Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
9423/05.8 TDLSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: LEI MAIS FAVORÁVEL
REABERTURA DA AUDIÊNCIA
Data do Acordão: 05/13/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – 4º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2º DO CP , 105.º DO RGIT
Sumário: 1. O artigo 2.º, n.º 4, 2.ª parte da CP, é de aplicação oficiosa, não estando na dependência de qualquer iniciativa do condenado.
2. Se por decorrência da nova redacção do artigo 105.º do RGIT e aplicação do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, foi determinada a cessação imediata dos efeitos penais da condenação proferida não se justifica o recurso à reabertura da audiência prevista no art.º 371º-A do CPP.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção (4.ª) Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

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I – Relatório.

1.1. Nos presentes autos, o arguido M...  (e outra – X... , Lda.) foi condenado por sentença proferida em 12 de Junho de 2008, entretanto transitada em julgado, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias [vulgo RGIT], na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de € 8,00.

Conforme despacho constante de fls. 207, o arguido viu o pagamento da multa assim devida (total de € 1.440,00) ser-lhe facultado em 10 prestações mensais, iguais e sucessivas.

Após se mostrar comprovado o pagamento de três delas, a M.ma Juiz a quo, em 20/01/2009, ponderando promoção do Ministério Público, exarou nos autos o despacho que constitui fls. 250/1, com o teor seguinte:

“Os arguidos M...  e X... , Lda., foram condenados nestes autos pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, pp. no artigo 105.º, n.º 1 do RGIT, em vigor à data da prática dos factos.

Segundo esta norma era punido “quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar (…).”

Acontece, porém, que esta norma foi alterada pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, que passou a dispor “quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7.500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido (…).”. Esclarecendo o n.º 7 do mesmo artigo que “para efeitos dos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.”

Estamos, consequentemente, perante uma sucessão de lei penais, importando, por isso, determinar o regime que se mostra, em concreto mais favorável aos arguidos, nos termos do artigo 2.º, n.º 4 do Código Penal.

Com efeito, nos termos desta norma “quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente...”.

O crime de abuso de confiança fiscal continua a existir mas, com a alteração em causa, foi introduzido um elemento especificador (introdução de valor, abaixo do qual não é crime). Assim, segundo as palavras de Taipa de Carvalho – Sucessão de Leis Penais – existe uma relação de continuidade normativa-típica entre a lei anterior e a nova, ou seja, uma verdadeira sucessão de leis penais no tempo e não uma descriminalização.

No caso dos autos nenhuma das prestações não entregues pelos arguidos é superior a € 7.500, conforme consta da sentença proferida nos autos, o que significa que as condutas dos arguidos, à luz da actual redacção do artigo 105.º do RGIT, deixaram de constituir crime.

Assim, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 4 do Código Penal, declaro extintas as penas que foram aplicadas nos autos.

(…).”

1.2. Lograda a notificação dos condenados (fls. 259 v.º), por intermédio do seu defensor, apresentou o arguido no entretanto – 27 de Janeiro de 2009 – requerimento solicitando fosse determinada a (re) abertura da audiência visando a aplicação da lei penal mais favorável e a sua absolvição (fls. 260/1).

Sobre tal pretensão recaiu agora o despacho de fls. 272, que se transcreve:

“Fls. 260:

Salvo o devido respeito não assiste qualquer razão ao arguido, pois o artigo 2.º, n.º 4 C.P. (aplicável ao caso pelos motivos constantes do nosso despacho de fls. 250) prevê expressamente o que se deve fazer quando disposições penais vigentes à data da prática dos factos puníveis forem diferentes das estabelecidas em leis anteriores, determinando que, quando já houve condenação, ainda que transitada em julgado, cessa a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontra cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.

A ser assim, não se mostra necessária reabrir a audiência para se apurar qual o regime mais favorável ao arguido, pois, à luz do actual regime a conduta do arguido não é punida criminalmente (embora o crime continue a existir mas com outros elementos do tipo), a decisão proferida já transitou em julgado e a lei manda, nestas circunstâncias, cessar o seus efeitos penais. Foi isso que o tribunal decidiu, pelo que indefiro o requerimento em análise.

Notifique.”

1.3. Irresignado com o assim decidido, o arguido interpôs recurso, extraindo da sua motivação, as conclusões seguintes:

1.3.1. Em 27 de Janeiro de 2009 o arguido estava a cumprir a pena que lhe fora aplicada nos autos.

1.3.2. A conduta por que fora condenado mostra-se entretanto descriminalizada através da Lei n.º 64-A/2008, em alteração ao artigo 105.º, n.º 1, do RGIT.

1.3.3. Naquela data (27 de Janeiro de 2009), o arguido requereu a abertura da audiência para aplicação retroactiva da lei penal mais favorável.

1.3.4. O que foi indeferido pelo despacho recorrido.

1.3.5. Em violação ao estatuído no artigo 371.º-A, do Código de Processo Penal.

Terminou pedindo que na revogação do decidido, se ordene a reclamada abertura da audiência.

1.4. Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público, sustentando o improvimento respectivo.

Admitido o recurso, e remetidos os autos a esta instância, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer sufragando idêntico improvimento.

Cumpriu-se com o disciplinado pelo artigo 417.º, n.º 2, do CPP.

No exame preliminar a que alude o n.º 6 deste inciso, consignou-se nada obstar ao conhecimento de meritis.

Como assim, ordenou-se a recolha dos vistos devidos, o que sucedeu, bem como submissão dos autos à presente conferência.

Urge ponderar e decidir.


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II – Fundamentação.

2.1. Conforme jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Nenhuma destas subsistindo, questão decidenda, porque a que o recorrente coloca é a de apurarmos se perante a redacção assumida pelo artigo 105.º, n.ºs 1[1] e 7[2] do RGIT, através da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, devia ordenar-se a reabertura da audiência a coberto do artigo 371.º-A, do Código de Processo Penal[3].

2.2. A dilucidação da questão assim colocada passa pela delimitação exacta do campo de aplicação deste segundo e último normativo.

Dispõe o artigo 29.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa [CRP] que ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais grave do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido. 

Por sua vez, o artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal, prescreve que o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais. 

No que concerne à aplicação retroactiva da lei nova mais favorável, estabelecia o n.º 4 do mesmo artigo, na sua redacção originária, que quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado.

A doutrina questionou a constitucionalidade da ressalva constante da parte final do mencionado n.º 4, com Taipa de Carvalho, entre outros, a sustentar a tese da inconstitucionalidade (Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais, PUC, 2003, 239 e seguintes), enquanto Figueiredo Dias se pronunciava em sentido oposto (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2004, 189 e seguintes).

O próprio Tribunal Constitucional, quando teve de se pronunciar sobre a norma em questão, não a julgou inconstitucional, a não ser em determinadas interpretações normativas. Assim, o seu aresto n.º 644/98 não julgou inconstitucional a norma em apreço. Já aquele com o 169/2002 julgou materialmente inconstitucional, por violação do princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, a norma do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, «na interpretação segundo a qual veda a aplicação da lei penal nova que transforma em crime semi-público um crime público, quando tenha havido desistência da queixa apresentada e trânsito em julgado da sentença condenatória.» Por seu turno, o Acórdão do dito Tribunal 572/2003 julgou inconstitucional a mesma norma, mas na interpretação de que vedava a aplicação da lei penal nova que descriminalizava o facto típico, imputado ao arguido, já objecto de sentença condenatória.

A Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, alterou o n.º 4 do mencionado artigo 2.º, do Código Penal, que passou a dispor: «Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.» 

A nova redacção contempla duas alterações em relação ao texto original: a primeira consiste na eliminação do segmento, «salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado», pelo que o caso julgado deixou de constituir óbice à aplicação da lei penal mais favorável; a segunda consiste no aditamento do segmento «se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.»

Com a nova redacção do artigo 2.º, n.º 4, a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável passa a determinar que, mesmo após o trânsito em julgado da sentença condenatória, cessem a execução e os efeitos penais quando o agente já tiver cumprido uma pena concreta igual ou superior ao limite máximo da pena prevista em lei posterior.

Com esta alteração, pretende-se evitar que alguém possa permanecer na prisão em cumprimento de pena, apesar de, segundo a nova lei, já ter ultrapassado o limite que o legislador passou a considerar como o máximo de pena aceitável e político-criminalmente justificável – o que, nas palavras de Taipa de Carvalho, constituiria «o absurdo dos absurdos político-criminais (Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 3.ª edição, p. 323).

Nesta perspectiva se compreende que o artigo 2.º, n.º 4, 2.ª parte, seja de aplicação oficiosa, não estando na dependência de qualquer iniciativa do condenado.

Por outro lado, que daí não decorra a imposição de reabertura da audiência para nova determinação da pena concreta no quadro da moldura penal aplicável, mas apenas, um limite à execução da pena concreta aplicada na condenação transitada em julgado – limite esse que coincide com o limite máximo da pena aplicável pela lei nova mais favorável[4].

2.3. O caso dos autos é, porém, distinto.

Por força do despacho exarado no dia 20 de Janeiro pretérito, a conduta assumida pelo arguido e constante dos autos, deixou de estar sujeita a qualquer regime sancionatório e, consequentemente, nem se coloca a questão da eventual opção pelo regime que se lhe mostrasse concretamente mais favorável (aquilo em que efectivamente se traduz o novel artigo 371.º-A).

Antes o que se verifica é tão-somente que por decorrência da redacção assumida pelo encimado artigo 105.º do RGIT e aplicação do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, foi determinada a cessação imediata dos efeitos penais da condenação proferida.

O artigo 371.º-A não pode ser uma norma inutilmente criada pelo legislador.

E, se na acepção que primeiramente considerámos assume sentido e relevância, já na leitura do recorrente nada adianta e redundaria sim na prática de acto inútil.

Além de que estes se mostram legalmente vedados[5], até e em rigor se colocaria, quiçá, a questão do seu interesse em agir, logo, da legitimidade em interpor o recurso presente.

Porém, sempre a sua pretensão se mostra votada ao malogro. E, cabe decretar.


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III – Decisão.

São termos em que pelos fundamentos expressos se nega provimento ao recurso interposto.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 2 UC´s. Notifique.


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Coimbra, 13 de Maio de 2009



[1] «Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7.500,00, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido…».
[2] «Para efeitos dos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar á administração tributária.»
[3] «Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.»
[4] No sentido exposto, o Acórdão deste Tribunal relatado pelo Ex.mo Desembargador Jorge Gonçalves, in recurso n.º 115/04.6 PATNV-A.C1.
[5] «Não é lícito realizar no processo actos inúteis, incorrendo em responsabilidade disciplinar os funcionários que os pratiquem», artigo 137.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal.