Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3441/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CONTRIBUIÇÃO PARA A SEGURANÇA SOCIAL
TRABALHADOR INDEPENDENTE
Data do Acordão: 01/10/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ÁGUEDA - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 865º , Nº 1, DO CPC . DL Nº 328/93, DE 25/9 . DL Nº 103/80, DE 9/5 .
Sumário: I – São pressupostos para que um credor possa reclamar um crédito numa execução que o mesmo goze de uma garantia real sobre os bens penhorados e que disponha de um título exequível .
II – No que concerne aos créditos emergentes de contribuições em dívida à Segurança Social os mesmos gozam de privilégio mobiliário e de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais, nos termos do disposto nos artºs 10º e 11º do DL nº 103/80, de 9/5 .

III – Resulta do estipulado no artº 29º, nº 2, do DL 328/93, que , na qualidade de contribuintes, os trabalhadores independentes são equiparados às entidades empregadoras ou entidades patronais do regime de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem, pelo que é aplicável aos créditos da segurança social resultantes de dívidas de trabalhadores independentes o regime previsto no DL nº 103/80, de 9/5 .

Decisão Texto Integral:
Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório.
1. Por apenso aos autos de execução (autuada sob o nº 521/99) que a A... moveu contra B... e mulher, C... , veio o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (Delegação de Aveiro), reclamar um crédito no montante global de 3.890,10 Euros, referente a contribuições em dívida por parte da executada C... à Segurança Social, enquanto trabalhadora independente (ali inscrita, nessa qualidade, com o nº 116464099), sendo € 2.994,28 de capital e € 895,86 de juros de mora.

2. Pelo despacho de fls. 11/12, o srº juiz a quo indeferiu, com base nos fundamentos aí aduzidos, liminarmente tal reclamação.

3. Não se tendo conformado com tal despacho, aquele Instituto/reclamante dele interpôs recurso, o qual foi recebido como agravo.

4. Nas correspondentes alegações que apresentou, o agravante concluiu as mesmas nos seguintes termos:
“1. Os regimes de Segurança Social, são o Regime Geral (contributivo) e o Regime não contributivo.
2. O regime Geral desdobra-se no Regime Geral de Segurança Social dos Trabalhadores por Conta de Outrem - Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, Decreto Regulamentar n.º 43/82, de 22 de Julho, Decreto-Lei n.º 124/84, de 18 de Abril, Decreto-Lei n.º 330/98, de 2 de Novembro, Decreto-Lei n.º 8-B/2002, de 15 de Janeiro, Decreto-Lei nº 112/2004, de 13 de Maio,
3. No regime Geral de Segurança Social Trabalhadores Independentes - Decreto-Lei nº 328/93, de 25 de Setembro, Decreto-Lei nº 240/96, de 14 de Dezembro e Decreto-Lei nº 397/99, de 13 de Outubro,
4.E ainda no Regime do Seguro Social Voluntário (facultativo) - Dec. Lei nº 40/89, de 1 de Fevereiro.
5. Concretizando-se o Regime Geral, através da atribuição de prestações pecuniárias ou em espécie, nas eventualidades de doença, desemprego, invalidez, velhice, morte, encargos familiares, etc.
6. No Regime Geral dos Trabalhadores Independentes (obrigatório e alargado) estão abrangidos os trabalhadores que exerçam actividade profissional por conta própria sendo, simultaneamente, contribuintes e beneficiários.
7. Constituindo-se a obrigação contributiva dos trabalhadores independentes com a participação do exercício de actividade às entidades legalmente definidas – art.º 45.º n.º 3, da Lei n.º 32/2002, de 20 de Dezembro.
8. De acordo com o art.º 29.º do D. L. 328/93, de 25 de Setembro, que não veio a ser alterado pelo D.L.240/96 de 14 de Dezembro “ OS TRABALHADORES INDEPENDENTES estão sujeitos ao pagamento de contribuições (…) são no atinente à qualidade de contribuintes, EQUIPARADOS ÀS ENTIDADES EMPREGADORAS abrangidas pelo regime de Segurança Social (...)
9. Contribuições essas, conforme disposto no Despacho n.º 92/SESSS/93 de 2-12-93, cujo “pagamento das contribuições relativas aos trabalhadores independentes ...deve ser efectuado do dia 1 até ao dia 15 do mês seguinte aquele a que disseram respeito” – vide art.º51 do DL 240/96 de 14 de Dezembro.
10. Assim, no douto despacho se lê que “as contribuições alegadamente em divida por parte da executada C..., reportam-se a prestações (…), lavra-se em perfeita confusão, pois que, para o sistema e regime de Segurança Social, e executada enquanto contribuinte é equiparado às entidades empregadoras como refere o art.º 29.º, do DL 328/93, acima citado, enquanto titular do direito a prestações, a executada é, para o sistema de Segurança Social um beneficiário.
11. Assim sendo, e sem mais delongas parece que se lavra em perfeita confusão, já que no Despacho ora recorrido contribuições e prestações parecem ser uma só realidade quando na verdade são realidades bem distintas e diferenciadas, para efeitos de regimes de Segurança Social.
12. Afigurando-se-nos ter sido proferido um Despacho ilógico e desenquadrado dos conceitos e da legislação da Segurança Social.
13. E não se argumente, como se faz no douto Despacho proferido, que o art.º 11.º do D.L. não permite uma aplicação analógica nem tão pouco extensiva.
14. Pois nem tal seria necessário se se tivesse salvaguardado a legislação especial dos trabalhadores independentes, já que esta se apresenta clara no que respeita à qualidade dos mesmos enquanto contribuintes e beneficiários dos regimes da Segurança Social.
15. Quando muito, e no que respeita à letra do art.º 11.º do DL 103/80, eventualmente questionar que “entidades empregadoras”, entendendo-as em sentido amplo, já que os trabalhadores enquanto titulares de uma obrigação contributiva, são contribuintes e enquanto titulares do direito a receber os montantes respeitantes às prestações a que têm direito, exactamente por força daquela qualidade de contribuinte, são beneficiários.
16. Não se compreende a referida confusão, e em consequência, de todo, não se concorda com o indeferimento da reclamação de créditos, com fundamento em que o único bem penhorado na execução é um imóvel, e os créditos emergentes de contribuições à Segurança Social gozam, entre outros, de privilégio imobiliário “sobre os bens imóveis existentes no património das entidades empregadoras” (…) e a executada é “trabalhadora independente e não entidade patronal de quem quer que seja (…)” – cfr. art.º 29.º do D.L. 328/93.
17. Assim sendo, foram violados o art.º 11.º do D. L. 103/80, de 9 de Maio, o ar.º 29.º do D. L. 328/93 de 25 de Setembro.
18. Propugnado o Meritíssimo Juiz “a quo” por uma errónea aplicação da lei, ao indeferir liminarmente a reclamação de créditos apresentada pelo agravante,
19. Pelo que, deve o douto despacho de indeferimento ser substituído por outro em que se admita a reclamação de créditos efectuada pelo ISS, IP, Centro Distrital de Segurança Social de Aveiro, e graduado com todas as consequências legais.”

5. Não foram apresentadas contra-alegações.

6. O srº. juiz a quo sustentou, de forma tabelar, aquela sua decisão recorrida.

7. Corridos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
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II- Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso.
É sabido que são as conclusões das alegações do recurso que fixam e delimitam objecto do mesmo (cfr. artºs 684, nº 3, e 690, nºs 1 e 4, do CPC).
Ora como resulta de tais conclusões a única questão que importa aqui apreciar e decidir consiste em saber se, no caso em apreço a reclamação de créditos apresentada pelo agravante deve, ou não, ser admitida?
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2. Os Factos.
Os factos que, no essencial, importa aqui considerar, e ser dados como assentes, são aqueles que supra deixámos descritos sob os nºs 1 e 2 do ponto I, e ainda o seguinte:
Nos autos de execução encontra-se unicamente penhorado um imóvel, pertença dos executados, sendo o respectivo termo datado de 23/5/2000 - cfr. fls. 36 dos autos de execução.
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3. O Direito
Apreciemos então a sobredita questão, e que, no fundo, passa por saber se o crédito do ora agravante goza de privilégio imobiliário sobre o único bem que se encontra penhorado nos autos de execução em causa, e que é pertença dos executados, B... e mulher, C....
Dispõe o artº 865, nº 1, que “só o credor que goze de garantia real sobre os bens penhorados pode reclamar, pelo produto destes, o pagamento dos respectivos créditos".
São, assim, grosso modo, pressupostos para que um credor possa reclamar um crédito numa execução que o mesmo goze de uma garantia real sobre os bens penhorados (pressuposto material) e que disponha de um título exequível (pressuposto formal) – cfr. nºs 1 e 2 do artº 865 do CPC e, por todos, vidé o cons. Amâncio Ferreira, in “Curso de Processo de Execução, 2005, 8ª ed., Almedina, pág. 306”).
Tem-se vindo a entender – entendimento esse perfilhado pelo srº juiz a quo - que para efeitos de reclamação (que já não, necessariamente, para efeitos de graduação) de créditos num processo de execução, com bens penhorados, o conceito de garantia real deve ser interpretado em sentido amplo, por forma a serem abrangidos os créditos que gozem de preferência de pagamento, de tal modo que na previsão de tal normativo vêm sendo incluídos o penhor, a hipoteca, o privilégio creditório, o direito de retenção, a consignação de rendimentos, o arresto e a penhora, além ainda de outros previstos em lei (cfr. a propósito, artº 604, nº 2, do CC, e o prof. Lebre de Freitas, in “A acção Executiva, 2004, 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 310 e notas 21 e 22” e “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3º, Coimbra Editora, pág. 505”).
Desviando, cada vez mais, a nossa direcção para o caminho que aqui nos interessa trilhar, dir-se-á que, como é sabido, o privilégio creditório consiste, de acordo com o disposto no artº 733 do C.C., na “(...) faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente de registo, de serem pagos com preferência a outros”, podendo ser de duas espécies: imobiliários e mobiliários, sendo estes gerais ou especiais, conforme abranjam o valor da totalidade dos bens móveis existentes no património do devedor, à data da penhora, ou acto equivalente, ou apenas o de bens móveis determinados; sendo que os privilégios imobiliários, previstos no Código Civil, são sempre especiais - cfr. art. 735, nº 3, do C.C. (na redacção dada pelo DL nº 38/2003 de 8/3, o que veio levantar algumas questões, nomeadamente para efeitos de repercussão na graduação final de créditos, quando em confronto com aqueles outros privilégios creditórios considerados imobiliários gerais – vidé, a propósito, o recente acordão do STJ de 7/6/2005, in “CJ, Ano XIII, T2, págs. 116/117”).
Estreitando ainda mais o caminho que acima aludimos, com vista à resolução da questão objecto deste recurso, no que concerne aos créditos emergentes de contribuições em divida à Segurança Social os mesmos gozam de previlégio mobiliário, nos termos do disposto no artº 10 do D.L. n.º 103/80, de 9/5, e, nos termos do artº 11, de privilégio imobiliário "sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo" . (sublinhado e negrito nossos)
Aqui chegado, o srº juiz do tribunal a quo entendeu que dizendo o crédito reclamado pelo ora agravante respeito a contribuições devidas pela executada C... na qualidade de trabalhadora independente, e não como entidade patronal, não caberia o mesmo na previsão do citado artº 11 daquele DL, e como tal não poderia beneficiar ou ser revestido do privilégio imobiliário ali consagrado. Ou seja, e por outras palavras, incidindo o privilégio imobiliário ali previsto tão somente sobre bens imóveis das entidades patronais, tal pressuposto não se verificaria, no caso em apreço, dado o único bem penhorado na execução em causa ser um imóvel e a executada, a quem pertence (conjuntamente com o seu marido, também executado), não ter a qualidade ou categoria de entidade patronal, sendo as “prestações” ou contribuições em falta devidas somente pela sua qualidade de trabalhadora independente. Logo - devido a essa falta de pressuposto, e não sendo aquela norma (que é especial) susceptível de interpretação analógica (cfr. artº 11 do CC), e nem se justificando a sua interpretação extensiva -, não gozando tal crédito de privilégio creditório, faltava, asim, o 1º pressuposto legal, a que no início se fez referência, para que o mesmo fosse admitido a reclamação nos autos de execução supra referidos.
Mas será que é assim?
Desse já avançamos que não, permitindo-nos dizer que, salvo sempre o devido respeito, tal interpretação, feita pelo srº juiz a quo, para além de não estar correcta, se nos afigura padecer mesmo de uma certa confusão.
Se não vejamos.
O credito aqui reclamado – cuja existência, ou não, não está aqui em causa – pelo ora agravante tem a ver, como já se deixou exarado, com contribuições em dívida por parte da executada C... à Segurança Social, enquanto trabalhadora independente (ali inscrita, nessa qualidade).
Sem entrarmos em grandes considerações – que se nos afigura, neste particular, o caso não justificar – dir-se-á que são dois os regimes da Segurança Social: o regime geral (contributivo) e o regime não contributivo.
No que concerne ao primeiro, o mesmo desdobra-se, por sua vez, nos seguintes regimes:
a) Regime Geral de Segurança Social dos Trabalhadores por Conta de Outrem - que encontra a sua regulamentado em diversos diplomas legais, e dos quais aqui se destaca o já acima citado DL nº 103/80, de 9/5 (que aprovou então o Regime Jurídico das Contribuições para a Providência).
b) Regime Geral de Segurança Social dos Trabalhadores Independentes – inicialmente criado pelo DL nº 8/92, de 18/1, e que actualmente se encontra regulado pelo Decreto-Lei nº 328/93, de 25/9 (que revogou o 1º diploma), embora vindo a sofrer algumas alterações, nomeadamente através dos DLs 240/96, de 14/12 e nº 397/99, de 13/10.
c) Regime do Seguro Social Voluntário (Facultativo) – regulado pelo DL nº 40/89, de 1/2.
Reportando-nos àquele 2º regime dos trabalhadores independentes, que é aquele que aqui nos interessa, realçam-se os seguintes normativos do citado DL nº 328/93 (que o regula):
Artº 1º: “O regime geral de segurança social dos trabalhadores independentes, adiante designado por regime dos trabalhadores independentes, tem como objectivo assegurar a efectivação do direito à segurança social das pessoas que exerçam actividade profissional por conta própria”.
Artº 2º: “O regime dos trabalhadores independentes rege-se pelo disposto neste diploma e, subsidiariamente, pelas normas do regime geral da segurança social dos trabalhadores por conta de outrem”. (sublinhado nosso)
Artº 4º: “São obrigatoriamente abrangidos no âmbito do regime dos trabalhadores independentes indivíduos que exerçam a actividade profissional sem sujeição a contrato de trabalho ou contrato legalmente equiparado e não se encontrem, em função da mesma, obrigatoriamente abrangidos pelo regime geral de segurança social dos trabalhadores de outrem”.
Artº 29: “Os trabalhadores independentes estão sujeitos ao pagamento de contribuições, nos termos regulados neste capítulo” (nº 1), dispondo, por sua vez, o seu nº 2 que “os trabalhadores independentes são, no ateniente à qualidade de contribuintes, equiparados às entidades empregadoras abrangidas pelo regime de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem”. (sublinhado e negritos nosso)
Resulta, desde logo, do confronto de tais normativos (e bem assim de outros, cfr., por ex., artºs 34 daquele mesmo último diploma, e 1º, 2º e 45º, nº 3, da Lei nº 32/2002 de 20/12, que aprovou as Bases da Segurança Social ) que os trabalhadores independentes têm ou encarnam em si uma dupla qualidade: a de (directa e simultaneamente) contribuintes e beneficiários da segurança social.
Por outro lado, resulta, sobretudo do estipulado no citado nº 2 do artº 29 do DL nº 328/93, que, nessa qualidade de contribuintes, os trabalhadores são equiparados às entidades empregadoras, ou seja, e por outras palavras, às entidades patronais do regime de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem.
E sendo assim, e por força do disposto nos artºs 2º e 29, nº 2, daquele DL, é aplicável aos créditos da segurança social resultantes de dívidas de trabalhadores independentes o regime previsto, nomeadamente, no também acima citado artº 11 do DL nº 103/80.
Aliás, se esse regime não resultasse directamente da lei, como cremos ter demonstrado que resulta, então, a nosso ver, a sua aplicação, aos casos como o em apreço, sempre teria de resultar através de uma interpretação extensiva do citado artº 11 do DL nº 103/80 (artº 11, 2ª parte, do CC), tendo em conta a similitude das situações e dos regimes contributivos em confronto e bem assim dos interesses e das razões que estão subjacentes aos mesmos e que as respectivas normas visam salvaguardar.
Donde seja de concluir, ao contrário do que fez o tribunal a quo, que o crédito do ora agravante (que está revestido do gozo de um privilégio creditório imobiliário sobre o bem – imóvel - que se encontra penhorado) preenche os pressupostos legais, que acima enunciamos, para que a sua reclamação possa ser, ab initio, liminarmente atendida, por referência aos respectivos autos apensos de execução, e, assim, seguir o posterior legal ritualismo previsto para o efeito.
E, nesses termos, ter-se-á de julgar procedente o recurso, revogando-se o despacho recorrido.
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III- Decisão
Assim, em face do exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso (de agravo), revogando-se, consequentemente, o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que receba a reclamação do crédito do ora agravante, com o prosseguimento do ritualismo legal previsto para o efeito.
Sem custas.

Coimbra, 2006/01/10