Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
298/07.3TAPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: SENTENÇA
NULIDADE
SANÇÃO ACESSÓRIA NÃO CONSTANTE ACUSAÇÃO
GRAVAÇÃO DEFICIENTE
Data do Acordão: 10/21/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE POMBAL – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 32º CRP 358º, 359º, 363º, 364º, 379º, 1 B). 410º, 3, 424º CPP E 9º D.L. 39/95-15/2
Sumário: 1. Nada se dizendo na acusação quanto à aplicação ao arguido, por via das contra-ordenações imputadas, da inibição de conduzir, nem sequer se fazendo referência ao artº 145º nº 1 f) CE, não podia ele estruturar a sua defesa quanto a tal sanção acessória, ficando por essa razão impossibilitado de exercer o contraditório em relação à mesma.
2. Daí que qualquer alteração que ocorra na qualificação jurídica dos factos que foi feita na acusação e de que possa resultar um agravamento para o arguido, como é o caso da aplicação da sanção de inibição de conduzir, terá obrigatoriamente de ser previamente dada a conhecer ao arguido para que este dela se possa defender.
3. Outra interpretação que não seja a de se admitir a arguição da nulidade da gravação no recurso interposto da matéria de facto, viola o artº 32º nº 1 da Constituição, que consagra o direito ao recurso como uma das garantias de defesa em processo penal, pois lhe restringe excessiva e desproporcionadamente o direito de impugnar as nulidades ocorridas na gravação de uma anterior sessão de julgamento.
Decisão Texto Integral: RELATÓRIO

Em processo comum singular do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal, por sentença de 2 de Dezembro de 2008, foi, para além do mais, decidido condenar o arguido J..., em cúmulo jurídico, pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artº 148º nº 1 CP, na pena única de 145 dias de multa, à taxa diária de € 7,00 e ainda em 4 meses de proibição de conduzir pela prática de duas contra-ordenações, sendo uma ao disposto nos artºs 38º nº 1 e 3 e 145º nº 1 f) CE e outra ao disposto nos artºs 43º nº 1 e 145º nº 1 f) CE.
Inconformado o arguido interpôs recurso.
Formula as seguintes conclusões:
“ 1- Não constando da acusação a menção da classificação das contra-ordenações como graves, a punibilidade do arguido com a sanção acessória de inibição de conduzir ou a respectiva legislação, nomeadamente o artigo 145° do C.E., a aplicação de sanção acessória de inibição de condução implica uma alteração substancial ou não substancial da acusação, para efeitos do disposto nos artigos 358° e 359° do C.P.P., e trata-se de questão que o juiz não podia tomar conhecimento por não constar da acusação.
2- Assim, a sentença é nula, nos termos do disposto no artigo 379°, nº 1, als b) e c), do C.P.P.
3- Não constando da motivação da sentença qualquer referência à prova da ocorrência dos factos dentro de uma localidade nem isso constando da prova efectivamente produzida, ao dar-se como provado que o acidente ocorreu dentro da localidade de Pombal e a respectiva limitação de velocidade máxima a 50Km/hora, existe erro notório na apreciação da prova, tanto documental como oral- artigo 410°, nº 2, al. c) do C.P.P.
4- Existe contradição insanável da fundamentação, relativamente aos factos assentes em 3,13,39 e 48, nos termos do disposto no artigo 410°, nº 2, al. b), do C.P.P., pois o arguido não pode, simultaneamente, por um lado, ter passado pelo ciclomotor a 70/80 Km e mudado repentinamente à direita e, por um lado, ter passado pelo ciclomotor à referida velocidade depois a "diminuir" e de "accionar o sinal de mudança de direcção à direita".
5- Também existe erro notório na apreciação da prova, tanto documental como oral (artigo 410°, nº 2, al. c) do C.P.P.), ao considerar-se o depoimento dos demandantes cíveis e da testemunha E..., onde consta que o arguido passou pelos demandantes a grande velocidade ("vruum") e que mudou de imediato á direita.
6- Face análise da prova, não pode ser dado como provado que o arguido repentinamente muda de direcção para a direita, cortando a passagem ao ciclomotor, que o local do embate situa-se dentro da localidade de Pombal, onde existe limitação de velocidade máxima a 50 Km/hora, que os demandantes cíveis com atenção, cuidado e concentração na condução e que o embate do ciclomotor na viatura conduzida pelo arguido se ficou a dever á manobra deste.
7- Face à falta de prova, deve o arguido ser absolvido da acusação, relativamente ao crime previsto e punido pelo artigo 148°, nº 1, do C.P.
8- Face à falta de menção, na acusação, da punibilidade com sanção acessória e da respectiva norma (artigo 145° do C.E.) o arguido deve ser absolvido das contra­ordenações.
9- Encontrando-se a prova imperceptível a prova no dia 31-10-2008, verifica-se a nulidade prevista no 363º e 364º do C.P.P.”
Respondeu o MP, reconhecendo que a 1ª sessão da audiência de julgamento contém deficiências de gravação que impossibilita o conhecimento da matéria de facto. No restante entende que o recurso não deve proceder.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto nesta Relação emitiu douto parecer no qual conclui pela procedência da nulidade traduzida na falta de correcta gravação da audiência realizada em 31-10-2008.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

É a seguinte a matéria de facto dada como provada na 1ª instância:
“ 1. No dia 26 de Dezembro de 2006, cerca das 12 horas e 45 minutos, o ofendido A... circulava pela Estrada Nacional 1, Pombal (em frente ao restaurante "Manjar do Marquês"), conduzindo o cic1omotor de matrícula 2-PBL-00-00, junto à berma, no sentido de marcha Coimbra - Leiria, transportando como passageira a ofendida M....
2. Por seu lado, o arguido J... seguia na mesma via e no mesmo sentido de trânsito, atrás dos ofendidos, conduzindo o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula 00-00-LB.
3. A certa altura, ao chegar ao Km 151,024 da citada via, o arguido efectua a manobra de ultrapassagem ao citado ciclomotor conduzido por A..., num local que é imediatamente seguido por um entroncamento à direita, e repentinamente muda de direcção para a direita, entrando para a Rua da Zona Industrial, cortando a passagem ao ciclomotor que foi embater na viatura conduzida pelo arguido no momento em que este efectuava a citada manobra de mudança de direcção à direita.
4. Em virtude do descrito embate resultaram para a vítima A..., entre outras lesões, traumatismo costal à esquerda e no membro inferior esquerdo, que lhe determinaram, directa e necessariamente, 177 dias de doença, todos com incapacidade para o trabalho.
5. E resultaram para a ofendida M..., entre outras lesões, traumatismo crânio-encefálico com perda de conhecimento, traumatismo da face, coluna cervical e dorsal do membro inferior esquerdo, que lhe determinaram, directa e necessariamente, 104 dias de doença, todos com incapacidade para o trabalho.
6. O local do embate é uma recta em patamar com entroncamento de boa visibilidade e a via tem cerca de 6,50 metros de largura (incluindo já os cerca de 2,7 metros da berma).
7. Estava bom tempo, o piso estava seco, em bom estado e limpo de manchas de óleo e areias.
8. O local do embate situa-se dentro da localidade de Pombal, onde existe limitação de velocidade, com proibição de circular a mais de 50 Km/hora.
9. Ao contrário do que bem sabia obrigado, o arguido conduzia distraído, descuidadamente e imprevidentemente, sem consideração pelos demais utentes da via, efectuando a manobra de mudança de direcção à direita, repentinamente, logo após ter terminado a manobra de ultrapassagem ao ciclomotor onde seguiam as vítimas, sem cuidar de se certificar que não obstruía, como obstruiu, a circulação normal deste na via.
10. Actuou violando de forma grave e elevada os deveres objectivos de cuidado apontados a que bem sabia obrigado, com ligeireza e irreflexão, omitindo as precauções exigidas pelas condições do local e pela situação concreta, bem como pela elementar prudência que deve ser observada na condução automóvel.
11. Daí o embate, que não teria ocorrido se o arguido tivesse adoptado as mencionadas cautelas, sendo certo que tinha capacidade de prever que a sua conduta naquelas circunstâncias poderia originar, como originou, os resultados descritos.
12. O arguido sabia que as condutas por si praticadas eram vedadas pela lei penal por serem ilícitas e criminalmente puníveis.
13. Os demandantes A... e M..., portadores de capacetes de protecção colocados nas respectivas cabeças, circulavam com o seu ciclomotor animado de velocidade de cerca de 30 km/hora, com atenção, cuidado e concentração na condução.
14. Face à manobra de mudança de direcção à direita efectuada pelo arguido, ainda travou, acabando por embater no veículo conduzido pelo arguido com a parte da frente do ciclomotor na traseira lateral direita do carro.
15. Com o impulso do embate, os demandantes desequilibraram-se e foram projectados para o asfalto, onde ficaram a padecer de lesões, dores e a demandante M...a sangrar.
16. O embate ocorreu na referida Estrada Nacional junto à linha descontínua que delimita a faixa de rodagem e a berma direita desse mesmo lado, ficando o ciclomotor tombado na via e o veículo automóvel imobilizado na Rua da Zona Industrial.
17. Em consequência do embate, o demandante sofreu ainda hematúria por contudo renal esquerda.
18. Perante as lesões que apresentavam, os demandantes foram socorridos de urgência e transportados de ambulância dos Bombeiros Voluntários às urgências do Hospital Distrital de Pombal.
19. Daí, o demandante foi encaminhado para o Hospital de Santo André, em Leiria.
20. Enquanto a demandante M...foi transferida para o Centro Hospitalar de Coimbra.
21. Onde deram entrada no serviço de urgência para observação, exame, tendo sido radiografados e sujeitos a internamento hospitalar para tratamento médico e medicamentoso.
22. O demandante A... esteve acamado no serviço de urologia, desde o dia 21 de Dezembro de 2006 até ao dia 7 de Janeiro de 2007, em repouso absoluto e sujeito a medicação, com indicação de fazer hidratação oral, havendo necessidade de ser efectuada, posteriormente, nova reavaliação do seu estado.
23. Por sua vez, a demandante esteve no serviço de cirurgia do Hospital Distrital de Pombal desde o dia 21 de Dezembro de 2006 até ao dia 25 de Dezembro de 2006, medicada com anti-inflamatórios e com indicação para usar colar cervical de 36 apoios durante 4 semanas.
24. Apesar de tais prescrições médicas, a demandante sofreu episódios de perda de consciência e vertigens e, em 29 de Janeiro de 2007, cefaleias, cervicalgias e tonturas agravadas após ter tirado o colar cervical a 19 de Fevereiro de 2007, necessitando de ser examinada no Hospital Distrital de Pombal.
25. O demandante A... nasceu a 29 de Janeiro de 1940 e a demandante M... nasceu no dia 22 de Maio de 1941.
26. Pese embora a sua idade, os demandantes ainda trabalhavam nos campos agrícolas e a demandante também na lide doméstica, designadamente confeccionando e preparando as refeições, lavando e arrumando a louça, lavando e estendendo a roupa, recolhendo-a, passando a ferro, fazendo a limpeza da casa, cavava, semeava, plantava, sachava, regava, cuidava e colhia as hortas, hortícolas e leguminosas nos quintais, sendo pessoas autónomas e independentes.
27. Com gosto e alegria pela vida, viram-se os demandantes forçados a acompanhamento médico e sujeitos a medicação regular.
28. A demandante viu ainda a sua mobilidade limitada pelo colar cervical usado durante um período de tempo, dificultando-lhe os movimentos de rotação do pescoço e da própria cabeça.
29. Necessitando do apoio de terceiras pessoas nas lides domésticas, bem como nos transportes a consultas, tratamentos e urgências.
30. O demandante sofreu traumatismo costal no terço inferior esquerdo e dores no hemotorax e zona ilíaca esquerda, com intemamento por traumatismo com contusão renal esquerda.
31. O demandante A... ficou com o membro inferior esquerdo com limitação dolorosa das mobilidades da anca.
32. Por sua vez, a demandante M...ficou ainda com vestígio de cicatricial na face, na região supraciliar esquerda, medindo 2 cm x 5 mm, e com vestígio cicatricial na região malar esquerda, medindo 5 mm de diâmetro; limitação dolorosa das mobilidades da coluna cervical; membro inferior esquerdo com edema residual no tornozelo; sofreu tonturas, desequilíbrio, vómitos e tique de fechar (piscar) continuadamente os olhos.
33. O demandante deixou de poder continuar a executar trabalhos agrícolas nas suas propriedades, durante o período de incapacidade, dadas as dores do membro inferior esquerdo, nomeadamente na zona da coxa esquerda.
34. A demandante continua a sofrer de sintomas de tonturas e perdas de equilíbrio, esquecimento, com tiques de fechar os olhos e baixar a cabeça.
35. Os demandantes ficaram ainda privados de passar a quadra natalícia e a passagem de ano para 2007 com os seus entes queridos e familiares, o que lhes provocou angustia, desgosto e tristeza.
36. Ainda em consequência do acidente estiveram privados do uso do ciclomotor, seu único meio de transporte, que ficou danificado, impedido de circular pelos seus meios.
37. Os demandantes tiveram ainda de suportar os seguintes encargos e despesas:

Data Discriminação Valor
05/0112007 medicamentos prescritos 5,87 €
29/01/2007 medicamentos prescritos 26,49 €
11/05/2007 medicamentos prescritos 30,76 €
19/06/2007 medicamentos prescritos 26,02 €
21/06/2007 medicamentos prescritos 9,99
07/07/2007 medicamentos prescritos 6,39
07/07/2007 medicamentos prescritos 9,90€
17/07/2007 medicamentos prescritos 15,92 €
29/01/2007 consulta medicina interna 60€
26/02/2007 consulta medicina interna 60€
11/05/2007 consulta medicina interna 60€
15/06/2007 consulta medicina interna 60€
06/07/2007 consulta medicina interna 60€
16111/2007 consulta medicina interna 60€
24/02/2007 ecografia renal
50€
28/06/2007 ecografia
membros 65 €
inferiores
Total
606,34
38. Os demandantes são hoje pessoas com limitações e redução da sua autonomia e auto-confiança.
39.O demandado circulava a uma velocidade de cerca de 70/80 Km/hora.
40. A responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo automóvel com a matricula 00·00·LB encontrava-se transferida para a demandada "Real Seguros, S.A." por contrato de seguro titulado pela apólice n. o 90/317725.
41. A demandada não assumiu a culpa do seu segurado e não procedeu a qualquer pagamento.
42. No dia 21 de Dezembro de 2006, deu entrada no Centro Hospitalar de Coimbra, E.P.E., M..., onde recebeu tratamento no serviço de urgência.
43. A assistência que lhe foi prestada foi originada pelos ferimentos apresentados em consequência do acidente de viação ocorrido na E.N. 1, em Pombal, em frente ao restaurante "Manjar do Marquês", junto à berma, no sentido de marcha Coimbra - Leiria.
44. Os encargos com a assistência prestada ascendem a 143,50 €.
45. No dia 21 de Dezembro de 2006, A... e M... receberam tratamento no Hospital Distrital de Pombal, vítimas de acidente de viação motivado pelo veículo automóvel de matrícula 00-00-LB, pertencente e conduzido pelo arguido.
46. Os tratamentos efectuados aos sinistrados importam em 2511,05 €.
47. No local, a E.N. 1 é formada por três meias faixas de rodagem, duas no sentido Norte - Sul, sendo que uma destas se destinava aos condutores que pretendiam mudar de direcção à esquerda, e uma em sentido inverso.
48. Quando o condutor do veículo 00-00-LB, junto ao Km 151,030, passou pelo ciclomotor 2-PBL-00-00, conduzido pelo demandante A..., e por pretender passar a circular na Rua da Zona Industrial, diminuiu a velocidade e accionou o sinal de mudança de direcção à direita.
49. Certificando-se até que não circulava qualquer veículo na meia faixa de rodagem daquela Rua da Zona Industrial, efectuou a manobra de mudança de direcção para a identificada via, pretendendo entrar no acesso à dita Rua.
50. Imediatamente após o acidente, o arguido J... telefonou do seu telemóvel para os Bombeiros Voluntários de Pombal, pedindo auxílio para o acidente em que acabara de ser interveniente.
51. O arguido é pessoa trabalhadora, sendo bem considerado no meio social em que se insere.
52. Exerce a profissão de fiel de armazém (distribuidor), auferindo um rendimento mensal de cerca de 500 €.
53. O arguido é solteiro e reside com sua namorada em casa do pai desta, não tendo filhos.
54. Tem como habilitações literárias o 11º ano de escolaridade.
55. O arguido não tem antecedentes criminais nem estradais.”
Matéria de facto não provada:
“Por sua vez, não se mostraram provados com relevância para a decisão da causa os seguintes factos:
1. Com o impulso do embate, os demandantes A... e M... ficaram no asfalto com fracturas e o demandante com hemorragias.
2. Os demandantes não possuíam limitações ou antecedentes traumáticos de qualquer natureza.
3. A demandante necessita de ajuda para se levantar, além de ter episódios de perda de consciência, com desorientação, não podendo sair à rua sozinha, sendo hoje pessoa dependente de terceiros.
4. O ciclomotor teve de ser levado por meio de reboque até às instalações da empresa "J…, Lda", onde veio a ser mais tarde reparada, tendo tal reparação importado no valor de 685,81 €.
5. Ainda em consequência do acidente, os demandantes tiveram de suportar os seguintes encargos e despesas:

nata Discriminação Valor
17/0112007 Optica 200€
24/0112007 Serviço de táxi 5€
09/0412007 Serviço de táxi 5€
29/0512007 Serviço de táxi 65 €
19/02/2007 Gasóleo 30,01 €
14/0412007 Dentista 90€

6. A demandante sofre diariamente intensas dores e as sequelas decorrentes do acidente perdurarão futuramente, até ao final da sua vida, designadamente reacção traumática ao acidente, incluindo de conduzir ciclomotor, tendo calo ósseo nas vértebras fracturadas, com maior sensibilidade e dor à palpação.
7. Os demandantes são hoje pessoas deprimidas, tristes e abatidas, com sequelas permanentes e com agravamento ao longo da vida.
8. O demandado pretendia levar um saco de betume para assentar azulejo e ir almoçar.
9. Pouco antes do local do acidente, havia entrado na via de forma abrupta e quase à frente de um veículo automóvel a circular na mesma, o qual teve de abrandar a marcha para evitar a colisão.
10. O condutor do veículo de matrícula 00-00-LB foi embatido de forma súbita e inesperada pelo ciclomotor de matrícula 2-PBL-00-00, conduzido pelo demandante A…, o qual transitava pela berma existente no local, mais à direita do veículo seguro, em local não destinado à circulação de veículos e/ou motociclos.
11. A manobra de mudança de direcção à direita, realizada pelo arguido, foi efectuada a velocidade muito reduzida.
12. Só a circunstância de o condutor do ciclomotor circular pela berma direita da estrada e a sua desatenção e imperícia deram causa ao embate, tendo assim tido uma conduta imprudente.
13. Não tendo sido possível prever a conduta do condutor do ciclomotor de matrícula 2­-PBL-00-00, nem sendo exigível outra conduta ao condutor do veículo 00-00-LB, o arguido.
14. Cerca de 60 metros depois de ter ultrapassado o demandante civil A..., accionou o arguido o dispositivo luminoso de indicação de mudança de direcção para o lado direito, reduziu a velocidade e, cerca de 15/20 metros depois, iniciou a manobra de mudança de direcção para o lado direito.
15. Quando o arguido reduziu a velocidade, o demandante não passou a circular Junto ao eixo da via, não efectuou a manobra de ultrapassagem, nem reduziu a velocidade, indo embater com o ciclomotor no canto do lado direito da parte de trás do veículo ligeiro de passageiros.”
Motivação de facto:
“ O Tribunal alicerçou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida, sendo de salientar, desde logo, as declarações do arguido J..., o qual precisou, desde logo, de forma pronta, as circunstâncias de tempo e de espaço em que os factos ocorreram, assim como a velocidade de 70 a 80 km/hora a que seguia, factos que em conformidade foram dados como provados.
No que à dinâmica do acidente diz respeito, não ficou o Tribunal convencido da versão por ele apresentada em audiência de julgamento, designadamente que o ciclomotor se encontrasse a circular na berma e que o próprio tivesse iniciado a manobra de ultrapassagem e finalizado a mesma ainda a cerca de 45 metros do entroncamento, tendo assim sido dado como não provado que tivesse sido cerca de 60 metros depois da ultrapassagem ao demandante civil que accionou o dispositivo luminoso de indicação de mudança de direcção à direita e cerca de 15/20 metros depois tivesse iniciado a manobra de mudança de direcção, até pela demais actividade probatória, a qual revelou maior conformidade com o croquis de fis.7.
Com efeito, perante a versão dos acontecimentos por ele apresentada, foi inequívoca a incapacidade do arguido para explicar os motivos pelos quais o ciclo motor terá, segundo ele, fiectido para o lado direito e embatido na parte traseira do seu veículo, já prestes a entrar na Rua da Zona Industrial. Reconheceu o mesmo, perante tal versão, não possuir explicação para tal facto.
Diferentemente, o demandante A... prestou declarações de modo mais coerente, asseverando que circulava a cerca de 25/30 kmJhora junto à berma (do lado da estrada) quando foi ultrapassado muito próximo do entroncamento pelo arguido, o qual mudou repentinamente de direcção à direita, para aceder à Rua da Zona Industrial, cortando-lhe a passagem, ainda tendo travado mas não tendo evitado a colisão com o veículo conduzido pelo arguido, nunca tendo vacilado perante as sucessivas perguntas com que foi confrontado, denotando até imparcialidade e objectividade quando aduziu desconhecer a concreta velocidade do arguido, mesmo quando lhe foi perguntado se aquele conduzia à referida velocidade de 70/80 kmJhora, afirmando simplesmente que iria a mais de 50 km/hora mas que não poderia dizer se atingia aquela (ou outra) velocidade.
Descreveu ainda sem exagero aparente o estado da via e do tempo na ocasião, auxiliando o Tribunal na formação da sua convicção quanto à veracidade dos factos assim apresentados.
Por seu turno, a demandante M... revelou simplicidade no seu depoimento, pautado sempre pela correcção, ainda que com alguma dificuldade em reconstituir o sucedido de forma pormenorizada e minuciosa, detendo-se em generalidades. Ainda assim, corroborou a versão apresentada por seu marido (o demandante A…), argumentando que seguia como passageira no ciclomotor e que o arguido os ultrapassou com velocidade (tendo aqui exagerado na expressão utilizada, tendo o Tribunal depurado o seu depoimento que, mesmo assim, não resultou inquinado, dada a forma descomprometida como acabou por prestar depoimento, reconhecendo em muitas ocasiões não se recordar dos factos) e mudou repentinamente de direcção, a que se seguiu o embate, não revelando maior capacidade de descrição, uma vez que terá perdido os sentidos. Porém, ainda chegou a identificar as instituições nas quais recebeu tratamento hospitalar.
Para corroborar a convicção do Tribunal no sentido de dar como provada a mudança repentina de direcção à direita por parte do arguido, cortando a passagem ao ciclomotor conduzido pelo demandante, após a ultrapassagem efectuada, revelaram-se ainda decisivos os depoimentos de E… e de G....
Com efeito, a primeira das referidas testemunhas circulava mesmo em frente ao restaurante Manjar do Marquês, no sentido contrário (Pombal - Coimbra), tendo assim assistido ao embate, transmitindo de forma séria e muito segura - revelando até, por vezes, alguma intransigência - que os veículos se encontravam muito próximos quando o automóvel conduzido pelo arguido virou à direita e teve lugar a colisão com o ciclomotor, chegando mesmo a afirmar que aquele automóvel terá feito um "gancho", "trancando" a motorizada, a qual não teve oportunidade de passar (tendo aqui sido muito peremptória), o que terá sucedido ainda na faixa de rodagem, emprestando credibilidade, em consequência, à versão já apresentada pelo demandante, e afastando a tese do arguido de que havia já ultrapassado há muito o ofendido quando, ao virar para a Rua da Zona Industrial, foi por ele embatido.
Ademais, a referida testemunha descreveu com igual segurança (embora de forma menos pormenorizada) o estado em que a demandante M...se encontrava no local, estendida no asfalto, a sangrar, a utilização posterior de colar cervical, bem como seu estado psicológico, conhecimento que lhe adveio da circunstância de residir próximo dos demandantes, factualidade que em conformidade também foi dada como provada.
Por sua vez, a testemunha G... circulava com o seu veículo atrás do arguido, tendo assim tido uma visão privilegiada dos acontecimentos. Deste modo, confirmou que o ciclomotor circulava encostado à direita na faixa de rodagem, junto à berma, tendo o arguido ultrapassado o mesmo e virado de imediato à direita, não dando espaço à motorizada, dando assim origem ao embate, precisando as partes dos veículos que colidiram, assim como a assistência médica que no local foi prestada aos demandantes, o que relatou de forma objectiva. Referiu também, a par do arguido, que este sinalizou a sua manobra de mudança de direcção, o que por esta via foi também dado como provado.
Ora, das declarações do demandante e do depoimento destas duas testemunhas extraiu o Tribunal, em consequência, a ilação de que o arguido conduzia de forma descuidada, imprevidente, efectuando a ultrapassagem e depois a manobra de mudança de direcção sem atender ao ciclomotor onde seguiam os demandantes, actuando com irreflexão, de forma incauta e imprevidentemente.
Já a testemunha P..., soldado da G.N.R. que procedeu à elaboração da participação do acidente de viação, revelou imparcialidade e segurança na prestação do seu depoimento, caracterizando o espaço fisico em análise, as condições da via e o estado do tempo, assim como os danos no veículo do arguido indiciadores da zona embatida, tendo os correspondentes factos, por força do depoimento assim prestado, resultado apurados.
Também a testemunha F... (vizinha dos arguidos), prestou um depoimento inequivocamente isento, denotando sempre tranquilidade na transmissão dos seus conhecimentos, indicando as instituições hospitalares onde os demandantes foram assistidos, a autonomia de que gozavam antes do acidente e as limitações fisicas advenientes da colisão ora em análise, precisando com suficiente minúcia alguns dos ferimentos que ambos apresentavam (em especial a demandante, referindo sem hesitação que a mesma usou um colar no pescoço para correcção das sequelas e que ainda hoje apresenta tiques nos olhos, o que também foi directamente observado pelo Tribunal), não deixando de acentuar, de forma espontânea, o estado psicológico de ambos, as dores por eles sentidas e o acompanhamento médico, esclarecendo ainda o Tribunal quanto às actividades que desenvolviam e que ficaram impedidos de desempenhar durante o período de doença (a demandante as lides domésticas; o demandante as suas actividades agrícolas), factos que teve oportunidade de acompanhar de perto e observar, dada a sua relação de vizinhança.
Por seu turno, a testemunha S... abordou também de forma descomprometida, objectiva, sem denotar exagero ou parcialidade aparente, a situação fisica e psicológica dos ofendidos após a verificação do acidente, da mostrou conhecimento directo por ser vizinha dos mesmos, assim tendo retratado a actividade que aqueles exerciam antes do acidente (quer em casa, quer nos seus terrenos) e a maior inércia actual, tendo acentuado os tiques e as tonturas ainda hoje sentidas pela demandante M… .
A testemunha Z… não teve qualquer contributo acrescido para o apuramento dos factos em discussão, porquanto não assistiu aos mesmos, tendo apenas, na sua qualidade de perito de seguros, confirmado os danos existentes nos veículos intervenientes no acidente, os quais descreveu sem hesitação, tendo ainda suscitado a questão de eventualmente lhe ter sido primeiramente apresentado um croquis sem indicação de berma, contradizendo-se pouco depois, afirmando de forma honesta já não se recordar da veracidade de tal situação, ressalvando em todo o caso que tal questão não era fundamental para apuramento da responsabilidade do acidente, o que, pelos dados já expostos, também mereceu a concordância do Tribunal, sendo certo que o croquis de fls. 7 contém todas as referidas menções.
Devidamente conjugados com as declarações e depoimentos anteriores, tomou o Tribunal em consideração, para além dos documentos já mencionados, os constantes de fls. 6 a 7 (participação do acidente de viação, da qual se retira a caracterização dos veículos intervenientes no acidente, assim como a descrição do espaço físico em que o mesmo teve lugar), 8 e 103 (relativos aos danos sofridos pelo automóvel e ciclomotor), 18 a 22, 25 a 27, 29 a 40, 87 a 92, 94 a 95 (informações clínicas referentes aos demandantes A... e M…, das quais se retiram os períodos da assistência hospitalar, transportes, sequelas apresentadas, tratamentos, exames realizados e medicação ministrada), 47 a 49,51 a 54 e 168 a 169 (relatórios referente às perícias médico-­legais efectuadas aos demandantes, inferindo-se dos mesmos as lesões advenientes do acidente, consultas e tratamentos efectuados, medicação prescrita, acompanhamento médico recomendado, assim como as conclusões atinentes aos dias de doença com incapacidade para o trabalho e às dores sofridas pelos acidentados), 102 e 104 (os quais ilustram o local onde ocorreu o acidente), 225 e 226 (assento de nascimento dos demandantes), 235 a 240 (relativamente às despesas tidas pelos demandantes com medicamentos e com consultas de medicina interna, as quais se mostram em conformidade com a o tratamento e medicação prescrita constante dos relatórios acima mencionados, tendo tais documentos datas referentes aos apurados períodos de incapacidade), 241 e 247 (no que respeita à realização e pagamento de ecografia renal prescrita pelo Exm.o Sr. Dr. FM…, igualmente referenciado naqueles relatórios, para além de ecografia a parte do corpo em que sobrevieram ferimentos), 249 a 256 (consultas, episódios de urgência, períodos de intemamento e lesões apresentadas), 199,262 a 264 (referente aos tratamentos hospitalares prestados aos demandantes no Centro Hospitalar de Coimbra e no Hospital Distrital de Pombal e custos inerentes aos mesmos), 309 (apólice referente ao contrato de seguro relativo ao veículo de matrícula 00-00-LB conduzido pelo arguido) e de fis. 355 a 358 (demonstrativos, tal como declarou o arguido de forma convicta, de que este efectuou chamada telefónica para os Bombeiros Voluntários de Pombal logo após o acidente).
Diferentemente, os documentos de fis. 227 a 234 (remoção do ciclomotor e respectiva reparação), 242 e 243 (despesas em serviços de oftalmologia, aqui sendo de considerar que a testemunha F... referiu que a demandante já usava óculos antes do acidente), 242 a 245 (relativos a despesas de transporte e combustível) e 246 (referente a despesa com dentista), desacompanhados de qualquer prova, não foram suficientes para dar como provados os factos alegados a eles respeitantes.
Relativamente às condições familiares, económicas e profissionais do arguido relevaram as suas próprias declarações, prestadas nesta parte com naturalidade e, como tal, merecedoras de credibilidade.
Já as testemunhas B… e I… (amigo e tia de J..., respectivamente) auxiliaram o Tribunal no apuramento da personalidade do arguido e da consideração social que lhe é devida.
Tomou ainda o Tribunal em consideração o C.R.C. e o R.IC do arguido junto aos autos no que respeita aos seus antecedentes criminais e estradais.
Finalmente, no que se refere aos demais factos dados como não provados, ainda não aflorados, resultaram os mesmos da circunstância de sobre os mesmos não ter sido produzida qualquer prova em audiência de julgamento, não constando dos autos qualquer meio de prova com força probatória suficiente para corroborá-los.”.

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Da análise das conclusões resulta serem as seguintes as questões colocadas: - Nulidades
- Vícios de erro notório na apreciação da prova e contradição insanável de fundamentação.
Passemos então à sua análise.
A) Das nulidades
Começa o recorrente por invocar a existência de nulidade da sentença, pelo facto de ter sido punido com a sanção acessória de inibição de conduzir, sendo certo que a aplicação de tal sanção não constava da acusação.
Vejamos.
Estão em causa as contra-ordenações ao disposto nos artºs 38º nº 1 e 3 e 43º nº 1 do Código da Estrada.
Como é sabido tais contra-ordenações são graves ( artº 145º nº 1 f) CE), devendo por essa razão ser-lhes aplicável a sanção acessória de inibição de conduzir prevista no artº 147º nºs 1 e 2 do CE.
Conforme decorre dos autos, o despacho acusatório do Ministério Público, não fez qualquer referência à aplicação daquela sanção, limitando-se tão só a imputar ao arguido a prática das referidas contra-ordenações.
Ora o artº 283º nº 3 f) CPP, exige, para além do mais, que a acusação contenha a indicação das disposições legais aplicáveis, isto é devem ser indicadas as normas que estabelecem a respectiva punição, ou seja, a espécie e a medida das sanções aplicáveis.
No nosso ordenamento jurídico-processual o objecto do processo penal é fixado pela acusação ou, quando esta não exista, pelo despacho de pronúncia, sendo o objecto do processo penal que delimita os poderes de cognição do tribunal.
Como escreve a propósito Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 125.” A acusação é condição processual de que depende submeter-se alguém a julgamento e por ela se define e fixa o objecto do julgamento e das restantes fases judiciais”.
É a também chamada vinculação temática.
Por isso é apenas desses factos constantes da acusação que o arguido tem de defender-se.
São estes que constituem o objecto do processo daí em diante e são eles que serão objecto de julgamento.
Assim a acusação limita e condiciona a actividade cognitiva do juiz.
Por isso nada se dizendo na acusação quanto à aplicação ao arguido, por via das contra-ordenações imputadas, da inibição de conduzir, nem sequer se fazendo referência ao artº 145º nº 1 f) CE, não podia ele estruturar a sua defesa quanto a tal sanção acessória, ficando por essa razão impossibilitado de exercer o contraditório em relação à mesma.
Daí que qualquer alteração que ocorra na qualificação jurídica dos factos que foi feita na acusação e de que possa resultar um agravamento para o arguido, como é o caso da aplicação da sanção de inibição de conduzir, terá obrigatoriamente de ser previamente dada a conhecer ao arguido para que este dela se possa defender.
E compreende-se que assim seja já que a aplicação de uma tal sanção é na maioria dos casos muito mais penalizante do que a coima ou a multa.
Por isso é compreensível que o arguido pretenda fazer prova de factos que contribuam para graduar a medida concreta dessa sanção.
Assim estamos perante uma alteração não substancial dos factos ( artºs 1º f), 358º e 359º CPP), o que implicava que o tribunal tivesse dado na altura própria cumprimento ao disposto no artº 358º nº 1 CPP, o que não foi feito.
Por isso, prefigurada está a nulidade da sentença (artº 379º nº 1 b) CPP).
A arguição da referida nulidade é susceptível de ser suscitada no presente recurso, conforme artº 410º nº 3 CPP, e, como tal, é tempestiva.
Deste modo impõe-se que a sentença recorrida seja anulada, para que se possa cumprir o disposto no artº 358º nºs 1 e 3 CPP, sendo certo que esse cumprimento não é viável nesta Relação nos termos do artº 424º nº 3 CPP, pois a sentença, pelas razões abaixo indicadas, também não pode subsistir.
Mais invoca o recorrente a nulidade prevista nos artºs 363º e 364º CPP, porquanto a gravação da sessão de julgamento realizada em 09.10.31, é ininteligível, impossibilitando-o de fazer uma completa fundamentação do seu recurso.
Pois bem, em matéria de gravação de audiência, estabelece o artº 9º do Dec. Lei 39/95 de 15/2 (aplicável ex vi artº 4º CPP):
«Se, em qualquer momento se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível, proceder-se-á à sua repetição sempre que esta for essencial ao apuramento da verdade».
Ouvido o CD onde se procedeu ao registo sonoro da sessão de audiência de julgamento realizada no dia 31/10, verifica-se que efectivamente assim é.
Com efeito, é a este tribunal de recurso completamente impossível entender aquilo que aí foi dito.
Aliás deve dizer-se que o Ministério Público em ambas as instâncias reconhece essa ininteligibilidade.
Ora estabelece o artº 363º CPP que:
“As declarações prestadas oralmente são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade”.
Quer dizer a situação integra uma nulidade, dependente de arguição. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal anotado, 16ª edição, pág. 764.
Tal arguição feita neste recurso não pode deixar de ser considerada tempestiva, uma vez que o ilustre defensor só ao pretender elaborar a motivação do recurso da matéria de facto poderia ter detectado as deficiências da gravação.
É que é bom ter presente que, conforme resulta da lei o direito a recorrer das decisões só surge com a prolação de uma decisão desfavorável e que seja susceptível de recurso (Cfr. artº 61º nº 1 f) CPP).
Como se escreveu no AcSTJ nº 4/2009 de 09.02.18 DR I Série de 09.03.19. “ No caso de decisão condenatória, a verificação da existência dos pressupostos dos quais, «nos termos da lei», depende a recorribilidade (admissibilidade, instâncias e graus de recurso) só pode ocorrer quando seja proferida a decisão, pois será apenas o conteúdo da decisão (qualificações e âmbito das questões decididas; natureza dos crimes; penas aplicadas) que permite aferir, perante a natureza «desfavorável» da decisão, quais os termos e a amplitude da recorribilidade.
O momento em que é proferida a decisão será «aquele em que se configura o exercício do direito de dela recorrer, no pressuposto de que só depois de conhecida a decisão final surge na esfera jurídica dos sujeitos processuais por ela afectados, na decorrência de um abstracto direito constitucional ao recurso, o concreto 'direito material' em determinado prazo, deste ou daquele recurso ordinário ou extraordinário» (cf., v. g., José António Barreiros, Sistema e Estrutura do Processo Penal Português, I, p. 189).
Deste modo, anteriormente à decisão final sobre o objecto do processo, no termo da fase do julgamento em 1.ª instância, não estão concretizados, nem se sabe se processualmente vão existir, os pressupostos de exercício do direito ao recurso, que como «direito a recorrer» de «decisão desfavorável», concreto e efectivo, apenas com aquele acto ganha existência e consistência processual.
No que respeita ao arguido, o momento relevante do ponto de vista do titular do direito ao recurso só pode ser, assim, coincidente com o momento em que é proferida a decisão de que se pretende recorrer, pois é esta que contém e fixa os elementos determinantes para formulação do juízo de interessado sobre o direito e o exercício do direito de recorrer. “.
Aliás tal interpretação é a que melhor se harmoniza com o transcrito artº 9º do Dec. Lei 39/95, no qual se prevê expressamente a repetição, para o caso de “em qualquer momento” se verificarem deficiências e falhas na gravação, ou se a gravação for inaudível ou deficiente (o sublinhado é nosso).
E neste caso tais deficiências, por razões alheias ao recorrente, influenciam no exame da decisão da causa, pois impossibilitam não só o recorrente de estruturar o seu recurso sobre a matéria de facto, como o de este tribunal de recurso reavaliar a apreciação dos meios de prova, conforme dispõe o artº 412º nº 6 CPP.
Outra interpretação que não seja a de se admitir a arguição da nulidade da gravação no recurso interposto da matéria de facto, viola o artº 32º nº 1 da Constituição, que consagra o direito ao recurso como uma das garantias de defesa em processo penal, pois lhe restringe excessiva e desproporcionadamente o direito de impugnar as nulidades ocorridas na gravação de uma anterior sessão de julgamento.
É que, repete-se, só depois de proferida a sentença é que o arguido sabe se vai ou não recorrer da matéria de facto, o que significa que o registo da prova só releva para efeitos de recurso da matéria de facto.
O verificar se a gravação está a ser feita em condições é tarefa que incumbe ao funcionário que acompanha a gravação, devendo por isso estar atento à forma como os depoimentos e declarações estão a ser registados. É que a sua actividade em matéria de gravação não se reduz a carregar no botão, e tirar e pôr CDs ou cassetes, sendo antes um elemento importante com vista a evitar que tais situações possam ocorrer.
Como se escreveu no AcSTJ 02.07.09 Pº 02ª2055, www.dgsi.pt. “ Não tendo a parte, durante a audiência, possibilidade de controlar uma questão meramente técnica como é a das boas ou más condições em que a gravação está a decorrer, não pode exigir-se a arguição imediata da nulidade aqui denunciada…….
Nem sequer a simples entrega das cópias da gravação seria suficiente para fazer presumir o conhecimento do mau estado das mesmas … uma vez que temos como não exigível que a parte, por si ou pelo seu mandatário, corra a ouvi-las imediatamente, sendo razoável que o faça só no período em que elabora as alegações a cuja feitura elas se destinam.”
Por isso concluímos que há que proceder à repetição de toda a prova que foi produzida na referida sessão de julgamento.
Assim, tendo a nulidade ocorrido em 31 de Outubro de 2008, todos os restantes actos que dela dependeram ficaram igualmente afectados, isto é, as alegações orais, a elaboração da sentença e a sua leitura que deverão ser repetidos para a sanação do vício (artº 122º CPP).
Face ao exposto fica prejudicada a apreciação das restantes questões.

DECISÃO

Nestes termos, os Juízes desta Relação acordam em julgar procedentes as invocadas nulidades e consequentemente:
- anulam a sentença recorrida para que o Tribunal a quo, proceda em conformidade com o disposto no artº 358º nº 1º CPP.

- face ao deficiente registo sonoro da sessão de julgamento realizada no dia 31 de Outubro de 2008, declaram inválidos os actos anteriormente referidos, devendo proceder-se à sua repetição.
Sem custas.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º nº 2 CPP).
Coimbra, 21 de Outubro de 2009.