Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
920/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: DIREITO DE PERSONALIDADE
RESERVA DA VIDA PRIVADA
PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
Data do Acordão: 05/03/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ÍLHAVO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 26.º, N.º DA CR; 80.º, N.º 1 DO CÓDIGO CIVIL; E ARTIGOS 381.º N.º 1 E 3 E 387.º, N.º 1 E 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Legislação Estrangeira: ARTIGO 17.º DO PACTO INTERNACIONAL DOS DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS;
Sumário: 1. Não se demonstrando que as objectivas das câmaras de vídeo incidam sobre o interior do pátio da casa de habitação dos requerentes, mas, tão-só, sobre o trajecto de servidão de acesso à sua casa de habitação, e, de todo, que os passeios, em pijama, de forma descontraída, que aqueles realizam no pátio se traduzam em actos abrangidos pela dimensão da vida íntima, não se encontram a coberto da tutela do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada.
2. A esfera privada ou individual representa uma realidade distinta da esfera íntima ou de segredo.

3. Não ocorre o requisito da probabilidade séria da existência do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, indispensável ao êxito da providência cautelar não especificada proposta pelos requerentes, em relação aos actos da vida privada, que englobam os acontecimentos que cada indivíduo partilha com um número restrito de pessoas, como acontece com a circulação de acesso à sua casa de habitação, pelo caminho de serventia particular, e com passeios, em pijama, de forma descontraída, pelo pátio anexo aquela.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA :


A... e mulher, B..., interpuseram recurso de agravo da decisão que julgou, parcialmente, procedente a providência cautelar não especificada, proposta por C... e mulher, D..., todos residentes na Rua de Santa Mafalda, Gafanha da Nazaré, concelho de Ílhavo, e, consequentemente, ordenou a imediata retirada das câmaras de vídeo do local onde se encontram e a destruição de todas as cassetes de vídeo que tenham sido gravadas por este sistema de vigilância vídeo que contenham imagens que não se cinjam à porta de entrada ou ao interior da casa dos requeridos, terminando as suas alegações, com as seguintes conclusões:
1ª - Considerou provado o Ex.mo Juiz a quo que os requerentes, aqui recorridos, não foram informados pelos recorrentes, nem por ninguém, da montagem do sistema de vigilância de vídeo.
2a - Facto que se apresenta em contradição àquele que - na mesma sentença que ora se recorre - foi dado como provado sob o ponto 11, isto é, que a instalação e montagem do dito sistema de vigilância de vídeo estava perfeitamente publicitada.
3a - Uma vez que aí se refere que: "Encontra-se afixado em local bem visível um aviso, onde se pode ler: Para sua protecção este local encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão procedendo-se à gravação de imagens e de som".
4a - A causa fundamentadora do recurso ao presente meio processual foi sentirem-se violados no seu direito à intimidade.
5a - Circunstância que, contudo, não lograram os recorridos provar estar violada a sua intimidade, privacidade ou outro direito fundamental ou, ainda, que tão-pouco tenha sido objecto de qualquer ameaça.
6a - Provado ficou sim que as filmagens se circunscrevem à área defronte da habitação dos recorrentes, não havendo qualquer captação de imagens para a zona que fica defronte da casa dos recorridos e até mesmo para esta.
7ª - Com efeito, as câmaras visam tão-só proteger a entrada da moradia dos recorrentes, tendo estes obtido licença administrativa para tal e visam prevenir assaltos e desacatos que têm ocorrido e que, dado o local ser ermo e tudo se passar no interior da sua propriedade, os recorrentes vêem sempre frustadas as tentativas de se socorrerem da justiça por falta de prova.
8a - Resulta, como ficou provado, haver desentendimentos entre recorrentes e recorridos exactamente na passagem que tem sido geradora de muitos conflitos.
9a - Ora, as câmaras visam prevenir, para além de outros perigos, a ocorrência desses desacatos e só poderão intimidar quem pretende desassossegar desnecessariamente os recorrentes e suas famílias.
10a - Nunca foi, nem isso ficou provado, que os recorrentes tenham alguma vez pensado e ou pretendido imiscuir-se, a que título for, na vida dos recorridos, muito menos tentar controlar a sua vida ou pretender saber o que quer que seja que lhes diga respeito.
11a - Foram estes os seus receios e que estiveram na origem do recurso à presente providência cautelar.
12a - E assim é que, seria aos recorridos que incumbia provar a violação do direito à reserva e intimidade da vida privada, o que não lograram em fazê-lo, e não aos recorrentes terem de provar a necessidade e motivos de se socorrerem do sistema de segurança como se pretende na sentença ora em recurso.
13a - Pelo que, na ausência de prova da violação do direito à intimidade e reserva privada dos recorridos falece, por absoluta falta de suporte factual, a verificação dos requisitos e pressupostos de decretamento da providência cautelar requerida.
14a - Diga-se, de passagem, que no âmbito de licenciamento destes sistemas de segurança não é exigido, nem exigível que se demonstre a existência de qualquer tipo de perigo relativamente à segurança.
15ª - Estes sistemas são colocados como prevenção e até intimidação com vista a trazer tranquilidade no quotidiano de quem se socorre destes meios, violando-se, desta forma o prescrito no artigo 342° do Código Civil.
16a - A sentença recorrida viola, assim, o disposto nos artigos 342° do Código Civil, 18° e 26º da Constituição da República Portuguesa, e 381° e ss. do Código do Processo Civil.
Os agravados não apresentaram contra-alegações.
O Exº Juiz manteve a decisão questionada, por entender que não foi causado agravo aos recorrentes.

*

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir no presente agravo, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código do Processo Civil (CPC), são as seguintes:
I - A questão da contradição nas respostas à matéria de facto.
II – A questão da violação do direito à reserva da intimidade da vida privada.

I

DA CONTRADIÇÃO NAS RESPOSTAS À MATÉRIA DE FACTO

Entendem os agravantes que existe contradição entre o segmento da matéria de facto em que se deu como provado que “os requerentes não foram informados pelos requeridos, nem por ninguém, da montagem deste sistema de vigilância vídeo” e aquele em que ficou demonstrado que se “encontra afixado em local visível um aviso, onde se pode ler para sua protecção, este local encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão, procedendo-se à gravação de imagem e de som".
Com efeito, a resposta é contraditória com outra quando em ambas se façam afirmações inconciliáveis entre si, de modo a que a veracidade de uma exclua a veracidade da outra Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, IV, 1981, 553..
Porém, sendo certo que se provou que os ora agravados não foram informados pelos agravantes ou por outras pessoas sobre a montagem do sistema de vigilância vídeo, ou seja, pessoalmente, informados sobre esse facto, tal não colide com o facto, também, dado incontroverso, isto é, a afixação, em local bem visível, de um aviso, com a inscrição, a título cautelar, de que o referido local se encontra sob vigilância de um circuito fechado de televisão, com recolha de gravação de imagem e de som.
Assim sendo, inexiste a apontada contradição nas respostas aos dois aludidos pontos da matéria de facto.
Como assim, este Tribunal da Relação declara fixados, provisoriamente, tal como o fez o Tribunal de 1ª instância, os seguintes factos que reproduz, nos termos do disposto pelo artigo 713º, nº 6, do CPC:
1 – Requerentes e requeridos residem na Rua de Santa Mafalda, sita
na Gafanha da Nazaré, em Ílhavo.
2 - As respectivas casas de habitação são contíguas entre si, sendo o
acesso a estas efectuado pelo mesmo caminho particular.
3 - Requerentes e requeridos construíram as suas casas de
habitação voltadas para o dito caminho, e em posição perpendicular à Rua de Santa Mafalda.
4 - As relações entre requerentes e requeridos nunca foram as
melhores, apesar da requerente mulher e do requerido varão serem
irmãos, estando mesmo de relações cortadas, há vários anos, tendo
havido já queixas-crime de ambas as partes.
5 - Os requeridos mandaram instalar um sistema de captação de
imagem vídeo, na varanda da sua casa de habitação.
6 - Para tanto, em data não apurada do mês de Agosto, andou um
electricista a fazer uma montagem das duas câmaras de filmar, no alto da
casa dos requeridos, uma em cada canto da varanda, sendo que as
respectivas objectivas estão voltadas para a dita passagem particular.
7 - Os requerentes não foram informados pelos requeridos, nem por
ninguém, da montagem deste sistema de vigilância vídeo, e não se
sentem bem com a existência do mesmo.
8 - Por vezes, os requeridos passeiam no pátio da sua casa, que
confina com a passagem referida em 2, de forma descontraída,
designadamente, em pijama.
9 - A casa dos requerentes dista, cerca de 50 metros, da estrada
principal da Rua de Santa Mafalda.
10 - A família dos requeridos é constituída pelo casal e duas filhas
de 16 e 11 anos.
11 - Encontra-se afixado, em local visível, um aviso, onde se pode ler
"Para sua protecção, este local encontra-se sob vigilância de um circuito
fechado de televisão, procedendo-se à gravação de imagem e de som".
12 - A televisão de circuito fechado, por onde se vêem os registos de
som e imagem, encontra-se numa sala do 1o andar da casa dos
requeridos.
13 - Há uns dias atrás, o primo dos requeridos, Sérgio Manuel
Sarabando de Jesus, encontrando-se na casa daqueles, viu, com os
mesmos, as filmagens.
14 - Os requeridos não trabalham, passando a maior parte do tempo
em casa e têm amigos entre os demais vizinhos.

II

DO DIREITO À RESERVA DA INTIMIDADE DA VIDA PRIVADA

A procedência das providências cautelares inominadas depende da verificação cumulativa dos requisitos da probabilidade séria da existência do direito de que se ocupa a acção, proposta ou a propor, que tenha por fundamento o direito tutelado, do justo e fundado receio de que alguém pratique factos susceptíveis de causar lesão grave e de difícil reparação a esse direito, da não existência de providência específica para acautelar o mesmo direito, e de que o prejuízo resultante da providência não exceda o valor do dano que com ela se pretende evitar, em conformidade com o estipulado pelos artigos 387º, nºs 1 e 2 e 381º, nºs 1 e 3, ambos do CPC.
Em primeiro lugar, como resulta da decomposição dos requisitos constitucionais de que dependem, estas providências requerem a probabilidade séria da existência do direito invocado, a que se reporta a acção, proposta ou a propor, que tenha por fundamento o direito tutelado.
Ora, os requerentes alegaram que são titulares do direito de não verem violada a privacidade do recato do seu lar, pois que as duas câmaras de filmar deitam, directamente, sobre a referida passagem particular, por onde circulam, diariamente, e ainda sobre o interior do pátio da casa, por onde passeiam, da forma mais descontraída, designadamente, em pijama.
Revertendo ao caso concreto, há que reter que as casas de habitação dos requerentes e requeridos são contíguas entre si, sendo o respectivo
acesso efectuado pelo mesmo caminho particular, para o qual as mesmas estão voltadas.
Sendo ambos familiares, as relações recíprocas encontram-se cortadas, há vários anos, havendo queixas-crime mútuas.
Em Agosto de 2004, os requeridos instalaram, no alto da varanda da sua casa, um sistema de captação de imagem vídeo, composto por duas câmaras de filmar, uma em cada canto da mesma, encontrando-se as respectivas objectivas voltadas para a referida passagem particular.
Com efeito, sendo certo que os requerentes não foram informados, em forma pessoal, da montagem do aludido sistema de vigilância vídeo, acha-se afixada, em local visível, uma inscrição donde consta que, para fins de “protecção, este local encontra-se sob vigilância de um circuito
fechado de televisão, procedendo-se à gravação de imagem e de som", da qual, aliás, aqueles se aperceberam, logo na primeira semana da sua instalação na varanda dos requeridos, consoante resulta do teor da petição inicial.
Ora, os requerentes não se sentem bem com a existência do sistema de vigilância, pois que, por vezes, passeiam no pátio da sua casa, que
confina com aquela passagem particular, de forma descontraída, designadamente, em pijama.
Finalmente, a família dos requeridos é constituída pelo casal e duas filhas, de 16 e 11 anos, sendo certo que um primo destes viu com os
mesmos as filmagens, numa sala do 1o andar da casa, onde se encontra a televisão de circuito fechado, que permite o acesso aos registos de
som e imagem.
Dispõe o artigo 26º, nº 1, da Constituição da República (CR), que “a todos são reconhecidos os direitos...à reserva da intimidade da vida privada e familiar...”.
Por outro lado, estipula o artigo 80º, nº 1, do Código Civil (CC), que “todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem”, acrescentando o respectivo nº 2 que “a extensão da reserva é definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas”.
Assim sendo, a lei ordinária, talvez por ser anterior à lei constitucional, nada acrescenta à substância do direito à intimidade da vida privada, consagrado pelo texto desta, servindo, tão-só, para concretizar a lei fundamental, limitando-se a explicitar conceitos, interpretando-os e repetindo mais, claramente, o seu conteúdo.
E o legislador constitucional, também, não esclarece o intérprete, neste particular, continuando, por simples decalque em relação à lei ordinária, a utilizar a expressão ambígua “guardar reserva”, em lugar do inequívoco e, indiscutivelmente, mais simples conceito de direito à intimidade Paulo Cunha, Teoria Geral do Direito Civil, 1972, 136 e ss..
O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, direito de resguardo, como é designado pela doutrina italiana, ou direito a uma esfera de segredo, para a teoria germânica, corresponde ao reconhecimento de uma merecida tutela quanto à natural aspiração da pessoa a uma esfera íntima de vida, ao direito de estar só (right to be let alone), na terminologia inglesa Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição actualizada, 209; Januário Gomes, O Problema da Salvaguarda da Privacidade antes e depois do Computador, BMJ nº 319, 31., consistindo no direito de qualquer pessoa a que os acontecimentos íntimos da sua vida privada, que só a ela se referem, não sejam divulgados sem o seu consentimento, independentemente do carácter ofensivo da reputação Adriano De Cupis, Os Direitos da Personalidade, 1961, 129..
É que a intimidade da vida privada de cada um, que a lei protege, só pode desenvolver-se, no âmago da casa ou do lar Pierre Kayser, A Protecção da Vida Privada, Presses Universitaires D’ Aix-Marseille, 2ª edição, 1990, 3 e ss., compreendendo aqueles actos que, não sendo secretos em si mesmos, devem subtrair-se à curiosidade pública, por naturais razões de resguardo e melindre, tais como os sentimentos e afectos familiares, os costumes da vida e as vulgares praticas quotidianas, a vergonha da pobreza e as renúncias que ela impõe e, até, por vezes, o amor da simplicidade Rodrigues Bastos, Das Relações Jurídicas segundo o Código Civil de 1966, I, 12. .
Para determinar a amplitude da reserva da intimidade da vida privada, o legislador ordinário manda atender, para além da condição das pessoas, elemento subjectivo que contende com a posição social do titular, igualmente, à natureza do caso, que deriva de caracteres objectivos, isto é, de traços específicos, identificadores de determinada situação concreta, que não dependem da qualidade do sujeito envolvido, como acontece, por exemplo, se o facto ou o acto ocorreu, em local público, onde pode ser conhecido por qualquer um, hipótese em que não será fundada a reacção contra quem o tenha apreendido, por o ter presenciado, excluindo, contudo, a intimidade da intromissão, ainda que não, necessariamente, a sua divulgação.
A natureza do caso constitui uma circunstância, de carácter objectivo, que delimita, nos termos da lei civil, a extensão do direito
à reserva sobre a intimidade da vida privada, determinando, simultaneamente, a variabilidade deste Rita Amaral Cabral, O Direito à Intimidade da Vida Privada, Separa dos Estudos em Memória do Prof. Paulo Cunha, 1988, 28 e nota 2 e 30..
Porém, com vista a confinar o objecto do direito
à reserva sobre a intimidade da vida privada, importa considerar que o texto da lei não se limita a referir a intimidade, antes a reporta à vida privada, o que exclui do âmbito da tutela do direito tudo aquilo que possa considerar-se como pertencendo ao domínio da participação do cidadão na vida pública.
A este propósito, impõe-se trazer à colação a denominada «teoria das três esferas», segundo a qual é possível diferenciar na personalidade humana e de relação três dimensões, isto é, a vida íntima, que compreende os gestos e factos que, em absoluto, devem ser subtraídos ao conhecimento de outrem, concernentes não apenas ao estado do sujeito enquanto separado do grupo, mas, também, a certas relações sociais, a vida privada, que engloba os acontecimentos que cada indivíduo partilha com um número restrito de pessoas, e a vida pública que, correspondendo a eventos susceptíveis de ser conhecidos por todos, respeitam à participação de cada um na vida da colectividade Rita Amaral Cabral, O Direito à Intimidade da Vida Privada, Separa dos Estudos em Memória do Prof. Paulo Cunha, 1988, 30 e 31. .
O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada tutela, assim, a esfera da vida íntima, aquele sector da vida que se desenvolve entre as paredes domésticas e no âmbito da família Adriano De Cupis, Os Direitos da Personalidade, 1961, 129, 142, 144 e ss., o que significa que compreenderá, por exemplo, os factos que decorrem dentro do lar, no interior do domicílio Paulo Mota Pinto, O Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada, BFDUC, 1993, nº 69, 526 e ss..
Os critérios atinentes à condição das pessoas e à natureza do caso são, eles próprios, elementos da explicitação da intimidade da vida privada e decorrem do próprio conceito de privacidade, tratando-se de limites impostos pela especificidade do bem que esse direito fundamental visa salvaguardar e, consequentemente, derivados do próprio objecto do direito, e não de forças exógenas ao mesmo.
Convirá, portanto, reconhecer que a tutela da intimidade da vida privada compreendida pela esfera da intimidade não inclui, no âmbito da sua protecção, a esfera da vida privada Helena Moniz, Notas sobre a Protecção de Dados Pessoais perante a Informática, Separata da Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 7, 1997, 331 e ss. e a esfera da vida normal de relação, ou seja, os factos que o próprio interessado, apesar de pretender subtraí-los ao domínio do olhar público, isto é, da publicidade, não resguarda do conhecimento e do acesso dos outros, mas abrange, ao invés, todos aqueles aspectos que fazem parte do domínio mais particular e íntimo que se quer manter afastado de todo o conhecimento alheio, porquanto a esfera privada ou individual representa uma realidade distinta da esfera íntima ou de segredo.
Assim sendo, os actos que os requerentes pretendem ver eliminados das objectivas do sistema de vigilância do requerido consistem na sua circulação diária sobre a servidão de acesso à sua casa de habitação, e ainda nos seus passeios descontraídos, em pijama, no interior do pátio da mesma.
Por outro lado, ficou provado que, em relação a estes actos, apenas a circulação diária sobre o trajecto de servidão de acesso à casa de habitação dos requerentes, aliás, comum à moradia dos requeridos, para onde ambas estão voltadas, é alvo do sistema de captação de imagem vídeo, cujas câmaras de filmar estão instaladas nos dois cantos superiores da varanda, sem que se tenha provado que o mesmo incida sobre o interior do respectivo pátio.
Por isso, trata-se de actos excluídos da esfera da vida íntima, e, também, da vida pública, como é óbvio, para se situarem na área da vida privada e, portanto, não abrangidos pela tutela do direito à reserva quanto à intimidade da vida privada.
E isto é assim, mesmo sendo verdade, igualmente, que a lei fundamental, após a sexta revisão constitucional (Lei Constitucional nº 1/2004, de 24 de Julho), atento o teor do seu artigo 26º, nº 2, não requer já, conforme acontecia no passado, a “utilização” ou divulgação, pois que se basta agora, também, com a “obtenção”, ou seja, com a investigação sobre a vida privada, razão pela qual o direito à intimidade compreende, não só o direito de oposição à divulgação da vida privada, mas, também, o direito ao respeito da vida privada, à não intromissão na mesma, isto é, a simples aquisição de conhecimentos sobre tais factos.
E o problema não é despiciendo, pois que se trata de qualificar ou não como ilícita a simples apreensão de informações acerca de factos abrangidos pela intimidade da vida privada, o que importará consequências praticas relevantes, como, por exemplo, a entender-se ilícita a intromissão, necessariamente, o condicionamento da comercialização de determinados objectos, unicamente destinados a possibilitar aquela intrusão, afigurando-se, fora de dúvida, estarem abrangidos na previsão legal da Constituição os casos em que, por exemplo, se utilizam instrumentos destinados a permitir a clandestinidade da indagação.
No mesmo sentido de que o direito à intimidade da vida privada proíbe, tanto a divulgação, como a indagação da vida privada alheia, aponta, aliás, a remissão estabelecida pelo artigo 16, nº 2, da CR, ao estatuir que “os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem”, enunciando o respectivo artigo 12º o princípio de que “ninguém poderá ser objecto de ingerências arbitrárias na sua vida privada...”, posteriormente, reafirmado pelo artigo 8º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e pelo artigo 17º, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
Ora, não se demonstrando que as objectivas das câmaras de vídeo dos requeridos incidam sobre o interior do pátio da casa de habitação dos requerentes, mas, tão-só, sobre o trajecto de servidão de acesso à sua casa de habitação, e, de todo, que os passeios, em pijama, de forma descontraída, que estes realizam no pátio se traduzam em actos abrangidos pela dimensão da vida íntima, não se encontram a coberto da tutela do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, consagrado pelos artigos 26º, nºs 1 e 2, do CR, e 80, nºs 1 e 2, do CC.
E, muito embora os requeridos não hajam provado quais os interesses legítimos que se encontram subjacentes à instalação do sistema de video-vigilância, o que é facto é que incumbia antes aos requerentes da providência demonstrar a probabilidade séria da existência do seu alegado direito, atento o disposto pelo artigo 342º, nº 1, do CC, o que não lograram realizar.
Não ocorre, portanto, o requisito da probabilidade séria da existência do direito, indispensável ao êxito da providência cautelar não especificada em apreço.

CONCLUSÕES:

I - Não se demonstrando que as objectivas das câmaras de vídeo incidam sobre o interior do pátio da casa de habitação dos requerentes, mas, tão-só, sobre o trajecto de servidão de acesso à sua casa de habitação, e, de todo, que os passeios, em pijama, de forma descontraída, que aqueles realizam no pátio se traduzam em actos abrangidos pela dimensão da vida íntima, não se encontram a coberto da tutela do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada.
II - A esfera privada ou individual representa uma realidade distinta da esfera íntima ou de segredo.
III - Não ocorre o requisito da probabilidade séria da existência do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, indispensável ao êxito da providência cautelar não especificada proposta pelos requerentes, em relação aos actos da vida privada, que englobam os acontecimentos que cada indivíduo partilha com um número restrito de pessoas, como acontece com a circulação de acesso à sua casa de habitação, pelo caminho de serventia particular, e com passeios, em pijama, de forma descontraída, pelo pátio anexo aquela.

DECISÃO :

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar provido o agravo e, em consequência, em revogar a decisão recorrida.
Custas, a cargo dos requerentes-agravados.