coautor de um crime de abuso de poder, p. e p. pelos art. 28.º, n.º 1, 382.º e 386.º, n.º 1, al. d), do CP, na pena de seis meses de prisão; e em cúmulo jurídico dessas penas, na pena única do concurso de dezasseis meses de prisão, cuja execução todavia ficou suspensa pelo período de dois anos, com sujeição a regime de prova.

c) Enfim, ambos os arguidos foram ainda e pela mesma sentença solidariamente condenados, nos termos do art. 111.º, n.º 4, do CP, a pagar ao Estado a importância de 14.833,51 €.

2. Os arguidos, em peça conjunta, interpuseram ambos contra a sentença recurso, impugnando a decisão em matéria de facto e dessa impugnação tirando a jusante a sua absolvição dos crimes por que foram condenados, além disso e em qualquer caso (mesmo na hipótese de manter-se a decisão de facto), pugnando pelo não preenchimento dos crimes de falsificação de documentos, de falsas declarações e de abuso de poder), e por fim sustentando que ainda no caso de manterem-se as condenações ou algumas delas, não ser de todo o modo devida a declaração de perda de vantagens efectivada pela condenação em entrega de quantia ao estado. Das suas motivações extraem as seguintes conclusões:

« I – Os factos 1, 3 a 5 e 25 do rol de factos provados devem todos ser julgados como não provados em decorrência da sua reapreciação e da renovação dos meios probatórios seguintes: Informação Sumária do Acidente de Viação, de fls. 15, participação do acidente de viação de fls. 16 a 20, e no relatório de averiguação de fls. 357 e ss., parecer técnico emitido pelo Laboratório de Polícia Científica de 07/02/2022, depoimento do militar da Guarda Nacional Republicana GG (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal, 20220324152032_4028321_2870960, de 00:05:54s a 00:06:27s – cfr. acta de audiência de discussão e julgamento de 24/03/2022), depoimento do militar da Guarda Nacional Republicana HH, 20220324141806_4028321_2870960, de 00:22:06s a 00:22:23s – cfr. acta de audiência de discussão e julgamento de 24/03/2022, depoimento da testemunha II, 20220401101905_4028321_2870960, de 00:13:07s a 00:13:11s e de 00:16:45s a 00:17:20s – cfr. acta de audiência de discussão e julgamento de 24/03/2022), depoimento da testemunha JJ, 20220324102316_4028321_2870960, de 00:07:25 a 00:08:01 – cfr. acta de 24/03/2022, depoimento da testemunha KK, 20220324164442_4028321_2870960, de 00:18:00 a 00:20:26 – cfr. acta de 24/03/2022, e fotografias de fls. 33 e 34 e 134 a 136. Impõe-se que aos mesmos seja conferida a redacção seguinte:

1. No dia 16 de Junho de 2015, entre as 02:00 horas e as 02:50 horas, na Estrada ..., em ..., ..., o arguido AA conduziu o veículo ligeiro de passageiros, da marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-PM- .., propriedade de DD, no sentido ...-....

3. Naquele local, data e horas, o arguido AA despistou-se, sem ter feito qualquer travagem, conduzindo aquela sua viatura sobre a guarda de segurança que se encontrava paralela à via e deslizando sobre ela até cair num aqueduto ali existente.

4. Em resultado desse despiste, o arguido AA bateu com a cabeça no vidro do párabrisas do lado do condutor e o arguido DD bateu com a cabeça no vidro do párabrisas do lado do passageiro, fracturando os ossos próprios do nariz, com desvio, sofrendo escoriação malar, e bateu com o peito no volante, fracturando o esterno.

5. Em resultado dessas lesões, o arguido DD sangrou abundantemente e produziu: manchas passivas de sangue na ilharga inferior da porta do condutor; um fluxo de sangue na face inferior da porta do condutor desde a sua zona superior, junto aos botões de trancar/destrancar as portas, que escorreu perpendicularmente ao solo em direcção à bolsa interior da porta; um padrão de sangue no vidro da porta do condutor provocado pelo acumular de sangue na zona interior da porta onde o vidro sobe e desde, a qual é coincidente com a zona onde inicia o padrão de fluxo referido.

25. O que correspondia à verdade, porquanto o condutor do indicado veículo era o arguido AA.

II – O facto 9 deve ser julgado como não provado, porquanto o mesmo não encontra respaldo na prova produzida e o tribunal não despendeu nenhuma fundamentação própria para o mesmo.

III – Os factos 10, 11, 15 e 17, do rol de factos provados devem todos ser julgados como não provados em decorrência da sua reapreciação e da renovação dos meios probatórios seguintes: Portaria 340-A/2007 de 30 de Março, depoimento da testemunha HH, 20220324141806_4028321_2870960, de 00:02:58s a 00:03:15s – cfr. acta de audiência de discussão e julgamento de 24/03/2022, depoimento da testemunha LL, 0220324112535_4028321_2870960 de 00.06.00s a 00.06.02s, depoimento da testemunha MM, 20220324152731_4028321_2870960, de 00:02:42s a 00:02:58s, depoimento da testemunha LL, à data dos factos comandante dos bombeiros, 20220401094855_4028321_2870960, de 00:09:05s a 00:10:40s e de 00:14:15s a 00:14:29s – cfr. acta de 01/04/2022. Impõe-se que seja conferida àqueles a redacção seguinte:

10. Para tanto, o arguido AA telefonou para a sala de situação da GNR.

11. O arguido DD, bombeiro voluntário na corporação da ..., através do seu número de telemóvel ...86, contactou telefonicamente KK, que sabia ser, naquela data, Chefe de Piquete dos Bombeiros Voluntários da ..., e pediu-lhe que não accionasse meios de socorro para aquele local, caso aqueles Bombeiros viessem a ser contactados para tanto.

15. Por sua vez, às 02:49 horas, o arguido AA, comunicou, através do seu telefone n.º ...46, o acidente à Sala de Situação da GNR, que accionou a patrulha composta pelos militares NN e OO, para o local do acidente.

17. O arguido AA contactou novamente a Sala de Situação da GNR, pedindo para falar com o Cabo MM a exercer funções de Graduado de Serviço, e declarou-lhe que tinha tido um acidente automóvel e que a patrulha da GNR se recusava a tomar conta da ocorrência.

IV – Os factos 20, 22, 23, e 29 a 34 do rol de factos provados devem todos ser julgados como não provados, seja por total ausência de prova, seja ante a procedência do recurso quanto aos factos 1., 3., 4., 5. e 25., conferindo-se àqueles a redacção seguinte:

20. O arguido AA apresentou-se perante o militar da GNR HH, o qual integrava a patrulha referida em 18. e que tomou conta da ocorrência, como o condutor do veículo supra identificado, interveniente no acidente de viação descrito, fornecendo os seus elementos de identificação, relatando o modo como o acidente ocorreu e submetendo-se aos testes de alcoolémia e de despistagem de

substâncias psicotrópicas.

22. Na mesma data, foi entregue na Lusitânia – Companhia de Seguros, SA a Declaração Amigável de Acidente Automóvel assinada pelos arguidos.

23. Da Declaração Amigável ficou a constar que o condutor do indicado veículo era o AA e que o seu ocupante era DD.

25. O que correspondia à verdade, porquanto o condutor do indicado veículo era o arguido AA.

29. Os arguidos não actuaram em comunhão de esforços e de intenções, em execução do plano previamente traçado por ambos.

30. Os arguidos não delinearam nenhum plano com o propósito de enganar a L..., SA.

31. Os arguidos não quiserem causar prejuízo patrimonial àquela Companhia de Seguros.

32. O arguido AA não agiu em comunhão de esforços e de intentos, na execução de um plano previamente traçado, com o arguido DD, ao ligar directamente para a Sala de Situação da GNR de ..., ao invés de accionar o número de emergência nacional ou o do CDOS e identificando-se como militar da GNR do Destacamento de Trânsito de ..., levando a que dessa forma se deslocasse ao local a GNR daquele Destacamento, para tomar conta da ocorrência, em vez da PSP, a qual seria a competente para efectuar o registo do acidente.

33. O arguido AA desconhecia que, dessa forma, abusava dos poderes inerentes à sua qualidade de militar da GNR e às funções que exercia no Destacamento de Trânsito ....

V – A sentença em apreço é claramente violadora do princípio do in dubio pro reo previsto no art. 32.º da Constituição da República Portuguesa (CR).

VI – Da renovação dos indicados meios de probatórios e da reapreciação da factualidade objecto de recurso, logo resultará demonstrado que não se verificam os elementos objectivos dos crimes de burla qualificada, falsificação de documento, falsas declarações (no que toca em exclusivo ao arguido AA) e abuso de poder, o que sempre determinará a procedência do recurso e a absolvição dos Recorrentes.

VII – Relativamente ao crime de abuso de poder, entendem os recorrentes, ressalvado o devido respeito, atenta a factualidade que o tribunal deu erradamente como provada, não se verifica o mau uso ou uso desviante de poderes funcionais, nem tão pouco a determinação por uma intenção específica enquanto fim ou motivo, condição essencial do preenchimento do próprio tipo legal. Conforme referido pela testemunha MM tratou-se de uma situação perfeitamente normal para um militar. Não se encontra, pois, preenchido o tipo objectivo do crime, impondo-se a absolvição dos recorrentes. Nesse sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27/11/2013.

VIII – Foi ainda condenado o arguido AA pelo crime de falsas declarações e ambos os arguidos pelo crime de falsificação de documento. In casu, está em causa um acontecimento concreto da vida, balizado com precisão nas circunstâncias de tempo, de modo e de espaço, que não por referência ao estado, identidade ou qualidades pessoais, diverso da qualidade (função, condição, título ou categoria) a que alude o art. 348-A.° do CP. A declaração de uma errada identidade do sujeito interveniente ou actuante em determinado facto ou episódio da vida, não traduz a assunção de uma qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos e, por conseguinte, não preenche os elementos típicos do crime de falsas declarações. Neste sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/01/2017, disponível em www.dgsi.pt.

IX – Igualmente os factos julgados provados não preenchem o crime de falsificação de documento, pelo qual os arguidos foram condenados, previsto na al. d) do n.º 1 do artigo 356.° do CP. A companhia de seguros L..., SA realizou, de forma autónoma e independente, o seu próprio processo de averiguações — cfr. fotografias de fls. 128 a 144 e relatório de peritagem final de fls. 145 a 152. Logo, as declarações dos arguidos que ficaram a constar em participação automóvel e não em auto não foram aptas a criar, de forma automática e directa, determinados efeitos que se imponham de forma inelutável a qualquer parte. O pretenso comportamento dos arguidos não assume a juridicidade típica e relevante para efeitos do tipo legal do crime de falsificação, na exacta medida em que, por si só e autonomamente, não constitui, modifica ou extingue qualquer relação jurídica, uma vez que não é idónea a provar facto juridicamente relevante. Nesse sentido, escreve Helena Moniz, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, p. 678. Neste sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02/03/2011, disponível em www.dgsi.pt.

XI – Sem conceder, independentemente da reapreciação positiva ou manutenção do julgado, deve sempre ser julgada improcedente a perda de vantagens decretada no valor de 14.833,51 €, por padecer de falta de fundamento legal e por violação do disposto no art. 111.º, n.º 4, do CP.

XII – A Seguradora L..., SA – Companhia de Seguros, não deduziu pedido civil nos presentes autos, o que não é impeditivo que venha a propor acção civil autónoma quanto a esta mesma matéria – nesse sentido vide pedido de cópia do “Despacho de Sentença” de 20/07/2022, a que foi atribuída a referência citius 8905143 -, o que significaria uma dupla condenação para os Recorrentes: (i) a pagar ao Estado; (ii) a

pagar à Seguradora em sede civil, razão pela qual se impõe que o acórdão a proferir defina a compatibilidade entre os dois institutos.

XIII - A manutenção do julgado no quadro factual conhecido e descrito viola o disposto no n.º 1 do art. 62.º da CR lhe reserva.

XIV – Foram violadas, por incorrecta interpretação e aplicação do direito, designadamente, as normas constantes dos art. 217.º, n.º 1, 218, n.º 1, 256.º, n.º 1, al. d), 348-A, n.º 1, 28, n.º 1, 382.º e 386.º, todos do CP, e n.º 1 do art. 62.º, da CR.»

3. Admitido o recurso, respondeu-lhe o MP, pugnando pela inteira correcção do decidido em matéria de facto e assim pela improcedência do recurso, com a consequente manutenção da condenação dos recorrentes pelos crimes e nos termos na sentença referidos, cujo preenchimento integral afirma, dessa resposta igualmente extraindo conclusões que são as seguintes:

«I – Os factos dados como provados na decisão recorrida devem ser mantidos.

II – Os arguidos praticaram os crimes pelos quais foram condenados e a sentença em apreço não violou o princípio in dubio pro reo, previsto no art. 32.º da CR.

II – A sentença sub judice não violou qualquer disposição legal, pelo que deve ser mantida na íntegra.»

4. Subidos os autos, o digno procurador geral adjunto emitiu parecer em que acompanha os argumentos da resposta do MP em primeira instância, desenvolvendo-os, a final igualmente concluindo pela integral improcedência do recurso; cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), nada mais se acrescentou, sendo que após exame preliminar a que se não patentearam dúvidas relevantes, sem outras vicissitudes se colheram os vistos e foram os autos à conferência.

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

1.1. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, e assim e a partir delas pode, sem mais e organizando-as de modo a que o conhecimento sucessivo de umas vá saneando a causa e viabilizando ou prejudicando o conhecimento das seguintes, apontar-se o seguinte elenco de questões a apreciar:

a) Se há na decisão em matéria de facto da sentença recorrida erro de julgamento, designadamente no que respeita aos factos dados como provados sob 1., 3., 4., 5., 9., 10., 11., 15., 17., 20., 22., 23., 25., 29., 30. 31., 32., e 33., com a ausência/insuficiência de provas que os suportem e com as provas indicadas a infirmá-los necessariamente, na afirmativa fazendo-se-lhes as correcções que resultarem devidas, na negativa nada se lhes alterando.

b) Se, considerados os factos provados no acórdão recorrido, ou de todo o modo com as alterações que porventura caiba introduzir-lhes, pode ou não afirmar-se o preenchimento pelos recorrentes de cada um dos crimes que lhes foram respectivamente imputados.

c) E, em caso de manutenção da condenação, se em todo o caso era ou não devida a perda de vantagens decidida.

1.2. Não cabendo renovação de provas, que não foi requerida e nem se lobriga necessária (os recorrentes aludem-lhe diversas vezes, mas é com manifesta impropriedade que o fazem, referindo-se isso sim à reapreciação das provas que indicam como impositivas de decisão de facto diversa da recorrida), e de igual modo não sendo caso de realização de audiência, que os recorrentes também não requereram, sempre o recurso deveria ser julgado em conferência (art. 419.º, n.º 3, al. c), e 430.º, n.º 1, a contrario, do CPP), como foi.

2. A decisão recorrida

A boa apreciação da causa, nos termos acima melhor enunciados, importa que, não obstante a respectiva extensão, se faça aqui presente o essencial da decisão recorrida, incluindo a decisão em matéria de facto (factos provados, não provados e motivação), bem como, em matéria de direito, o que tange à afirmação do preenchimento dos crimes por que foram os recorrentes condenados, e ainda à declaração de perda de vantagens. Assim delimitado, é o seguinte o teor respectivo:

« (…)

II – Fundamentação de facto

A. Factos provados

Com interesse para a decisão a proferir, resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 16 de Junho de 2015, entre as 02:00 horas e as 02:50 horas, na Estrada ..., em ..., ..., o arguido DD conduziu o veículo ligeiro de passageiros, da marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-PM-.., que lhe pertencia, no sentido ...-....

2. Ao quilómetro 5,6, em ..., ..., a via encontra-se pavimentada com betuminoso em bom estado de conservação, tem duas faixas de rodagem, uma para cada sentido, com o total de oito metros de largura, configurando uma recta com visibilidade superior a cem metros.

3. Naquele local, data e horas, o arguido DD despistou-se, sem ter feito qualquer travagem, conduzindo aquela sua viatura sobre a guarda de segurança que se encontrava paralela à via e deslizando sobre ela até cair num aqueduto ali existente.

4. Em resultado desse despiste, o arguido bateu com a cabeça no vidro párabrisas, fracturando os ossos próprios do nariz, com desvio, sofrendo escoriação malar, e bateu com o peito no volante, fracturando o esterno.

5. Em resultado dessas lesões, o arguido DD sangrou abundantemente e produziu:

- manchas passivas de sangue na ilharga inferior da porta do condutor;

- um fluxo de sangue na face inferior da porta do condutor desde a sua zona superior, junto aos botões de trancar/destrancar as portas, que escorreu perpendicularmente ao solo em direcção à bolsa interior da porta;

- um padrão de sangue no vidro da porta do condutor provocado pelo acumular de sangue na zona interior da porta onde o vidro sobe e desde a qual é coincidente com a zona onde inicia o padrão de fluxo referido.

6. Também em resultado desse despiste, a indicada viatura sofreu estragos, nas suas partes frontal e traseira, em ambos os eixos e no motor, cuja reparação foi estimada em 20.860,22 € e que determinaram a sua perda total.

7. O arguido DD tinha celebrado, em 23/12/2013, um contrato de seguro com a Lusitânia – Companhia de Seguros, SA, titulado pela apólice n.º ...01, como seu tomador, para o indicado veículo automóvel, nos termos do qual a seguradora assumia os riscos da responsabilidade civil automóvel causados a terceiros e sofridos pelo veículo segurado, ainda que o seu condutor fosse o responsável pelo evento.

8. No âmbito desse contrato, encontravam-se excluídos da cobertura do seguro os acidentes ocorridos quando o condutor do veículo segurado se encontrasse sob o efeito de álcool, com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, sob o efeito de estupefacientes ou de outros produtos tóxicos.

9. O arguido DD, sabendo disso e que o exame de pesquisa de álcool no ar expirado e o teste de despistagem de substâncias psicotrópicas eram obrigatórios para o condutor de veículo interveniente em acidente com feridos graves e que, tendo dado causa ao acidente, no caso de tais exames e testes serem positivos, a Lusitânia – Companhia de Seguros, SA, tinha direito de regresso contra si, contactou telefonicamente, do local do acidente e logo após a sua ocorrência, o arguido AA, militar da GNR, a exercer funções no Destacamento de Trânsito ..., solicitando-lhe que fosse ao seu encontro e gizando com ele um plano para evitar ser submetido a tais exame e teste.

10. Para tanto, e apesar do acidente ter ocorrido em área da competência territorial da PSP, decidiram ambos agir de modo a que fosse a GNR, designadamente o Destacamento de Trânsito ..., a tomar conta da ocorrência, uma vez que, os seus militares confiariam na palavra do arguido AA, seu colega, reduzindo a atenção aos indícios do acidente que a pusessem em causa, e assim não se deslocariam ao Hospital para aí submeter o arguido DD ao exame de pesquisa de álcool e teste de despistagem de substâncias psicotrópicas.

11. Na execução desse plano, o arguido DD, bombeiro voluntário na corporação da ..., através do seu número de telemóvel ...86, contactou telefonicamente KK, que sabia ser, naquela data, Chefe de Piquete dos Bombeiros Voluntários da ..., e pediu-lhe que não accionasse meios de socorro para aquele local, caso aqueles Bombeiros viessem a ser contactados para tanto.

12. KK não accionou qualquer meio de socorro e deslocou-se para o local do acidente na sua viatura pessoal.

13. Todavia, aí chegado, apercebendo-se que o arguido DD sangrava abundantemente, contactou PP, bombeiro socorrista de serviço naquela data, e determinou-o a deslocar-se numa ambulância para o local do acidente.

14. Às 2:55 horas, o arguido DD foi transportado na ambulância dos Bombeiros Voluntários ... para o Serviço de Urgências do Centro Hospitalar de ..., onde deu entrada às 03:09 horas.

15. Por sua vez, às 02:49 horas, o arguido AA, na execução do plano traçado com DD, aproveitando-se do facto de ser Militar da GNR e de exercer funções junto do Destacamento de Trânsito ... e fazendo-se valer dessa função, ao invés de ligar para o número de emergência nacional ou para o Comando Distrital de Operações de Socorro para serem accionados os meios policiais para o local, comunicou, através do seu telefone n.º ...46, o acidente à Sala de Situação da GNR, que accionou a patrulha composta pelos militares NN e OO, para o local do acidente.

16. A patrulha da GNR, composta pelos militares NN e OO, quando chegou ao local do acidente, constatou que este havia ocorrido na área de competência da PSP e reportou tal facto à Sala de Situação da GNR, escusando-se a tomar contar da ocorrência.

17. De imediato, porém, o arguido AA, fazendo-se valer da sua qualidade funcional, contactou novamente a Sala de Situação da GNR, pedindo para falar com o MM, a exercer as funções de Graduado de Serviço, e declarou-lhe que tinha tido um acidente automóvel e que a patrulha da GNR se recusava a tomar conta da ocorrência, uma vez que este tinha ocorrido em área da competência da PSP.

18. Colocado perante tais factos, assim expostos por um militar da GNR, a exercer funções no Destacamento de Trânsito ..., o Cabo MM accionou uma patrulha do Destacamento de Trânsito que se deslocou para o local do acidente.

19. Nessa sequência, uma outra patrulha do Destacamento de Trânsito, composta pelos Militares QQ e GG (que estava ligada à autoestrada), deslocou-se também para o local da ocorrência.

20. Ainda em concretização do aludido plano, o arguido AA apresentou-se perante o militar da GNR HH, o qual integrava a patrulha referida em 18. e que tomou conta da ocorrência, como o condutor do veículo supra indicado, interveniente no acidente de viação descrito, fornecendo os seus elementos de identificação, relatando o modo como o acidente ocorreu e submetendo-se aos testes de alcoolémia e de despistagem de substâncias psicotrópicas.

21. Por força do exposto, o arguido AA ficou a constar da participação do acidente de viação elaborada pela GNR como o condutor da viatura acidentada e, em consequência, os militares da GNR não se deslocaram ao Centro Hospitalar ... para aí submeterem o arguido DD aos testes de alcoolémia e de despistagem de substâncias psicotrópicas.

22. Na mesma data, e executando ainda o aludido plano, os arguidos AA e DD, de comum acordo, preencheram a Declaração Amigável de Acidente Automóvel, assinando-a ambos e entregando-a à Lusitânia – Companhia de L..., SA

23. Conforme tinham acordado, os arguidos fizeram constar daquela Declaração Amigável que o condutor do indicado veículo era o AA e que o seu ocupante era DD.

24. O arguido AA assinou a frente da referida participação, na qualidade de condutor, e o arguido DD assinou o verso da participação, na qualidade de participante.

25. Todavia, tal não correspondia à verdade, porquanto o condutor do indicado veículo não era o arguido AA, mas sim o arguido DD.

26. Consequentemente, a Lusitânia – Companhia de Seguros, SA, assumiu a responsabilidade pelos estragos causados à viatura, no montante de 24.243,51 € e indemnizou o arguido DD no montante de 14.883,51 €, correspondente ao valor do capital seguro, deduzido do valor do salvado, este no montante de 9.360,00 € e que ficou na posse daquele.

27. Ainda em resultado dos aludidos factos, a Lusitânia – Companhia de Seguros, SA, não exerceu direito de regresso sobre o arguido DD.

28. AA apresentou-se ao serviço no dia 16 de Junho de 2015, onde esteve em exercício de funções, no período compreendido entre as 07h00 e as 13h00.

29. Os arguidos actuaram em comunhão de esforços e de intenções, em execução do plano previamente traçado por ambos, bem sabendo RR que, arrogando-se como condutor do veículo ..-PM-.. e interveniente no acidente descrito, perante os militares da GNR, devidamente uniformizados e identificados, no exercício das suas funções, estava a declarar factos que não correspondiam à verdade, aos quais a lei atribui efeitos jurídicos, perante autoridades públicas no exercício das suas funções e que tal ficaria a constar da participação do acidente de viação elaborada pela GNR e que, em consequência, o arguido DD não seria submetido ao teste de alcoolémia, querendo agir da forma por que o fez.

30. Os arguidos agiram em comunhão de esforços, de acordo com o plano que delinearam, com o propósito de enganar a Lusitânia – Companhia de Seguros, SA, fazendo-a acreditar que o condutor do veículo com a matrícula ..-PM-.. era o arguido AA e não o arguido DD, determinando, assim, aquela Companhia de Seguros a assumir a responsabilidade pelos danos causados à viatura e a não exercer o direito de regresso da indemnização satisfeita, que o arguido DD fez sua, utilizando-a em seu proveito próprio, à custa do ilegítimo empobrecimento do património da sociedade ofendida.

31. Os arguidos sabiam que ao preencher a Declaração Amigável de Acidente Automóvel do modo descrito, fizeram constar dela factos que não eram verdadeiros e que, não sendo o arguido DD submetido a teste de alcoolémia e de despistagem de substâncias psicotrópicas, causavam prejuízo patrimonial àquela Companhia de Seguros, o que quiseram e conseguiram.

32. O arguido AA agiu em comunhão de esforços e de intentos, na execução de um plano previamente traçado, com o arguido DD, ao ligar directamente para a Sala de Situação da GNR de ..., ao invés de accionar o número de emergência nacional ou o do CDOS e identificando-se como Militar da GNR ..., levando a que dessa forma se deslocasse ao local a GNR ..., para tomar conta da ocorrência, em vez da PSP, a qual seria a competente para efectuar o registo do acidente.

33. O arguido AA sabia que, dessa forma, abusava dos poderes inerentes à sua qualidade de militar da GNR e às funções que exercia no Destacamento de Trânsito ..., a fim de contornar os procedimentos policiais para tratamento da ocorrência e de evitar que DD fosse submetido à realização dos testes de alcoolemia e de substâncias psicotrópicas, querendo agir da forma por que o fez.

34. Os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. Mais se provou:

(…).

B – Factos não provados

Com interesse para a decisão a proferir não se provou:

a) Nas circunstâncias referidas em 13. KK ligou para telefone pessoal de PP.

b) Nas circunstâncias referidas em 18 o MM accionou duas patrulhas do Destacamento de Trânsito.

c) Foi perante os militares da GNR LL, QQ e GG, que o arguido AA se apresentou como o condutor do veículo supra indicado, interveniente no acidente de viação descrito, fornecendo os seus elementos de identificação.

d) O arguido DD bem sabia que estava a declarar factos que não correspondiam à verdade, aos quais a lei atribui efeitos jurídicos, perante autoridades públicas no exercício das suas funções, os militares da GNR.

e) O arguido AA fez sua a indemnização satisfeita, utilizando-a em proveito próprio. 

C – Convicção do tribunal

(…).

III – Fundamentação de direito

A. Do Crime de burla qualificada

(…).

B. Do Crime de Falsificação de Documento

Aos arguidos vem também imputada a prática, em coautoria, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, al. d), do CP.

Dispõe o art. 256.º, n.º 1, na parte que ora importa, que:

Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:

d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;

(…) é punido com prisão até três anos ou com pena de multa”.

O bem jurídico protegido com este tipo de crime “é a respectiva fé pública: pretende-se salvaguardar o sentimento geral de confiança que devem revestir os documentos. Numa evolução mais recente, a doutrina tem vindo a entender que o bem jurídico do crime de falsificação de documento é o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que se respeita à prova documental – Helena Moniz, in O crime de falsificação de documentos, 1999, 41 e seguintes” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23/11/2010, disponível em www.dgsi.pt.

Trata-se de um crime de perigo abstracto sendo também considerado um crime formal ou de mera actividade.

No plano objectivo, o crime de falsificação comporta diversas modalidades de conduta: a) fabricar documento falso; b) falsificar ou alterar documento; c) abusar de assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso; d) fazer constar falsamente facto juridicamente relevante; e, por fim, e) usar documento falso (nos termos anteriores) fabricado ou falsificado por outra pessoa Helena Moniz, Comentário conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 682.” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23/11/2010, disponível em www.dgsi.pt.  

As infracções contempladas nos n.º s 1 do art. 256.º têm natureza dolosa, o que se retira das expressões “intenção de causar prejuízo” ou de “obter benefício ilegítimo”.

Quanto à primeira componente – a intenção danosa –, a mesma cumpre-se com o querer ou a previsão do prejuízo, que tanto pode ser de natureza patrimonial como moral.

No que diz respeito à segunda – benefício ilegítimo –, deve entender-se que é da essência do crime a obtenção ou possibilidade de obtenção de uma vantagem ilícita ou injusta, isto é, não protegida pelas leis em vigor.

Delimitado, deste modo, o quadro legal, cumpre apreciar se a factualidade provada a ele se subsume.

Ora, analisados os factos provados, concretamente os descritos em 1,3, 7,8, 9, 22, 23, 24,25 a 27, 30, 31 e 34 constatamos que os arguidos, com as suas descritas condutas, preencheram os elementos integradores do tipo objectivo e subjectivo de crime em apreciação.

Com efeito, resultou provado que o arguido DD tinha celebrado, em 23/12/2013, um contrato de seguro com a Lusitânia – Companhia de Seguros, SA, titulado pela apólice n.º ...01, como seu tomador, para o indicado veículo automóvel, nos termos do qual a seguradora assumia os riscos da responsabilidade civil automóvel causados a terceiros e sofridos pelo veículo segurado, ainda que o seu condutor fosse o responsável pelo evento.

No âmbito desse contrato, encontravam-se excluídos da cobertura do seguro os acidentes ocorridos quando o condutor do veículo segurado se encontrasse sob o efeito de álcool, com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, sob o efeito de estupefacientes ou de outros produtos tóxicos.

O arguido DD, sabendo disso e que o exame de pesquisa de álcool no ar expirado e o teste de despistagem de substâncias psicotrópicas eram obrigatórios para o condutor de veículo interveniente em acidente com feridos graves e que, tendo dado causa ao acidente, no caso de tais exames e testes serem positivos, a Lusitânia – Companhia de Seguros, SA tinha direito de regresso contra si, contactou telefonicamente, do local do acidente e logo após a sua ocorrência, o arguido AA, militar da GNR, a exercer funções no Destacamento de Trânsito ..., solicitando-lhe que fosse ao seu encontro e gizando com ele um plano para evitar ser submetido a tais exame e teste.

Mais resultou provado que em 16/06/2015, executando ainda o aludido plano (cfr. facto 9), os arguidos AA e DD, de comum acordo, preencheram a Declaração Amigável de Acidente Automóvel, assinando-a ambos e entregando-a à Lusitânia – Companhia de L..., SA

Conforme tinham acordado, os arguidos fizeram constar daquela Declaração Amigável que o condutor do indicado veículo era o AA e que o seu ocupante era DD.

O arguido AA assinou a frente da referida participação, na qualidade de condutor, e o arguido DD assinou o verso da participação, na qualidade de participante.

Todavia, tal não correspondia à verdade, porquanto o condutor do indicado veículo não era o arguido AA, mas sim o arguido DD.

Consequentemente, a Lusitânia – Companhia de Seguros, SA, assumiu a responsabilidade pelos estragos causados à viatura, no montante de 24.243,51 € e indemnizou o arguido DD no montante de 14.883,51 €, correspondente ao valor do capital seguro, deduzido do valor do salvado, este no montante de 9.360,00 € e que ficou na posse daquele.

Ainda em resultado dos aludidos factos, a Lusitânia – Companhia de Seguros, SA, não exerceu direito de regresso sobre o arguido DD.

Os arguidos sabiam que ao preencher a Declaração Amigável de Acidente Automóvel do modo descrito, fizeram constar dela factos que não eram verdadeiros e que, não sendo o arguido DD submetido a teste de alcoolémia e de despistagem de substâncias psicotrópicas, causavam prejuízo patrimonial àquela Companhia de Seguros, o que quiseram e conseguiram.

Os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Constatamos, assim, atentos os factos provados, que se mostram preenchidos os elementos do tipo objectivo do crime em apreciação (os arguidos fizeram constar falsamente de documento facto juridicamente relevante).

Mostram-se ainda preenchidos, atenta a matéria de facto provada supra exposta, os elementos do tipo subjectivo.

Assim, atento tudo quanto fica exposto, e sendo certo que não tiveram lugar quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, os arguidos AA e DD terão de ser condenados pela prática, em coautoria, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, al. d), do CP, de que vinham acusados.

C. Do crime de falsas declarações

Os arguidos encontram-se também pronunciados pela prática, em coautoria, de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348.º-A, n.º 1, do CP.

Dispõe o supra citado artigo que “Quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”.

Ora, conforme se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28/06/2019, disponível em www.dgsi.pt, Resulta da norma em causa que o crime será sempre praticado por quem, de forma determinada, livre e consciente, independentemente das circunstâncias em que o faça, designadamente, enquanto arguido, ou não, declarar ou atestar falsamente, estado ou qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios”.

O crime previsto no citado art. 348º-A, do CP, impõe a prova do dolo, em qualquer das suas vertentes (art. 14.º do CP).

Ainda no sumário do citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28/06/2019, pode ler-se “Comete o crime de falsas declarações p. e p. pelo art. 348.º-A do CP, e não o crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo art. 360.º do mesmo diploma legal, quem presta declarações falsas à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções, fora de um processo judicial, verificados os restantes elementos do tipo legal”.

Também com pertinência para o caso concreto citamos aqui o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16/06/2015, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode ler que “Os arguidos, ao mentirem ao militar da GNR a respeito da identidade da pessoa que vinha a conduzir a viatura e que interveio em acidente de viação, afirmando que era o JR, quando afinal o condutor fora JJ, incorreram na prática do crime de falsas declarações, já que declararam falsamente a uma autoridade pública a identidade do condutor que conduzia a viatura automóvel e visto que a lei atribui efeitos jurídicos a tal declaração”.

Pode também ler-se no citado Acórdão da Relação de Évora de 16/06/2015, e que aqui seguimos bem de perto “Atentando na factualidade que vem descrita no requerimento do MP, temos que os arguidos não prestaram ao militar da GNR que estava a tomar conta da ocorrência declarações inverídicas acerca da identidade da pessoa que afirmaram/confirmaram ser o condutor da viatura interveniente no acidente de viação. Mas afirmaram/confirmaram que se tratava de pessoa diferente daquela que estava a conduzir tal viatura antes do acidente. Ou seja, produziram afirmações falsas acerca de uma qualidade – a de condutor da viatura, à qual a lei atribui efeitos jurídicos, nomeadamente quanto à necessidade de habilitação legal para o exercício da condução, à obrigação de sujeição a fiscalização da condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas e eventual responsabilidade criminal pela prática de crimes no exercício da condução – atribuindo-a a um deles, quando sabiam perfeitamente que não era esse, mas sim um outro, o condutor da viatura. Tudo de forma concertada e com o claro propósito de levar aquele militar a elaborar o auto de notícia e a participação de acidente com dados falsos sobre a identidade da pessoa, não da pessoa que ali ficou a constar como sendo o condutor da viatura, mas sim acerca de quem exercia realmente a condução, e evitar, como veio a suceder, que esta viesse a ser submetida a fiscalização legal e a sofrer eventuais consequências advenientes da prática de alguma infracção/crime em que pudesse ter incorrido.”

Também neste mesmo sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25/05/2020, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler “Para efeitos da previsão do crime de falsas declarações (art. 348.º-A, CP), alguém intitular-se falsamente como condutor de um veículo integra a previsão do referido crime. 2 - Com efeito, a referida condição integra-se no conceito de qualidade do agente, a que a lei atribui efeitos jurídicos”.

Revertendo ao caso concreto, e tendo por base o entendimento que resulta dos Acórdãos supra citados quanto aos elementos típicos do crime de falsas declarações, previsto no art. 348.º-A, do CP, e que aqui seguimos bem de perto, constatamos que resultou provado, designadamente, que no dia 16 de Junho de 2015, entre as 02:00 horas e as 02:50 horas, na Estrada ..., em ..., ..., o arguido DD conduziu o veículo ligeiro de passageiros, da marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-PM-.., que lhe pertencia, no sentido ...-.... Ao quilómetro 5,6, em ..., ..., a via encontra-se pavimentada com betuminoso em bom estado de conservação, tem duas faixas de rodagem, uma para cada sentido, com o total de oito metros de largura, configurando uma recta com visibilidade superior a cem metros. Naquele local, data e horas, o arguido DD despistou-se, sem ter feito qualquer travagem, conduzindo aquela sua viatura sobre a guarda de segurança que se encontrava paralela à via e deslizando sobre ela até cair num aqueduto ali existente.

Mais resultou provado que o arguido AA apresentou-se perante o militar da GNR HH, o qual integrava a patrulha referida em 18. dos factos provados e que tomou conta da ocorrência, como o condutor do veículo supra indicado, interveniente no acidente de viação descrito, fornecendo os seus elementos de identificação, relatando o modo como o acidente ocorreu e submetendo-se aos testes de alcoolémia e de despistagem de substâncias psicotrópicas.

Por força do exposto, o arguido AA ficou a constar da participação do acidente de viação elaborada pela GNR como o condutor da viatura acidentada e, em consequência, os militares da GNR não se deslocaram ao Centro Hospitalar ... para aí submeterem o arguido DD aos testes de alcoolémia e de despistagem de substâncias psicotrópicas. Os arguidos actuaram em comunhão de esforços e de intenções, em execução do plano previamente traçado por ambos, bem sabendo RR que, arrogando-se como condutor do veículo ..-PM-.. e interveniente no acidente descrito, perante os militares da GNR, devidamente uniformizados e identificados, no exercício das suas funções, estava a declarar factos que não correspondiam à verdade, aos quais a lei atribui efeitos jurídicos, perante autoridades públicas no exercício das suas funções e que tal ficaria a constar da participação do acidente de viação elaborada pela GNR e que, em consequência, o arguido DD não seria submetido ao teste de alcoolémia, querendo agir da forma por que o fizeram.

Resulta, assim, da matéria de facto provada, que o arguido AA prestou perante militar da GNR, que estava a tomar conta da ocorrência, declarações inverídicas sobre a identificação da pessoa que afirmou ser o condutor do veículo interveniente no acidente de viação. Ou seja, resulta da matéria de facto provada que o arguido AA identificou-se como sendo o condutor do veículo em questão, interveniente no acidente de viação, quando o condutor do referido veículo no momento do despiste, conforme resultou provado, era o também arguido DD.

Assim, o arguido AA produziu afirmações inverídicas acerca de uma qualidade – a de condutor do veículo interveniente no acidente de viação – à qual a lei atribui efeitos jurídicos, designadamente, quanto à necessidade de habilitação legal para o exercício da condução, à obrigação de sujeição a fiscalização da condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas e eventual responsabilidade criminal pela prática de crimes no exercício da condução.

Desta forma, e, em consequência, os militares da GNR não se deslocaram ao Centro Hospitalar ... para aí submeterem o arguido DD aos testes de alcoolémia e de despistagem de substâncias psicotrópicas. Os arguidos actuaram em comunhão de esforços e de intenções, em execução do plano previamente traçado por ambos, bem sabendo RR que, arrogando-se como condutor do veículo ..-PM-.. e interveniente no acidente descrito, perante os militares da GNR, devidamente uniformizados e identificados, no exercício das suas funções, estava a declarar factos que não correspondiam à verdade, aos quais a lei atribui efeitos jurídicos, perante autoridades públicas no exercício das suas funções e que tal ficaria a constar da participação do acidente de viação elaborada pela GNR e que, em consequência, o arguido DD não seria submetido ao teste de alcoolémia, querendo agir da forma por que o fizeram.

Atento o exposto, constatamos que o arguido AA praticou o crime de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348.º-A, n.º 1, do CP, de que vinha acusado.

Importa agora analisar se o arguido DD também praticou o crime em apreciação, em coautoria, com o arguido AA.

É certo que, conforme resultou provado, os arguidos actuaram sempre na execução de um plano previamente traçado. Contudo, o arguido DD não proferiu qualquer declaração inverídica perante o militar da GNR, que tomou conta da ocorrência.

Com efeito, apenas resultou provado que o arguido AA apresentou-se perante o militar da GNR HH, o qual integrava a patrulha referida em 18. e que tomou conta da ocorrência, como o condutor do veículo supra indicado, interveniente no acidente de viação descrito, fornecendo os seus elementos de identificação, relatando o modo como o acidente ocorreu e submetendo-se aos testes de alcoolémia e de despistagem de substâncias psicotrópicas.

Por força do exposto, o arguido AA ficou a constar da participação do acidente de viação elaborada pela GNR como o condutor da viatura acidentada e, em consequência, os militares da GNR não se deslocaram ao Centro Hospitalar ... para aí submeterem o arguido DD aos testes de alcoolémia e de despistagem de substâncias psicotrópicas.

Ora, os crimes de falsas declarações “são rotulados usualmente como crimes de mão-própria, por se entender que o específico ilícito da acção típica só se realiza mediante uma execução corporal ou pessoal do autor (…) Assim, se só pode ser autor do crime quem pessoalmente declara falso, parece que ficam excluídas quer a coautoria quer a autoria mediata , pelo que a punibilidade das condutas integráveis neste último tipo de autoria ficaria dependente da consagração de norma especial” (cfr. A. Medina de Seiça em Anotação §62 ao artigo 360.º do CP, no Comentário Conimbricense, Tomo III, pp. 485 e 486).

Assim, atento o acima exposto, verificamos que relativamente ao arguido DD a sua conduta não preenche os elementos típicos do crime em apreciação, devendo o mesmo ser absolvido da prática do crime de falsas declarações.

D. Do crime de abuso de poder

Aos arguidos vem também imputada a prática de um crime de abuso de poder, p. e p. pelos art. 28.º, n.º 1, 67.º, n.º 1, 68.º, n.º 1, 100.º, 382.º e 386.º, n.º 1,al.  d), todos do CP.

Assim, nos termos do art. 28.º, n.º 1, do CP, sob a epígrafe “Ilicitude na comparticipação”:

1 - Se a ilicitude ou o grau de ilicitude do facto dependerem de certas qualidades ou relações especiais do agente, basta, para tornar aplicável a todos os comparticipantes a pena respectiva, que essas qualidades ou relações se verifiquem em qualquer deles, excepto se outra for a intenção da norma incriminadora”.

Por seu turno, nos termos do art. 382.º, do CP, “O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.

Nos termos do art. 386.º, n.º 1, al. d), do CP, na redacção em vigor à data dos factos, dada pela Lei n.º 30/2015, de 22/04, “1 - Para efeito da lei penal, a expressão funcionário abrange: (…)

d) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar;”.

Tal alínea, que corresponde à alínea c) do mesmo artigo na versão originária do CP, abrange, quanto ao conceito de funcionário, os militares da GNR, como decorre da expressão “participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública”. Neste sentido, veja-se Paulo Pinto de Albuquerque, na anotação 21 ao artigo 386.º do CP, o qual afirma que “A força pública é o conjunto dos funcionários que pertencem às forças militares, militarizadas e de segurança” (in Comentário do Código Penal, UCE Editora, 2008, p. 914).

De referir que, actualmente, o militar da GNR também se encontra abrangido pelo conceito de funcionário, conforme expressamente prevê a al. a) do n.º 1 do artigo 386.º do CP, na redacção dada pela Lei n.º 94/2021, de 21/12.

O bem jurídico protegido pela incriminação “é a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário e, acessoriamente, os interesses patrimoniais ou não patrimoniais de outra pessoa” (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 904).

Quanto ao tipo objectivo, consiste no abuso dos poderes ou violação dos deveres inerentes às funções do funcionário.

O tipo subjectivo “admite qualquer modalidade de dolo. O tipo inclui ainda um elemento subjectivo adicional: a intenção de obter, para si ou para outra pessoa física ou colectiva, privada ou pública (excluindo o Estado). Não é necessário que o benefício patrimonial ou não patrimonial tenha sido alcançado, nem que o prejuízo se tenha verificado, bastando que o funcionário os tenha querido” (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 905).

A qualidade de funcionário “é comunicável aos comparticipantes que a não possuam (cfr. art. 28.º, n.º 1)” (Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 905).

Revertendo ao caso concreto, resultou provado que o arguido AA é militar da GNR a exercer funções junto do Destacamento de Trânsito ....

Mais resultou provado que, após o acidente descrito nos pontos 1 a 4 dos factos provados, o arguido DD, sabendo que, no âmbito do contrato de seguro referido no ponto 7, encontravam-se excluídos da cobertura do seguro os acidentes ocorridos quando o condutor do veículo segurado se encontrasse sob o efeito de álcool, com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, sob o efeito de estupefacientes ou de outros produtos tóxicos, e que o exame de pesquisa de álcool no ar expirado e o teste de despistagem de substâncias psicotrópicas eram obrigatórios para o condutor de veículo interveniente em acidente com feridos graves e que, tendo dado causa ao acidente, no caso de tais exames e testes serem positivos, a Lusitânia – Companhia de Seguros, SA, tinha direito de regresso contra si, contactou telefonicamente, do local do acidente e logo após a sua ocorrência, o arguido AA, militar da GNR, a exercer funções no Destacamento de Trânsito ..., solicitando-lhe que fosse ao seu encontro e gizando com ele um plano para evitar ser submetido a tais exame e teste.

Para tanto, e apesar do acidente ter ocorrido em área da competência territorial da PSP, decidiram ambos agir de modo a que fosse a GNR, designadamente o Destacamento de Trânsito ..., a tomar conta da ocorrência, uma vez que, os seus militares confiariam na palavra do arguido AA, seu colega, reduzindo a atenção aos indícios do acidente que a pusessem em causa, e assim não se deslocariam ao Hospital para aí submeter o arguido DD ao exame de pesquisa de álcool e teste de despistagem de substâncias psicotrópicas.

O arguido AA, aproveitando-se do facto de ser militar da GNR, a exercer funções no Destacamento de Trânsito ..., fazendo-se valer da sua função, ao invés de ligar para o número de emergência nacional ou para o Comando Distrital de Operações de Socorro para serem accionados os meios policiais para o local, comunicou, através do seu telefone n.º ...46, o acidente à Sala de Situação da GNR, que accionou a patrulha composta pelos militares NN e OO, para o local do acidente.

A patrulha da GNR, composta pelos militares NN e OO, quando chegou ao local do acidente, constatou que este havia ocorrido na área de competência da PSP e reportou tal facto à Sala de Situação da GNR, escusando-se a tomar contar da ocorrência.

De imediato, porém, o arguido AA, fazendo-se valer da sua qualidade funcional, contactou novamente a Sala de Situação da GNR, pedindo para falar com o MM, a exercer as funções de Graduado de Serviço, e declarou-lhe que tinha tido um acidente automóvel e que a patrulha da GNR se recusava a tomar conta da ocorrência, uma vez que este tinha ocorrido em área da competência da PSP.

Colocado perante tais factos, assim expostos por um militar da GNR, a exercer funções no Destacamento de Trânsito ..., o Cabo MM accionou uma patrulha do Destacamento de Trânsito que se deslocou para o local do acidente.

Nessa sequência, uma outra patrulha do Destacamento de Trânsito, composta pelos Militares QQ e GG (que estava ligada à autoestrada), deslocou-se também para o local da ocorrência.

Ainda em concretização do aludido plano, o arguido AA apresentou-se perante o militar da GNR HH, o qual integrava a patrulha referida em 18. e que tomou conta da ocorrência, como o condutor do veículo supra indicado, interveniente no acidente de viação descrito, fornecendo os seus elementos de identificação, relatando o modo como o acidente ocorreu e submetendo-se aos testes de alcoolémia e de despistagem de substâncias psicotrópicas.

Por força do exposto, o arguido AA ficou a constar da participação do acidente de viação elaborada pela GNR como o condutor da viatura acidentada e, em consequência, os militares da GNR não se deslocaram ao Centro Hospitalar ... para aí submeterem o arguido DD aos testes de alcoolémia e de despistagem de substâncias psicotrópicas.

Mais se logrou provar que, o arguido AA agiu em comunhão de esforços e de intentos, na execução de um plano previamente traçado, com o arguido DD, ao ligar directamente para a Sala de Situação da GNR de ..., ao invés de accionar o número de emergência nacional ou o do CDOS e identificando-se como Militar da GNR ..., levando a que dessa forma se deslocasse ao local a GNR ..., para tomar conta da ocorrência, em vez da PSP, a qual seria a competente para efectuar o registo do acidente.

O arguido AA sabia que, dessa forma, abusava dos poderes inerentes à sua qualidade de militar da GNR e às funções que exercia no Destacamento de Trânsito ..., a fim de contornar os procedimentos policiais para tratamento da ocorrência e de evitar que DD fosse submetido à realização dos testes de alcoolemia e de substâncias psicotrópicas, querendo agir da forma por que o fez.

Por último, ainda se logrou provar que, os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Assim, mostram-se verificados todos os elementos do tipo do crime imputado aos arguidos, logrando-se demonstrar que agiram em coautoria, sendo a qualidade de funcionário do arguido AA (no caso, militar da GNR) comunicável ao arguido DD, por força do disposto no n.º 1 do art. 28.º do CP.

Por último, não lograram demonstrar-se causas de exclusão da ilicitude e/ou da culpa, impondo-se a condenação dos arguidos, em coautoria, pela prática do crime de abuso de poder, previsto nos termos conjugados dos art. 28.º, n.º 1, 382.º, e 386.º, n.º 1, al. d), do CP (na redacção em vigor à data dos factos). 

IV – Escolha e determinação da medida da pena

(…)

Da declaração de perda de vantagens

O MP promoveu que se declare perdido a favor do Estado o valor de 14.883,51 €, que corresponde às vantagens da actividade criminosa desenvolvida pelos arguidos, nos termos dos art. 110.º, n.º 1, al. b), e 4, do CP, condenando-se aqueles a pagar ao Estado o montante respectivo.

Face ao requerido pelo MP, perante o artigo em que fundamenta a sua pretensão (artigo 110.º, n.º 1, al. b), e 4, do CP, na redacção dada pela Lei nº 30/2017, de 30/05) e atenta a data da prática dos factos em apreciação (16/06/2015 - data anterior à alteração legislativa), importa, antes de mais, apreciar da aplicação da lei no tempo.

Com efeito, nos termos do art. 2.º, n.º 4, do CP, “Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente (…)”.

Assim, nos termos do art. 110.º na redacção dada pela Lei nº 30/2017, de 30/05:

1 - São declarados perdidos a favor do Estado:

b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.

4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.

5 - O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.

6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido”.

Por seu turno, nos termos do art. 111.º, do CP, na versão introduzida pela Lei nº 32/2010, de 02/09 (vigente na data da prática dos factos):

1 – (…).

2 - São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie.

3 - O disposto nos números anteriores aplica-se às coisas ou aos direitos obtidos mediante transacção ou troca com as coisas ou direitos directamente conseguidos por meio do facto ilícito típico.

4 - Se a recompensa, os direitos, coisas ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor.”

Ora, quanto a esta questão, da aplicação da lei no tempo, seguimos aqui bem de perto a posição plasmada no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/09/2019, disponível em www.dgsi.pt , onde se pode ler “Comparando os dois regimes jurídicos resulta manifesto que, in casu, a aplicação de um ou de outro dos regimes jurídicos em confronto não oferece qualquer vantagem comparativa às arguidas, não permitindo assim a aplicação do disposto no n.º 4 do art. 2.º do CP determinar, concretamente, o regime a aplicar.

Resta, apenas e tão-somente, aplicar o regime jurídico em vigor à data dos factos, fazendo uma interpretação extensiva [3] do disposto no art. 2.º, n.º 1, do CP: “As penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem.”, ou seja, aplicar-se-á o disposto no art. 111.º do CP, na redação introduzida pela Lei nº 32/2010, de 02/09, conforme propugnado na motivação de recurso”.

Assim, e revertendo tais considerações ao caso concreto, concluímos ser de aplicar o disposto no artigo 111.º do CP, na redação introduzida pela Lei n.º 32/2010, de 02/09 (ou seja, o regime vigente à data da prática dos factos – 16/06/2015).

Ora, o MP, na acusação, promoveu que se declare perdido a favor do Estado o valor de 14.883,51 €, que corresponde às vantagens da actividade criminosa desenvolvida pelos arguidos.

No caso em apreço, não se mostra apreendida qualquer quantia. Consequentemente, não poderá ser declarada a sua perda a favor do Estado (n.º 2 do art. 111.º, do CP, na redacção aplicável).

Aqui chegados, repescamos novamente a posição expressa no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto supra citado, que aqui seguimos de perto, e onde se pode ler “Perante esse pressuposto – e mesmo não tendo sido deduzido um pedido de indemnização civil por parte do lesado, tendo apenas sido requerida a condenação das arguidas a pagar ao Estado aquela importância monetária ao abrigo do regime da perda de vantagem do crime –, a pretensão do MP deverá ser deferida à luz do disposto no n.º 4 do mesmo artigo [4]?

Para responder a esta questão, interessa recordar a ratio legis do instituto da perda de vantagem do crime: esta constitui uma medida sancionatória análoga à medida de segurança com intuitos exclusivamente preventivos. Sendo assim, contrariando a fundamentação da sentença recorrida, não se vislumbra como a atuação (opção pela execução tributária) ou omissão (de dedução de pedido de indemnização civil) do ofendido possa ser determinante para a inviabilidade da sua efetivação.

Desenvolvendo essa noção, constitui entendimento pacífico na doutrina [5] e jurisprudência que a perda de vantagens do crime constitui instrumento de política criminal, com finalidades preventivas, através do qual o Estado exerce o seu ius imperium anunciando ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade em geral que nenhum benefício resultará da prática de um ilícito [v.g. “o crime não compensa”]. [6].

Tal bastará para se concluir que a vontade do ofendido a propósito da obtenção do ressarcimento devido não pode afetar o exercício do poder de autoridade pública subjacente ao instituto em causa – mesmo nos casos em que o ofendido é o próprio Estado, uma vez que a lei não o distingue –: a norma legal atrás reproduzida (art. 111.º do CP) tem caráter geral e abstrato, não prevendo a mesma qualquer excepção, mesmo nos casos em que o ofendido é o próprio Estado/Administração Tributária que não deduziu pedido de indemnização civil e beneficia de outros meios coercivos de obter o pagamento da quantia em causa. [7]

A circunstância de o ofendido ser o próprio Estado, dotado de mecanismos de ressarcimento coercivo bem mais amplos que os concedidos aos particulares, não pode justificar solução diversa, sob pena de colocar em crise o ius imperium manifestado no aludido instrumento de política criminal e os fins preventivos do direito sancionatório.

Perante a amplitude dos aludidos mecanismos de ressarcimento, poder-se-á questionar a utilidade do instituto, uma vez que os interesses patrimoniais do Estado estariam sempre salvaguardados. Porém, sem razão. Os mecanismos de cobrança coerciva à disposição do Estado/Autoridade Tributária não deixam de estar sujeitos a determinados requisitos e condicionalismos, não havendo uma absoluta garantia de concretização do ressarcimento e, por outro lado, os mesmos não afastam a necessidade de fazer vingar os fins de prevenção prosseguidos pelo instituto de perda da vantagem patrimonial.

Daqui se conclui que o facto de a Autoridade Tributária ter prescindido de formular pedido de indemnização nos presentes autos, optando antes pela execução fiscal (fls.105), em nada obsta à pretensão do MP deduzida na acusação.

Consequentemente, forçosa é a conclusão de que a decisão recorrida não poderá subsistir no segmento impugnado, impondo-se a sua revogação e a condenação solidária das arguidas no pagamento ao Estado do valor correspondente à importância ilicitamente apropriada com a prática do crime pelo qual foram condenadas (13.194,66 €), nos termos do disposto no art. 111.º, n.º 4, do CP. [8]2.

Assim, e revertendo ao caso concreto, a pretensão do MP deverá ser deferida à luz do disposto no n.º 4 do art. 111.º do CP, na redacção vigente na data da prática dos factos.

Com efeito, resultou provada a prática pelos arguidos, em coautoria, além do mais, dos crimes de burla qualificada e de falsificação de documento.

Resultou, designadamente, provado que os arguidos agiram em comunhão de esforços, de acordo com o plano que delinearam, com o propósito de enganar a Lusitânia – Companhia de Seguros, SA, fazendo-a acreditar que o condutor do veículo com a matrícula ..-PM-.. era o arguido AA e não o arguido DD, determinando, assim, aquela Companhia de Seguros a assumir a responsabilidade pelos danos causados à viatura e a não exercer o direito de regresso da indemnização satisfeita, que o arguido DD fez sua, utilizando-a em seu proveito próprio, à custa do ilegítimo empobrecimento do património da sociedade ofendida.

Os arguidos sabiam que ao preencher a Declaração Amigável de Acidente Automóvel do modo descrito, fizeram constar dela factos que não eram verdadeiros e que, não sendo o arguido DD submetido a teste de alcoolémia e de despistagem de substâncias psicotrópicas, causavam prejuízo patrimonial àquela Companhia de Seguros, o que quiseram e conseguiram.

A Lusitânia – Companhia de Seguros, SA, assumiu a responsabilidade pelos estragos causados à viatura, no montante de 24.243,51 € e indemnizou o arguido DD no montante de 14.883,51 €, correspondente ao valor do capital seguro, deduzido do valor do salvado, este no montante de 9.360,00 € e que ficou na posse daquele.

Assim, atento o exposto, condenam-se os arguidos, solidariamente, no pagamento ao Estado da importância de €14.833,51, nos termos do disposto no art. 111.º, n.º 4, do CP.

(…) »

3. Enfim apreciando

(…)

3.22. Dito o que antecede, passemos então às questões de qualificação jurídico-penal que daquele jeito subsidiário os recorrentes suscitaram e, nisso acompanhando a ordem seguida pelo tribunal recorrido, comecemos pelo crime de falsificação de documento (art. 256.º, n.º 1, al. d), do CP). Não há dúvida, como na sentença recorrida se deixa vincado, que ao preencherem a declaração amigável de acidente automóvel, os recorrentes, bem sabendo que isso era falso, se fizeram nela constar o AA como condutor da viatura e o DD como seu passageiro, e o objectivo, que não podiam deixar de saber ser ilegítimo mas ainda assim desse modo prosseguiram, era o de assegurarem que o segundo, não sendo sujeito a testes de detecção de álcool ou drogas que, na eventualidade de serem positivos, excluiriam a obrigação contratual da companhia de seguros de indemnizá-lo pelos danos próprios (causados na viatura pelo acidente), sempre e em qualquer caso se visse indemnizado pelos danos causados na sua viatura – sendo esse o ilegítimo beneficio visado, que assim foi querido para si mesmo por DD, e foi querido para terceiro (este) por AA (com o correlativo prejuízo para a seguradora). Por outras palavras, sendo patente o necessário dolo, aliás directo (art. 13.º e 14.º, n.º 1, do CP), o crime mostrar-se-ia prima facie preenchido, considerando o recorte típico que lhe dá aquele art. 256.º, n.º 1, al. d), do CP: “quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa (…), de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou (…): fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante (…); é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.

3.23. Todavia, e sempre assumindo que o facto juridicamente relevante mas falso é o exercício da condução, no momento do acidente, pelo recorrente AA (que, sujeito ele sim aos ditos testes como condutor, assegurara resultados negativos), uma vez que dele resultaria o total afastamento da possibilidade daquela exclusão de responsabilidade da seguradora, o ponto decisivo vem a ser a susceptibilidade, ou não, da declaração amigável de acidente automóvel para corresponder ao conceito legal de documento: nos termos do art. 255.º, al. a), do CP, e no que aqui possa importar, “a declaração corporizada em escrito (…), que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente (…)”. É aqui que os recorrentes centram a sua posição, não apenas disputando que o facto em causa seja juridicamente relevante (no que é manifesto faltar-lhes razão), mas além disso e desde logo que, independentemente de tudo o mais, o escrito em causa não é idóneo a provar o que quer que seja, não tendo outra função senão a de facultar à seguradora a quem se dirige a participação do sinistro e um ponto de partida para as averiguações que sobre ele sempre haverá de fazer ou pelo menos pode fazer. Cremos que nisto sim assiste razão aos recorrentes.

3.24. Na verdade, se é certo que o escrito em que, com ânimo de obtenção de ilegítimo benefício ou de causar prejuízo a terceiro, falsamente se declarem factos juridicamente relevantes, não tem de ser, para que com isso se preencha o crime, um documento autêntico ou por qualquer modo com especial reforço de valor probatório, há-de sempre e quando menos ter aptidão probatória, isto é, para por si mesmo de algum modo contribuir para a demonstração do facto falsamente declarado. Ora, a declaração amigável de acidente automóvel é uma mera declaração dirigida à seguradora pelos intervenientes no sinistro, mediante a qual lhe participam o evento e em que lhe referem as características (podendo até nisso divergirem sensivelmente os declarantes!). Logo à partida, não se destina de modo algum a provar, nem a terceiros nem certamente àquela seguradora, os termos e condições da produção do acidente, que a seguradora tomará ou não como bons e, em assim o entendendo, não deixará de por si mesma averiguar (como de resto e no caso concreto fez); e, desse modo, o preenchimento do crime tem de afastar-se, logo no plano do tipo objectivo, porque a declaração corporizada no escrito em causa não corresponde ao conceito legal de documento pressuposto: ser “idónea para provar” facto juridicamente relevante (art. 202.º, al. a), do CP).

3.25. Neste sentido, pronunciou-se já este este tribunal no Ac. TRC de 26/04/2017, proferido no processo 331/13.0TASEI.C1 (relatora Maria Pilar Oliveira), aliás citado pelos recorrentes, que acompanhamos, e do qual, por elucidativos, transcrevemos aqui não apenas o sumário (“a participação, a uma ‘seguradora’, de acidente de viação em circunstâncias diferentes das reais não consubstancia, nos termos e para os efeitos do art. 256.º, do CP, falsificação de documento, na medida em que, por si e autonomamente, essa acção, por não ser idónea a provar facto juridicamente relevante, é insusceptível de constituir, modificar ou extinguir qualquer relação jurídica”), mas também os passos argumentativos mais relevantes: “Está em causa impresso de declaração amigável de acidente de viação que foi preenchido pelo arguido como forma de participar à seguradora o acidente em causa nos autos (…). Como resulta do disposto no art. 255.º, al. a), do CP, para efeitos do crime de falsificação considera-se documento a declaração corporizada em escrito (…), que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente. Só este tipo de documento, o idóneo a provar facto juridicamente relevante, é relevante para efeitos penais quando objecto de falsificação, nomeadamente se dele se fizer constar falsamente facto juridicamente relevante. (…) Assim, a acção do arguido de participar à seguradora acidente em circunstâncias diferentes das reais não é juridicamente relevante para a falsificação, na medida em que por si e autonomamente, não constitui, modifica ou extingue qualquer relação jurídica, pois não é idónea para provar facto juridicamente relevante”. Na mesma linha, embora em pressupostos algo diversos, encontra-se o Ac. TRC de 02/03/2011, proferido no processo 909/09.6TALRA.C1 (relator Calvário Antunes), com o seguinte sumário: “O cidadão que, após um acidente de trânsito, informa o militar da Guarda Nacional Republicana, que era ele quem conduzia o veículo, no momento do embate, fazendo-o constar da participação do acidente, quando, na verdade, o condutor era outra pessoa não habilitada a conduzir, não comete o crime de falsificação de documento”. Por fim, em sentido contrário, recenseia-se o Ac. TRC de 10/03/2010, proferido no processo 1024/06.0TAPBL.C1 (relator Gomes de Sousa), de que se tirou o sumário seguinte: “(…) 4. Verifica-se o crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, al. a), do CP, quando se relata na Declaração Amigável de Acidente Automóvel acidente de viação que não ocorreu em substituição de outro efectivamente ocorrido”.

3.26. Em suma, nessa parte deverá proceder o recurso, cabendo absolver ambos os recorrentes daquele crime de falsificação de documento (disso tirando as consequências em sede de reformulação do cúmulo jurídico das penas parcelares que na sentença recorrida se fez), e por agora, prosseguindo a anunciada análise de cada um dos crimes postos em causa, passando à apreciação do de falsas declarações. Nos termos do art. 348.º-A, n.º 1, do CP, comete-o “quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios (…)”. Condenado por este crime vem somente o recorrente AA, e para afirmação do preenchimento do tipo por ele, relevou a evidência de que perante militar da GNR que no exercício das respectivas funções exercia acção de fiscalização/controle de trânsito, concretamente registando o acidente ocorrido, declarou falsamente ser ele o condutor da viatura sinistrada, como tal se identificando, e isso com o necessário dolo, aliás directo (art. 13.º e 14.º, n.º 1, do CP). A questão está aqui, segundo o recorrente a coloca, em que o facto por si falsamente declarado (ser o condutor do veículo), não é referente à sua identidade, estado ou qualidades pessoais, o que sem mais afastaria a acção da previsão típica.

3.27. Reconhece-se aqui, de pleno, que o facto falsamente declarado não é atinente à identidade de quem quer que seja (que aliás e quanto à do recorrente toda a lógica da actuação supunha que facultasse com precisão…), nem certamente a qualquer estado de fosse quem fosse (aspecto que nem vem ao caso), sendo o problema o de saber se tange, isso sim, a alguma qualidade, própria do recorrente ou alheia e a que a lei atribuísse efeitos jurídicos. Ora, o recorrente enfatiza que ao declarar que era o condutor, não versou qualquer sua qualidade pessoal, mas independentemente do que com este atributo queira exactamente significar, a verdade é que a lei o não reclama, i.e., a lei reporta a acção típica a “qualidade”, sem limitá-la a que esta seja pessoal. Nisto parece o recorrente fazer-se eco, sem todavia citar, da doutrina defendida por Paulo Pinto de Albuquerque, que é útil ter presente: “A ‘outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos’ inclui a filiação, a naturalidade, a nacionalidade, a data de nascimento, a profissão, a residência e o local de trabalho, do declarante ou de terceiro. Mas não podem ser consideradas como típicas as declarações sobre factos ou acontecimentos mesmo que tenham sido vividos pelo declarante (…), como (…) o modo de condução de um veículo automóvel. Portanto, não cometem o crime aqueles arguidos que, mentindo ao militar da GNR a respeito da identidade da pessoa que vinha a conduzir a viatura que interveio em acidente de viação, afirmam que era o JR, quando afinal o condutor fora JJ, mas não mentiram sobre as identidades fornecidas” (in “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 4.ª ed. actualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2021, p. 1187).

3.28. Tal doutrina, que de algum modo era já a acolhida no Ac. do TRG de 23/01/2017, proferido no processo 303/14.7GAPTL.G1 (relatora Alda Casimiro), esse sim citado pelo recorrente [e com o seguinte sumário: “I) Alguém assumir-se como condutor de um veículo, ainda que interveniente em acidente de viação não é assumir uma qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos. E se assim é, então assumir-se falsamente como condutor de um veículo de um veículo interveniente em acidente não é declarar falsamente uma qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos. Interpretação diversa seria alargar de forma injustificada o tipo incriminatório.(…)”], afigura-se-nos, com o devido respeito, muito questionável, desde logo por importar uma restrição do tipo que não tem amparo na letra da lei e que certamente se não coaduna bem com a sua teleologia, isto é, com a adequada tutela do bem jurídico protegido [a autonomia intencional do funcionário ou autoridade pública que colhe as declarações em ordem a assegurar os efeitos jurídicos que do declarado decorram; ou, por outras palavras, aliás as empregues naquele aresto e aí em citação de doutrina (António Latas, As alterações ao Código Penal introduzidas pela Lei 19/2013, de 21/02, Revista do CEJ, 2014, n.º 1), “a integridade da função administrativa nas suas diversas manifestações e da capacidade funcional da administração, exercida em conformidade com as exigências de legalidade e objetividade que num Estado de Direito devem presidir às funções públicas”). Notemos, aliás, que segundo da fundamentação ainda desse aresto se extrai, o mesmo autor ali citado observa, em rigor, é que com o conceito “está em causa o estado ou outra qualidade em que o próprio ou outra pessoa é tomada pela lei para determinado efeito jurídico (v.g., estado civil, nacionalidade, residência, maioridade, ser proprietário), o que não se confunde com afirmações do agente sobre factos concretos que não correspondam necessariamente àquelas qualidades típicas.

3.29. Limitar a abrangência do conceito “qualidade” a dados como a filiação, a naturalidade, a nacionalidade, a data de nascimento, a profissão, a residência e o local de trabalho ou similares, é afinal e em medida quase esgotante assimilá-lo à identidade (aqueles são claramente elementos de identificação), tornando redundante e até algo esdrúxulo o respectivo emprego, sempre com o devido respeito – e por outro lado, com semelhante limitação deixar-se-ia de fora do foco da incriminação um largo conjunto de condutas que são potencialmente lesivas do bem jurídico que, como se disse, a norma visa tutelar. Tendo presente que nos termos da norma o decisivo é que se trate de qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, então, entendemos decididamente que no conceito caberão cargos, funções, títulos, categorias ou meras condições, independentemente da sua natureza mais ou menos duradoura ou transitória, e desde que em concreto os importem – assim incluindo, segundo os efeitos que possa importar de acordo com as incidências concretas de cada caso, e a título meramente exemplificativo, não apenas condições como a de proprietário [nisto acompanhando aquele autor (António Latas)], mas igualmente de possuidor, representante legal ou voluntário, e, entre tantas mais que possam cogitar-se, a de condutor de um veículo: neste caso sendo inequívocos certos efeitos jurídicos que importa, tais como, sempre exemplificativamente, o de ser sujeito a testes de detecção de álcool ou estupefacientes, ser responsável por infracções estradais, e um largo etc.

3.30. É importante notar que com isto, com entender a condição de condutor de veículo como qualidade relevante para efeitos do art. 348.º-A, n.º 1, do CP, não se está a assimilar a falsa declaração sobre ela a uma estrita declaração sobre factos concretos ou acontecimentos; naturalmente coenvolvendo-a, ela alcança também aquela condição que a partir desses factos se define (a de condutor, precisamente), em conformidade aliás com o que sucederá sempre que se indague sobre qualquer “qualidade” que seja (uma qualidade não é seguramente algo de apriorístico, dificilmente se descortinando sentido em alguma afirmar que não tivesse um qualquer substrato fáctico). Acresce estarmos em crer que a respectiva transitoriedade relativa nada tira ao relevo jurídico da qualidade, vale dizer, que não é por a de condutor se reportar ao período potencialmente breve em que a condução é exercida, que deixa de ser para aqueles efeitos uma qualidade.

3.31. Esta lógica é a que seguiu a sentença recorrida, na esteira de resto do Ac. do TRE de 16/06/2015, proferido no processo 2119/13.9TAPTM.E1 (relatora Maria Leonor Esteves), que igualmente acompanhamos e de que, uma vez mais por elucidativos, aqui transcrevemos o sumário (“os arguidos, ao mentirem ao militar da GNR a respeito da identidade da pessoa que vinha a conduzir a viatura e que interveio em acidente de viação, afirmando que era o JR, quando afinal o condutor fora JJ, incorreram na prática do crime de falsas declarações, já que declararam falsamente a uma autoridade pública a identidade do condutor que conduzia a viatura automóvel e visto que a lei atribui efeitos jurídicos a tal declaração”), e ainda o seguinte excerto da fundamentação: “ou  seja, [os arguidos] produziram afirmações falsas acerca de uma qualidade – a de condutor da viatura, à qual a lei atribui efeitos jurídicos, nomeadamente quanto à necessidade de habilitação legal para o exercício da condução, à obrigação de sujeição a fiscalização da condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas e eventual responsabilidade criminal pela prática de crimes no exercício da condução – atribuindo-a a um deles, quando sabiam perfeitamente que não era esse, mas sim um outro, o condutor da viatura. Tudo de forma concertada e com o claro propósito de levar aquele militar a elaborar o auto de notícia e a participação de acidente com dados falsos sobre a identidade da pessoa, não da pessoa que ali ficou a constar como sendo o condutor da viatura, mas sim acerca de quem exercia realmente a condução, e evitar, como veio a suceder, que esta viesse a ser submetida a fiscalização legal e a sofrer eventuais consequências advenientes da prática de alguma infracção/crime em que pudesse ter incorrido. Tendo presentes as considerações acima expendidas, pensamos, assim, ser meridianamente claro que, ao contrário do que foi entendido no despacho recorrido (…), seguindo uma interpretação injustificadamente restritiva da norma incriminatória, os factos (…) integram a previsão legal do n.º 1 do art. 348.º-A do CP.”

3.32. Vistas estas razões, entendemos que deve aqui ser negado provimento à pretensão do recorrente AA, mantendo-se a condenação dele pelo crime de falsas declarações, com isto passando agora à apreciação tangente à condenação de ambos os recorrentes pelo crime também de abuso de poder, que nos termos do art. 382.º, do CP, comete “o funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa (…)”. Notando que se trata de crime próprio, isto é, que reclama no agente uma certa qualidade (a de funcionário), apenas tida pelo recorrente AA (como militar da GNR, em conformidade ao tempo dos factos com o art. 386.º, n.º 1, al. d, do CP, e actualmente e com a alteração trazida pela Lei 94/2021, de 21/12, de acordo com a al. a) do mesmo n.º 1 daquele art. 3896.º), a incriminação do recorrente DD, que por seu lado manifestamente a não tinha, fundou-se na regra de extensão da ilicitude plasmada no art. 28.º do CP (“ilicitude na comparticipação”), cujo n.º 1 postula que “se a ilicitude ou o grau de ilicitude do facto dependerem de certas qualidades ou relações especiais do agente, basta, para tornar aplicável a todos os comparticipantes a pena respectiva, que essas qualidades ou relações se verifiquem em qualquer deles, excepto se outra for a intenção da norma incriminadora”.

3.33. Dito isto, para afirmar-se o preenchimento do tipo logo pelo recorrente AA é necessário, antes de mais, i.e., independentemente de saber dos intuitos que na respectiva actuação o movessem, apurar uma acção que configure abuso dos correspondentes poderes ou violação dos seu deveres funcionais; e quanto ao recorrente DD, que não tem a referida qualidade (não lhe assistindo os poderes nem o vinculando os deveres desse estatuto), a extensão de ilicitude que fundamente a sua punição não prescinde, claro está, de que possa dizer-se ter por alguma das formas previstas no art. 26.º, do CP, sido comparticipante (ter tomado parte directa na execução do facto, por acordo ou conjuntamente com outro ou ter determinado outro à prática do facto). Começando por este último aspecto do problema, e para isso tendo em conta que o que na sentença se considera abuso dos poderes do recorrente AA é o ter este, aliás com insistência, feito comparecer ao acidente a GNR em lugar da PSP (com mira nos indevidos benefícios de um tratamento complacente que os militares daquela força lhe dispensassem, em função de ele o ser igualmente), diremos antolhar-se-nos óbvio que, nenhuma acção directa havendo nisso do recorrente DD, ainda assim e a concluir-se pelo preenchimento do crime lhe caberia igualmente a punição, uma vez que manifestamente (sempre vistos os factos provados), a actuação do primeiro fora por si determinada – nesse sentido sendo ele comparticipante.

3.34. No que contudo e a nosso ver a sentença falha de modo claro, é precisamente na afirmação de que a algum título aquela actuação do recorrente AA configurasse um abuso de poderes da sua função. Antes de mais, é importante ter presente que nas circunstâncias o recorrente não estava no exercício de funções, no transe e por isso não lhe assistindo poderes de que abusasse; e sem prejuízo de em tais circunstâncias se poder ainda assim facilmente conjecturar a possibilidade de, simulando-os ou em todo o caso arrogando-os, enfim, usando-os indevidamente na oportunidade e na finalidade, afinal deles abusar, o que no caso temos é que em boa verdade nada nos factos provados revela que o recorrente tivesse determinado o que quer que fosse a quem quer que fosse, e muito menos que a final tivesse obtido, com chamar a GNR em lugar da PSP, o efeito que pretendia; este, o de evitar a sujeição do recorrente DD a testes de despiste do consumo de álcool ou estupefacientes, logrou-o foi com declarar-se falsamente condutor do veículo, sem que dos factos provados resulte (minimamente) que os militares da GNR a quem o declarou tivessem deixado de cumprir quaisquer das suas obrigações em virtude de se tratar de um colega (ou fosse pelo que fosse além do engano em que os induzira aquela declaração).

3.35. Procurando resumir, o fulcro da actuação supostamente abusiva dos seus poderes tomada pelo recorrente AA, estaria em que, “fazendo-se valer da sua qualidade funcional, contactou novamente a Sala de Situação da GNR, pedindo para falar com o MM, a exercer as funções de Graduado de Serviço, e declarou-lhe que tinha tido um acidente automóvel e que a patrulha da GNR se recusava a tomar conta da ocorrência, uma vez que este tinha ocorrido em área da competência da PSP. Colocado perante tais factos, assim expostos por um militar da GNR, a exercer funções no Destacamento de Trânsito ..., o Cabo MM accionou uma patrulha do Destacamento de Trânsito que se deslocou para o local do acidente. Nessa sequência, uma outra patrulha do Destacamento de Trânsito (…) deslocou-se também para o local da ocorrência”, e perante os respectivos elementos identificando-se e declarando-se ele condutor do veículo, “em consequência, os militares da GNR não se deslocaram ao Centro Hospitalar ... para aí submeterem o arguido DD aos testes de alcoolémia e de despistagem de substâncias psicotrópicas”. Com o devido respeito, há nesta construção um salto lógico, que consiste em passar por cima da evidência de que o que conduz a que os militares não submetessem o recorrente SS a testes não foi o facto de serem da GNR e colegas do recorrente AA, por deferência entre camaradas ou por que de algum modo este a isso os tivesse determinado (coisas que não têm suporte algum nos factos provados, insista-se), mas antes e como se disse o ter-lhes sido pelo mesmo falsamente declarado que era o condutor (e por isso o submeteram a si aos tais testes).

3.36. Por outro lado, temos que logo à partida se afigura deslocado, salvo o devido respeito, ver na opção pela chamada da GNR em detrimento da PSP, em si mesma, um qualquer abuso de poderes, isto é, um emprego dos que o recorrente AA tivesse desviado dos fins para que os tivesse, instrumentalizando-os aos seus e ilegítimos, e isso porque fosse qual fosse a sua intenção (sejamos claro: era de porventura beneficiar de leniência que os colegas lhe dispensassem), em todo o caso tem de notar-se não ser exacta a afirmação de que aquela força não fosse a competente para ocorrer ao acidente e registá-lo. Já acima o referimos (cfr. supra, II/3/3.11), a outro propósito, mas aqui o reiteramos, e até com maior detalhe: nos termos do art. 5.º da Portaria 340-A/2007, “para garantir o cumprimento da missão de segurança, controlo do tráfego e fiscalização rodoviária, de forma integrada, permanente e geograficamente ininterrupta, nas infraestruturas constitutivas dos eixos da rede nacional fundamental e da rede nacional complementar, tais vias são atribuídas à responsabilidade da GNR, em toda a sua extensão, fora das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto”; o Anexo I.-1/2 reporta-se à divisão de competências entre a GNR e PSP para o policiamento geral, por referência ao art. 1.º da Portaria. Breve, independentemente da intenção com que os recorrentes preferiam a intervenção da GNR e em vista da qual o recorrente AA chamou especificamente essa força, objectivamente nada havia afinal de errado em chamá-la, e sobretudo nada na respectiva actuação foi por ele determinado senão no que, e na medida em que, resultou de uma vez os respectivos militares no local, ter-lhes declarado falsamente ser ele o condutor – o que dá preenchimento ao acima já apreciado crime de falsas declarações, mas não certamente ao de abuso de poder, que se não lobriga.

3.37. Recorde-se, para encerrar este tema, que o tipo de crime do abuso de poder está construído em vista de uma incriminação subsidiária ou residual: «só encontra aplicação na falta de tipo legal de crime contra a administração do Estado de carácter mais específico (subsidiariedade que ficou aliás expressa no próprio texto da norma penal em relação aos “casos previstos nos artigos anteriores”(…)» [cfr. Paula Ribeiro de Faria, in “Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial”, T. III, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pp.774 e 781]. Precisamente, com a referida conduta de falsamente e perante os militares da GNR se dizer o condutor do veículo, é que o recorrente AA logrou afinal o objectivo visado (evitar a sujeição do verdadeiro condutor, o recorrente DD, aos testes de detecção de álcool e estupefacientes), e com ela integrou um crime de falsas declarações, do art. 348.º-A, n.º 1, do CP, isto é, da Secção I (“Da resistência, desobediência e falsas declarações à autoridade pública”), do Capítulo II (“Dos crimes contra a autoridade pública”), do Título V (“Dos crimes contra o Estado”) do Livro II (“Parte especial”) do CP. E se a conduta já o integra, então a punição pelo de abuso de poder, posto que deste houvesse igualmente preenchimento (e vimos que não há) e a falsidade de declaração lhe fosse instrumental, importaria a respectiva consunção – uma vez que o de abuso de poder contempla pena mais grave (até três anos de prisão ou multa, em comparação com pena até um ano de prisão ou multa), e o inciso final da norma do art. 348.º-A, n.º 1, do CP, directamente prevê para tais hipóteses a aplicação da pena mais grave que porventura caiba por outra disposição legal.

3.38. Em suma, a mais de com a factualidade provada e ao nível do tipo objectivo se não poder afirmar o preenchimento do crime de abuso de poder do art. 382.º, do CP, do qual ambos os recorrentes têm por isso de ser absolvidos, também nessa medida merecendo o recurso provimento, sempre se diria, caso aquele preenchimento se verificasse, que a condenação por ele e pelo de falsas declarações seria uma indevida sobreimputação. Aqui chegados, temos então que a final apenas são devidas condenações pelo crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 1, e 202.º, al. a), do CP, quanto a ambos os recorrentes (aproveitando-se para notar que o preenchimento dele em nada é prejudicado pela circunstância de não haver crime de falsificação de documento com ao preenchimento da declaração amigável e de se não mostrar preenchido o crime de abuso de poder), e ainda e em concurso, pelo crime de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348.º-A, n.º 1, do CP (este apenas quanto ao recorrente AA), pelos outros devendo ser absolvidos. Naturalmente, isto implica no caso do recorrente DD a desconsideração da pena de concurso determinada na sentença recorrida (dezasseis meses de prisão), remanescendo somente a que ali lhe foi aplicada pelo crime de burla (doze meses de prisão), e naturalmente mantendo-se a suspensão da execução respectiva, nos precisos termos determinados (sujeita a regime de prova), mas por período que relativamente ao decidido seja pelo menos proporcionalmente diminuído, afigurando-se-nos adequado o de igualmente doze meses. Quanto ao recorrente AA, a situação fica apenas ligeiramente mais complexa, já que, remanescendo dois crimes e correspondentes penas (nove meses de prisão, pelo de burla qualificada, e de cinco meses de prisão, pelo de falsas declarações), importa refazer o cúmulo que na sentença e tendo em conta os mais crimes graduara a pena única em vinte meses de prisão, nele tendo em conta apenas aquelas duas. Para o efeito, e nisso mantendo os critérios seguidos na sentença recorrida, conformes ao art. 77.º, n.º 1 e 2, do CP, mostra-se-nos adequada a pena única de doze meses de prisão, também aqui naturalmente se mantendo a suspensão da execução respectiva, nos termos decididos (com sujeição a regime de prova) mas com igual redução do correspondente período, que assim se fixa igualmente em doze meses.

3.39. E ao cabo de tudo quanto antecede já, eis-nos agora com a última das questões suscitadas, que é a da declaração de perda de vantagens, nos termos do art. 111.º, n.º 4, do CP (na redacção da Lei 32/2010, de 02/09, que era a que vigorava à data dos factos – 16/06/2015 –, não havendo motivos para entender que a actual fosse aos recorrentes de algum modo e em qualquer medida mais favorável). Dispunha a norma que: “1 – (…); 2 – São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie; 3 – O disposto nos números anteriores aplica-se às coisas ou aos direitos obtidos mediante transacção ou troca com as coisas ou direitos directamente conseguidos por meio do facto ilícito típico; 4 – Se a recompensa, os direitos, coisas ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor”. Sintetizando, o que na sentença recorrida se entendeu, nisso acompanhando o Ac. do TRP de 25/09/2019, proferido no processo 964/15.0IDPRT.P1 (relator Jorge Langweg), foi que tendo da conduta dos recorrentes resultado que a companhia seguradora burlada (a quem foi escamoteado o verdadeiro condutor e, com isso, as possibilidades prevalecer-se eventual exclusão de responsabilidade), fez pagamento ao recorrente DD, e a título de indemnização pelos danos causados na respectiva viatura, da quantia de 14.833,51 €, que o mesmo fez seus (assim com a respectiva actuação criminosa para si os adquirindo ele e para ele os adquirindo o recorrente AA), então, e independentemente dos meios de ressarcimento que a lesada tenha disponíveis, e tenha-os ou não usado, sempre aquela perda (da quantia referida) teria de ter lugar, por impô-lo a teleologia de prevenção da norma.

3.40. Não podemos acompanhar essa posição, de modo algum. Isto implica naturalmente esclarecimentos adicionais, para cuja prestação, e sem iludir as divergências jurisprudenciais que na matéria se vêm manifestando, começamos por notar que, como é sabido, a perda de vantagens é exclusivamente determinada por necessidades de prevenção [cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 4.ª ed. Actualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2021, p. 495], não se tratando de uma pena acessória porque não tem relação com a culpa do agente, nem de um efeito da condenação, porque também não depende de uma condenação. Trata-se de uma medida sancionatória análoga à medida de segurança, pois baseia-se na necessidade de prevenção do perigo da prática de crimes, "mostrando ao agente e à generalidade que, em caso de prática de um facto ilícito típico, é sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito decorrente do ofendido”. É claro que todo o lucro ou benefício obtido à custa de coisa, direito ou quantia de que o agente de um facto ilícito se apropria, deve ser visto como uma vantagem que, nos termos do art. 111.º, do CP (temos sempre em vista a já dita redacção), deve ser declarada perdida a favor do Estado. Dito de outro modo, e tendo presente o ilícito contra a companhia seguradora, de burla, e a instrumentalidade nele das falsas declarações, julgamos indiscutível que o que foi recebido deve ser considerado como “produto” do crime, mas isso não se pode confundir com “vantagem” do crime.

3.41. É pacífico, e em linha com o já afirmado fundamento único da medida em razões de prevenção, que o regime da perda se justifica como meio de assegurar a privação de ganhos obtidos com o crime, nisso reafirmando, na realidade patrimonial, o dever-ser jurídico penal – com o necessário efeito acrescido de desmotivação ao crime. Porém, em rectas contas isso só faz sentido em relação ao que, não sendo direito do lesado (ultrapassando-o), e nessa medida em sentido próprio seja uma vantagem distinguível de produto do crime, não seja por isso recuperável por ele ou por quem quer que seja, em tais termos que se não fosse perdida a favor do Estado importaria enriquecimento do agente com o crime mesmo depois de restituir o produto dele (pense-se na hipótese de aplicações que, feitas com dinheiro obtido com o crime, o produto dele, tivessem frutificado, porventura significativamente; o agente restituiria o produto do crime, mas tiraria aqueles frutos como vantagem, se não fossem declarados perdidos a favor do Estado). Breve, à perda a favor do Estado a que alude o art. 111.º, n.º 2 e 4, do CP (sempre na referida redacção), só haverá lugar quando tenha efectivamente havido em sentido próprio uma vantagem e, nessa medida, não só exista um mínimo de utilidade nessa perda, como sobretudo não resultem prejudicados os direitos do ofendido (expressamente ressalvados pelo n.º 2, daquele art. 111.º, do CP – hoje pelo n.º 6.º do art. 110.º, do CP).

3.42. Vendo as coisas com mais detalhe, a noção de vantagem a que alude aquele art. 111.º, do CP, tem o sentido de um incremento patrimonial efectivo, algo com duas implicações: (i) que seja tomado em conta o património do agente do crime; e (ii) que haja um real aumento desse património. Quando o agente (ou terceiro beneficiado, sublinhe-se) vê o seu património incrementado apenas com o valor tirado à vítima e é ou possa vir a ser condenado, a título de indemnização civil, a restituir-lho, não existe (não sobra) qualquer vantagem. E não existe vantagem porque o seu património está afecto ao valor do correspondente direito de crédito (da vítima). De acordo com este entendimento, só existe vantagem quando o agente vê o seu património aumentado para além, e na medida do excesso, do valor indevidamente obtido e não abrangido ou não abrangível por meios de satisfação da sua correspondente responsabilidade civil. Do art. 111.º, do CP, decorre a impossibilidade de se declararem perdidas a favor do Estado as quantias equivalentes ao valor que como direito próprio é devido à ofendida. Voltando à literalidade da norma, diz-nos a mesma que são perdidos a favor do Estado, “sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa-fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridas”.

3.43. Ora, a expressão “sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro” quer desde logo dizer que os direitos do ofendido ou de terceiro não podem eles mesmos ser declarados perdidos a favor do Estado. Isto evidencia-se especialmente nos casos em que o arguido se apropria de coisas certas, que devem ser entregues ao ofendido e não podem ser declaradas perdidas a favor do Estado; o direito de receber uma determinada quantia, dentro dos limites dessa mesma quantia, deve ter o mesmo regime. No caso, a companhia seguradora é titular de um direito de crédito relativamente a uma obrigação emergente de responsabilidade civil extracontratual, e esse direito de crédito não pode ser declarado perdido a favor do Estado, como é óbvio. Quando a lei quer impedir que a perda a favor do Estado prejudique o ofendido ou terceiro (art. 111.º, n.º 2, do CP), está a querer impedir que os seus direitos de crédito sejam declarados perdidos a favor do Estado, e se o direito de crédito do ofendido não pode ser declarado perdido a favor do Estado, também não pode ser declarado perdido a favor do Estado o dever dos sujeitos passivos de cumprirem a obrigação que lhe corresponde. Assim, em termos literais, ou melhor dizendo, estruturais – pois temos em vista a estrutura da relação jurídica de onde emerge a alegada vantagem –, “sem prejuízo dos direitos do ofendido” significa que a obrigação de entrega (por corresponder a um direito da companhia seguradora) não pode ser declarada perdida a favor do Estado.

3.44. Chamar a esse valor cuja entrega se determina uma “vantagem”, é só mudar-lhe o nome, pois continua a ser uma obrigação cujo titular activo é, no caso, a companhia seguradora. Sendo indiscutível que a quantia a esta decida é o objecto de uma obrigação cujo sujeito activo ou, dito de outro modo, cujo titular, é o ofendido, a mesma não pode ser declarada perdida a favor do Estado, pois o artigo 111.º, n.º 2, do CP, não permite que se declare perdido a favor do Estado um direito cujo titular seja o ofendido. Enfim, neste (correcto) entendimento do regime da perda de vantagens, hoje facilitado pela circunstância de ser mais clara, no art. 110.º, n.º 1, als. a) e b), a destrinça entre produtos e vantagens, torna-se mais claro que o mesmo não justifica a respectiva declaração a título meramente intimidatório e sem utilidade prática, nem muito menos que tenha lugar a custo dos direitos do ofendido ou colocando o visado na situação duplamente penalizante de satisfazer ao Estado o produto do crime, o valor com ele directamente obtido a débito do património do lesado, e ainda de restituí-lo a este… Ora, não se tendo demonstrado qualquer ganho de algum dos recorrentes que excedesse aquele valor, isto é, que com ele ou a partir dele tivessem obtido, em boa verdade nem podemos falar de vantagem que coubesse ser perdida a favor do Estado e, em linha com isso, está a evidência de que o objecto da decisão recorrida é neste plano, afinal, precisamente a quantia ilegitimamente obtida da companhia seguradora lesada! Se estamos perante um direito de crédito cujo titular é a ofendida, parece que não pode o tribunal declarar perdida a favor do Estado a obrigação/correspectivo jurídico desses direitos, com fundamento em um artigo de lei que manda precisamente salvaguardar os “direitos do ofendido ou de terceiro” – em todo o caso não sendo decerto necessário e nem mesmo tendo cabimento o efeito preventivo da declaração de perda de vantagens a favor do Estado se o que com ela se visa é, afinal, a quantia a que a ofendida tem direito e pode ela mesma exigir dos arguidos.

3.45. Neste sentido, embora com pressupostos de facto algo diversos (em geral focando valores devidos à Segurança Social ou à Administração Tributária mas não entregues, e assim no âmbito de crimes de abuso de confiança fiscal ou contra a Segurança Social), cfr., a título exemplificativo, os Ac. TRP de 30/04/2019, proferido no processo n.º 1325/17.1T9PRD.P1 (relatora Élia São Pedro) [“I – O regime jurídico da perda de vantagens não justifica que sejam declaradas perdidas a favor do Estado vantagens que efectivamente não existiram, nem justifica declarações de perda meramente intimidatórias e sem utilidade prática; (…) III – Só existe vantagem quando o agente vê o seu património aumentado para além, e na medida do excesso, do valor não entregue à Segurança Social e não abrangido pela condenação no pedido de indemnização civil”]; de 10/07/2019, proferido no processo 4929/17.9T9PRT.P1 (relatora igualmente Élia São Pedro), de 13/11/2019, proferido no processo 15710/17.5T9PRT.P1 (relator Nuno Pires Salpico), todos na esteira já do Ac. do TRP proferido no processo 729/17.4IDPRT.P1 [citado no de 10/07/2019], onde se sustentou, em suma, “(…) não ser possível, no crime de abuso de confiança fiscal, pelas razões que deixamos expressas, fazer equivaler, sem mais, vantagem resultante da prática do crime ao valor do imposto não entregue na administração tributária. Quando prova existir de que o não pagamento do imposto gerou vantagens (lucros, benefícios, compensações) e apurado que esteja o valor dessas vantagens, ele será declarado perdido a favor do Estado, a não ser que (esse valor) tenha de ser atenuado equitativamente para que essa solução não redunde numa solução injusta ou demasiado severa”. Este entendimento foi igualmente o seguido no Ac. do TRP de 08/0/2022, proferido no processo 301/18.1T9PVZ.P1, inédito, mas aqui acompanhado de forma extensa porque o relator foi o mesmo que nessa qualidade também este subscreve.

3.46. Cremos ficar assim bastamente exposto o porquê de no caso dos autos entendermos inexistir razão para condenar os arguidos na requerida perda de vantagens a favor do Estado: nada se apurou, em sede de decisão sobre a matéria de facto, que permitisse concluir que a partir do valor com a burla obtido (por tê-lo indevidamente obtido), os arguidos tivessem de algum modo ou em que medida fosse logrado obter (para si ou para terceiro) qualquer vantagem adicional a esse valor. A esta luz, também nisto deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida na parte em que declara a perda a favor do estado, com a consequente obrigação de eles solidariamente lha entregarem, da quantia de 14.833,51 €. A mais disto e do que acima se deixara já focado, quanto à absolvição dos recorrentes dos crimes de falsificação de documento (art. 256.º, n.º 1, al. d, do CP) e de abuso de poder (art. 282.º, do CP), deve ser negado provimento a esse recurso, e a sentença recorrida manter-se-á.

III – Decisão

À luz do exposto, decide-se:

1. Julgando parcialmente procedente o recurso dos arguidos AA e DD, e nessa medida:

a) Absolver ambos do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, al. d), por que na sentença recorrida tinham sido condenados, como coautores, nas penas de seis meses de prisão cada um;

b) Absolver ambos do crime de abuso de poder, p. e p. pelo art. 382.º do CP (e quanto ao segundo com referência ao art. 28.º, n.º 1, do CP), por que na sentença recorrida tinham sido condenados, como coautores, nas penas de, respectivamente, doze meses e de seis meses de prisão; e

c) Absolver ambos da condenação, na sentença recorrida determinada, de pagamento ao Estado da quantia de 14.833,51 €;

2. No mais, negar provimento ao recurso, mantendo-se assim a condenação do arguido AA na pena de cinco meses de prisão, como autor de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo art. 348.º-A, n.º 1, do CP, e naturalmente tanto quanto a ele e como quanto ao arguido DD, mantendo-se igualmente as condenações nas penas de, respectivamente, nove meses de prisão e doze meses de prisão, como coautores de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 1, e 202.º, al. a), do CP – e, em conformidade com isto:

a) Quanto ao arguido DD, restando somente a condenação na referida pena de doze meses de prisão pelo crime de burla qualificada, manter igualmente a suspensão da execução respectiva, como na sentença recorrida ficara decidido (com sujeição a regime de prova), mas reduzindo o período dessa suspensão a doze meses; e

b) Quanto ao arguido AA, restando ainda em concurso as penas de nove meses de prisão pelo crime de burla qualificada e de cinco meses de prisão pelo crime de falsas declarações, refazer o cúmulo jurídico delas, fixando agora a pena única igualmente em doze meses, e do mesmo modo manter a suspensão da execução respectiva, como na sentença recorrida ficara decidido (com sujeição a regime de prova), mas reduzindo o período dessa suspensão a também doze meses;            

Sem custas (art. 513.º, n.º 1, a contrario, do CPP).

Notifique.


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Coimbra, 11 de Janeiro de 2023

Pedro Lima (relator)

Jorge Jacob (1.º adjunto)

Maria Pilar Oliveira (2.ª adjunta)

Assinado eletronicamente