Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
145/06.3 TACNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRIZIDA MARTINS
Descritores: PROVA – APRECIAÇÃO
TRIBUNAL DE RECURSO
Data do Acordão: 09/16/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CANTANHEDE – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 127º CPP
Sumário: Os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1.ª instância.
Decisão Texto Integral: I – Relatório.

1.1. Mediante acusação deduzida pelo Ministério Público, a folhas 104/106 dos autos, o arguido P..., neles já mais identificado, foi submetido a julgamento uma vez que alegadamente indiciado pela prática de factualidade consubstanciadora da autoria material de um crime de ofensa à integridade física, por negligência, previsto e punido nos termos do artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, e, da contra-ordenação causal prevista e punida no artigo 103.º, n.º 1, do Código da Estrada.

Nos termos constantes de folhas 151 e seguintes, D..., também já melhor identificada, deduziu pedido de indemnização civil contra X... Seguros, S.A., pedindo a respectiva condenação a solver-lhe, a título ressarcitório dos danos patrimoniais e não patrimoniais sobrevindos por virtude do acidente génese dos autos e que a vitimou, a quantia global de € 41.341,24, acrescida de juros legais desde a notificação para contestar até integral pagamento (instaurado igualmente tal pedido contra o visado arguido P... através do despacho exarado a folhas 185, foi o mesmo, porém, liminarmente indeferido dada a sua ilegitimidade passiva).

Findo o contraditório, em cujo decurso se deu acatamento ao artigo 358.º do Código de Processo Penal (cfr. acta de fls. 330/331), foi proferida sentença determinando ao ora mais relevante:

- A absolvição do arguido relativamente à prática da mencionada contra-ordenação.

- A sua condenação, enquanto autor material do ilícito assacado, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 8,00 (oito euros).

- Por fim, a condenação da demandada seguradora a solver à demandante, a título da indemnização reclamada, a quantia total de € 21.157,50 (vinte e um mil cento e cinquenta e sete euros) – sendo € 21.000,00 para ressarcimento dos danos não patrimoniais e € 157,50 relativos aos danos patrimoniais –, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, desde a data da notificação do pedido de indemnização, até seu integral pagamento.

1.2. Porque se não revêem no veredicto assim emitido, recorrem quer a demandante, quer a demandada, extraindo das motivações ofertadas as conclusões seguintes:

(a demandante)

1.2.1. O Tribunal a quo aquilatou indevidamente factos relacionados com o circunstancialismo da ocorrência do acidente objecto dos autos, mormente de onde e para onde se dirigia a ofendida aquando da sua travessia da via de trânsito, ou se a mesma efectuou tal travessia dentro da passagem de peões.

1.2.2. Tudo porque sopesou, dando-lhes credibilidade, as declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas Filomena Constantino e Sara Dias, no entendimento de que, para si, ambas as ditas testemunhas prestaram um depoimento “isento e credível”, apesar de o julgador não ter deixado de referir na sentença que a testemunha Sara Dias inicialmente prestou um depoimento “menos seguro” e não esquecendo que o arguido tem um interesse directo na questão.

1.2.3. E, isto em detrimento dos depoimentos da ofendida e das testemunhas …; …; …; ….; porque as mesmas “Não mereceram credibilidade face aos depoimentos isentos das duas testemunhas supra referidas”, – mencionadas  …e … –, “sendo certo que todas estas revelaram ter algum relacionamento com a demandante ou conhecer o pai desta. Depois, não deixa de se estranhar que tantos amigos da D...tenham – não pode deixar de referir-se “oportunamente” – assistido ao acidente que a vitimou” e que “todas estas testemunhas mentiram ao apresentarem aquela versão do acidente com o claro intuito de beneficiarem a demandante”, esquecendo-se o julgador que todas elas ou as suas esposas trabalhavam naquela zona, sendo normal tomarem café no quiosque junto ao local da ocorrência dos factos.

1.2.4. Na sentença recorrida considerou-se que a testemunha …“apesar de inicialmente ter prestado um depoimento menos seguro acabou por sustentar a mesma versão do acidente” da testemunha ….

1.2.5. Ora, o depoimento desta testemunha  … não se mostrou assim tão convincente e seguro. Atesta-o a circunstância de relativamente a um ponto essencial para a decisão do presente caso – qual seja o de se apurar se a ofendida efectuou a travessia da via dentro ou fora da passadeira –, num primeiro momento ter dito que a mesma ia claramente fora da passadeira, mas num segundo momento já haver afirmado precisamente o contrário, como fluí da motivação probatória da decisão recorrida.

1.2.6. Decidindo nos termos em que o fez, esta decisão violou o artigo 127.º do Código do Processo Penal e o princípio aí consignado da livre apreciação das provas.

1.2.7. Os fundamentos da matéria de facto não revelam que os critérios da apreciação da prova tenham sido objectivos e concordantes com o que a experiência em geral manifesta e, por isso, devem conduzir a uma diferente apreciação da prova produzida na audiência de julgamento dos autos.

1.2.8. E, por isso mesmo, deve ser alterada a decisão da matéria de facto relativamente aos seus pontos 2, 4, 15, 16, 17, 19 e 62, especificação esta que se faz, nos termos e para os efeitos do art.º 412.º, n.º 3, alínea a) do Cod. Proc. Penal.

1.2.9. Por outro lado, e dando acatamento ao estatuído pela alínea b) do mesmo preceito legal, indicam-se como provas que sustentam o alegado, os depoimentos citados, quer do arguido, quer das testemunhas  … e …, mas, sobretudo da ofendida, e de …,  …, …,  …,  …, …, .

1.2.10. A decisão recorrida mostra-se, assim e também, inquinada com o vício de erro notório na apreciação da prova, o que, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Penal.

1.2.11. Por mais se invoca a invalidade de alguns dos depoimentos prestados no decurso da audiência de julgamento: do arguido; da ofendida; e, das testemunhas …,  …,  …,  … – cfr. artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, bem como, ainda, o Acórdão para fixação de Jurisprudência n.º 5/2002, de 27/06/2002, publicado no Diário da República, I.ª Série A, de 17/07/2002 -.

Terminou pedindo a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que mantendo a condenação do arguido pelo ilícito apontado, condene todavia a seguradora a solver à demandante a totalidade da quantia ressarcitória por si peticionada.

(a demandada)

1.2.12. O arguido conduzia desatento vindo a embater com a parte frontal do veículo no peão (ora ofendida) que se encontrava sensivelmente a meio da hemi-faixa de rodagem atento o sentido rotunda BP – centro de Cantanhede. Por seu turno o peão tendo efectuado a travessia da via cerca de um metro após (considerando o sentindo rotunda da BP - centro de Cantanhede) aquela passagem para peões, caminhava distraída e a mexer na sua carteira, tendo iniciado a travessia fora da passadeira e sem previamente ter olhado para ambos os lados da estrada e verificado a existência ou não de circulação automóvel.

1.2.13. O condutor do veículo segurado na demandada deixou um rasto de travagem de 18,50 metros. No entanto, o peão estava desatento e não verificou o trânsito que circulava na via que se preparava para atravessar, tendo iniciado a sua travessia fora da passagem de peões.

1.2.14. Consequentemente, por se apresentar repentinamente na faixa de rodagem, o condutor do veículo seguro não logrou evitar o embate e viu-se obrigado a recorrer a uma travagem urgente.

1.2.15. A demandante atravessou a faixa de circulação porque estava desatenta ao trânsito que se fazia sentir, e dessa forma a sua conduta temerária também determinou o sinistro ocorrido.

1.2.16. Dispõe o artigo 101.º, n.º 1, do Código da Estrada, que «Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente.»

1.2.17. Sendo certo que «Os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito», nos termos do n.º 3 do mesmo normativo.

1.2.18. Na concorrência de culpas entre as condutas assumidas pelo arguido e pela demandante, não pode fazer-se a respectiva repartição tal como na sentença recorrida de 80% para o primeiro e de 20% para a segunda.

1.2.19. Pois que a última agiu com negligência e imprudência ao iniciar a travessia da via de forma desatenta e sem verificar o trânsito que existia na mesma, contribuindo, decisivamente, para a eclosão do sinistro.

1.2.20. A quantia arbitrada na decisão recorrida para ressarcimento dos danos não patrimoniais da demandante mostra-se excessiva e desajustada face aos critérios jurisprudenciais correntes de equidade e às circunstâncias do caso concreto.

1.2.21. Porquanto desajustado ao consignado no artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil que determina: «Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade», aferida em termos objectivos, «mereçam a tutela do direito.»

1.2.22. Acresce estar obrigado o tribunal – caso um facto culposo do lesado haja concorrido para a produção do dano, como sucedeu –, a, tendo por base a gravidade das culpas de ambas as partes e as consequências que delas resultam, apurar se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou excluída – artigo 570.º, n.º 1 do Código Civil –. Operação a dever fazer-se, in casu, por forma distinta e penalizando em maior grau a lesada.

Terminou pedindo a fixação de um montante indemnizatório, pelo dano não patrimonial, mais equitativo, isto é, reduzido à proporção da culpabilidade do condutor do veículo seguro e à culpa da demandante.

1.3. Notificados para tanto, ambos os sujeitos processuais visados responderam às impugnações apresentadas, sustentando os seus improvimentos.

Admitidos os recursos, foram os autos remetidos a esta instância.

1.4. Aqui, a Ex.ma Procuradora-geral Adjunta apôs “visto”, atento o objecto das impugnações em causa.

No exame preliminar a que alude o n.º 6 do artigo 417.º do Código do Processo Penal, consignou-se nada obstar ao conhecimento de meritis.

Como assim, determinou-se a recolha dos vistos devidos, o que sucedeu, bem como prosseguimento do recurso com submissão dos autos à presente conferência.

Urge agora ponderar e decidir.


*

II – Fundamentação de facto.

2.1. Na sentença recorrida tiveram-se como provados os factos seguintes:

1. No dia 18 de Janeiro de 2006, pelas 13H55, na localidade de Cantanhede, na Rua dos Bombeiros Voluntários, circulava o veículo de matrícula …, conduzido pelo arguido P...e a velocidade não concretamente apurada.

2. Nessa ocasião e lugar a D... efectuava a travessia pedestre da referida artéria da direita para a esquerda, face ao sentido de marcha do arguido, Rotunda da BP – centro de Cantanhede.

3. No local existe uma passagem para peões mais concretamente em frente à biblioteca municipal.

4. A D... não utilizou a passagem para peões tendo efectuado a travessia da via cerca de um metro após (considerando o sentido rotunda da BP - centro de Cantanhede) aquela passagem para peões.

5. O arguido conduzia desatento vindo a embater com a parte frontal do veículo no referido peão que se encontrava sensivelmente a meio da hemi-faixa de rodagem atento o sentido rotunda da BP – centro de Cantanhede.

6. Com tal embate foi projectada cerca de 10 metros para lá do local do embate e sofreu as lesões descritas e examinadas a fls. 20 a 23, 44 a 46, 57, 58, 59, 68, 69, 78, 79, 88 a 90 e 93 a 95 dos autos que aqui se dão por integralmente reproduzidas que lhe demandaram 662 dias de doença, dos quais 136 com afectação da capacidade de trabalho.

7. O local é constituído por uma recta com boa visibilidade.

8. Na altura fazia bom tempo e o piso estava seco.

9. O arguido deixou no local um rasto de travagem com o comprimento total de 18,50 metros com início a 6,40 metros da linha transversal contínua aposta no sentido da largura da faixa de rodagem atento o sentido rotunda – centro de Cantanhede.

10. O arguido agiu de forma livre voluntária e conscientemente bem sabendo que a sua conduta poderia causar como causou perigo para a segurança rodoviária e provocar como provocou um acidente.

Mais se provou:

10. (Em repetição, anotamos) Na Rua dos Bombeiros Voluntários, considerando o sentido rotunda – centro, existem passagens para peões frente ao edifício dos Bombeiros Voluntários, frente ao quartel da Guarda Nacional Republicana, a supra referida e depois outra em frente ao Tribunal.

11. Existem linhas transversais contínuas apostas no sentido da largura da faixa de rodagem (marcas M8) antes da passagem para peões situada em frente à biblioteca municipal, quer no sentido rotunda – centro quer no sentido centro – rotunda.

12. Imediatamente antes da passagem para peões, no passeio do lado direito, considerando o sentido rotunda da BP – centro de Cantanhede, existe uma paragem de autocarro com abrigo para peões com taipais laterais, visível na fotografia junta aos autos a fls. 314.

13. A distância que vai do termo das barras longitudinais paralelas ao eixo da via e a linha transversal contínua aposta no sentido da largura da faixa de rodagem (marca M8) situada no sentido centro – rotunda é de 2,55 metros.

Da contestação do arguido:

14. O arguido circulava pela sua mão de trânsito.

15. A queixosa iniciou a travessia da estrada fora da passadeira localizada defronte da biblioteca municipal de Cantanhede a cerca de um metro do seu limite poente (lado do centro da cidade).

16. Quando iniciou a travessia da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do arguido, e em linha recta, a queixosa caminhava distraída e a mexer na sua carteira.

17. Tendo iniciado a travessia fora da passadeira e sem previamente ter olhado para ambos os lados da estrada e verificado a existência ou não de circulação automóvel.

18. O arguido teve de efectuar uma manobra urgente de travagem.

19. Ao aperceber-se do veículo conduzido pelo arguido a queixosa virou-se rodando no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio.

20. E quando o fez deu-se o embate colidindo o arguido com a queixosa e causando-lhe as lesões supra referidas.

21. O arguido é pessoa humilde e honesta.

22. Bem comportado, marido exemplar.

23. Perfeitamente inserido no seu local de trabalho.

24. E no meio familiar e social em que vive.

Do pedido de indemnização civil:

25. A via local encontrava-se em bom estado de conservação.

26.Como consequência do embate a demandante foi projectada a 10 metros distância caindo no solo.

27. E perdendo consequentemente os sentidos.

28. Em consequência do acidente, a demandante sofreu as seguintes lesões: fractura bifocal do úmero direito, fractura exposta dos ossos da perna direita.

29. Além de diversas cicatrizes espalhadas por todo o corpo, nomeadamente no couro cabeludo, crânio, cotovelo direito, joelho direito e terço médio da perna direita.

30. Lesões estas que obrigaram a que fosse assistida no local pelos bombeiros.

31. E, posteriormente, a transportaram para o Hospital de João Crisóstomo.

32. De onde foi transferida para os Hospitais da Universidade de Coimbra, onde viria a ser operada à perna e braço direitos.

33. E onde iria permanecer internada durante uma semana, ou seja ate ao dia 24 de Janeiro de 2006.

34. Saída esta, que foi mais cedo do que o previsto, dado que o pai da demandante é enfermeiro de profissão e está aposentado, podendo acompanhá-la a tempo inteiro,

35. Dado que a demandante estava completamente incapacitada e totalmente dependente, só se deslocando com auxílio de uma cadeira de rodas, situação esta que se verificou ate ao final de Março de 2006.

36. Durante todo este processo foi acompanhada pelo médico ortopedista. Dr.  …, que ao longo das 18 consultas, foi avaliando, definindo o processo de recuperação da A.

37. Foi neste âmbito que a demandante foi operada ao braço direito, no dia 10 de Março, na Clínica de Santa Filomena, em Coimbra, pelo Dr. … .

38. No final do mês de Março começou a frequentar as primeiras sessões de fisioterapia no Centro de Recuperação de Cantanhede e a dar os primeiros passos autonomamente.

39. No dia 7 de Maio de 2006 retomou o exercício da sua profissão ainda que mediante inúmeras restrições dado que as lesões ainda não estavam completamente debeladas.

40. Continuando a frequentar, simultaneamente, sessões de fisioterapia no Centro de Recuperação de Cantanhede.

41. Por fim, a 19 de Outubro de 2007, foi operada pela terceira vez, na Clínica de Santa Filomena, pelo citado Dr. …, a fim de lhe serem retirados os ferros colocados na primeira intervenção cirúrgica e que ajudaram a uma correcta cicatrização ias diversas lesões de que foi vítima.

42. Após 3 semanas de recuperação voltou definitivamente ao trabalho no dia 12 de Novembro de 2007.

43. Tendo-lhe sido dada alta clínica pelo Gabinete Medico Legal da Figueira da Foz no dia 28 de Novembro de 2007.

44. Que acompanhou a sua recuperação tendo-a examinado por seis vezes.

45. Ficando depois de curada e em consequência dos tratamentos e as três intervenções cirúrgicas a que foi sujeita com diversas cicatrizes espalhadas por todo o corpo, nomeadamente no crânio, couro cabeludo, cotovelo direito, joelho direito e terço médio da perna direita.

46. Por força das lesões sofridas, sofreu a demandante um período de doença de 662 dias, dos quais 136 dias com a afectação da capacidade de trabalho.

47. Ao tempo da ocorrência dos factos tinha 29 anos, pois nasceu em 15 de Janeiro de 1977.

48. E irá ficar com uma série de sequelas, mais especificamente, cicatriz rosada com 7 centímetros, ligeiramente saliente, com vestígio de pontos na face dorsal do braço direito que não consegue estender completamente.

49. Assim como uma cicatriz bem saliente quer na testa e couro cabeludo, quer no lábio superior, quer outra bem rosada mediana, com vestígio de pontos, no joelho direito com 5 centímetros, assim como outras duas de idênticas características, na face medial do terço distal da perna direita.

50. Sofrendo muito com dores nas mudanças de tempo, sobretudo quando faz esforços no braço direito e perna do mesmo lado.

51. Todas resultantes das várias operações a que foi sujeita, quer para colocar os ferros que ajudariam a uma correcta cicatrização das diversas lesões, quer para os retirar após a referida recuperação, o que a deixou e continua a deixar profundamente e desgostosa e revoltada.

52. A demandante sofreu imenso com as dores físicas consequentes das lesões sofridas, bem como dos tratamentos a que teve de se sujeitar durante um longo período, nomeadamente intervenções cirúrgicas agressivas, angústias e dolorosas sessões de fisioterapia.

53. Que lhe causaram enormes angústias e arrelias, sobretudo pela incerteza sobre a forma como ficaria depois de esgotadas todas as formas de recuperação física.

54. O vestuário que a demandante vestia no dia do acidente ficou inutilizado, o que determinou um prejuízo aproximado de € 225,00.

55. Durante a recuperação, teve de suportar despesas na ordem dos € 15,00 na compra de um suporte para o braço.

56. E teve necessidade de se deslocar a 30 sessões de fisioterapia no Centro de Recuperação de Cantanhede para fazer fisioterapia.

57. Assim como as 18 consultas do Dr. …, médico da seguradora que a acompanhou durante todo o processo de convalescença, em Coimbra.

58. E teve ainda necessidade de se deslocar por 6 vezes ao Gabinete Médico-Legal da Figueira da Foz para avaliação das lesões causadas pela actuação do arguido.

59. P... havia transferido a sua responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros para a demandada seguradora X... Seguros, S.A., através de contrato de seguro juridicamente válido ao tempo do acidente e titulado pela apólice n.º 00052805.

Da contestação ao pedido de indemnização civil:

60. A demandante apareceu no passeio, logo após a supra referida passagem de peões.

61. A demandante pretendia atravessar a referida Rua, da esquerda para a direita (o que apenas se não escreveu por lapso manifesto) atento o sentido de marcha do veículo JB.

62. A demandante ao atravessar a referida Rua não utilizou a passagem de peões a ela destinada, tendo iniciado a marcha a cerca de 1 metro após a passadeira.

63. A demandante ao iniciar a travessia da rua não se certificou da proximidade de um possível veículo, não tendo olhado para os dois lados da faixa de rodagem, por estar distraída e a olhar para a sua carteira.

64. O condutor do veículo JB não logrou evitar o embate.

65. O embate no veículo JB deu-se após a passagem de peões.

Do articulado de fls. 300:

66. A seguradora Allianz dirigiu à ora demandada o seu pedido de reembolso das quantias pagas à demandante, pedido que ascende a € 12.714.43.

67. Valor este pago pela demandada àquela sua congénere.

68. O valor reembolsado pela demandada (por novo lapso manifesto escreveu-se “demandante”) à Allianz inclui as indemnizações pagas por esta à ora demandante pelos períodos de incapacidade temporária e as despesas com excepção do vestuário da demandante.

Ficou ainda provado:

69. O arguido é ajudante de maquinista trabalhando para …, Lda., auferindo cerca de € 600,00/mês.

70. É casado e reside com a esposa que trabalha como técnica de contabilidade e aufere cerca de € 600,00.

71. Tem a seu cargo um filho da esposa com oito anos e um filho do casal de um ano de idade.

72. Residem em casa arrendada pagando € 250,00 de renda mensal.

73. Vai mudar-se para habitação própria dentro de um mês suportando um encargo de cerca de € 500,00 mensais para amortização de empréstimo bancário que contraiu para a sua construção.

74. Tem um veículo Peugeot modelo 106 e um veículo Opel modelo Astra suportando um encargo de € 90,00 mensais pela aquisição deste último.

73. Tem 7 anos de escolaridade como habilitações literárias.

76. É titular de carta de condução que o habilita a conduzir veículos das categorias A desde 22/9/1997, B desde 15/9/1995, C desde 24/3/1998, D desde 24/10/2000 e DE e CE desde 10/8/1999.

77. Nada consta do certificado de registo criminal e do RIC do arguido.

2.2. Por seu turno, e relativamente a factos não provados, tiveram-se como tais na mesma decisão que:

“A – A D...efectuava a travessia da referida artéria da esquerda para a direita face ao sentido de marcha do arguido.

B – Transitando pela passadeira ali existente.

Não ficou provado o alegado em 3.º, 10.º, o mais alegado em 11.º e o mais alegado em 12.º da contestação do arguido. Não se provou o alegado em 3.º, o mais alegado em 13.º, o alegado em 38.º, 42.º, 43.º, o mais alegado em 47.º, o mais alegado em 48.º, o mais alegado em 49.º, o alegado em 50.º e 51.º do pedido de indemnização civil. Também não se provou o mais alegado em 6.º, o alegado em 7.º, 8.º, 9.º, 10.º (1.ª parte), 14.º, o mais alegado em 15.º da contestação do pedido de indemnização civil

Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa, não se referindo a demais matéria referida na acusação pelas partes nos respectivos articulados por ser conclusiva (concretamente a referência vertida na acusação de o arguido ter agido com incúria e imprudência, o que infra se determinará), de direito ou irrelevante para a decisão da causa.”

2.3. Por fim, a motivação probatória constante da mencionada decisão é como segue:

“No que respeita ao circunstancialismo em que o correu o acidente o tribunal fundou a sua convicção desde logo nas declarações do próprio arguido que não deixou de admitir ser o condutor do veículo referido nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas na acusação. Aliás a versão do acidente tal como resultou provada é basicamente aquela que foi apresentada pelo arguido com excepção do que respeita à distância a que o peão seguia da passagem para peões e de este lhe ter surgido de forma repentina (valorando-se os depoimentos das testemunhas  ….e …) e ao ponto em que se iniciou o rasto de travagem que deixou no local (valorando-se o depoimento da testemunha …, agente da GNR que esteve no local e efectuou a medição, referindo que o veículo do arguido se encontrava parado no fim do rasto de travagem que mediu).

Veja-se, no que respeita às características da via, as fotografias juntas aos autos a fls. 314 e 316, em que pode vislumbrar-se um panorama geral do local onde ocorreu o acidente, local esse que o tribunal percepcionou directamente durante a realização da inspecção judicial.

O arguido admitiu ainda que o peão seguia num passo normal mas refere, contraditoriamente, que o peão entrou repentinamente na via. Aliás essa entrada repentina e inopinada do peão na via é contrariada não só pelo rasto de travagem que o veículo conduzido pelo arguido deixou na via o qual, com 18,50 metros, se iniciou a cerca de 6,40 metros da linha transversal contínua que marca o local onde o condutor deve parar antes da passagem para peões em causa.

O tribunal valorou igualmente o depoimento da testemunha  …que conduzia o seu veículo na mesma via, no sentido oposto àquele em que seguia o arguido, por isso revelando conhecimento dos factos que vieram a ser considerados provados como foram pela mesma descritos. Esta testemunha, promotora de vendas, oriunda de Matosinhos, passava ocasionalmente em Cantanhede e não conhece o arguido nem a vítima, não tendo revelado qualquer interesse pessoal na decisão da causa e tendo prestado um depoimento absolutamente isento e convincente. Aliás, quando questionada a sua presença no local ao ser confrontada com as fotografias juntas aos autos, imediatamente se reconheceu na fotografia de fls. 314, bem como o veículo que conduzia visível atrás da ambulância. E declarou que se apercebeu que o condutor do veículo que seguia em sentido contrário não viu a pessoa que ia atravessar a rua sendo que ela própria iria parar para ceder a passagem ao peão caso não se tivesse dado o atropelamento. Disse também que teve a percepção daquele peão quando aquele se encontrava ainda no passeio, ficando também com a percepção de que o peão ia atravessar a estrada calmamente. Foi do teor destas declarações que resultou a convicção do tribunal no sentido da desatenção do arguido.

A testemunha …, seguia como passageira do veículo conduzido pela  …e, apesar de inicialmente ter prestado um depoimento menos seguro acabou por sustentar a mesma versão do acidente. Também ela revelou nada de pessoal ter com qualquer dos intervenientes no acidente pelo que o seu depoimento se teve como isento e credível.

A demandante (cujo interesse na decisão da causa é evidente e resulta dessa sua qualidade) e as testemunhas  …(colega e amiga da D…),  …(amigo da D...até a viu sair da biblioteca antes da ocorrência do acidente o que não foi sustentado por mais nenhum meio de prova e resultou até contraditório com a versão da própria demandante),  …(colega e amiga da D…),  …(conhece a D...da biblioteca e afirma ter-se apercebido do embate pelo retrovisor do veículo que conduzia),  …(estava alegadamente na esplanada em frente sentada com o …, a mãe deste de quem é colega de trabalho e com a testemunha …),  …(comerciante conhece pai da D...que era …. na Câmara Municipal de Cantanhede),  …(amigo da D…, casado com a testemunha …) sustentaram do acidente versão diversa declarando que a D...efectuou a travessia da via da esquerda para a direita atento o sentido em que seguia o arguido e na passagem para peões. Não mereceram credibilidade face aos depoimentos isentos das duas testemunhas supra referidas sendo certo que todas estas revelaram ter algum relacionamento com a demandante ou conhecer o pai desta. Depois não deixa de se estranhar que tantos amigos da D...tenham – não pode deixar de referir-se “oportunamente” ­assistido ao acidente que a vitimou. Afigura-se efectivamente ao tribunal que todas estas testemunhas mentiram ao apresentarem aquela versão do acidente com o claro intuito de beneficiarem a demandante.

Como documento que é afigura-se que é de admitir a junção aos autos do denominado “relatório de averiguação” junto aos autos pela demandada seguradora com a sua contestação. De qualquer modo, em nada serviu para sustentar a convicção do tribunal relativamente à factualidade provada e não provada.

No que respeita às lesões sofridas, atendeu-se aos relatórios de fls. 20 a 23, 44 a 46, 57, 58, 59, 68, 69, 78, 79, 88 a 90 e 93 a 95 dos autos. Quanto aos factos dos pontos 27 a 58 atendeu-se ainda ao conjunto dos documentos juntos a fls. 164 a 176 e fls. 179 em conjugação com o depoimento da testemunha …, pai da demandante,  …, médico fisiatra, assistiu a demandante,  …, assistiu a demandante na urgência do Hospital de Cantanhede,  …, fisioterapeuta, acompanhou a D...ao longo da fisioterapia,  …,  …, amigas da demandante,  …, chefe de serviço da D…, retrataram a situação vivida pela D...como resultou provado. Quanto aos factos dos pontos 66 a 68, o tribunal atendeu ao documento de fls. 301 em conjugação com o depoimento da testemunha  …quanto ao pagamento de todas as despesas excepto as do vestuário.

Quanto aos factos dos pontos 21 a 24 o tribunal fundou a sua convicção na conjugação dos depoimentos das testemunhas  …e …, conhecem o arguido e assim o descreveram.

Atendeu-se ainda às declarações complementares do arguido, as quais se revelaram credíveis, no que respeita às suas condições pessoais e económicas e ao certificado de registo criminal e RIC juntos aos autos quanto aos seus antecedentes criminais e estradais.

Os factos não provados assim foram considerados porque em contradição com a descrição fáctica supra referida, isto relativamente à forma como se deu o acidente e, quanto aos demais, por inexistência de prova suficientemente esclarecedora sobre os mesmos.”


*

III – Fundamentação de Direito.

3.1. O artigo 428.º do CPP faculta a este Tribunal o conhecimento, em recurso, de facto e de direito[1].

Por outro lado, conforme jurisprudência corrente, uniforme e pacífica, o âmbito do recurso é definido através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (artigos 412.º, n.º 1 e 403.º, ambos do mesmo diploma), isto sem prejuízo do conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, ainda que não invocados ou arguidas pelos sujeitos processuais (Ac. n.º 7/95, do STJ, publicado no Diário da República, I.ª Série, de 28 de Dezembro de 1995, em interpretação obrigatória).

In casu, resulta das conclusões das recorrentes ser o thema decidendum constituído pelas questões seguintes:

- Mostram-se incorrectamente julgados pelo Tribunal a quo – dada a sua inconsideração ao princípio plasmado no artigo 127.º, do Código de Processo Penal e por haver incorrido em erro notório na apreciação da prova – os pontos de facto mencionados como provados sob os itens n.ºs 2, 4, 15, 16, 17, 19, 61 (aditamos nós) e 62?

- Considerando-os antes na forma concordante com a prova efectivamente produzida em audiência, seguir-se-ia a total responsabilização do condutor segurado na demandada (ora arguido), e, consequentemente, a completa procedência do pedido ressarcitório apresentado? (recurso da demandante)

- Pelo contrário, a factualidade provada determina o minorar ou, quiçá, excluir, da responsabilidade (culpa) do arguido na eclosão do sinistro dos autos, e, logo, da responsabilidade da seguradora?

- Sempre a quantia arbitrada para ressarcimento dos danos não patrimoniais alegadamente sofridos pela demandada, se mostra fixada em moldes excessivos? (recurso da demandada)

Prima facie, estas então as questões que imporia abordar aqui e agora.

Sucede, adiantamos porém, interceder na decisão recorrida vício de conhecimento oficioso – concretamente de contradição insanável de fundamentação[2], inultrapassável nesta sede – que preclude essa tarefa.

Na verdade:

3.2. Breves considerações sobre os moldes em que é legalmente permitida a sindicância relativamente à matéria de facto, permitirão aquilatar da afirmação feita.

De acordo com a regra geral contida no citado artigo 127.º, “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”

Ou seja, na apreciação da prova, o tribunal é livre de formar a sua convicção desde que não contrarie as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos. De facto, tal tarefa “não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.”[3] Sendo “a liberdade de apreciação da prova (…), no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material»”[4] que tem de ser compatibilizado com as garantias de defesa com consagração constitucional –, impõe a lei um dever especial de fundamentação, exigindo que o julgador desvende o percurso lógico que trilhou na formação da sua convicção[5] (indicando os meios de prova em que a fez assentar e esclarecendo as razões pelas quais lhes conferiu relevância), não só para que a decisão se possa impor aos outros, mas também para permitir o controlo da sua correcção pelas instâncias de recurso.

Dentro dos limites apontados, o juiz que em primeira instância julga goza de ampla liberdade de movimentos ao eleger, dentro da globalidade da prova produzida, os meios de que se serve para fixar os factos provados, de harmonia com o princípio da livre convicção[6] e apreciação da prova. Nada obsta, pois, que, ao fazê-lo, se apoie num certo conjunto de provas e, do mesmo passo, pretira outras às quais não reconheça suporte de credibilidade[7].

É na audiência de julgamento que este princípio assume especial relevância, encontrando afloramento, nomeadamente, no artigo 355.º do CPP, pois é aí o local de eleição onde existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova[8]. Só tais princípios da oralidade e da imediação “permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.”[9]

No respeito destes princípios, o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que decidiu contra o arguido não obstante terem subsistido (ou deverem ter subsistido) dúvidas razoáveis e insanáveis no seu espírito ou se a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum[10].

Assim, para impugnar eficientemente a decisão sobre a matéria de facto, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode (…) assentar de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão.”[11]

É que “o Tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si.”[12] Dito de outra forma: “o recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida, e o tribunal de recurso em matéria de exame crítico das provas apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou correctamente as provas.”[13]

A reponderação de facto não é ilimitada, antes se circunscreve à apreciação das discordâncias concretizadas pelo recorrente “já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação.”[14]

Em conclusão: os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1.ª instância. E já não naqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível) sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1.ª instância tem suporte na regra estabelecida no artigo 127.º do CPP, e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se.

Por outro lado, a possibilidade de sindicância da matéria de facto quando assente na impugnação da decisão que sobre ela foi proferida depende da observância, por parte do recorrente, dos requisitos formais indicados no n.º 3 do artigo 412.º do CPP, em concreto da delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas que, em seu entender, impõem[15] decisão diversa da recorrida, e (quando disso seja o caso) das que devam ser renovadas, especificações estas que hão-de ser feitas de acordo com o estabelecido no n.º 4 do preceito acima referido.

O Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se sobre as consequências desse incumprimento.

Assim, decidiu, por exemplo, no Acórdão n.º 259/02, publicado no Diário da República [DR], II.ª Série, de 13 de Dezembro de 2002, que se o recorrente não acata com o ónus de motivação indicado, fica incumprida a sua obrigação, e é como se ela não existisse. Donde não se justificar nessa hipótese um qualquer convite à sua formulação (pois que redundaria na concessão de uma nova oportunidade de recurso[16]) e, antes, impor-se a rejeição do recurso.

Por outro lado, ponderou num seu aresto de 31 de Outubro de 2003, publicado no DR, II.ª Série, de 17 de Dezembro de 2003, a situação na qual o que se deparava era a simples menção na motivação dos aludidos ónus, mas o seu não transporte adequado para as conclusões (não concretização nos moldes exigíveis). Aqui já antes se imporia um prévio convite ao recorrente para acatamento adequado do ónus devido, sob pena, agora sim, de violação das garantias de defesa do processo criminal plasmadas no artigo 32.º, n.º 1, da CRP[17].

Certo também que a sindicância da matéria de facto pode, ainda (apenas ou mesmo simultaneamente com a impugnação da matéria de facto nos termos acabados de referir), obter-se pela via da invocação dos vícios da decisão (desta, e não do julgamento) – de resto, de conhecimento oficioso, como já mencionado –, que podem constituir fundamento do recurso “mesmo nos casos em a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito” como expressamente permitido no n.º 2 do encimado artigo 410.º. Esses vícios, os três que vêm enumerados nas alíneas deste preceito (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, e erro notório na apreciação da prova), terão de ser ostensivos e passíveis de detecção através do mero exame do texto da decisão recorrida (sem recurso a quaisquer outros elementos constantes do processo), por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum.

3.3. Delimitados por tais considerandos, vejamos do caso presente.

Lendo-se a peça recorsória da demandante, resulta pretender ela impugnar os ditos pontos de facto, concretamente local em que efectuou a travessia da via (se na passadeira ou não), e se da direita para a esquerda ou vice-versa, sempre atento o sentido de marcha do veículo conduzido pelo arguido e, embora mencione os depoimentos que entende indevidamente considerados, não especifica os locais concretos em que eles suportam a sua dissonância (certo que clamando também de falhas na sua recolha no decurso da audiência).

Urgiria ponderar das consequências dessa inobservância, desde logo.

Em rectas contas, adiantamos, também o que decorre da motivação dessa recorrente é uma deficiente estruturação na forma como ensaia controverter a matéria de facto, pois, além de não acatar com os ónus que sobre si impendiam, limita-se a opor a sua convicção à do Tribunal a quo. Concretamente, desconsiderando da veracidade atribuída aos depoimentos das testemunhas Filomena e Sara em detrimento das demais inquiridas, e alegadamente presentes no local do acidente.

O caso dos autos é, já o afirmámos e contudo, outro.

Dos pontos de facto indicados como provados, na decisão recorrida, decorre, nomeadamente, que:

“2. Nessa ocasião e lugar a D... efectuava a travessia pedestre da referida artéria da direita para a esquerda, face ao sentido de marcha do arguido, Rotunda da BP – centro de Cantanhede.

4. A D... não utilizou a passagem para peões tendo efectuado a travessia da via cerca de um metro após (considerando o sentido rotunda da BP - centro de Cantanhede) aquela passagem para peões.

15. A queixosa iniciou a travessia da estrada fora da passadeira localizada defronte da biblioteca municipal de Cantanhede a cerca de um metro do seu limite poente (lado do centro da cidade).

16. Quando iniciou a travessia da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do arguido, e em linha recta, a queixosa caminhava distraída e a mexer na sua carteira.

17. Tendo iniciado a travessia fora da passadeira e sem previamente ter olhado para ambos os lados da estrada e verificado a existência ou não de circulação automóvel.

19. Ao aperceber-se do veículo conduzido pelo arguido a queixosa virou-se rodando no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio.

61. A demandante pretendia atravessar a referida Rua, da esquerda para a direita atento o sentido de marcha do veículo JB.

62. A demandante ao atravessar a referida Rua não utilizou a passagem de peões a ela destinada, tendo iniciado a marcha a cerca de 1 metro após a passadeira.”

Por outro lado, dos mencionados enquanto não provados, indicou-se sob a epígrafe A, que “A D...efectuava a travessia da referida artéria da esquerda para a direita face ao sentido de marcha do arguido.”

Ou seja, acerca do facto concreto de se determinar sobre de que lado a D...iniciou a travessia da via (atentando-se o sentido de marcha do veículo conduzido pelo arguido, este inequívoco), a decisão recorrida acolheu ambas as versões em confronto, quer considerando que o fazia da direita para a esquerda, quer da esquerda para a direita! Ademais, deu depois como não provada uma das que tivera como assente!

Como se anotou, v.g., no Acórdão do STJ, de 22 de Maio de 1996, prolatado no âmbito do processo n.º 306/96[18], “Para se verificar contradição insanável de fundamentação, têm de constar do texto da decisão recorrida, sobre a mesma questão, posições antagónicas e inconciliáveis, como por exemplo dar o mesmo facto como provado e como não provado, em situações que não possam ser ultrapassadas pelo tribunal de recurso.”

Assim, mostra-se paradigmático o caso presente.

Sendo embora certo que a “contradição” apenas é explícita sobre de qual o lado em que se iniciou a travessia da via pela ofendida, ao menos implicitamente tem de reconhecer-se que subsistindo também acarreta o facto de se saber então se ela o fez ou não na passadeira.

A esta instância mostra-se vedada a possibilidade de ultrapassar a contradição detectada. Apenas a produção da prova oral permitirá aquilatar do verdadeiramente sucedido.

Donde o emergir da necessidade de acatamento ao regime consignado no artigo 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal[19]

E, consequentemente, da prejudicialidade do conhecimento das questões antes indicadas como integrando o objecto do presente recurso.


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IV – Decisão.

São termos em que se não conhece dos recursos interpostos e antes se ordena o reenvio parcial do objecto dos autos a fim de que na 1.ª instância se supra a detectada contradição insanável entre os mencionados pontos de facto provadosn.ºs 2, 4, 15, 16, 17, 61 e 62 – e não provado A.

Sem custas.

Notifique.


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Coimbra, 16 de Setembro de 2009



[1] Nele se consigna, com efeito, que «As relações conhecem de facto e de direito.»
[2] Artigo 410.º,do Código de Processo Penal: « (…) 2. Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter comi fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: (…) b) A contradição insanável da fundamentação (…).»
[3] CPP de Maia Gonçalves, 12.ª edição, pág. 339.
[4] Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I Volume, pág. 202.
[5] Cfr., com interesse, Ac. n.º 198/2004, do Tribunal Constitucional, de 24 de Março de 2004, in DR. II.ª Série, de 2 de Junho de 2004, no qual se exarou: “O acto de julgar é do tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.”
Como ensina F. Dias (Lições de Direito Processual Penal, pp. 135 e segs.), na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:
A recolha de elementos – dados objectivos –, sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;
Sobre esses dados recai a apreciação do tribunal, que é livre – art.º 127.º do CPP –, mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;
A liberdade da convicção aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, mas com a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;
Assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis como a intuição.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência, a da preparação da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao princípio do in dúbio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.”
[6] A livre convicção “é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade. É uma conclusão livre, porque subordinada à razão e á lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores.” – cfr. idem, ibidem, pág. 298 -.
[7] “ (…) há caos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução, pelo que se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será mais inatacável, já que proferida em obediência á lei que impõe que ele julgue de acordo coma  sua livre convicção.” – Ac. RG, de 20 de Março de 2006, processo n.º 245/06-1.
[8] Como se refere no Ac do STJ, de 20 de Setembro de 2005, disponível no site www.dgsi.pt, “a convicção do tribunal é constituída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, olhares, “linguagem silêncios a e de comportamento”, coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidades manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos. Elementos de que a reapreciação em recurso não dispõe.”
[9] F. Dias, ob. cit, págs. 233/4.
[10] Cfr. Ac deste Tribunal da Relação, de 6 de Março de 2002, in CJ, Ano XXVII, Tomo II, pág. 44: “Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a pode criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum.”
[11] Cfr. Ac. do TC supra citado.
[12] Cfr. Ac. da RC, de 3 de Outubro de 2000, in CJ, Ano 2000, Tomo IV, pág. 28.
[13] Cfr. Ac. do STJ, de 7 de Junho de 2006, in processo 06P763.
[14] Cfr. Ac. do STJ, de 12 de Junho de 2008, in processo 07P4375.
[15] “Note-se que a lei se refere às provas que «impõem» e não as que «permitiriam» decisão diversa. É que se afigura indubitável existirem casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência á lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.” – Ac. do STJ, de 17 de Fevereiro de 2005, in processo 04P4324.
[16] Em linha com tal entendimento, a redacção do actual artigo 417.º, n.º 4 do CPP, em cujos termos, “O aperfeiçoamento previsto no número anterior não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação.”
[17] O que mereceu consagração legal ao estatuir-se agora no dito artigo 417.º, mas seu n.º 3, que “Se a motivação de recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412.º, o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada.”
[18] Citado, in Código de Processo Penal, Anotado, Legislação Complementar, Almedina, 17.ª edição, pág. 951.
[19] «Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.»