Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
512/04.7TAACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
INIMPUTÁVEL
Data do Acordão: 09/24/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALCOBAÇA – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 488º, 489º CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. O inimputável pode ser responsabilizado pelos danos que causar ao cometer um crime de incêndio.
2. A responsabilidade do inimputável tem a sua justificação como medida de protecção do lesado e não na culpa do agente.
Decisão Texto Integral: Rec.512.04.7TAACB.C1 – 1º Juízo da comarca de Alcobaça
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:


Após realização da audiência de discussão e julgamento, pelo tribunal singular, foi preferida sentença mediante a qual foi decidido:
- Declarar que a arguida IR praticou os factos descritos na acusação, tipificados no crime de incêndio p.p. pelo art. 272° nº 1 al. a) e n° 3 do Código Penal, julgando-a inimputável e aplicando-lhe a medida de segurança de internamento que cessará quando cessar o seu estado de perigosidade criminal, sem que possa exceder 5 (cinco) anos.
- Julgar o pedido de indemnização civil deduzido por JF parcialmente procedente, por parcialmente provado e, consequentemente, condenar a arguida a pagar-lhe a quantia de € 6.500,00 (seis mil e quinhentos euros).

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Não se conformando com tal decisão na parte relativa à condenação no pagamento da indemnização civil, dela recorre a arguida.

Da motivação extrai as seguintes CONCLUSÕES:
I. A arguida vinha acusada de um crime de incêndio p.p. pelo art.2720 n01 al.a) e n.03 do C. Penal.
II. Provou-se que a arguida praticou factos típicos e ilícitos tipificados no crime de incêndio de que vinha acusada, provocando estragos na propriedade da queixosa.
III. No entanto, foi a mesma declarada inimputável, por sofrer de doença psiquiátrica - esquizofrenia paranólde com efeito progressivo.
IV. Consequentemente, foi-lhe aplicada uma Medida de Segurança de Internamento de iniminputável.
V. Provou-se a existência de um facto, ilícito, nexo de imputação do facto ao lesante (culpa), dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano, todos elementos constitutivos do direito de indemnização à demandada.
VI. Pelo que o pedido civil de C7.500,00 (sete mil e quinhentos euros) foi declarado parcialmente provado, condenando-se a arguida no pagamento da quantia de 66.500,00 (seis mil e quinhentos euros).
VII. A arguida discorda inteiramente da condenação no pagamento de tal indemnização.
VIII. Estatui o art.488º n.º1 do C. Civil que “não responde pelas consequências do facto danoso quem, no momento em que o facto ocorreu, estava, por qualquer causa, incapacitado de entender ou querer”
IX. Sendo esta a regra imposta por lei, a mesma só poderá ser desconsiderada se forem invocadas razões de equidade ao abrigo do art.489º do C. Civil.
X. Caso Contrário, a inimputabilidade da arguida determina que o pedido civil seja improcedente, não respondendo pelos danos causados.
XI. O Tribunal a quo, invocou tal excepção sem que, no entanto, enumerasse quais as razões de equidade que impunham, no seu entendimento, a condenação da arguida no pedido civil.
XII. De facto, “...o apontado requisito específico — «equidade» — tem de ser avaliado perante as circunstâncias concretas, ponderando especificamente as possibilidades do inimputável e as necessidades do lesado, sendo, todavia, a indemnização calculada de forma a não privar a pessoa não imputável dos alimentos necessários, conforme o seu estado e condição..” —STJ 31-01-1996 BMJ, 453º, 205 in C. Civil anotado, Abílio Neto, Almedina, 14ª Edição.
XIII O Tribunal a quo refere que “a indemnização será calculada de forma a não privar a pessoa não imputável dos alimentos necessários, conforme o seu estado e condição, nem dos meios indispensáveis para cumprir os seus deveres legais de alimentos” conforme preceituado no n.02 do art.489º do C. Civil.
XIV Não obstante tal fundamentação, o Tribunal a quo acaba por não a aplicar ao caso em análise.
XV O Tribunal a quo deu como provado que:
- “o fogo teve origem e consumiu a residência da arguida, no r/chão onde esta habitava, que ficou inabitável e desprovido de telhado”;
- a arguida “não estava sob vigilância de qualquer pessoa”;
- “pelo contexto sócio-familiar que a arguida tem, vivendo sozinha, sem
vigilância...não é aconselhável o tratamento em ambulatório, nem a suspensão do internamento “;
- “a arguida vive sozinha, entregue a si própria, na cave da que era a sua habitação(...) em condições sub-humanas, rodeada de lixo que continua a carrear da rua”;
- a arguida “não estava sob vigilância de qualquer pessoa”;
- “Não tem rendimentos; tem o 60 ano de escolaridade”.
XVI. Conclui-se assim, que a arguida tem uma débil situação económica.
XVII. Não tem emprego actualmente, nem o terá, previsivelmente num futuro próximo ia que a mesma será internada em consequência da medida de segurança de internamento que lhe foi aplicada.
XVIII. Perante tal realidade, a arguida nunca conseguirá proporcionar à ofendida/demandante, a indemnização em que foi condenada, ficando, inquestionavelmente, privada dos alimentos necessários à sua sobrevivência.
XIX. Fica desta forma completamente comprometido o seu estado e condição.
XX. Não se compreendendo quais as razões de equidade aplicadas.
XXI. A regra do Art.488º n.º1 deverá ter aplicação prioritária, prevalecendo sobre o estatuído no art. 489º n.º1 (ambos do C. Civil), que constitui uma excepção, cuja aplicação será obrigatoriamente fundamentada com referência ao caso sub judice, o que não se verificou.
XXII. O tribunal a quo limita-se a fundamentar o vertido na lei, de forma abstracta, concluindo que, provados que foram os prejuízos da lesada e prevendo a lei aquela excepção, a arguida inimputável tem de indemnizar, respondendo pelos danos causados.
XXIII. Nunca tal fundamentação foi analisada face ao caso concreto.
XXIV. Não foram devidamente analisadas nem valoradas as possibilidades da arguida nem as necessidades da lesada, de forma a concluir, como se fez, pela necessidade da condenação da arguida no pedido civil.
XXV. Existe pois, contradição entre o que é dado como provado e o que é referido como fundamentação da decisão.
XXVI. Está-se perante uma insuficiência da matéria de facto provada, no que concerne às necessidades da ofendida, para fundamentar a decisão proferida;
XXVII. Verificando-se ainda, uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos do art.410º n.º2 al. b) do C. P. Penal.
XXVIII. Salvo o devido respeito, não parece que tenha sido feito o enquadramento necessário que, face ao circunstancialismo concreto e à situação da arguida, se impunha.
XXXIX Considera-se assim, que a Douta Sentença violou o disposto nos artigos 488º n.º1 e 489ºn.º1 e n.º2 do C. Civil

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Não foi apresentada resposta.

Um vez que o recurso é circunscrito à responsabilidade civil e as partes estão devidamente patrocinadas, no visto a que se reposta o art. 416º do CPP, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto absteve-se de emitir parecer.

Corridos os vistos e realizado o julgamento, mantendo-se a validade da instância afirmada nos autos, cumpre decidir.


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Como emerge das conclusões, que balizam o objecto do recurso, este restringe-se à responsabilidade civil, na medida em que condenou a recorrente a pagar indemnização à lesada apesar do reconhecimento de que a arguida actuou em estado de inimputabilidade, em violação do disposto nos artigos 488º e 489º do C. Civil.

Ainda que não questione a decisão da matéria de facto em si ou a falta de investigação e factos alegados e/ou de conhecimento oficioso, invoca ainda dois dos vícios previstos no art. 410º, nº2 do CPP.

A apreciação das suscitadas obriga a recapitular a matéria de facto provada.

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A matéria de facto provada é a seguinte:
A arguida IR, à data dos factos que se descrevem a seguir, residia na Rua …., S. Martinho do Porto, área desta Comarca de Alcobaça.
A arguida armazenava lixo na residência e pátio da mesma, designadamente papelão, baldes, garrafões, roupas, calçado usado, caixotes em papelão, e outro lixo doméstico, o que constituía só por si matéria altamente inflamável, artigos esses que recolhia nos contentores e que, inclusive, levava para o interior da sua residência.
A arguida não tinha luz eléctrica em casa, pelo que, para se iluminar, todas as noites utilizava a luz proveniente de velas que acendia.
No dia 1 de Maio de 2004 cerca das 22.20 horas, a arguida encontrava-se na sua residência e acendeu uma vela na sala, para se iluminar, vela que colocou na vertical em cima de um pires e em cima de uma mesa, tendo-se de seguida retirado para a cozinha.
Por circunstâncias não apuradas a vela caiu e a chama ateou fogo aos objectos e lixo que se encontravam em cima da mesa, fogo que logo se propagou à alcatifa do chão e a todo o papelão, baldes, garrafões, roupas, calçado usado, caixotes, e outro lixo doméstico que se encontrava espalhado por todo o interior da residência.
O fogo consumiu a residência da arguida, no r/chão onde esta habitava que ficou inabitável e desprovido de telhado.
O incêndio propagou-se igualmente à residência contígua situada no nº … da Rua ….. e propriedade de JF, tendo ardido o telhado da mesma; as paredes que separavam as duas casas ficaram completamente queimadas, as janelas partidas e as portas danificadas.
A casa de JF ficou inundada pela água utilizada para apagar o incêndio e os bens que se encontravam no interior ficaram inutilizados, designadamente os electrodomésticos da cozinha – fogão, frigorifico, máquina de lavar roupa, - bem como louças e outros utensílios e mobiliário dos quartos, mobílias da sala e respectivas roupas.
No combate ao sinistro, intervieram 8 viaturas e 23 bombeiros da Corporação de Bombeiros Voluntários de S. Martinho do Porto e da Corporação dos Bombeiros Voluntários das Caldas da Rainha.
O incêndio foi dado por extinto pelas 3,20 horas do dia 2 de Maio de 2004, tendo o combate ao sinistro durado 3 horas e 40 minutos.
Em consequência dos factos descritos JF, sofreu directa e necessariamente, estragos em valor de €6.500,00.
O sinistro ocorrido ficou a dever-se a exclusiva e manifesta desatenção da arguida, a qual não se certificou convenientemente que a vela estava colocada de modo a não cair e contribuiu para a propagação do incêndio devido à quantidade de artigos inflamáveis que tinha no interior da sua residência;
À data da prática dos factos supra, a arguida padecia de uma esquizofrenia paranóide com efeito progressivo (F20.1.1 da C/D-IO), doença de que ainda padece;
Um tal quadro psicopatológico, com início na segunda década de vida, objectiva-se, ao corte transversal actual (entre outras manifestações), por alterações do pensamento (ideias delirantes de conteúdo místico e desorganizado) com perda do juízo crítico, alterações do comportamento (com bizarrias, como, por exemplo, acumular lixo na sua residência), alheamento da realidade, com isolamento social e embotamento dos afectos, o que a impedia de avaliar (em toda a sua extensão), da licitude ou ilicitude dos seus actos e suas consequências, ou de se determinar de acordo com essa avaliação.
A arguida necessita de tratamento psiquiátrico (psicofarmacológico, psicoterapêutico e psicossocial), suficientemente assíduo e eficaz.
A arguida não efectua qualquer tratamento psicofarmacológico, nem é acompanhada em consultas de Psiquiatria.
Na ausência de medidas de acompanhamento médico-psiquiátrico, existe uma grande probabilidade de cometer actos da mesma espécie ou outros actos tipificados na lei como crime, actos que representam perigosidade social.
A arguida vive sozinha, entregue a si própria, na cave da que era a sua habitação mencionada em 1., em condições sub-humanas, rodeada de lixo que continua a carrear da rua.
Não tem rendimentos; tem o 6º ano de escolaridade.
Não tem antecedentes criminais.


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Ainda que questionando apenas a condenação no pagamento da indemnização civil com base no juízo de equidade previsto no art. 489º do C. Civil, sem questionar a decisão da matéria de facto em si, a recorrente invoca os vícios previstos no art. 410º, n.º2 do CPP, de contradição insanável “entre o que é dado como provado e o que é referido como fundamentação da decisão” (conclusões XXV e XXVII) e “insuficiência da matéria de facto provada” (conclusão XXVI).

Tal alegação surge no quadro da crítica por incorrecta aplicação dos critérios definidos pelos artigos 488º e 489º do C. Civil, matéria de direito, e não sobre a decisão da matéria de facto em si, não questionada
Ora os vícios do art. 410º, n.º2 incidem sobre a decisão da matéria de facto, como resulta não só da letra da lei [“matéria de facto”, “apreciação da prova” constantes das alíneas a) e c)], como ainda do espírito ou ratio do mencionado preceito, permitindo a chamada revista alargada, em que o tribunal de recurso, embora conhecendo exclusivamente de direito [““Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal à matéria de direito” - cfr. corpo do citado n.º2], possa sindicar a matéria de facto naquelas três situações, reenviando, se necessário, o processo para novo julgamento da matéria de facto correspondente, nos termos do art. 426º, n.º1.

Em contrapartida, no caso, a contradição invocada é entre a meteria de facto provada e o respectivo enquadramento jurídico. Portanto erro de direito a apreciar em sede própria, que não vício de contradição insanável entre a decisão da matéria de facto e a respectiva motivação (da decisão de facto).
Por outro lado o vício de insuficiência da matéria de facto (provada) para a decisão não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, que é coisa bem diferente – cfr., entre muitos outros citados pelos mencionados autores, Ac. STJ de 13.02.1991, in AJ n.ºs 15/16, p. 7. Tratando-se de “uma lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher” - Simas Santos/Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, Ed. Rei dos Livros, 5ª ed., p. 61.

E, no caso, a insuficiência invocada é da matéria de facto ara a solução jurídica a que o tribunal recorrido chegou, que não de apuramento de matéria de facto (que a recorrente não identifica) que tivesse sido alegada ou o tribunal tivesse o dever de investigar oficiosamente.

Sendo assim manifesta a inexistência dos falados vícios, quer por os fundamentos invocados dizem respeito a matéria de direito quer porque nem é alegado que o tribunal não tenha apreciado a matéria de facto que lhe competisse apreciar. Surgindo a invocação dos vícios (relativos à matéria de facto em si) como crítica à subsunção jurídica da matéria de facto provada aos artigos 488º-489º do C. Civil.

Restando, pois, a apreciação dos argumentos invocados no quadro da subsunção da matéria provada aos citados dispositivos legais.

A respeito da indemnização arbitrada refere a decisão recorrida, com relevo:

“”“(…) A autora do dano, porque não imputável, não pode em princípio, responder por esse dano, mas pode acontecer que a equidade aconselhe, apesar disso, uma indemnização. Ponto é que o facto, se fosse praticado por pessoa imputável, constituísse um facto ilícito que desse lugar à obrigação de reparar o dano - artigo 483 do C.CIV. (…) Reunidos todos os pressupostos da responsabilidade civil: - facto ilícito, o dano, as circunstâncias que tornariam o facto culposo se não fosse a inimputabilidade, o nexo de causalidade entre o facto e o dano - sendo a demandada inimputável, o tribunal pode recorrer à equidade para a condenar a reparar, total ou parcialmente, os danos, se concorrerem ainda os requisitos exigidos pelo artigo 489º do C.CIV. e, na hipótese de não haver pessoa obrigada à vigilância da inimputável, a quem a lesada poderia exigir a indemnização.
A indemnização será calculada por forma a não privar a pessoa não imputável dos alimentos necessários, conforme o seu estado e condição, nem dos meios indispensáveis para cumprir os seus deveres legais de alimentos. (…) a lesada sofreu prejuízos no valor de € 6.500 (…) por equitativo, julga-se adequado fixar em €6.500 o montante da compensação a atribuir à demandante Joana Silvino.»»»

Não sofre dúvida a verificação, no caso, dos pressupostos gerais do dever de indemnizar: acto ilícito praticado pelo demandado e nexo de causalidade adequada entre o facto ilícito e o dano. Nem que, tendo a arguida actuado em estado de inimputabilidade, em princípio “não responde, pelas circunstâncias do facto danoso”, tal como postula o n.º1 do art. 488º do C. Civil.
Sendo ainda pacífico que não existe, no caso, ninguém que estivesse obrigado á vigilância da arguida que possa ser responsabilizada pelo prejuízo efectivamente causado à demandante civil.
Constituindo assim o ponto da discordância em determinar se no caso, ainda assim, deve prevalecer a indemnização arbitrada com base no critério de equidade previsto no art. 489º do C. Civil, disposição legal invocada, como se viu, na decisão recorrida como suporte legal da condenação.
O referido artigo 489º estipula no seu n.º1: Se o acto causador do dano tiver sido praticado por pessoa não imputável, pode esta, por motivos de equidade, ser condenada a repará-los, total ou parcialmente, desde que não seja possível obter a devida reparação das pessoas a quem incumbe a sua vigilância.
Acrescentando, no n.º2: A indemnização será, todavia calculada de forma a não privar a pessoa não imputável dos alimentos necessários, conforme o seu estado e condição, nem dos meios indispensáveis para cumprir os seus deveres legais de alimentos.
O código admite, assim, que a pessoa inimputável seja condenada a indemnizar, total ou parcialmente (desde que não seja possível obter a reparação das pessoas a quem incumbe a sua vigilância) quando razões de equidade assim o imponham: porque o agente tenha bens por onde responder, porque o lesado tenha ficado em difícil situação económica, porque seja avultado o montante do prejuízo, porque seja particularmente grave a conduta do agente ou séria a violação cometida – cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7ª ed., Vol. I, p. 557
Sendo certo, como destaca o mesmo autor (ob.cit., p. 557, em nota de rodapé) que a responsabilidade do inimputável tem a sua justificação como medida de protecção do lesado e não na culpa do agente.
A sentença recorrida, se bem que não reproduza, ponto por ponto, os concretos pontos de facto que legitimam o juízo de equidade, fundamenta esse juízo de equidade na globalidade da matéria de facto provada, como tal descrita na sentença – matéria descrita no lugar próprio da sentença (descrição da matéria de facto provada), nessa medida dispensando nova reprodução na fundamentação de direito.
Por outro lado se a matéria de facto provada revela um quadro de pobreza da arguida que evidencia falta de rendimentos que lhe permitam pagar a indemnização (o que lhe confere efeito meramente simbólico) não é menos certo que também se faz sentir, em face da matéria de facto provada, especial exigência da reparação do dano. Pois que, a “interdependência” e semelhança das casas (da arguida e da ofendida) ardidas e o valor atribuído aos danos estruturais e mobiliário da casa da ofendida, revelam também um quadro de extrema carência.
E a demandante foi despojada – por acção da arguida que se não fosse declarada inimputável seria qualificada de gravemente culposa – do bem económico mais relevante, a própria habitação.


Com efeito resulta da matéria provada que “O incêndio propagou-se igualmente à residência contígua (…) propriedade de JF, tendo ardido o telhado da mesma; as paredes que separavam as duas casas ficaram completamente queimadas, as janelas partidas e as portas danificadas; a casa ficou inundada pela água utilizada para apagar o incêndio e os bens que se encontravam no interior ficaram inutilizados, designadamente os electrodomésticos da cozinha – fogão, frigorifico, máquina de lavar roupa, - bem como louças e outros utensílios e mobiliário dos quartos, mobílias da sala e respectivas roupas; Em consequência dos factos descritos JF, sofreu directa e necessariamente, estragos em valor de €6.500,00.”

De onde resulta que, ao contrário do que supõe a alegação de recurso não foi apenas a arguida que sofreu prejuízo. O mesmo sucedeu com a demandante que ficou também privada de um bem essencial - a sua habitação, mobiliário, equipamento de cozinha, higiene, roupas. Sendo que esta, ao contrário daquela, nada fez que pudesse causar ou agravar o prejuízo.

Sendo certo que no Estado de Direito Social a arguida tem direito a assistência pública no quadro da segurança social ou do rendimento mínimo garantido.

E a ofendida, no caso, não tem direito a ver os danos ressarcidos pelo Estado no quadro da indemnização á vítima previsto no art. 130º do CPP, DL 423/91 de 30.10, Dec.Reg.4/93 de 22.02, alterados pela Lei 10/96 de 23.03.

Assim, numa situação limite, como é a dos autos, correspondendo a indemnização arbitrada ao prejuízo efectivo sofrido pela ofendida, num quadro de grande debilidade económica desta (como o valor da casa, mobiliário e demais recheio evidenciam - apenas € 6.500,00), atenta a natureza do dano (casa de habitação, bem primário essencial), não tendo a lesada qualquer outra possibilidade de ser ressarcida, numa interpretação do art. 489º do C. Civil de acordo com as “condições do tempo em que é aplicada” – art. 9º do C. C. - (quando foi aprovado o preceito não existia Segurança Social), no falado juízo de equidade, conclui-se que deve prevalecer a condenação, extremamente módica, para o dano causado.


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Nestes termos decide-se negar provimento ao recurso. -----

Custas pela recorrente, nos termos da lei processual civil (art. 523º do CPP), sem prejuízo do apoio judiciário.