Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1594/04.7TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME FERREIRA
Descritores: ACTOS MÉDICO-HOSPITALARES
RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 05/06/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA - 3º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTºS 406º, Nº 1; 493º, Nº 2; 762º, Nº 2,; 798º E 799º, Nº 1, DO C. CIV
Sumário: I – Devendo qualquer contrato ser pontualmente cumprido e de acordo com as regras de segurança e de conformidade à prestação acordada, além de no cumprimento dessa obrigação dever-se proceder de boa fé – artºs 406º, nº 1, e 762º, nº 2, ambos do C. Civ. -, sendo certo que no exercício de uma qualquer actividade perigosa (como sucede com a actividade médico-cirúrgica em geral) cumpre a quem a exerce mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de evitar danos a outrem – artº 493º, nº 2, e 799º, nº 1, do C. Civ. -, quando assim não aconteça fica o incumpridor obrigado a reparar os danos causados ao terceiro, nos termos dos artºs 493º, nº 2, 798º e 800º, nº 1, todos do C. Civ..

II – Tendo ficado provado que a A. sofreu dores desde a intervenção cirúrgica a que foi sujeita nos serviços do Réu, que padeceu fisicamente durante cerca de 2 meses, tendo tido necessidade de ser intervencionada na sequência de uma crise de saúde grave, provocada pela existência de um pano no interior do seu organismo, acto médico no qual foi detectado esse pano e foi o mesmo removido do seu corpo, além de que esteve durante cerca de 2 meses impossibilitada de exercer a sua vida diária de forma normal, tais danos, porque directamente resultantes da “má cirurgia” praticada nos serviços do Réu, carecem de ser reparados ou indemnizados, tanto mais quando não possa deixar de se considerar que houve negligência da equipa cirúrgica do Réu que intervencionou a A..

III - Cumprindo ser tal montante fixado segundo regras de equidade – artºs 494º e 496º, nºs 1 e 3, do C. Civ. -, afigura-se que, tendo em conta que com esta indemnização apenas se visa ressarcir, compensar, de alguma forma remediar ou atenuar o real sofrimento da Autora, resultante do referido e concreto “mau acto cirúrgico” praticado pelos profissionais do Réu, com um quantitativo de € 25.000,00 será alcançado esse objectivo, dados os benefícios concretos que este montante pode permitir que a A. atinja, ao mesmo tempo que com ele bem se traduz a censura que merece o dito “acto”, isto é, nele fica reflectida a culpa ou negligência do corpo cirúrgico do Réu, que também cumpre censurar, porquanto não agiram em conformidade com as chamadas “leges artis” aplicáveis ao caso, como podiam e deviam ter feito (função punitiva da condenação).

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
I
No Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, A..., intentou contra o B..., a presente acção declarativa, com processo ordinário, pedindo a condenação do R. no pagamento à A. da quantia de € 75.000,00 , acrescida de juros de mora desde a data da prática do facto que serve de causa de pedir na acção e até efectivo pagamento.
Para tanto e muito em resumo, alegou que foi operada no dia 21/06/2001, a uma anexectomia bilateral (operação aos ovários), nos serviços do Réu, posto que sentia dores internas, na zona da dita intervenção cirúrgica, do que deu conhecimento aos médicos que a operaram.
Que em 28/06/2001 foi-lhe dada alta hospitalar, mas as ditas dores continuaram e era frequente ter febre.
Que em 8/8/2001 voltou ao hospital, onde foi consultada, tendo-se queixado dessas dores.
Que no dia 20/08/2001 a A. deslocou-se ao Sabugal, tendo aí aumentado as dores e a febre subido, face ao que se deslocou ao Centro de Saúde local, onde foi observada pelo médico de serviço, o qual de imediato mandou chamar uma ambulância para a transportar ao Hospital da Guarda, como sucedeu.
Que já aqui e nesse mesmo dia a A. foi submetida a uma nova intervenção cirúrgica, na qual lhe foi retirada uma compressa repleta de pus, que tinha ficado no interior do seu organismo aquando da anterior operação cirúrgica.
Que a A. correu risco de vida por tal facto e ficou internada durante uma semana no Hospital da Guarda, com um dreno aplicado.
Que a A. foi, pois, vítima de um grande sofrimento por incúria dos serviços de saúde do Hospital Réu, com o consequente desgaste físico e desequilíbrio emocional.
Donde dever ser indemnizada, como pretende com a presente acção.
II

Contestou o Réu, onde alegou, muito em resumo, que na sequência da intervenção cirúrgica a que a A. foi sujeita nos seus serviços o pós-operatório da A. foi normal, sem alterações do ponto de vista clínico.
Que aquando dessa intervenção foi efectuada a contagem das compressas utilizadas e não foi detectada qualquer falta, como foi então verificado pelo médico cirurgião e chefe da equipa.
Que a primeira vez que há referência a uma extracção de uma compressa do corpo da A. é numa consulta externa de 4/09/2001, efectuada no Hospital da Guarda.
Que o Hospital Réu nunca utilizou panos verdes nas suas cirurgias, porquanto são sempre azuis os panos por si utilizados em cirurgias.
Que esse tipo de panos nada tem a ver com compressas, estas sim utilizadas em actos cirúrgicos.
Que, por isso, o objecto encontrado e retirado do corpo da A. na dita operação não foi deixado na intervenção cirúrgica que teve lugar em 21/06/2001 nos serviços do Réu.
Terminou pedindo a improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido.
III
Terminados os articulados foi proferido despacho saneador, no qual foi considerada como processual regular a tramitação da acção, tendo-se sido seleccionados os factos articulados pelas partes e considerados com interesse para a instrução e discussão da causa.

Seguiu-se a realização da audiência de discussão e julgamento, em três sessões, posto que foi proferida decisão sobre a matéria de facto constante da base instrutória, com indicação da respectiva fundamentação.

Proferida a sentença sobre o mérito da causa, nela foi decidido julgar a acção parcialmente procedente, com a condenação do Réu a indemnizar a A. no montante de € 37.500,00 , por danos não patrimoniais causados, com o acréscimo de juros de mora desde 21/06/2001 e até efectivo pagamento.
IV
Dessa sentença interpôs recurso o Réu, recurso que foi admitido como apelação e com efeito devolutivo (efeito este fixado já nesta Relação, conforme despacho de fls. 366).
Também a A. interpôs recurso subordinado, igualmente admitido como apelação e com efeito devolutivo (efeito este também fixado nesta Relação, conforme despacho de fls. 366).

Nas alegações por ambos apresentadas, foram formuladas as seguintes conclusões:
- Alegação do Réu/Apelante no recurso principal:
1ª – Discorda o Apelante da decisão recorrida, que decidiu pela sua condenação, porquanto considera a mesma infundada, com manifesta contradição entre a matéria dada como provada e erros na determinação das normas aplicáveis.
2ª – O Apelante foi condenado por danos de natureza moral, porquanto “as lesões de que a A. padeceu provieram de um acto ilícito (violador do direito absoluto à saúde) e culposo (culpa grosseira) dos elementos da equipa médica que assistiram a Autora.
3ª – Esqueceu o Tribunal a quo que a responsabilidade civil, contratual ou extracontratual, pressupõe a culpa do lesante.
4ª – A responsabilidade civil contratual tem origem na falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos (artsº 798º e segs. do C. Civ.) sendo a culpa apreciada nos mesmos termos da responsabilidade civil extracontratual (pela diligência de um bom pai de família), embora na responsabilidade contratual o ónus da prova recaia sobre o devedor.
5ª – Esqueceu o Tribunal a quo que quer a responsabilidade civil contratual quer a extracontratual têm sempre subjacente a ilicitude de um acto praticado, consistindo a ilicitude na infracção de um dever jurídico, cabendo a prova da ilicitude ao credor.



- Alegação da A./Apelante no recurso subordinado:
1ª – A sentença recorrida faz alusão a um livro da co-autoria do médico cirurgião José Fragata e do engenheiro Luís Martins, que tem como título “O Erro em Medicina”. Nesse livro é afirmado que muitos erros médicos são um problema de gestão das instituições de saúde.
2ª – Esbanja-se muito dinheiro na área da saúde em Portugal e alimentam-se muitos negócios, sem o adequado aproveitamento para os pacientes, enquanto se deixam morrer largas centenas de pessoas nos hospitais por falta de condições de trabalho.
3ª – A Recorrente esteve na iminência de ser mais uma dessas vítimas, correndo sério risco de vida.
4ª – Acabaria por morrer senão tivesse tido a sorte de se encontrar no Sabugal quando uma nova crise de dores e de febre a assolou, o que a levou de urgência ao Hospital da Guarda.
5ª – O direito aos cuidados de saúde está consagrado na Constituição da República Portuguesa. Nem toda a gente tem dinheiro para ir a clínicas privadas ou celebrar contratos com companhias de seguros neste domínio.
6ª – Ficou provado que a A. sofreu muito e até correu perigo de vida por culpa dos serviços médicos do Réu.
7ª – Teve de se submeter a uma segunda intervenção cirúrgica, com anestesia geral, com todos os efeitos que esta narcose implica.
8ª – É justo que o Réu seja condenado na totalidade do pedido formulado e não apenas em parte.
9ª – Termos em que deve ser julgado procedente o presente recurso, com a condenação do Réu na totalidade do pedido formulado.
***
Contra-alegaram ambas as partes, onde defendem, muito em resumo:
- Na contra-alegação da Autora/Apelada ao recurso principal, que seja tal recurso julgado improcedente, porquanto foi correctamente entendido pelo Tribunal recorrido existir culpa grosseira por parte da equipa cirúrgica do Réu na forma como desempenhou o acto cirúrgico em causa e na assistência pós-operatória (não) dispensada à Autora.

- Na contra-alegação do Réu/Apelado ao recurso subordinado, defende-se, muito em resumo, a improcedência de tal recurso.
V
Nesta Relação foram aceites ambos os ditos recursos, apenas com alteração do respectivo efeito, conforme já antes foi referido, tendo-se procedido à recolha dos necessários “vistos” legais, pelo que nada obsta a que se conheça dos seus objectos.

Tais objectos, tendo presente as conclusões apresentadas em ambos recursos apresentados, antes reproduzidas, podem resumir-se à apreciação das seguintes questões:
A – Reapreciação do preenchimento dos pressupostos conducentes à condenação do Réu/Apelante principal como obrigado a indemnizar a A. por efeito de responsabilidade civil, designadamente no sentido de se saber se houve ou não, no presente caso, negligência médica na intervenção cirúrgica a que a A. foi submetida nos serviços do Réu.
B - Caso se entenda ou se conclua nesse sentido, como aconteceu com a sentença recorrida, reapreciar o montante indemnizatório atribuído à A., como efeito ou consequência dessa responsabilidade civil e dos danos não patrimoniais causados à A., sendo certo que nos recursos interpostos o Réu pretende que esse valor seja reduzido e a A. pretende que esse montante seja subido para o valor peticionado.

Antes, porém, de procedermos a tal abordagem, cumpre salientar que nenhuma das partes impugnou a matéria de facto dada como assente em 1ª instância, verificando-se, até, que não houve gravação da prova testemunhal produzida em julgamento, o que sempre dificultaria tal tipo de impugnação, face ao que não vislumbramos qualquer razão para se proceder a uma qualquer eventual alteração oficiosa dessa matéria.
Assim, nos termos do artº 713º, nº 6, do CPC, cumpre que aqui se dê como reproduzida essa matéria de facto, a qual é constituída pelos seguintes factos, conforme decisão da 1ª instância e tal como se encontra enunciada na sentença recorrida:

1- O Réu é uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, constituída pelo Decreto-Lei nº 297/2002, de 11 de Dezembro, que sucede ao B... – Leiria em todos os direitos e obrigações.
2- A autora foi operada, no dia 21 de Junho de 2001, a uma anexectomia bilateral (comummente conhecida como operação aos ovários), no B... – Leiria, aqui demandado.
3- Decorrida, aproximadamente, uma semana, obteve alta do hospital.
4- Por algumas vezes a autora queixou-se à médica que a assistiu após a cirurgia, de dores na zona submetida à intervenção cirúrgica.
5- O médico que operou a autora nunca a visitou, enquanto decorreu o curto período de convalescença naquele Hospital.
6- A autora durante o período de convalescença no Hospital Réu foi assistida por uma médica.
7- A autora teve alta hospitalar, o que veio a ocorrer no dia 28 de Junho de 2001.
8- A autora prosseguiu a fase de convalescença em sua casa, mas as dores não desapareciam por completo e era frequente ter febre.
9- No dia 13 de Julho de 2001 foi atendida e consultada por uma médica no Centro Clínico LeiriVida.
10- Esta médica receitou-lhe antibióticos e anti-inflamatórios, por forma a aliviar-lhe as dores.
11- Nos dias imediatos, devido a tal medicação, as dores suavizaram, mas, pouco tempo depois, o mesmo sofrimento regressou, acompanhado de elevadas temperaturas de febre.
12- No dia 08.08.2001 a autora voltou ao Hospital Réu tendo aí sido atendida em consulta externa.
13- No dia 20 de Agosto de 2001, a paciente deslocou-se à localidade de Sabugal, para visitar alguns familiares e ali repousar durante uns dias.
14- Mas logo nesse primeiro dia, durante a noite, sentiu dificuldades em dormir, as dores aumentaram e a febre subiu.
15- No dia seguinte, deslocou-se ao Centro de Saúde de Sabugal e foi observada pelo respectivo Director Clínico.
16- Este médico diagnosticou-lhe uma situação abdominal aguda, vindo a autora a ser enviada por ambulância para o Hospital Sousa Martins da Guarda.
17- Após efectuados vários exames, e nesse mesmo dia 21, foi submetida com urgência a nova intervenção cirúrgica.
18- Aqui, o cirurgião retirou-lhe um pano repleto de pus que tinha ficado no interior do organismo da paciente, aquando da operação aos ovários.
19- Os médicos do Hospital da Guarda consideraram que a paciente corria risco de vida.
20- Acabou por ficar internada durante uma semana no Hospital da Guarda, com um dreno aplicado.
21- Após receber alta hospitalar, ficou no Sabugal durante vários dias, deslocando-se diariamente ao Centro de Saúde para mudar o penso.
22- Quando regressou a Leiria, a A. foi obrigada a manter os mesmos cuidados diários junto do centro de Saúde de Marrazes, durante largo tempo.
23- A paciente, ao longo de vários meses, em consequência de no interior do seu corpo ter sido deixado um pano, sofreu dores.
24- Encontrando-se mesmo em risco iminente de perder a sua vida, se acaso não se tivesse deslocado acidentalmente ao Sabugal.
25- Em vez de uma, foi obrigada a fazer duas operações, com todo o sofrimento e inerentes riscos acessórios que tais intervenções cirúrgicas implicam.
26- A paciente teve um grande desgaste físico e um grande desequilíbrio emocional devido a toda a descrita situação.
27- A A. ficou impossibilitada de exercer a sua actividade profissional – Tesoureira do Centro de Segurança Social de Leiria - e as suas lides domésticas, durante muito mais tempo de que aquele que seria necessário caso tivesse sido submetida apenas à primeira operação.
28- A A. não podia arrumar a casa, fazer a limpeza, lavar a roupa, passar a ferro ou cozinhar.
29- Ela própria tinha dificuldades em cuidar da sua higiene pessoal.
30- Foi obrigada a recorrer a ajuda de pessoas familiares e amigas para a auxiliarem em todas estas tarefas.
31- A equipa médica que operou a autora em 21 de Junho de 2001, era composta por um médico assistente graduado em ginecologia e obstetrícia, que chefiava; por outro médico assistente graduado em ginecologia e obstetrícia, como ajudante na cirurgia; por uma enfermeira instrumentista; por uma enfermeira circulante; e por uma médica anestesista.
32- É procedimento regular, antes de se iniciar qualquer acto cirúrgico, serem contadas todas as compressas que vão para a mesa da operação para serem utilizadas no acto cirúrgico.
33- As compressas, de cor branca, vêm já marcadas com um dispositivo que é sensível ao aparelho de RX.
34- É procedimento regular que, após a operação, as compressas sejam novamente contadas, de modo a confirmar se não falta nenhuma.
35- Se porventura alguma compressa faltar, é feita nova contagem, e no caso de se confirmar a falta, é o paciente submetido a um RX no aparelho existente na própria sala de operações.
36- Conforme consta das fichas do bloco operatório, quer dos cirurgiões, quer dos enfermeiros, intervenientes no acto cirúrgico, foi efectuada a contagem das compressas e não foi detectada qualquer falta.
37- O médico cirurgião e chefe da equipa, é o responsável pela sala de operações durante a cirurgia.
38- É ele quem, no final do acto cirúrgico, pergunta se está tudo em ordem quanto ao material utilizado durante o acto, quer no que respeita a compressas, quer com qualquer outro material utilizado.
39- Só depois de obter, dos demais elementos da equipa e nomeadamente da enfermeira instrumentista, a confirmação de que tudo está em ordem, é que o cirurgião pode fechar o acto cirúrgico, terminando a intervenção.
40- A autora já havia sido submetida a uma intervenção cirúrgica de histerectomia total.
41- Tal intervenção ocorreu no ano de 1996 e não foi realizada no Hospital Réu, mas no Hospital da Guarda.
42- No relatório do acto cirúrgico ocorrido em 21 de Agosto no Hospital da Guarda, pode ler-se o seguinte: “ … constatou-se pano verde intra-abdominal”.
Este documento é o protocolo operatório elaborado pelos cirurgiões que intervieram no acto cirúrgico.
43- Na consulta externa que a autora efectuou no hospital da Guarda, em 4 de Setembro de 2001, refere-se a extracção de uma compressa do corpo da autora.
44- O B... (Réu) utiliza panos azuis em cirurgia.
45- Durante o período que decorreu entre a intervenção de 21 de Junho de 2001 e a data da alta, a autora foi sempre medicada e observada por uma médica e pessoal de enfermagem do internamento.
***
Fixados os factos, cumpre, pois, que passemos à abordagem das supra referidas questões:
Resulta da sentença recorrida que aí foi considerado que “as lesões de que a A. padeceu provieram de um acto ilícito (violador do direito absoluto à saúde) e culposo (culpa grosseira) dos elementos da equipa médica que assistiram a autora..., tendo-se logrado provar que o pano encontrado no interior do corpo da A. foi aí deixado em resultado da operação a que foi submetida no Hospital Réu.
Assim, logrou a A. provar que a equipa médica actuou com negligência grosseira, descurando todos os cuidados exigíveis para a situação em concreto e que seriam de esperar de uma equipa especializada em tais tipos de operações”.
O Réu revela-se contra tal entendimento, defendendo que dos factos dados como assentes “não resulta que as dores e a febre sofridos pela A. após a realização da intervenção cirúrgica no Hospital Réu tenham resultado de uma intervenção médica menos cuidada..., tenham sido consequência de qualquer negligência médica...., (já que) da matéria provada resulta uma actuação por parte do corpo médico e do corpo de enfermagem sem margem para censuras”.
Que “... tendo-se dado como provado que todas as contagens de material foram bem realizadas (durante o cirurgia efectuada pelos seus serviços), não se pode concluir que o pano retirado do corpo da A. no Hospital da Guarda foi aí deixado pela equipa da cirurgia havida no Hospital Réu, já que a A. foi também intervencionada em 1996 a uma histerectomia total”.
Mais defende que “o contrato celebrado entre a A. e o Hospital Réu é um contrato de prestação de serviços, de modo a assegurar à A. os melhores cuidados possíveis, com o fim de lhe restituir a saúde, suavizar o sofrimento, salvar ou prolongar a vida e que, com esse objectivo, os médicos devem actuar segundo as exigências das leges artis e com os conhecimentos científicos existentes à data, actuando de acordo com um dever objectivo de cuidado, tendo os médicos da unidade hospitalar, ora Apelante, actuado de acordo com o supra exposto”.
Pretende o Apelante, em resumo, defender que não ficou provado que o pano repleto de pus retirado do interior do corpo da A., na cirurgia a que foi submetido no Hospital da Guarda, seja proveniente da anterior cirurgia a que a A. foi submetida no Hospital Réu (em 21/06/2001), e que não houve qualquer conduta negligente e censurável por parte do seu corpo cirúrgico que intervencionou a A., donde retira que não ficaram provados os pressupostos de facto conducentes à responsabilização do Réu pelos danos decorrentes desse (eventual) acto.
Porém, afigura-se-nos, com o devido respeito, que o Recorrente carece, em absoluto, de razão ou de fundamentação para essa sua discordância, tal a clareza dos factos apurados e dados como assentes.
Com efeito, desses factos resulta que tendo a A. sido operada em 21/06/2001, no Hospital Réu, a uma anexectomia bilateral (facto supra nº 2), na sequência do mal estar que sentiu e que se seguiu a essa intervenção cirúrgica (factos supra nºs 4, 8, 10, 11, 14 e 23) a A. necessitou de ser submetida a uma nova cirurgia, o que ocorreu no Hospital da Guarda, em 21/08/2001, acto esse em que lhe foi retirado um pano repleto de pus que tinha ficado no interior do seu organismo aquando da anterior operação – factos nºs 16, 17 e 18 supra.
Não se entende, pois, como é que o Réu insiste em desmentir ou em negar o óbvio, o que é manifesto, o que está cabalmente demonstrado nos autos.
Mas o Réu “agarra-se” à questão da cor do pano que foi retirado do corpo da A. para pretender afirmar que esse pano não lhe foi deixado no corpo na cirurgia a que a autora foi submetida nos serviços da Réu, defendendo que nessa cirurgia foram observados os cuidados ou regras de procedimento a ter ou a cumprir pela equipa cirúrgica e que os panos então utilizados eram de cor azul, não verde.
Mas sem razão, pois que embora tenha sido provado que nos serviços de cirurgia do Réu são utilizados panos azuis (facto supra nº 44), nada nos garante que não possam também ser usados panos verdes e que assim tenha sucedido na cirurgia em causa.
Mas também não é por isso que fica comprometido o facto supra nº 18, já que apesar de no relatório do acto cirúrgico ocorrido no Hospital da Guarda em 21/08/2001 constar que “...constatou-se pano verde intra-abdominal” – facto supra nº 42 -, tal constatação, por si só, não nos diz que esse pano não tivesse sido antes azul e que tenha “desbotado” ou mudado de cor por efeito de ter estado no interior do corpo da autora desde 21/06/2001 até 21/08/2001 (dois meses), sempre em ambiente húmido, com sangue, pus e certamente com mais líquidos (como éter, presume-se) utilizados no decorrer da dita anterior cirurgia, o que decerto retiraria a cor inicial desse pano.
Não é, pois, o teor do dito relatório do acto cirúrgico do dia 21/08/2001, quanto à cor do pano, que põe em causa o facto dado como assente no ponto 18 supra.
Sustenta ainda o Recorrente que a equipe de cirurgia que fez a intervenção à A. nos seus serviços cumpriu com as chamadas “leges artis” desse acto.
Mas, mais uma vez, sem razão, pois que o que apenas ficou provado foi em que é que se traduzem algumas dessas regras, como sejam a de antes de se iniciar qualquer acto cirúrgico deverem ser contadas todas as compressas (e panos, certamente) que vão para a mesa da operação – facto supra nº 32 -, devendo tais peças de pano e compressas ser recontadas após a operação, de modo a confirmar-se que não falta nenhuma – facto supra nº 34 -, cabendo ao médico cirurgião e chefe da equipa inteirar-se, no final do acto cirúrgico, se está tudo em ordem quanto ao material utilizado durante o acto – facto supra 38 -, fechando a cirurgia só depois de obter tal confirmação – facto supra nº 39.
Ora, no presente caso não ficou provado que assim se tenha procedido, como bem resulta das respostas negativas dadas em 1ª instância aos quesitos 40º e 41º da base instrutória (onde se perguntava se, no presente caso, foi isso que sucedeu e se o cirurgião-chefe se certificou de que nenhuma compressa faltava antes de fechar o acto cirúrgico), pelo que não tem razão o Hospital Réu na sua insistência de que tal pano não foi deixado no corpo da A. na cirurgia a que se procedeu nos seus serviços.
E não é pelo facto de também ter ficado provado que “consta das fichas do bloco operatório, quer dos cirurgiões, quer dos enfermeiros, intervenientes no acto cirúrgico, que foi efectuada a contagem das compressas e que não foi detectada qualquer falta” – facto supra 36 -, que tal contagem tenha efectivamente sucedido, o que importaria demonstrar; além de que nessas fichas apenas se faz alusão a “compressas”, não a outros “panos”, como relevaria para a presente abordagem.
E muito menos se compreende ou pode aceitar a sua tese de que esse “pano” terá ficado no interior do corpo da A. desde 5 anos antes (em 1996), aquando de uma primeira intervenção a que foi sujeita em outro hospital – factos supra 40 e 41º -, o que não só decerto não poderia ter sucedido, pelo menos sem manifestações de dor, como se refere na fundamentação da decisão da matéria de facto, como assim tendo sido dito “pelos médicos ouvidos”.
Além de que mesmo admitindo, teoricamente, tal possibilidade, decerto que aquando da intervenção cirúrgica nos serviços do Réu não deixaria de ser visto tal pano deixado há 5 anos atrás, não se podendo aceitar que assim não devesse ter sucedido, como também foi referido pelo cirurgião que operou a A. no Hospital Réu, conforme fundamentação de fls. 213/214 (onde também se diz que por ele foi referido ser “altamente improvável que o pano encontrado no interior da paciente no hospital da Guarda aí tenha ficado desde a intervenção que esta fez em 1996”).
Face ao que não podemos, de forma alguma, aceitar as questões colocadas pelo Réu/Agravante sobre a realidade que emerge dos factos dados como assentes, isto é, não faz qualquer sentido e até afronta o normal entendimento das “coisas”, salvo o devido respeito, colocar sequer em dúvida que “o pano”, tivesse ele sido azul ou verde, ou de qualquer outra cor, encontrado no interior do corpo da A. na cirurgia de 21/08/2001, aí tivesse sido deixado ou tivesse aí sido esquecido na cirurgia de 21/06/2001, esta efectuada nos serviços do Réu.
Considera-se, pois, como um facto certo e sem margens para dúvidas, que assim sucedeu.
E assim se concluindo, cumpre perguntar se no cumprimento da cirurgia a que o hospital Réu se obrigou perante a A., traduzida esta numa prestação de meios ou de um serviço médico-cirúrgico inerente a esse tipo de intervenção, os serviços cirúrgicos do Hospital Recorrente actuaram de forma censurável, merecedora de criticas, ou se agiram em conformidade com as chamadas “leges artis”.
Ora, perante as já referidas regras ou “práticas” inerentes a cirurgias, como as relativas à contagem dos instrumentos, dos panos, das compressas e de outros “instrumentos” utilizados em cirurgia, com a posterior confirmação dessa contagem antes de ser fechado o acto cirúrgico, o que cumpre que seja devidamente certificado pelo cirurgião-chefe, o que podemos dar como assente é que não ficou provado que, no caso presente, assim tenha sucedido.
E foi precisamente por assim não ter sucedido que aquando do fecho da dita cirurgia não se deu conta da “falta” de um pano cirúrgico utilizado na operação, que, por isso, ficou fechado ou esquecido no interior do corpo da paciente, com as eventuais consequências que daí resultaram e que poderiam ter resultado, designadamente a sua morte, caso tal situação se prolongasse no tempo – facto supra nº 24.
E não pode, também, deixar de se censurar o Hospital Réu pela sua conduta para com a A. ao longo dos dois meses que se seguiram à intervenção cirúrgica nos seus serviços, uma vez que, apesar de a A. se ter sempre queixado de dores pós-operatórias, nunca nesses serviços foram tomadas diligências ou cuidados que tivessem podido socorrer a A. de imediato, como se impunha, o que apenas noutro hospital foi efectuado.
Ora, devendo qualquer contrato ser pontualmente cumprido e de acordo com as regras de segurança e de conformidade à prestação acordada, além de no cumprimento dessa obrigação dever-se proceder de boa fé – artºs 406º, nº 1, e 762º, nº 2, ambos do C. Civ. -, sendo certo que no exercício de uma qualquer actividade perigosa (como sucede com a actividade médico-cirúrgica em geral) cumpre a quem a exerce mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de evitar danos a outrem – artº 493º, nº 2, e 799º, nº 1, do C. Civ. -, e quando assim não aconteça fica o incumpridor obrigado a reparar os danos causados ao terceiro, nos termos dos artºs 493º, nº 2, 798º e 800º, nº 1, todos do C. Civ..
Isto porque, em Portugal, não existe um qualquer regime legal próprio ou específico sobre a responsabilidade civil ou penal por actos médico-cirúrgicos e hospitalares.
Conforme escreve o Prof. António Pinto Monteiro, in “Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil”, 1985, pgs.309/310, “... devem ser consideradas interditas quaisquer cláusulas destinadas a limitar ou a excluir uma eventual responsabilidade emergente da actividade médica (lato sensu). São deveres de ordem pública aqueles a que, em regra, o médico está adstrito – tanto relativamente aos cuidados que lhe são exigíveis, como à actualização dos seus conhecimentos e à aplicação dos meios técnicos auxiliares de acordo com a evolução registada pela ciência médica, maxime tratando-se de um especialista (o que significa que será culpado, incorrendo, pois, em responsabilidade, o médico que causar danos por qualquer atitude negligente - nota 704) -, não podendo antecipadamente isentar-se da responsabilidade em que incorrerá, emergente, v. g., de deficientes juízos de diagnóstico, da prescrição de tratamento errado ou inadequado, ou de qualquer descuido ou atitude negligente em intervenções cirúrgicas.
É certo não estar o médico obrigado a mais do que a desenvolver, com o cuidado, a perícia e os conhecimentos que lhe são concretamente exigíveis, e no respeito pelas leges artis, esforços no sentido da cura do doente, estando arredado qualquer compromisso quanto ao resultado final. A obrigação do médico constitui, como é sabido, uma típica obrigação de meios, não de resultado.
O que o médico não pode é, por via de cláusulas exoneratórias, excluir ou limitar a responsabilidade em que, sem essas cláusulas, incorreria, por se acharem reunidos os pressupostos que o constituiriam na obrigação de indemnizar o doente, designadamente por qualquer culpa sua ou dos seus auxiliares”.
E a pgs. 312, ainda escreve este autor: «... se o doente se dirigir directamente à clínica, sem qualquer contacto autónomo com o cirurgião, este funcionará como auxiliar da clínica, nos termos do artº 800º, nº 1.
Hipótese esta sobretudo vulgar, tratando-se de um hospital ou de outros estabelecimentos de prestação de cuidados de saúde integrados no Serviço Nacional de Saúde.
Parecendo dever afirmar-se (para além da responsabilidade extracontratual) também, em princípio, a responsabilidade contratual da própria organização hospitalar – no quadro da aceitação de um contrato de adesão ou pelo recurso à figura das “relações contratuais de facto -, esta será responsável pelos actos de todo o seu staff: médicos, paramédicos, enfermeiros, etc., sem pôr de parte qualquer deficiência própria resultante de uma “culpa de organização”».
No mesmo sentido pode ver-se Henriques Gaspar, in “A Responsabilidade Civil do Médico”, C. J. 1978, tomo I, pg. 341, onde escreve: “...dúvidas não restam que juridicamente a relação médico-doente haverá de enquadrar-se na figura conceitual de contrato...”.
Também o Prof. Miguel Teixeira de Sousa aponta no referido sentido, in “O Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil Médica” – Direito da Saúde e Bioética”, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1996, pg. 127, onde escreve: “É contratual quando existe um contrato, para cuja celebração não é, aliás, necessária qualquer forma especial, entre o paciente e o médico ou uma instituição hospitalar e quando, portanto, a violação dos deveres médicos gerais representa simultaneamente um incumprimento dos deveres contratuais”.
Também sobre o tema da responsabilidade da administração hospitalar pode ver-se Joaquim da Silva Carneiro, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XIX – 1972, pgs. 123 e segs.
Sobre este tema ainda se pode ver “Responsabilidade Civil dos Médicos – 11”, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Centro de Direito Biomédico, da Coimbra Editora, especialmente as comunicações de Margarida Cortez, de Rafael Vale e Reis, e de Ana Raquel Gonçalves Moniz, respectivamente a pgs. 257, 289 e 317, onde defendem, em resumo, que a actividade de prestação de cuidados médicos ou de saúde em instituições públicas de saúde (sejam elas próprias, delegadas ou até concessionadas) se traduzem em actos de gestão pública, de que pode resultar responsabilidade civil extracontratual da administração pública (por danos causados aos utentes com essa prestação), cujo conhecimento cabe aos Tribunais Administrativos
Ora, dúvidas não restam de que a A. sofreu dores desde a intervenção a que foi sujeita nos serviços do Réu e até à intervenção a que foi sujeita na Guarda, padeceu fisicamente durante esse tempo (cerca de 2 meses) - e não dizemos que sofreu psicologicamente durante esse período de tempo porque nunca a A. chegou a saber ou a ter noção da causa do seu sofrimento físico e do real perigo que a afectava, antes de ser (re)operada em 21/08/1001 -, tendo tido necessidade de ser intervencionada na sequência de uma crise de saúde grave, provocada pela existência de um pano no interior do seu organismo, acto médico no qual foi detectado esse pano e foi o mesmo removido do seu corpo, sendo certo que não pode ter deixado de sentir algum pânico quando soube o que sucedera consigo e o risco por que passou, designadamente de perda de vida, além de que esteve durante cerca de 2 meses impossibilitada de exercer a sua vida diária de forma normal, face ao que tais danos, porque directamente resultantes da “má cirurgia” praticada nos serviços do Réu, carecem de ser reparados ou indemnizados, tanto mais que não pode deixar de se considerar que houve negligência da equipa cirúrgica do Réu que intervencionou a A., como supra se deixou referido.
Donde a obrigação de o Réu indemnizar a A. por esses danos, de natureza não patrimonial, como foi decido em 1ª instância.
No apontado sentido, entre outros, podem ver-se, entre outros, os seguintes arestos: acórdão da Rel. de Coimbra de 4/04/1995, C. J. ano XX, tomo II, pg. 31; do STJ: acórdão de 22/05/2003, proferido na Revista nº 03P912; acórdão de 18/09/2007, proferido na Revista nº 07A2334, de onde se retiram as seguintes passagens:”da eventual violação das prestações contratuais – cumprimento defeituoso – decorre responsabilidade de natureza contratual, incidindo sobre o médico a legal presunção de culpa; não estando em causa a prestação de um resultado (a prestação do médico consiste numa obrigação de meios), quando se invoque o cumprimento defeituoso é necessário provar a desconformidade objectiva entre o acto praticado e as leges artes, só depois funcionando a presunção de culpa...; a execução defeituosa ou ilicitude, objectivamente considerada, consiste numa omissão do comportamento devido, consubstanciado na prática de actos diferentes daqueles a que se estava obrigado”; acórdão de 4/03/2008, proferido na Revista nº 08A183 (disponível na Net), do qual consta, designadamente, o seguinte: “Na actividade médica, na prática do acto médico, tenha ele natureza contratual ou extracontratual, um denominador comum é insofismável – a exigência (quer a prestação tenha natureza contratual ou não) de actuação que observe os deveres gerais de cuidado.
Tais deveres são comuns, em ambos os tipos de responsabilidade.
Com efeito, o devedor deve actuar segundo as regras da boa prática profissional, pelo que a existência de culpa deve ser afirmada se houver omissão da diligência devida, que a natureza do acto postulava em função dos dados científicos disponíveis.
A violação do contrato acarreta responsabilidade civil – obrigação de indemnizar desde que o devedor da prestação tenha agido voluntariamente, com culpa (dolo ou negligência), tenha havido dano e exista nexo de causalidade entre o facto ilícito culposo e o dano – artº 483º, nº 1, do C. Civ.
O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor – artº 798º C. Civ..
Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do devedor ser pessoalmente censurável ou reprovável. E o juízo de censura ou de reprovação baseia-se no reconhecimento, perante as circunstâncias concretas do caso, de que o obrigado não só devia como podia ter agido de outro modo.
Existe incumprimento se é cometida uma falta técnica, por acção ou omissão dos deveres de cuidado, conformes aos dados adquiridos da ciência, implicando o uso de meios humanos ou técnicos necessários à obtenção do melhor tratamento.

Donde a conclusão de que o presente caso se enquadra nos referidos parâmetros jurídicos, estando provada a ilicitude do acto cirúrgico levado a cabo no Hospital Réu na pessoa do A., presumindo-se a culpa da equipa cirúrgica que a intervencionou, porquanto não foram seguidas, como devia e podia ter acontecido, as regras inerentes a esse acto, supra referidas, donde resulta a responsabilidade contratual do Réu, face à qual deve indemnizar a A. por danos que lhe tenha causado.
***
Resta apreciar a questão desse montante indemnizatório, sendo certo que na 1ª instância foi fixado o montante de € 37.500,00 (metade do valor peticionado pela autora), pretendendo o Réu, no seu recurso, ver esse valor reduzido (mas sem indicar para que montante), e pretendo a A., com o seu recurso subordinado, ver esse montante subido ou aumentado para o valor inicialmente pedido.
Ora, cumprindo ser tal montante fixado segundo regras de equidade – artºs 494º e 496º, nºs 1 e 3, do C. Civ. -, afigura-se-nos que a 1ª instância talvez tenha exagerado nessa quantificação, tendo em conta os factos dados como provados, já que com esta indemnização apenas se visa ressarcir, compensar, de alguma forma remediar ou atenuar o real sofrimento da Autora, resultante do referido e concreto “mau acto cirúrgico” praticado pelos profissionais do Réu, afigurando-se-nos que com um quantitativo de menor valor – de € 25.000,00 – será alcançado esse objectivo, dados os benefícios concretos que este montante pode permitir que a A. atinja, ao mesmo tempo que com ele bem se traduz a censura que merece o dito “acto”, isto é, nele fica reflectida a culpa ou negligência do corpo cirúrgico do Réu, que também aqui cumpre censurar, porquanto não agiram em conformidade com as chamadas “leges artis” aplicáveis ao caso, como podiam e deviam ter feito (função punitiva da condenação).
Além de que a própria autora também assim o entende, dada o tipo de recurso que interpôs (recurso subordinado).
Donde que, neste aspecto, se nos afigure ser de reduzir o valor indemnizatório fixado em 1ª instância, o que se decide, fixando tal montante em € 25.000,00 , com o que procede, em parte, o recurso deduzido pelo Réu, e improcede o recurso da A.

Concluindo, procede parcialmente o recurso do Réu, e improcede o recurso subordinado deduzido pela A., alterando-se a sentença recorrida nesse aspecto, mas mantendo-se quanto ao mais nela decidido.
VI
Decisão:
Face ao exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso do Réu, e improcede o recurso subordinado deduzido pela A., alterando-se a sentença recorrida nesse aspecto, pelo que se condena o Réu a pagar à A. o montante global de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), por danos não patrimoniais que lhe foram causados em resultado da operação cirúrgica a que foi submetida em 21/06/2001, com o acréscimo de juros de mora, às taxas legais, desde a data referida e até efectivo pagamento.

Custas de cada um recursos pela (ou pelas) parte(s) que neles decaiu e nessa proporção.
***

Tribunal da Relação de Coimbra, em / /