Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6/21.6T9PBL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: INQUÉRITO
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
TESTEMUNHA ESPECIALMENTE VULNERÁVEL
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Data do Acordão: 02/17/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 67.º, NºS 1, AL. B), E 3, E 271.º DO CPP; ART. 26.º E 28.º DA LEI N.º 93/99, DE 14-07; ART. 33.º DA LEI N.º 112/2009, DE 16-09
Sumário: I – O estado embrionário de um inquérito e a ausência, nessa fase, de provas, nomeadamente das que devam ser oralmente prestadas, não obstam à recolha de declarações para memória futura da denunciante – no caso, de idade avançada -, de um crime de violência doméstica.

II – Estando os direitos e interesses das vítimas de violência doméstica tutelados pela Lei 112/2009, de 16-09, no “poder” que é conferido ao juiz pelo artigo 33.º do referido diploma está implícito o “dever” de, em qualquer estádio do inquérito, e independentemente de já existir recolha de elementos probatórios, tudo fazer no sentido de precaver a recolha e a conservação de uma prova que se revele essencial para a correcta definição jurídica do concreto acontecimento.

Decisão Texto Integral:






Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                                                                 
 A - Relatório:

1. Nos autos de Inquérito (Atos Jurisdicionais) n.º 6/21.6T9PBL, que correm termos no Tribunal da Comarca de Leiria – Juízo de Instrução Criminal de Leiria – J3, no dia 12/1/2021, foi proferido o seguinte Despacho:

“Indefere-se o promovido, uma vez que se verifica que, no âmbito do presente inquérito, não foi realizada qualquer diligência que permita corroborar a denúncia apresentada.

A queixosa não foi ainda ouvida em ordem a que se possa aferir da necessidade e pertinência em ouvir a mesma em declarações para memória futura.

A denunciada não foi ainda ouvida no Inquérito.

Devolva.


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2. Inconformado com tal Despacho, dele recorreu o Ministério Público, em 15/1/2021, visando obter decisão que determine a recolha de declarações para memória futura de M., extraindo da Motivação as seguintes conclusões:

1. A Meritíssima Juiz de Instrução, ao indeferir a tomada de declarações para memória futura à vítima de violência doméstica de91 anos de idade negou-lhe a proteção a que a mesma tem direito e impediu-a de prestar antecipadamente declarações e de evitar a sua revitimização.

2. A fragilidade da vítima resulta da lei citada e não carece de ser demonstrada através de outros factos.

3. Ao recusar à vítima o estatuto de vítimas especialmente vulneráveis legalmente reconhecido e ao omitir tal facto, fez a Meritíssima Juiz a quo errada aplicação do direito.

4. Ao afastar, sem qualquer explicação, a aplicação da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, e o artigo 33.º, da Lei 112/2009, de 16 de setembro, e a qualificação de vítima especialmente vulnerável que resulta do artigo 67.º-A, n.º 1, al. b), e n.º 3, do Código de Processo Penal, incorreu em vício de fundamentação da decisão proferida e fez errada aplicação (por omissão) das normas citadas.

5. Ao decidir como decidiu, a Meritíssima Juiz de Instrução Criminal violou os artigos 1.º, n.ºs 3, 4 e 5, 2.º, al. a), 26.º, n.ºs 1 e 2, e 28.º, todos da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, o artigo 33.º, da Lei 112/2009, de 16 de setembro, e os artigos 67.º-A, n.º 1, al. b), e n.º 3, e 271.º, do Código de Processo Penal

Nestes rermos, deve ser revogado o despacho judicial em questão, impondo-se a sua substituição por outro que determine a tomada de declarações para memória futura à vítima nos termos promovidos pelo Ministério Público.


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3. O recurso, em 21/1/2021, foi admitido.

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4. O despacho recorrido, em 26/1/2021, veio a ser sustentado, nos termos do artigo 414.º, n.º 4, do CPP, nos seguintes termos:

“O Ministério Público veio promover que sejam tomadas declarações para memória futura a M. invocando o seguinte:

«Veio a denunciante requerer que lhe sejam tomadas declarações para memória futura – cfr. fls. 6 v.º.

Nos presentes autos investiga-se a prática de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, al. d), e n.º 2, al. a) e n.ºs 4, 5 e 6, do Código Penal, sendo a vítima uma pessoa particularmente indefesa em razão da sua idade.

O depoimento da vítima é crucial para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.

Por outro lado, importa proteger a vítima das consequências nefastas e colaterais que a prestação de tal depoimento poderá acarretar para a mesma, dada a sua relação com a denunciada. Há assim interesse em que tal depoimento seja prestado de modo reservado e prévio a qualquer acusação, o que poderá ser feito através da tomada de declarações para memória futura.

M. é uma vítima especialmente vulnerável em virtude da sua idade e ainda por força do disposto nos n.ºs 1, al. b) e 3, do artigo 67.º-A, n.º 1, do CPP, com referência ao disposto no artigo 1.º, al. f), do mesmo código, impondo-se ainda observar o artigo 28.º, da Lei 93/99, de 14 de julho, que regula a aplicação de medidas para proteção de testemunhas em processo penal, que dispõe que:

1 – Durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime.

2 – Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º, do Código de Processo Penal.

Justifica-se, assim, plenamente, e também nos termos do artigo 33.º, da Lei 112/2009, de 13 de julho, e do artigo 271.º, do CPP, a tomada de declarações para memória futura da vítima.

“Atente-se, v.g., nas seguintes recomendações constantes das “Regras de Brasília sobre acesso à Justiça das pessoas em condições de vulnerabilidade” aprovadas pela XIV Conferência Judicial Iberoamericana que teve lugar no Brasil em 4 a 6 de março de 2008 (Disponíveis em www.csm.org.pt).

“(37) Antecipação jurisdicional da prova:

Recomenda-se a adaptação dos procedimentos para permitir a prática antecipada da prova na qual participe a pessoa em condição de vulnerabilidade para evitar a reiteração de declarações (…) – Declarações para memória futura (elementos de estudo) Cruz Bucho, 2-4 -2012, fls. 39.

Como se referiu na longa exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 248/X/4ª que esteve na base da citada Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro: “sendo a prevenção da vitimização secundária um aspeto axial das políticas hodiernas de proteção da vítima estabelece-se, sempre que tal se justifique, a possibilidade de inquirição da vítima no decurso do inquérito a fim de que o depoimento seja tomado em conta no julgamento (…)”            Neste domínio das declarações para memória futura, o propósito da lei da violência doméstica terá sido o de consagrar a possibilidade de inquirição antecipada da vítima de violência doméstica, conferindo-lhe a este nível um estatuto equivalente ao das vítimas de crimes de tráfico de pessoas ou de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual (artigo 271.º, n.º 1) , (…) - Declarações para memória futura (elementos de estudo) Cruz Bucho, 2-4 -2012, fls. 6.

Justifica-se, por isso, plenamente, a tomada de declarações para memória futura à vítima, conforme por esta sobre todos os factos denunciados e de que tenha conhecimento direto e que constituam crime.

Assim, pelos motivos supra expostos, e nos termos dos artigos 1.º, n.ºs 3, 4 e 5, 2.º, al. a), 26.º, n.ºs 1 e 2, e 28.º, todos da Lei 93/99, de 14 de julho, 33.º, da Lei 112/2009, de 13 de julho, requer-se que, nos termos do artigo 271.º, do CPP, sejam tomadas declarações para memória furura à vítima – M. – requerendo-se que a mesma deponha sobre todos os factos denunciados e de que tenha conhecimento direto e que constituam crime.”

Pelo Juiz de Instrução foi proferido o seguinte despacho:

“(…).”

O MP, não se conformando com o despacho proferido veio interpor recurso.

Cumpre, nesta fase, e em conformidade com o disposto no artigo 414.º, n.º 4, do CPP, sustentar o despacho proferido nos autos.

Analisado o inquérito e no momento em que foi proferido o despacho recorrido, verificou-se que o Ministério Público não tinha realizado no mesmo qualquer diligência de investigação.

A denunciante na queixa que formulou pediu que a mesma fosse ouvida em declarações para memoria futura e indicou meios de prova, nomeadamente testemunhal.

Face à sua apresentação, o Ministério Público determinou a abertura do inquérito.

Analisado o mesmo, verifica-se que a denunciante não foi ouvida no âmbito do inquérito em ordem a confirmar os factos que denunciou ou outros que eventualmente tenham ocorrido e relativamente aos quais a mesma não tenha feito menção.

Não se coloca em causa que, tendo a queixosa a idade que é indicada nos autos, a mesma deva ser oportunamente ouvida em declarações para memória futura.

O despacho proferido nos autos teve por fundamento o entendimento de que, na fase em que se encontrava o inquérito e face à ausência de diligências de investigação, que não era oportuna a tomada de declarações para memória futura.

A prestação de declarações para memória futura visa proteger a vítima e visa também que o depoimento possa, se necessário, ser levado em conta no julgamento, evitando desta forma uma vitimização secundária da vítima.

No entanto, e tendo por base essa pressuposto, entende-se que o depoimento da vítima deve ser prestado após a realização de diligências de recolha de prova que permitam determinar o objeto do processo e que as questões que sejam colocadas à vítima abranjam a factualidade que concretamente se encontra em investigação e com a amplitude que se imponha, em ordem a evitar que tais declarações para memória futura sejam prestadas numa fase embrionária do inquérito e apenas sobre uma parte dos factos investigados.

Por último, importa referir que a queixosa denunciou factos que a mesma qualificou como integrantes da prática de um crime de violência doméstica e de furto qualificado, sendo que a factualidade denunciada carece ainda de alguma precisão, no que concerne à indicação de algumas circunstâncias referentes ao modo e lugar como ocorreram os factos descritos.

Face ao exposto, decide-se manter o despacho recorrido.

Comunique o presente despacho ao magistrado do Ministério Publico que apresentou o recurso.

Após, subam os autos ao Tribunal da relação de Coimbra para apreciação do recurso.”


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5. Instruídos os autos e remetidos a este Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 2/2/2021, emitiu douto parecer, no sentido de que deve ser revogado o despacho recorrido, ordenando-se, consequentemente, a realização da diligência solicitada, para memória futura.

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6. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.

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B - Cumpre apreciar e decidir:

São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º 1 e n.º 2, ambos do C.P.P.

A questão a conhecer é a seguinte:

- Saber se, na fase atual do inquérito, deve ser determinada a tomada de declarações para memória futura da denunciante.


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O Ministério Público promoveu que à denunciante fossem tomadas declarações para memória futura, tendo em vista acautelar o valor probatório futuro das declarações de M., em julgamento ou noutras fases processuais.

O processo teve a sua origem numa queixa apresentada por M., de noventa e um anos de idade, em que, além do mais, está em causa uma alegada prática de um crime de violência doméstica.

Porém, a pretensão formulada pelo Ministério Público foi indeferida com o argumento de que o depoimento da vítima deve ser prestado após a realização de diligências de recolha de prova que permitam determinar o objeto do processo e que as questões que sejam colocadas à vítima abranjam a factualidade que concretamente se encontra em investigação e com a amplitude que se imponha, em ordem a evitar que tais declarações para memória futura sejam prestadas numa fase embrionária do inquérito e apenas sobre uma parte dos factos investigados, sem esquecer que a queixosa denunciou factos que a mesma qualificou como integrantes da prática de um crime de violência doméstica e de furto qualificado, sendo que a factualidade denunciada carece ainda de alguma precisão, no que concerne à indicação de algumas circunstâncias referentes ao modo e lugar como ocorreram os factos descritos.


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De acordo com o artigo 26.º, da Lei nº 93/99, de 14 de julho:

“1- Quando num determinado ato processual deva participar testemunha especialmente vulnerável, a autoridade judiciária competente providenciará para que, independentemente da aplicação de outras medidas previstas neste diploma, tal ato decorra nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas.

2- A especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.”

E, no artigo 28.º, da mesma Lei, preceitua-se que “sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal” – nº 2,

O conceito de “testemunha”, nos termos do artigo 2.º, do mesmo diploma legal, abrange “qualquer pessoa que, independentemente do seu estatuto face à lei processual, disponha de informação ou de conhecimento necessários à revelação, perceção ou apreciação de factos que constituam objeto do processo, de cuja utilização resulte um perigo para si ou para outrem, nos termos dos nºs 1 e 2 do artigo anterior” e a proteção tem aplicação independentemente do tipo de crime em causa.

Por seu turno, a Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que estabelece o Regime Jurídico Aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Proteção e Assistência das suas Vítimas, contém no seu artigo 33.º, norma específica para a prestação de declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica.

Nele se explicita:

“1- O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.

2- O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.

3- A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a vítima ser assistida no decurso do ato processual pelo técnico de apoio à vítima ou por outro profissional que lhe tenha vindo a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico, previamente autorizados pelo tribunal.

4- A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.

5- É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º do Código de Processo Penal.

6- O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e acareações.

7- A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.”

Acresce que a denunciante é uma vítima especialmente vulnerável, em virtude da sua idade, nos termos do disposto nos n.ºs 1, al. b), e n.º 3, do artigo 67.º-A, n.º 1, do CPP, com referência ao artigo 1.º, al. j), do mesmo diploma legal.

Aqui chegados, há que ter presente que, ao contrário do que sucede nos casos de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, em que a tomada de declarações para memória futura é obrigatória, como resulta do n.º 2, do artigo 271.º, do CPP, encontrando-se em investigação crimes de violência doméstica ou maus tratos, como na situação em apreço, esse ato não tem natureza de imperatividade, ou seja, não é obrigatória a sua prática.

Pois bem, tendo em consideração as competências atribuídas ao Ministério Público, designadamente pelo artigo 53.º, do CPP., cabendo a este dirigir o respetivo inquérito, sabe o mesmo qual a melhor forma de o fazer, seja promovendo a obtenção e conservação das respetivas provas indiciárias, seja fixando o tempo e o modo de atuação na recolha das mesmas, sendo-o, sempre, com o objetivo único da descoberta da verdade e da melhor decisão para a causa.

Por isso, deve ser reconhecido ao Ministério Público, desde o início do inquérito, um presumido sentido de real interesse e oportunidade nas diligências que promove e para as quais o juiz não poderá deixar de mostrar a necessária recetividade, tanto mais que não é ele quem dirige o inquérito e desconhece, muitas vezes, o objeto e a amplitude do mesmo.

Por outro lado, em casos como o dos autos, em que se investiga, além do mais, a eventual prática de um crime de “violência doméstica”, com todos os motivos de interesse e preocupação que rodeiam a perseguição e punição deste verdadeiro flagelo social, mais a disponibilidade e recetividade do juiz se justificam quando lhe são solicitadas diligências como aquela que aqui em causa.

Ora, perante o quadro fáctico indiciado nos autos, é de todo o interesse colher, com a urgência possível, o depoimento de M..

Não consideramos que, por mais dúvidas que se coloquem sobre a real necessidade da diligência solicitada pelo Ministério Público, tendo em consideração a fase embrionária em que se encontra o inquérito e a ausência de outras provas, nomeadamente outras inquirições, deva ser obstada a recolha de declarações para memória futura da denunciante, atendendo, designadamente, à sua idade avançada. Neste sentido, veja-se o Acórdão do TRE, de 12/5/2020, Processo n.º 14/20.4GDFAR, relatado pelo Exmo. Desembargador Martinho Cardoso, em www.dgsi.pt.

Se é verdade que o artigo 33.º, da citada Lei n.º 112/2009, deixa nas mãos do juiz o “poder” de proceder à recolha das declarações da vítima para memória futura ainda na fase de inquérito, não é menos certo que estamos já perante uma indiciação de factos que exigem a todos os operadores judiciários cuidados e preocupações acrescidas e rápidas decisões, as quais devem estar imbuídas de um real fim preventivo, ainda que revelador de um “excesso”, na medida em que, nas situações como as descritas nos autos, podem advir nefastas consequências para quem se apresenta como vítima.

Assim sendo, estando os direitos e interesses das vítimas de violência doméstica tutelados pela mencionada Lei n.º 112/2009, no “poder” que é conferido ao juiz está implícito o “dever” de, em qualquer fase do inquérito, e independentemente de já existir recolha de outra prova, tudo fazer no sentido de precaver a recolha e a conservação de uma prova que surge como essencial, a menos que a diligência solicitada pelo Ministério Público não se afigure, de todo, necessária, o que não se revela no caso presente.

Em situações como a que está agora em causa, consideramos que a regra deve ser a de deferir, sempre, o requerimento apresentado pela vítima ou pelo Ministério Público, pois está em causa o “dever de proteção” à mesma vítima consagrado no artigo 20.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, pelo que, só em casos excecionais, de inequívoca e manifesta irrelevância, se deve indeferir uma pretensão como a que foi formulada nos presentes autos.

Por outras palavras, como bem refere o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no seu douto Parecer, “a tomada de declarações deve ocorrer o mias célere possível, seja qual for o estado dos autos, com vista à proteção da própria vítima. A exigida delimitação do objeto do processo como exigência prévia não deve, a nosso ver, ser argumento decisivo para um indeferimento da diligência requerida, no caso com toda a clarividência. Até porque essa delimitação do objeto do processo será realizada pela própria queixosa/ofendida, desde logo na participação apresentada, bem assim na sua audição, (…).”


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C. Decisão:

Nesta conformidade, acordam os Juízes que compõem a 5 ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto e, em consequência, revogam o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que admita a recolha de declarações para memória futura de M., como promovido pelo Ministério Público.

Sem tributação.


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(Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado – artigo 94.º, n.ºs 2 e 3, do CPP.).

Coimbra, 17 de fevereiro 2021

José Eduardo Martins (relator)

Maria José Nogueira (adjunta)