Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | BRÍZIDA MARTINS | ||
Descritores: | LEI MAIS FAVORÁVEL REABERTURA DA AUDIÊNCIA | ||
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Data do Acordão: | 05/13/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE COIMBRA – 4º J | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 2º DO CP , 105.º DO RGIT | ||
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Sumário: | 1. O artigo 2.º, n.º 4, 2.ª parte da CP, é de aplicação oficiosa, não estando na dependência de qualquer iniciativa do condenado. 2. Se por decorrência da nova redacção do artigo 105.º do RGIT e aplicação do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, foi determinada a cessação imediata dos efeitos penais da condenação proferida não se justifica o recurso à reabertura da audiência prevista no art.º 371º-A do CPP. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção (4.ª) Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra. * I – Relatório. 1.1. Nos presentes autos, o arguido M... (e outra – X... , Lda.) foi condenado por sentença proferida em 12 de Junho de 2008, entretanto transitada em julgado, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias [vulgo RGIT], na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de € 8,00. Conforme despacho constante de fls. 207, o arguido viu o pagamento da multa assim devida (total de € 1.440,00) ser-lhe facultado em 10 prestações mensais, iguais e sucessivas. Após se mostrar comprovado o pagamento de três delas, a M.ma Juiz a quo, em 20/01/2009, ponderando promoção do Ministério Público, exarou nos autos o despacho que constitui fls. 250/1, com o teor seguinte: “Os arguidos M... e X... , Lda., foram condenados nestes autos pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, pp. no artigo 105.º, n.º 1 do RGIT, em vigor à data da prática dos factos. Segundo esta norma era punido “quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar (…).” Acontece, porém, que esta norma foi alterada pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, que passou a dispor “quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7.500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido (…).”. Esclarecendo o n.º 7 do mesmo artigo que “para efeitos dos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.” Estamos, consequentemente, perante uma sucessão de lei penais, importando, por isso, determinar o regime que se mostra, em concreto mais favorável aos arguidos, nos termos do artigo 2.º, n.º 4 do Código Penal. Com efeito, nos termos desta norma “quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente...”. O crime de abuso de confiança fiscal continua a existir mas, com a alteração em causa, foi introduzido um elemento especificador (introdução de valor, abaixo do qual não é crime). Assim, segundo as palavras de Taipa de Carvalho – Sucessão de Leis Penais – existe uma relação de continuidade normativa-típica entre a lei anterior e a nova, ou seja, uma verdadeira sucessão de leis penais no tempo e não uma descriminalização. No caso dos autos nenhuma das prestações não entregues pelos arguidos é superior a € 7.500, conforme consta da sentença proferida nos autos, o que significa que as condutas dos arguidos, à luz da actual redacção do artigo 105.º do RGIT, deixaram de constituir crime. Assim, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 4 do Código Penal, declaro extintas as penas que foram aplicadas nos autos. (…).” 1.2. Lograda a notificação dos condenados (fls. 259 v.º), por intermédio do seu defensor, apresentou o arguido no entretanto – 27 de Janeiro de 2009 – requerimento solicitando fosse determinada a (re) abertura da audiência visando a aplicação da lei penal mais favorável e a sua absolvição (fls. 260/1). Sobre tal pretensão recaiu agora o despacho de fls. 272, que se transcreve: “Fls. 260: Salvo o devido respeito não assiste qualquer razão ao arguido, pois o artigo 2.º, n.º 4 C.P. (aplicável ao caso pelos motivos constantes do nosso despacho de fls. 250) prevê expressamente o que se deve fazer quando disposições penais vigentes à data da prática dos factos puníveis forem diferentes das estabelecidas em leis anteriores, determinando que, quando já houve condenação, ainda que transitada em julgado, cessa a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontra cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior. A ser assim, não se mostra necessária reabrir a audiência para se apurar qual o regime mais favorável ao arguido, pois, à luz do actual regime a conduta do arguido não é punida criminalmente (embora o crime continue a existir mas com outros elementos do tipo), a decisão proferida já transitou em julgado e a lei manda, nestas circunstâncias, cessar o seus efeitos penais. Foi isso que o tribunal decidiu, pelo que indefiro o requerimento em análise. Notifique.” 1.3. Irresignado com o assim decidido, o arguido interpôs recurso, extraindo da sua motivação, as conclusões seguintes: 1.3.1. Em 27 de Janeiro de 2009 o arguido estava a cumprir a pena que lhe fora aplicada nos autos. 1.3.2. A conduta por que fora condenado mostra-se entretanto descriminalizada através da Lei n.º 64-A/2008, em alteração ao artigo 105.º, n.º 1, do RGIT. 1.3.3. Naquela data (27 de Janeiro de 2009), o arguido requereu a abertura da audiência para aplicação retroactiva da lei penal mais favorável. 1.3.4. O que foi indeferido pelo despacho recorrido. 1.3.5. Em violação ao estatuído no artigo 371.º-A, do Código de Processo Penal. Terminou pedindo que na revogação do decidido, se ordene a reclamada abertura da audiência. 1.4. Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público, sustentando o improvimento respectivo. Admitido o recurso, e remetidos os autos a esta instância, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer sufragando idêntico improvimento. Cumpriu-se com o disciplinado pelo artigo 417.º, n.º 2, do CPP. No exame preliminar a que alude o n.º 6 deste inciso, consignou-se nada obstar ao conhecimento de meritis. Como assim, ordenou-se a recolha dos vistos devidos, o que sucedeu, bem como submissão dos autos à presente conferência. Urge ponderar e decidir. * II – Fundamentação. 2.1. Conforme jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. Nenhuma destas subsistindo, questão decidenda, porque a que o recorrente coloca é a de apurarmos se perante a redacção assumida pelo artigo 105.º, n.ºs 1[1] e 7[2] do RGIT, através da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, devia ordenar-se a reabertura da audiência a coberto do artigo 371.º-A, do Código de Processo Penal[3]. 2.2. A dilucidação da questão assim colocada passa pela delimitação exacta do campo de aplicação deste segundo e último normativo. Dispõe o artigo 29.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa [CRP] que ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais grave do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido. Por sua vez, o artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal, prescreve que o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais. No que concerne à aplicação retroactiva da lei nova mais favorável, estabelecia o n.º 4 do mesmo artigo, na sua redacção originária, que quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado. A doutrina questionou a constitucionalidade da ressalva constante da parte final do mencionado n.º 4, com Taipa de Carvalho, entre outros, a sustentar a tese da inconstitucionalidade (Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais, PUC, 2003, 239 e seguintes), enquanto Figueiredo Dias se pronunciava em sentido oposto (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2004, 189 e seguintes). O próprio Tribunal Constitucional, quando teve de se pronunciar sobre a norma em questão, não a julgou inconstitucional, a não ser em determinadas interpretações normativas. Assim, o seu aresto n.º 644/98 não julgou inconstitucional a norma em apreço. Já aquele com o 169/2002 julgou materialmente inconstitucional, por violação do princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, a norma do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, «na interpretação segundo a qual veda a aplicação da lei penal nova que transforma em crime semi-público um crime público, quando tenha havido desistência da queixa apresentada e trânsito em julgado da sentença condenatória.» Por seu turno, o Acórdão do dito Tribunal 572/2003 julgou inconstitucional a mesma norma, mas na interpretação de que vedava a aplicação da lei penal nova que descriminalizava o facto típico, imputado ao arguido, já objecto de sentença condenatória. A Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, alterou o n.º 4 do mencionado artigo 2.º, do Código Penal, que passou a dispor: «Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.» A nova redacção contempla duas alterações em relação ao texto original: a primeira consiste na eliminação do segmento, «salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado», pelo que o caso julgado deixou de constituir óbice à aplicação da lei penal mais favorável; a segunda consiste no aditamento do segmento «se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.» Com a nova redacção do artigo 2.º, n.º 4, a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável passa a determinar que, mesmo após o trânsito em julgado da sentença condenatória, cessem a execução e os efeitos penais quando o agente já tiver cumprido uma pena concreta igual ou superior ao limite máximo da pena prevista em lei posterior. Com esta alteração, pretende-se evitar que alguém possa permanecer na prisão em cumprimento de pena, apesar de, segundo a nova lei, já ter ultrapassado o limite que o legislador passou a considerar como o máximo de pena aceitável e político-criminalmente justificável – o que, nas palavras de Taipa de Carvalho, constituiria «o absurdo dos absurdos político-criminais (Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 3.ª edição, p. 323). Nesta perspectiva se compreende que o artigo 2.º, n.º 4, 2.ª parte, seja de aplicação oficiosa, não estando na dependência de qualquer iniciativa do condenado. Por outro lado, que daí não decorra a imposição de reabertura da audiência para nova determinação da pena concreta no quadro da moldura penal aplicável, mas apenas, um limite à execução da pena concreta aplicada na condenação transitada em julgado – limite esse que coincide com o limite máximo da pena aplicável pela lei nova mais favorável[4]. 2.3. O caso dos autos é, porém, distinto. Por força do despacho exarado no dia 20 de Janeiro pretérito, a conduta assumida pelo arguido e constante dos autos, deixou de estar sujeita a qualquer regime sancionatório e, consequentemente, nem se coloca a questão da eventual opção pelo regime que se lhe mostrasse concretamente mais favorável (aquilo em que efectivamente se traduz o novel artigo 371.º-A). Antes o que se verifica é tão-somente que por decorrência da redacção assumida pelo encimado artigo 105.º do RGIT e aplicação do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, foi determinada a cessação imediata dos efeitos penais da condenação proferida. O artigo 371.º-A não pode ser uma norma inutilmente criada pelo legislador. E, se na acepção que primeiramente considerámos assume sentido e relevância, já na leitura do recorrente nada adianta e redundaria sim na prática de acto inútil. Além de que estes se mostram legalmente vedados[5], até e em rigor se colocaria, quiçá, a questão do seu interesse em agir, logo, da legitimidade em interpor o recurso presente. Porém, sempre a sua pretensão se mostra votada ao malogro. E, cabe decretar. * III – Decisão. São termos em que pelos fundamentos expressos se nega provimento ao recurso interposto. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 2 UC´s. Notifique. * Coimbra, 13 de Maio de 2009
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