Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1585/08.9TBACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: PREFERÊNCIA
COMPROPRIEDADE
NULIDADE DE SENTENÇA
Data do Acordão: 12/03/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 1409º Nº1 DO CC, ART. 668º Nº1 C) DO CPC
Sumário: 1. A desconformidade da acta, devido a lapso material, revelada no próprio contexto, não acarreta quaisquer consequências processuais.

2. Só se verifica a nulidade de sentença prevista na alínea c) do nº1 do art.668º do CPC (oposição entre os fundamentos da decisão) se a conclusão final divergir do que os fundamentos fariam pressupor.

3. O comproprietário não goza do direito de preferência na venda da totalidade do bem comum a terceiros, em acção de divisão comum.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:

A..., com sede no lugar de ...., intentou acção declarativa de condenação, com forma de processo ordinário, contra B...., com sede no lugar de ....., e contra C...., viúva, residente em ...., alegando, em resumo, que:

Foi dona, na proporção de 1/2, de um prédio rústico, sito em ...., vendido à ré B... a 29 de Janeiro de 2008, pela quantia de € 201.000,00, em acção de divisão de coisa comum instaurada pela ré C..., que era, então, comproprietária da outra metade.

Não foi notificada, nessa acção, para exercer o direito de preferência, como se imporia.

Por outro lado, apesar de uma das suas administradoras ter estado presente no acto de abertura das propostas em carta fechada, não foi interpelada para declarar se pretendia exercer o referido direito.

Tal omissão dá origem a que possa, agora, exercer o direito de preferência, a fim de fazer seu o prédio alienado.

Pediu, a final, se declarasse que tem direito de preferência na venda do prédio em causa, que o mesmo lhe fosse adjudicado pelo preço de € 201.000,00 e que se ordenasse o cancelamento do registo de aquisição a favor da ré compradora e dos subsequentes, derivados deste.

Regularmente citadas, as rés apresentaram contestação, em conjunto, aceitando os factos referentes à venda, mas contrapondo não haver lugar ao exercício do direito de preferência, por estar em causa a venda do prédio na sua totalidade e não uma sua parte indivisa.

Alegaram, ainda, que, tendo a autora estado presente no acto de venda e aí declarando que nada tinha a opor à mesma, deveria considerar-se sanada a omissão de notificação expressa para preferência.

Para o caso de a acção proceder, deduziu a ré B... reconvenção, com vista à condenação da autora no pagamento da quantia de € 125,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação da reconvenção, correspondente ao valor da taxa de registo predial que suportou.

Concluíram pela absolvição do pedido ou, se assim não for entendido, pela procedência do pedido reconvencional.

A autora replicou de forma a manter o teor da petição inicial e a contrariar as excepções deduzidas e a reconvenção.

Convocada e realizada uma audiência preliminar, onde não foi possível chegar a acordo, foi proferido despacho saneador, que declarou a validade e a regularidade da lide e, conhecendo do mérito da causa, julgou a acção improcedente, com a consequente absolvição das rés dos pedidos; quanto à reconvenção, absteve-se de dela conhecer, por ter sido deduzida para a hipótese de a acção proceder.

Inconformada, a autora interpôs recurso (admitido como apelação e com efeito devolutivo), com o qual apresentou a sua alegação, rematada por 42 confusas conclusões, que se resumem, sem dificuldade, a, apenas, cinco:

1) A acta não reflecte o que se passou, violando o disposto no artigo 157.º do Código de Processo Civil;

            2) A sentença é nula, tanto por omissão de pronúncia, como por oposição entre os fundamentos e a decisão;

            3) Na qualidade de comproprietária, assiste-lhe o direito de preferência na venda da quota alienada;

            4) Por isso mesmo, deveria ter sido notificada para exercer tal direito;

            5) Foram violados os artigos 416.º, 1409.º, 1410.º e 1412.º do Código Civil e 463.º e 886.º a 907.º do Código de Processo Civil.

            Formulou, a final, o pedido de procedência do recurso, com a substituição da decisão impugnada por outra que julgue a acção procedente ou, caso assim se não entenda, com a anulação da decisão e a ordem para o prosseguimento dos autos.

            As recorridas contra-alegaram, sustentando, por um lado, que a sentença não enferma de qualquer nulidade e, por outro, que não existe direito de preferência em caso de alienação total a terceiros de prédio em regime de compropriedade.

            Subsidiariamente, e para o caso, tão-somente, de proceder alguma das questões suscitadas pela autora, requereram a extensão do âmbito do recurso nestes termos:

            1) O facto alegado no artigo 25.º da contestação/reconvenção não foi expressamente impugnado e o seu último segmento acha-se provado documentalmente, pelo que deverá ser julgado assente, por ter relevância para a decisão do pleito;

            2) Uma vez que a autora apresentou uma proposta para a compra do bem e esteve presente no acto de abertura de propostas, tendo total disponibilidade para exercer o direito de preferência, deve considerar-se que renunciou a esse direito;

            3) De todo o modo, o direito de preferência caducou, dado que nas vendas judiciais por propostas em carta fechada o seu exercício tem de ser efectuado no acto, o que a autora não fez;

            4) E o mesmo resulta da circunstância de a autora apenas ter depositado a quantia de € 211.050,00, quando deveria ter depositado € 211.175,00, correspondente à totalidade das despesas feitas pela adquirente da coisa;

            5) Ainda que assim se não entenda, sempre o exercício da preferência configura abuso de direito, tendo em conta a falada situação de a autora ter estado presente no acto de abertura de propostas e não o ter exercido;

            6) Caso a acção venha a ser julgada procedente, deverá, também, a reconvenção proceder, pois que a ré B... despendeu essa quantia para registar o imóvel.

            A ex.ma juiz autora da decisão recorrida indeferiu a arguição da nulidade decorrente da oposição entre os fundamentos e a decisão, mas considerou verificada a de omissão de pronúncia, que sanou, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 670.º do Código de Processo Civil, emitindo despacho a julgar improcedente o pedido de condenação da ré B... por ter litigado de má fé.

            Nenhuma das partes reagiu contra esta decisão.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

            Conforme as conclusões da alegação da autora e das rés (ampliação do âmbito do recurso) são estas as questões a requerer resolução:

a) A desconformidade da acta;

b) A nulidade da decisão recorrida;

c) O direito de preferência do comproprietário na venda da totalidade do prédio;

d) A alteração da matéria de facto;

e) A renúncia ao direito de preferência;

f) A caducidade do direito de preferência;

g) O abuso do direito;

h) O pedido reconvencional.

 

II. No despacho saneador recorrido foram dados por assentes os seguintes factos:

1. Na conservatória do Registo Predial de Alcobaça, sob o n.º 00000, freguesia de ..., encontra-se descrito o seguinte prédio: «Rústico – Estrada Velha, denominado “...” – terra de semeadura e olival – 4.000 m2 – Norte, MC; Sul, ML; Nascente e Poente, estrada. Artigo 0000» (documento de folhas 20 e 21 dos autos, não impugnado).

2. De acordo com a mesma descrição n.º 00000, encontra-se inscrita, com data de 10.04.93, a aquisição de 1/2 a favor de C... e com data de 18.09.03, encontra-se inscrita a aquisição de 1/2 a favor de A... (documento de folhas 20 e 21 dos autos, não impugnado).

3. No 1.º Juízo deste Tribunal de Alcobaça e sob o n.º 1891/04.1, correu termos uma acção de divisão de coisa comum, em que foi requerente C... e requerida A... (documento de folhas 9 a 12 dos autos, não impugnado).

4. Na referida acção de divisão de coisa comum, que tinha por objecto a divisão do prédio descrito em 1., no dia 19 de Janeiro de 2008, teve lugar a venda do mesmo, mediante propostas em carta fechada e o prédio foi adjudicado a B...., pelo preço de € 201.000,00, por ser a proposta de maior valor apresentado (documento de folhas 10 a 12 dos autos, não impugnado).

5. No acto de abertura de propostas e conforme consta da acta respectiva, esteve presente a legal representante de A..., Sra. Dra. D.... (documento de folhas 10 a 12 dos autos, não impugnado).

            6. Daquela acta de abertura de propostas não consta mencionado/consignado que tenha sido interpelada A... para exercer o direito de preferência na compra (documento de folhas 10 a 12 dos autos, não impugnado).

7. Na referida acção, a autora não foi notificada para exercer o direito de preferência.

III. O direito:

a) A desconformidade da acta

Alega a autora que a acta (a de audiência preliminar, obviamente) não reflecte o que se passou, violando, nessa medida, o disposto no artigo 157.º do Código de Processo Civil (de futuro, abreviadamente, CPC), por referir que o prédio se localiza na cidade de Alcobaça (ponto I da sentença) e indicar como horas de chamada e de encerramento as 16H00 e as 09H45, respectivamente.

A questão é que não extrai consequências processuais do alegado, o que deixa o reparo vazio de conteúdo.

Não obstante, dir-se-á que a acta enferma, na realidade, dos lapsos apontados, mas que isso não influi na regularidade do processo.

A localização do prédio – Estrada Velha, freguesia de ..., Alcobaça, e não, apenas, Alcobaça, como consta do relatório do despacho saneador, ditado para a acta – é processual e substancialmente inócua, até porque não passa de um mero lapso material, facilmente abarcável no contexto; a identificação do mesmo não sofre qualquer dúvida, pois que consta de documento autêntico (certidão do Registo Predial), não questionado por qualquer das partes.

E o mesmo se diga da hora de início e de encerramento. A audiência foi iniciada às 09H30, hora para que estava convocada, mas logo suspensa, para continuar às 16H00, devido ao agendamento para as 10H00 de uma diligência em processo de natureza urgente (processo de promoção e protecção). Reiniciou-se às 16H10, após prévia chamada, efectuada às 16H00, a que nenhuma das partes respondeu, para ser proferida sentença, que foi ditada para a acta. Finda a leitura, consignou-se que “quando eram 09H45, a M.ma Juiz deu por encerrada a presente audiência de julgamento”.

Evidentemente que a indicação da hora de encerramento está incorrecta, já que a audiência não podia encerrar antes de começar. Mas trata-se, ainda aqui, de manifesto lapso material, imediatamente apreensível, e sem influência no salutar desenvolvimento do processo.

O erro de escrita, revelado no próprio contexto, confere o direito à rectificação, mas não mais do que isso (artigo 249.º do Código Civil).

Nessa medida, se prevê no artigo 159.º, n.º 3 do CPC, a correcção da acta desconforme; o problema é que ninguém reagiu a tempo e, nesta altura, a questão, sem relevo processual, repete-se, está ultrapassada.

A arguição, fosse qual fosse o fito da recorrente, improcede.

b) A nulidade da decisão recorrida

Na óptica da recorrente, a sentença seria nula por oposição entre os fundamentos e a decisão e por omissão de pronúncia.

No que tange à primeira das apontadas nulidades, não alega em concreto em que consista a oposição; quanto à segunda, assaca à decisão o vício de se não ter pronunciado acerca do pedido de condenação das rés/recorridas como litigantes de má fé.

Nos termos do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão – alínea c) – e quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar – alínea d).

A nulidade da alínea c) pressupõe um vício lógico de raciocínio; “a construção é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”[1]; “nos casos abrangidos pelo artigo 668.º, n.º 1, alínea c), há um vício real no raciocínio do julgador: a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente”[2]; “se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença”[3].

Importa notar que a oposição entre os fundamentos e a decisão nada tem a ver, seja com o erro material (contradição aparente, resultante de uma divergência entre a vontade declarada e a vontade real: escreveu-se uma coisa, quando se queria escrever outra), seja com o erro de julgamento (decisão errada, mas voluntária, quanto ao enquadramento legal ou quanto à interpretação da lei)[4]; o erro material e o erro de julgamento não geram a nulidade da sentença, como sucede com a oposição entre os fundamentos e a decisão, mas, tão-só, e apenas, a sua rectificação ou a sua eventual revogação em via de recurso, respectivamente.

“Não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável …”[5].

É bom de ver, pela sua mera leitura, que a sentença não enferma da arguida nulidade. Historiando um pouco, para melhor compreensão do tema, a autora pediu lhe fosse reconhecido o direito de preferência na alienação de um prédio, levada a efeito em acção de divisão de coisa comum, alegando ser comproprietária de 1/2 indiviso do mesmo.

No despacho recorrido julgou-se a acção improcedente, na consideração de que o direito de preferência conferido ao comproprietário, por visar a redução progressiva do número de comproprietários, de acordo com a ideia de que a propriedade singular permite um melhor aproveitamento da coisa, só se aplica aos casos de alienação de quotas e não aos de alienação da totalidade do imóvel.

Exposta, assim, a realidade dos factos, não se descortina onde conseguiu a autora descobrir laivos de oposição entre os fundamentos e a decisão, se nos fundamentos se esclarece que o direito de preferência atribuído ao comproprietário não abrange as situações de alienação da totalidade do bem e na decisão se negou à ora recorrente, comproprietária do prédio vendido, a possibilidade de exercer tal direito.

Raciocínio mais lógico, não pode haver; a fundamentação aponta no sentido de a autora não ter o direito que reclama e a decisão segue exactamente o mesmo caminho, recusando-lho.

Vício de raciocínio haveria, isso sim, se a ex.ma juiz, considerando, como fez, que o comproprietário não tinha o direito de preferência, acabasse por lho reconhecer na decisão.

Em suma, a nulidade da alínea c) do n.º 1 do referido artigo 668.º inexiste.

A nulidade da alínea d), por seu lado, abrange os casos de omissão de pronúncia e de pronúncia indevida, consistindo o primeiro em o tribunal deixar de conhecer de questões que lhe foram expressamente colocadas e o segundo em apreciar questões que lhe não foram colocadas; a omissão de pronúncia está em correlação com a primeira parte do n.º 2 do artigo 660.º (“o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação”) e a pronúncia indevida com a segunda parte do mesmo número (“não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes”)[6]

Ora, a decisão é, efectivamente, omissa quanto ao pedido de condenação da ré C... como litigante de má fé, o que acarreta a sua nulidade, nos termos daquele preceito.

Sucede, porém, que a ex.ma juiz corrigiu o vício, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 670.º do mesmo diploma, emitindo despacho que apreciou o pedido formulado pela autora e concluiu pela sua improcedência.

A nulidade em si está sanada. E como a recorrente não manifestou discordância em relação ao sentido da nova decisão, conformando-se, por conseguinte, com ela, o recurso fica, nesta parte, sem objecto.

Em conclusão, a arguição da nulidade da sentença improcede.

c) O direito de preferência do comproprietário na venda da totalidade do prédio

De acordo com o disposto no artigo 1409.º, n.º 1, do Código Civil (diploma de que serão os restantes preceitos a citar sem menção de origem), “o comproprietário goza do direito de preferência e tem o primeiro lugar entre os preferentes legais no caso de venda, ou dação em cumprimento, a estranhos da quota de qualquer dos seus consortes”.

Em face dos termos da lei, é indubitável que ao comproprietário assiste o direito de haver para si a quota alienada a estranhos pelo consorte ou consortes. Mas se a alienação abranger todo o prédio, será que o direito de preferência se mantém? É esta a questão que exige resposta, uma vez que, no caso em apreço, o prédio de que a autora, ora recorrente, era comproprietária, foi vendido em acção de divisão de coisa comum, proposta pelo outro comproprietário.

No domínio do Código de Seabra, perante disposição semelhante (artigo 1566.º), na qual, aliás, o actual artigo 1409.º se inspirou[7], firmou-se jurisprudência, a partir de certa altura, pelo menos, no sentido de a preferência se não impor nessa situação[8], a qual se consolidou com a publicação do Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de Julho de 1931, que estabeleceu a seguinte doutrina: “O direito de preferência, de que no acto da praça, com fundamento nos artigos 848.º, n.º 7, do Código de Processo Civil e 1566.º do Código Civil, podem usar os comproprietários, é inadmissível quando se tratar de arrematação de todo o prédio comum, e não simplesmente da parte pertencente a outro consorte” (Colecção Oficial, 30-176).

Esclarece o acórdão do STJ, de 17.12.97[9], que Pinto Loureiro, na obra Manual dos Direitos de Preferência, defendeu a bondade do assento, mesmo depois da revogação do Código de Processo Civil de 1876, na consideração de o artigo 1566.º do Código Civil anterior se referir à venda de parte da coisa, o que exclui a venda da sua totalidade, e de o fundamento da concessão do direito de preferência ser a utilidade pública de pôr termo à compropriedade, razão que não colhe quando se procede à alienação do todo.

Ora, tendo em conta a similitude da lei substantiva (a anterior e a actual), parece não haver fundamento para alterar a posição que vinha sendo mantida no regime de pretérito.

Segundo Pires de Lima e Antunes Varela[10], são três os fins principais que justificam a atribuição da preferência no caso especial da compropriedade:

a) Fomentar a propriedade plena, que facilita a exploração mais equilibrada e mais pacífica dos bens;

b) Não sendo possível alcançar a propriedade exclusiva, diminuir o número dos consortes;

c) Impedir o ingresso, na contitularidade do direito, de pessoas com quem os consortes, por qualquer razão, o não queiram exercer.

Manuel Baptista Lopes, por sua vez, alude à vantagem económica na unificação ou consolidação da propriedade, que é melhor administrada e mais rende quando pertença a um só proprietário, e à conveniência em evitar que na comunhão entre uma pessoa estranha[11].

O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.07.2008[12], coloca na concessão do direito de preferência razões de interesse público, assentes na protecção da plenitude do direito de propriedade, a que só escapa a hipótese configurada no artigo 1380.º, cuja razão de ser é a de permitir uma mais eficiente exploração agrícola.

No mais, acrescenta, nos casos de prédio onerado com servidão de passagem, com o direito de superfície ou com arrendamento, o objectivo é o de reunir numa mesma pessoa as faculdades que, contidas no direito de propriedade plena, se encontravam repartidas entre diversos titulares; e, tratando-se de compropriedade, a preferência visa “a redução progressiva do número de proprietários, de acordo com a ideia de que a propriedade singular permite o melhor aproveitamento da coisa, desde logo porque elimina diversos conflitos que frequentemente se travam entre os comproprietários”.

É concorde, portanto, como se vê, a posição da doutrina e da jurisprudência acerca da finalidade do direito de preferência, mormente no que se refere ao caso da compropriedade.

Conjugando o teor literal do n.º 1 do artigo 1409.º, na medida em que fala da alienação da quota (e não na do prédio), com a teleologia do direito de preferência em geral e do direito de preferência do comproprietário em particular, julga-se inequívoco que a faculdade conferida por aquele normativo, contrariamente ao que a recorrente sustenta, não tem cabimento na hipótese de alienação da totalidade do prédio.

Desde logo, porque não estão em causa os fundamentos justificativos do direito de preferência conferido pelo n.º 1 do artigo 1409.º; com a venda extingue-se a compropriedade e surge a propriedade singular, fim último visado por tal direito. Depois, e como se escreveu no referido acórdão de 10.07.2008, não se retira do regime da preferência qualquer indicação no sentido de que se pretendeu, com a limitação que ele implica, beneficiar um comproprietário em relação a terceiros apenas pelo facto de ser comproprietário.

Nem a ideia do artigo 1409.º é a de manter a propriedade na pessoa dos anteriores proprietários, porque para tal fim existe o direito de remição (acórdão do STJ, de 17.12.1997, acima citado).

Mais, diz-se no mesmo aresto, a atribuição do direito de preferência acabaria por ter efeito perverso, por poder resultar em prejuízo dos comproprietários com menor poder económico; os mais abastados sentir-se-iam tentados a não lançar, para evitar a subida do preço, esperando que os estranhos adquirissem o prédio por um preço baixo, para, então, exercerem o direito de preferência, em manifesta lesão do património dos mais carenciados. Já na ausência do direito de preferência, lhes não restaria outra solução que não fosse a de lançar, com efeitos positivos na subida do preço e com os consequentes benefícios para os restantes comproprietários.

            De resto, e finalmente, se fosse intuito do legislador conceder o direito de preferência no caso de que se vem falando, resultaria incompreensível a disposição da parte final do n.º 2 do artigo 1056.º do CPC, que admite os consortes a concorrer à venda. Essa possibilidade significa, exactamente, que o comproprietário está na mesma posição que todos os outros potenciais adquirentes, que tem de exercer as suas pretensões na venda judicial e que, depois disso, lhe não assiste qualquer outro direito, mormente o de exercer a preferência.

 Em conformidade com o exposto, considera-se, como o consideraram as decisões do STJ antes aludidas, que o comproprietário não goza do direito de preferência na venda da totalidade do bem a terceiros, levada a efeito em acção de divisão de coisa comum.

Conclusão que, naturalmente, levará à improcedência do recurso interposto pela autora.

O que, por sua vez, torna inútil a apreciação das questões suscitadas pelas rés, ao abrigo do disposto no artigo 684.º-A do CPC, dada a sua subsidiariedade.

IV. Sumário:

a) A desconformidade da acta, devido a lapso material, revelada no próprio contexto, não acarreta quaisquer consequências processuais;

b) Só se verifica a nulidade da alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil – oposição entre os fundamentos e a decisão –, se a conclusão final divergir do que os fundamentos fariam pressupor;

c) O comproprietário não goza do direito de preferência na venda da totalidade do bem comum a terceiros, em acção de divisão de coisa comum.

V. Decisão:

Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, por conseguinte, em confirmar o despacho saneador recorrido.

Custas pela apelante.


[1] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume V, página 141.
[2] Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, página 690.
[3] Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, página 670.
[4] Alberto dos Reis, ob. cit., páginas 130 e 141.
[5] Antunes Varela e outros, ob. cit., página 686.
[6] Alberto dos Reis, ob. cit., páginas 130 e 141 e seguintes, e Antunes Varela, ob. cit., páginas 686 e seguintes.
[7] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume III, 2.ª edição, página 367.
[8] Isso mesmo esclarece Manuel Baptista Lopes, Do contrato de Compra e Venda, edição de 1971, páginas 304/305, citando Cunha Gonçalves, em Tratado de Direito Civil, volume VIII, páginas 487/488.
[9] CJ/STJ, Ano V, Tomo III, página 166.
[10] Obra e local citados.
[11] Obra citada, página 304.
[12] Acessível em www.dgsi.pt, com o número convencional JSTJ000.