Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
355/16.5T8PMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: CASO JULGADO
EXCEPÇÃO DO CASO JULGADO
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 06/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - P.MÓS - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.7, 8, 542, 580, 581, 619 CPC
Sumário: 1.- O caso julgado material produz os seus efeitos por duas vias: pode impor-se, na sua vertente negativa, por via da excepção de caso julgado no sentido de impedir a reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada e pode impor-se, na sua vertente positiva, por via da autoridade do caso julgado, vinculando o tribunal e as partes a acatar o que aí ficou definido em quaisquer outras decisões que venham a ser proferidas.

2. Quando o objecto da segunda acção é idêntico e coincide com o objecto da decisão proferida na primeira acção, o caso julgado opera por via de excepção (a excepção de caso julgado), impedindo o Tribunal de proferir nova decisão sobre a matéria (nesse caso, o Tribunal limitar-se-á a julgar procedente a excepção, abstendo-se de apreciar o mérito da causa que já foi definido por anterior decisão).

3.- O caso julgado impor-se-á por via da sua autoridade quando a concreta relação ou situação jurídica que foi definida na primeira decisão não coincide com o objecto da segunda acção mas constitui pressuposto ou condição da definição da relação ou situação jurídica que nesta é necessário regular e definir (neste caso, o Tribunal apreciará e definirá a concreta relação ou situação jurídica que corresponde ao objecto da acção, respeitando, contudo, nessa definição ou regulação, sem nova apreciação ou discussão, os termos em que foi definida a relação ou situação que foi objecto da primeira decisão).

4.- Ao contrário do que acontece com a excepção de caso julgado (cujo funcionamento pressupõe a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir ), a invocação e o funcionamento da autoridade do caso julgado dispensam a identidade de pedido e de causa de pedir .

5.- O que está em causa na litigância de má-fé não é o facto de a parte ter ou não razão ou o facto de conseguir (ou não) fazer prova dos factos que alegou; o que está em causa é um determinado comportamento processual que, correspondendo a um incumprimento doloso ou gravemente negligente dos deveres de cooperação e de boa-fé processual, a que as partes estão submetidas – deveres que se encontravam previstos nos arts. 7º e 8º CPC- , é censurável e reprovável por atentar contra o respeito pelos Tribunais e prejudicar a acção da justiça.

Decisão Texto Integral:





Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

J (…), residente (…), (...) , instaurou acção, com processo comum, contra a Herança ilíquida e indivisa de A (…), representada pelos seguintes herdeiros:

M (…), (entretanto falecida e agora representada pelos seus herdeiros – já habilitados – J (…), M (…), F (…), J (…), J (…), M (…), A (…) e N (…)a seguir identificados);

J (…)

M (…)

F (…)

J (…)

J (…)

M (…)  (entretanto falecida e agora representada pelo seu herdeiro – já habilitado – N (…));

N (…)

M (…)

A (…)

Alegou, em resumo: que o autor da herança ré (A (…)) era proprietário de um prédio rústico, inscrito na matriz 2604 e omisso na Conservatória; que esse prédio confina do lado poente com o prédio rústico do Autor, inscrito na matriz sob o artigo 2603 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 1329; que adquiriu este prédio por compra que efectuou a F (…)e mulher M (…) em 22 de Julho de 1975, tendo-lhe sido, posteriormente, adjudicado na partilha efectuada na sequência de divórcio da sua mulher; que o aludido prédio tem, desde que o adquiriu, as características (localização, forma, área, etc) constantes do levantamento topográfico que junta aos autos, correspondendo ao polígono da área B com a área de 1789m2 (formado pelas letras “A”, “B”, “C”, “D”, “E”, “F”, “G”, “H”, “I”, “J” e “L”); que o prédio dos Réus tem as características constantes desse levantamento, correspondendo ao polígono da área A com a área de 5.109m2 (formado pelas letras “L”, “M”, “N”, “G”, “H”, “I”, “J” e “L”); que o aludido prédio se encontra registado a seu favor, nele praticando, desde que o adquiriu até ao dia de hoje, portanto, há mais de um ano e um dia, os mais variados actos possessórios, de forma pública, pacífica, de boa-fé, de forma contínua e na convicção de exercer um direito legítimo próprio de quem é dono, pelo que sempre teria adquirido a respectiva propriedade por usucapião.

Com estes fundamentos, pede:

a) Que seja declarado que o Autor é dono e legítimo possuidor, do prédio identificado no artigo 9º desta p.i., com as características (localização, área, configuração, confrontações, etc.) aí descritas;

b) Que os Réus sejam condenados a reconhecer que o Autor é dono e legítimo possuidor do prédio identificado no artigo 9º desta p.i., com as características (localização, área, configuração, confrontações, etc.) aí descritas;

Os Réus contestaram, invocando, além do mais, a excepção de caso julgado.

Alegaram, para o efeito, que correu termos a acção nº 728/14.8TBPMS entre as mesmas partes e onde estavam em causa os mesmos prédios, pretendendo os ora Autores, por via da presente acção, que lhes seja reconhecido o direito de propriedade sobre uma parcela de terreno que, por decisão transitada em julgado proferida naquela acção, foi reconhecida como pertencendo ao prédio dos agora Réus.

O Autor replicou, negando a existência da referida excepção e dizendo que a questão a decidir nos presentes autos, nada tem a ver com os factos e matéria decidida na anterior acção.

Findos os articulados, foi proferido despacho que, apreciando o mérito da causa, decidiu nos seguintes termos:

…considerando os efeitos projetados pela autoridade do caso julgado formado na Ação de Processo Sumário n.º 728/14.8TBPMS deste Juízo Local Cível e, na parte sobrante, a ausência de fundamentos que suportem as pretensões das partes:

A) Julga-se a ação improcedente, absolvendo-se os réus do pedido.

B) Julga-se a reconvenção improcedente, absolvendo-se o autor do pedido reconvencional.

C) Condena-se o autor como litigante de má-fé:

a) em multa correspondente a 25 (vinte e cinco) Unidades de Conta;

b) em indemnização a favor dos réus contestantes, relegando-se a fixação do respetivo quantitativo para momento posterior”.

Discordando dessa decisão, o Autor veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…)

Os Recorridos (…)vieram apresentar contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

(…)

O Ministério Público – em representação dos ausentes N (…) e A (…)  – apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

(…)


/////

II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se a sentença recorrida padece das nulidades que lhe são imputadas pelo Apelante;

• Analisar os efeitos do caso julgado formado com a decisão proferida no âmbito do processo nº 728/14.8TBPMS com vista a saber se a autoridade desse caso julgado impõe (ou não) a improcedência da pretensão formulada pelo Autor na presente acção;

• Saber se estão reunidos os pressupostos necessários para que o Autor/Apelante possa ser condenado por litigância de má-fe;

• Saber se a sentença recorrida incorreu em violação das normas constitucionais que são invocadas pelo Apelante.


/////

III.

Apreciemos, então, as questões suscitadas no recurso.

Nulidade da sentença

Sustenta o Apelante que a sentença recorrida está ferida de nulidade nos termos das alíneas b), c) e d) do artigo 615º do CPC.

Vejamos se assim é.

A sentença é nula nos termos do artigo 615º, nº1, alínea b), do CPC quando “Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.

Como se depreende da letra da lei e conforme tem sido entendido – sem divergências – pela doutrina e jurisprudência, só a falta absoluta de fundamentação (seja ao nível da indicação dos factos em que assenta a decisão, seja ao nível da argumentação jurídica com a indicação e interpretação, se necessária, das normas aplicáveis) pode determinar a nulidade da sentença. Isso mesmo já dizia o Professor Alberto dos Reis quando afirmava o seguinte:[1], «O que a lei considera causa de nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou a mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz a nulidade» e isso mesmo tem sido considerado, de forma generalizada, pela nossa jurisprudência[2].

Ora, a decisão recorrida contém ampla e extensão fundamentação que permite ter a exacta e clara percepção dos argumentos (de facto e de direito) que conduziram à decisão.

É certo que a decisão recorrida não enunciou, de forma autónoma, os factos que julgava provados (em face dos elementos que já constavam dos autos), ainda que, ao longo da exposição dos fundamentos da decisão, vá referindo e enunciando tais factos.

Pensamos que tal não será suficiente para determinar a nulidade da sentença, uma vez que, conforme dissemos, tal vício apenas ocorre quando existe falta absoluta de fundamentação.

De qualquer forma, suprindo esse vício, faremos de seguida a enunciação dos factos que, com relevância para a apreciação do recurso, resultam provados em face dos elementos que constam dos autos. Refira-se que, ainda que se considerasse que, por via daquela circunstância, a sentença recorrida estava ferida de nulidade, sempre se impunha, nos termos do artigo 665º do CPC, a apreciação do objecto do recurso dada a circunstância de constarem dos autos todos os elementos que, para tal, são relevantes e, portanto, sempre se deveria proceder, em substituição do tribunal recorrido, à enunciação daqueles factos.

Esclareça-se que, além da falta de enunciação desses factos, não detectamos na sentença recorrida qualquer outra falha que possa ser configurada como “falta de fundamentação” ou “falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que conduziram à decisão”.

 

A sentença é nula, nos termos da alínea c), quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

Tal nulidade apenas se configura quando existe uma contradição entre os fundamentos e a decisão – ou seja, quando os fundamentos invocados conduzem, logicamente, a uma decisão diferente daquela que ali foi proferida, de tal forma que seja possível afirmar a existência de um vício ou erro lógico no raciocínio do julgador – ou quando ocorra qualquer ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

Não conseguimos, sequer, perceber quais são as concretas contradições, ambiguidades ou obscuridades que o Apelante encontra na decisão recorrida. De qualquer forma, parece-nos evidente que nenhuma dessas situações ocorre na decisão recorrida, uma vez que os fundamentos que nela são invocados estão em perfeita sintonia com a decisão que nela veio a ficar vertida e tão pouco se detecta a existência de qualquer outra ambiguidade que torne a decisão ininteligível (a decisão é clara).

A sentença será nula, nos termos do art. 615 º nº 1 al. d) do C.P.C, quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Tal nulidade está directamente relacionada com o dever que é imposto ao juiz – cfr. art. 608º nº 2 do citado diploma – de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação e de não poder ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras, sendo certo que é a violação deste dever que acarreta a sobredita nulidade da sentença.

Ora, também temos como certo que a sentença recorrida não incorreu em qualquer vício dessa natureza.

A sentença recorrida analisou a pretensão formulada pelo Autor, julgando-a improcedente por força dos efeitos da autoridade do caso julgado formado pela decisão proferida no âmbito de uma acção que havia corrido termos em momento anterior. Naturalmente que, ao considerar que a autoridade do caso julgado impunha, só por si, a improcedência da pretensão formulada, o juiz não tinha que analisar os fundamentos/questões que haviam sido invocados para a apoiar, uma vez que a apreciação desses fundamentos estava prejudicada e era totalmente inútil. Poder-se-á, naturalmente, questionar – e é isso que o Apelante vem fazer com o presente recurso – se a decisão está correcta, mas isso é questão que não interfere com a validade formal da sentença. Caso se venha a considerar que a autoridade do caso julgado não impunha a improcedência da pretensão formulada pelo Autor, impor-se-á, naturalmente, apreciar os fundamentos dessa pretensão e as demais questões que haviam sido colocadas; mas, à luz da perspectiva do julgador e tendo em conta a decisão que veio a ser proferida, essas questões não tinham que ser apreciadas e, portanto, não está configurado qualquer vício formal da sentença que determine a sua nulidade.

Não ocorre, portanto, qualquer nulidade da sentença.

Matéria de facto provada

Com relevância para a apreciação do objecto do recurso, resultam dos autos os seguintes factos:

1. Correu termos na Comarca de Leiria – Instância Local de Porto de Mós, Secção Cível, J1, sob o nº 728/14.8TBPMS (inicialmente com o nº 239/94), uma acção instaurada – no ano de 1994 – por A (…) e mulher M (…)  contra J (…) e mulher L (…) onde os Autores pediam designadamente que os Réus fossem condenados a reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre um prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 2604 e da parcela de terreno – que fazia parte integrante desse prédio – com cerca de 350m2 (na réplica alteraram essa área para 280m2) em forma de triângulo em que a base são 9,75m e a altura de 70 metros.

2. Alegaram, para fundamentar essa pretensão: que esse prédio lhes havia sido doado pela mãe do Autor marido; que o haviam adquirido por usucapião por força da posse que sobre ele vinham exercendo há mais de 40 anos; que os Réus eram proprietários de um prédio confinante; que a linha divisória desses prédios sempre foi em linha recta e que os Réus, ao construir um armazém no seu prédio, obliquaram essa construção no sentido do prédio dos Autores e ocuparam a faixa de terreno acima mencionada situada na zona mais a Norte do prédio, diminuindo em 9,75metros a “frente de estrada” do prédio dos Autores e aumentando, na mesma medida, a “frente de estrada” do prédio dos Réus.

3. Os ali Réus contestaram essa acção, alegando, em síntese, que essa parcela de terreno fazia parte do seu prédio cuja propriedade haviam adquirido por escritura pública de compra e venda de 22/07/1975 e que sempre teriam adquirido por usucapião

4. Por sentença proferida no âmbito desses autos em 01/08/2003, confirmada pelo Tribunal da Relação e transitada em julgado em 09/02/2005, decidiu-se:

Condenar J (…) e mulher, L (…) a reconhecerem o direito de propriedade de M (…) e dos herdeiros do falecido marido desta, A (..:) relativo ao prédio inscrito na matriz rústica da freguesia de (...) , sob artigo 2.604, composto de pinhal com mato com a área de 3.600 m, que confronta a Norte com estrada nacional, a Sul com (…), a Nascente com (…) e a Poente com (…), aqui se incluindo uma parcela de terreno (com a área de 124 m2, em forma de triângulo, em que a base são 5,04 metros e a altura, considerando o lado poente da construção, de 46,38 metros) ocupada com uma construção e com a zona de acesso à mesma (que na parte que confronta com a estrada nacional tem a extensão de 6,65 metros);

Condenar J (…)e mulher, L (…) a absterem-se de quaisquer actos susceptíveis de pôr em causa ou perturbar o normal exercício do direito de propriedade sobre tal prédio de M (…) e dos herdeiros do falecido marido desta, A (…);

Condenar J (…) e mulher, L (…) a demolirem, à sua conta, a parte da construção levada a cabo no prédio dos autores, bem como a limparem e retirarem da parcela de terreno referida em a) todos os materiais ou objectos ali existentes, restituindo aos autores tal parcela;

Condenar J (…) e mulher, L (…) a pagar a M (…) e aos herdeiros do falecido marido desta, A (…), a quantia que se liquidar em execução de sentença, a título de indemnização pelos danos sofridos pelos autores em consequência do corte de pinheiros efectuado na zona ocupada com a construção e na zona adjacente à mesma do lado da estrada, e do choque e do desgosto que tiveram ao verem o seu prédio invadido por aquela construção.

5. Entre outros, consideraram-se aí provados os seguintes factos:

1) Está inscrito na matriz predial rústica da freguesia de (...) , sob artigo 2.604, um pinhal com mato com a área de 3.600 m, que confronta a Norte com estrada nacional, a Sul com (..), a Nascente com (…) e a Poente com (…), sendo titular do rendimento A (…);

2) Por escritura de compra e venda de 22 de Julho de 1975…. F (…)e mulher M (…) declararam vender e J (…) declarou comprar um pinhal com mato sito em (...) , a confrontar do Norte com (…), do Nascente com (…), do Sul com estrada pública e do Poente com caminho público, o qual está descrito na Conservatória do Registo Predial da (...) sob o nº 01329/160594 da freguesia de (...) , com a área de 1.310 m2, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 2.603, estando registada a aquisição a favor de J (…) pela inscrição G-1, Ap.18/160594;

15) e 6) Os réus iniciaram, no seu prédio, a construção de um edifício destinado a armazém

16) Tal construção ocupava uma faixa de terreno pertencente ao prédio dos autores, com a área de 124 m2, em forma de triângulo, em que a base são 5,04 metros e a altura, considerando o lado poente da construção, de 46,38 metros;

17) A referida construção obliquou no sentido do prédio dos autores, acabando por ocupar a parcela de terreno referida em 16) que se situa na zona mais a norte do prédio dos autores;

18) A ocupação do prédio dos autores foi feita, em parte, com a construção e, em parte, com a zona de acesso à mesma, na parte que confronta com a estrada nacional e que os réus (tendo como referência a data da propositura da acção) usaram como estaleiro de construção;

19) A diminuição de 6,65 metros da frente da estrada do prédio dos autores reduz o seu valor global, por a zona de confluência com a estrada nacional ser um factor determinante de tal valor.

25) A propriedade dos autores tem o comprimento de 191,72 metros na sua estrema poente e de 175,30 metros na sua estrema nascente, a largura de 36,39 metros na estrema sul e de 32,94 metros na estrema norte;

26) A propriedade dos réus, juntamente com as de J (…) e de A (…) tem o comprimento de 175,30 metros na sua estrema poente e de 157,50 metros na sua estrema nascente, a largura de 38,83 metros na estrema sul e de 42 metros na estrema norte.

6. A referida acção foi precedida de procedimento cautelar instaurado – em 16/08/1994 – por A (…) e M (…) contra o aqui Autor e sua mulher onde se pedia o embargo judicial da referida construção (com a alegação de que ela ocupava o prédio dos Requerentes) embargo que foi determinado por decisão proferida em 26/08/1994 e que veio a ser confirmado não obstante o recurso que o aqui Autor e mulher (ali Requeridos) interpuseram e não obstante os embargos que deduziram.

7. Em Julho de 2005, os ali Réus (o aqui Autor e a sua mulher) interpuseram recurso extraordinário de revisão relativamente à decisão proferida na referida acção, pedindo a revogação do Acórdão que havia sido proferido e a sua absolvição dos pedidos formulados, pretensão que foi contestada pelos ali Autores e que veio a ser julgada improcedente por Acórdão proferido em 13/02/2007.

8. Entretanto, em Setembro de 2005, os ali Autores instauraram processo de execução tendo em vista a execução da prestação a que os Réus haviam sido condenados (demolir a construção que haviam efectuado na parte em que ocupava o prédio dos Autores e proceder à respectiva limpeza).

9. Na presente acção, o Autor J (…) pede que seja declarado – e os Réus sejam condenados a reconhecer – que o Autor é dono e legítimo possuidor, do prédio inscrito na matriz sob o artigo 2603 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 1329, com as características (localização, área, configuração, confrontações, etc.) constantes do levantamento topográfico que junta aos autos, correspondendo ao polígono da área B com a área de 1789m2 (formado pelas letras “A”, “B”, “C”, “D”, “E”, “F”, “G”, “H”, “I”, “J” e “L”).

10. No aludido levantamento (ora junto pelo Autor), o prédio da herança Ré (ali designado por “A”) apresenta, na sua estrema norte, a largura de sensivelmente 27 metros e o prédio do Autor (ali designado por “B”) apresenta, na mesma estrema, a largura de sensivelmente 15 metros (tendo em conta a escala a que se encontra elaborado o referido levantamento).

11. Essa linha divisória dos prédios coincide sensivelmente com a linha que era sustentada pelo aqui Autor no âmbito da acção supra mencionada, sendo certo que no croqui que ali juntou aos autos aquando da apresentação dos quesitos com vista à realização de perícia indicou as larguras de 15,40m e 26,40m como correspondendo às larguras (na estrema norte) do seu prédio e do prédio da aqui Ré.

Caso Julgado

Enunciados os factos com relevância para a decisão, apreciemos as demais questões suscitadas.

Perante os aludidos factos, pensamos ser claro que, por via da pretensão formulada nos presentes autos, o aqui Autor pretende que lhe seja reconhecido o direito de propriedade sobre a faixa de terreno que estava em causa na acção que correu termos sob o nº 728/14.8TBPMS (ou, pelo menos, uma parte dela) e relativamente à qual se decidiu (por sentença proferida nesses autos e já transitada em julgado) condenar o aqui Autor e a sua mulher a reconhecer o direito de propriedade de M (…) e dos herdeiros do seu falecido marido A (…).

Com efeito, a aludida faixa de terreno – relativamente à qual foi reconhecido, na aludida sentença, o direito de propriedade M (…) e dos herdeiros do seu falecido marido A (…) (Réus na presente acção) – correspondia (como ali se disse expressamente) a uma parcela de terreno (com a área de 124 m2, em forma de triângulo, em que a base são 5,04 metros e a altura, considerando o lado poente da construção, de 46,38 metros) ocupada com uma construção e com a zona de acesso à mesma (que na parte que confronta com a estrada nacional tem a extensão de 6,65 metros), ali se considerando – conforme resulta da matéria de facto que aí se se julgou provada – que essa faixa de terreno fazia parte do prédio dos ali Autores (aqui Réus) inscrito na matriz sob o artigo 2604 e havia sido ocupada pelos ali Réus (o aqui Autor e sua mulher) com uma construção que haviam efectuado no seu prédio (inscrito na matriz sob o artigo 2603) e com uma zona de acesso à mesma na parte em que confronta com a estrada nacional.

Na presente acção, o Autor pretende ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre o prédio inscrito na matriz sob o artigo 2603 com as características (localização, forma, área, etc) constantes do levantamento topográfico que junta aos autos, correspondendo ao polígono da área B com a área de 1789m2 (formado pelas letras “A”, “B”, “C”, “D”, “E”, “F”, “G”, “H”, “I”, “J” e “L”) e não há dúvida que esse polígono inclui área que está integrada na parcela de terreno com a área de 124m2 sobre a qual incidiu a decisão proferida na acção nº 728/14.8TBPMS. Para atestar e comprovar esse facto bastará ter em conta que, de acordo com o referido levantamento, o prédio da herança Ré (ali designado por “A”) apresenta, na sua estrema norte, a largura de sensivelmente 27 metros e o prédio do Autor (ali designado por “B”) apresenta, na mesma estrema, a largura de sensivelmente 15 metros, quando é certo que na acção supra referida se julgou provado que a propriedade dos ali Autores (aqui Réus) tinha, na sua estrema norte, a largura de 34,94 metros.

É certo, portanto, que os limites do prédio que o Autor aqui pretende ver reconhecidos abarcam a área (ou pelo menos parte dela) que a sentença proferida na acção supra identificada (já transitada em julgado) reconheceu pertencer ao prédio dos ali Autores (aqui Réus).

Nessas circunstâncias, a decisão recorrida, baseando-se na autoridade do caso julgado formado na referida acção e na ausência de fundamentos que suportassem a pretensão do Autor na parte não abrangida pelo caso julgado, julgou a acção improcedente e absolveu os Réus do pedido.

Discordando dessa decisão, o Autor/Apelante vem interpor o presente recurso, sustentando, em resumo, que não se verifica a excepção de caso julgado porquanto não existe identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir como seria necessário – de acordo com o disposto nos artigos 580º e 581º do CPC – para que se pudesse falar em tal excepção.

Em primeiro lugar, cabe esclarecer que, ao contrário do que diz o Apelante, a decisão recorrida não julgou procedente a excepção de caso julgado; se o tivesse feito, teria absolvido os Réus da instância em conformidade com o disposto nos artigos 576º, nº 2 e 577º, alínea i), do CPC e não foi isso que sucedeu, sucedendo apenas que, por efeito da autoridade do caso julgado formado pela decisão proferida em acção anterior, a decisão recorrida julgou a acção improcedente e absolveu os Réus do pedido. E, no nosso entender, fê-lo correctamente.

Vejamos.

Dispõe o artigo 619º, nº 1, do CPC que “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º”.

A citada disposição legal reporta-se e delimita os contornos do caso julgado material, ou seja, o caso julgado que se forma relativamente à decisão (sentença ou saneador) que, decidindo do mérito da causa, define a relação ou situação jurídica deduzida em juízo (a relação material controvertida), determinando que tal decisão tem força obrigatória dentro e fora do processo (dentro dos limites estabelecidos nos arts. 580º e 581º) e impedindo, dessa forma, que a mesma relação material venha a ser definida em moldes diferentes pelo tribunal ou qualquer outra autoridade. Segundo Manuel de Andrade[3], o caso julgado material “consiste em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão”.

Conforme resulta do disposto na norma citada, o caso julgado material vigora dentro dos limites estabelecidos nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sendo, portanto, delimitado através dos elementos que identificam a relação jurídica definida na sentença (as partes, o pedido e a causa de pedir) e é a definição dessa concreta relação jurídica (delimitada pelos referidos elementos) que se impõe por força da autoridade do caso julgado; significa isso, portanto, que a concreta relação material controvertida que foi objecto da decisão não pode voltar a ser discutida entre as mesmas partes e não pode vir a ser contrariada – antes deverá ser respeitada – por qualquer outra decisão (importando notar que, em conformidade com o disposto no artigo 625º, nº 1, do CPC, havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, há-se cumprir-se a que passou em julgado em primeiro lugar).

Mas o caso julgado assim formado e delimitado pode impor-se e produzir os seus efeitos por duas vias: pode impor-se, na sua vertente negativa, por via da excepção de caso julgado no sentido de impedir a reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada e pode impor-se, na sua vertente positiva, por via da autoridade do caso julgado, vinculando o tribunal e as partes a acatar o que aí ficou definido em quaisquer outras decisões que venham a ser proferidas.

Poder-se-á dizer, em suma, que quando o objecto da segunda acção é idêntico e coincide com o objecto da decisão proferida na primeira acção, o caso julgado opera por via de excepção (a excepção de caso julgado), impedindo o Tribunal de proferir nova decisão sobre a matéria (nesse caso, o Tribunal limitar-se-á a julgar procedente a excepção, abstendo-se de apreciar o mérito da causa que já foi definido por anterior decisão); o caso julgado impor-se-á por via da sua autoridade quando a concreta relação ou situação jurídica que foi definida na primeira decisão não coincide com o objecto da segunda acção mas constitui pressuposto ou condição da definição da relação ou situação jurídica que nesta é necessário regular e definir (neste caso, o Tribunal apreciará e definirá a concreta relação ou situação jurídica que corresponde ao objecto da acção, respeitando, contudo, nessa definição ou regulação, sem nova apreciação ou discussão, os termos em que foi definida a relação ou situação que foi objecto da primeira decisão).

Conforme se refere no Acórdão do STJ de 26/02/2019 (processo nº 4043/10.8TBVLG.P1.S1)[4]Esta distinção tem justamente por pressuposto que, na autoridade de caso julgado, existe uma diversidade entre os objectos dos dois processos e na excepção uma identidade entre esses objectos. Naquele caso, o objecto processual decidido na primeira acção surge como condição para apreciação do objecto processual da segunda acção; neste caso, o objecto processual da primeira acção é repetido na segunda.

Na excepção, a repetição deve ser impedida, uma vez que só iria reproduzir inutilmente a decisão anterior ou decidir diversamente, contradizendo-a.

Na autoridade, há uma conexão ou dependência entre o objecto da segunda acção e o objecto definido na primeira acção, sem que aquele se esgote neste. Aqui, impõe-se que essas questões comuns não sejam decididas de forma diferente, devendo a decisão da segunda acção acatar o que foi decidido na primeira, como pressuposto indiscutível”.

Daí que se considere que, ao contrário do que acontece com a excepção de caso julgado (cujo funcionamento pressupõe a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir – cfr. artigo 580º, nº 1, do CPC), a invocação e o funcionamento da autoridade do caso julgado dispensam a identidade de pedido e de causa de pedir[5].

Isto não significa, porém, que a autoridade do caso julgado possa valer fora dos limites definidos pelos sujeitos, pelo pedido e pela causa de pedir, sendo certo que, conforme resulta do disposto no artigo 619º do CPC, é apenas dentro desses limites que a decisão adquire a força de caso julgado. Aquilo que se impõe por força da autoridade do caso julgado é a definição – feita por decisão transitada em julgado – da concreta relação jurídica que aí foi delimitada pelos sujeitos, pelo pedido e pela causa de pedir. Mas a definição dessa concreta relação jurídica – assim delimitada – impõe-se e é vinculativa para os respectivos sujeitos no âmbito de qualquer outro litígio que entre eles venha a ocorrer e que tenha como pressuposto ou condição aquela relação e por isso se afirma que o funcionamento da autoridade do caso julgado não exige a identidade de pedido e causa de pedir; tal autoridade pode, de facto, impor-se no âmbito de acção posterior com pedido e causa de pedir diversas nas circunstâncias supra mencionadas, vinculando as partes e o Tribunal e evitando, dessa forma, que a relação ou situação jurídica já definida por decisão transitada em julgado seja novamente apreciada para o efeito de decidir o objecto da segunda acção.

Feitas estas considerações, analisemos a situação dos autos.

Tal como referimos supra, a sentença (transitada em julgado) proferida na acção com o nº nº 728/14.8TBPMS condenou o aqui Autor e a sua mulher a reconhecer o direito de propriedade de M (…) e dos herdeiros do seu falecido marido A (…) relativamente a uma parcela de terreno (com a área de 124 m2, em forma de triângulo, em que a base são 5,04 metros e a altura, considerando o lado poente da construção, de 46,38 metros) ocupada com uma construção e com a zona de acesso à mesma (que na parte que confronta com a estrada nacional tem a extensão de 6,65 metros), ali se considerando – conforme resulta da matéria de facto que aí se se julgou provada – que essa faixa de terreno fazia parte do prédio dos ali Autores (aqui Réus) inscrito na matriz sob o artigo 2604 e havia sido ocupada pelos ali Réus (o aqui Autor e sua mulher) com uma construção que haviam efectuado no seu prédio (inscrito na matriz sob o artigo 2603) e com uma zona de acesso à mesma na parte em que confronta com a estrada nacional.

Ficou, portanto, definido entre as partes naquela acção que o direito de propriedade sobre a referida parcela de terreno pertencia aos ali Autores, ficando absorvidos pelo caso julgado formado não só os meios de defesa que os ali Réus invocaram mas também todos os meios de defesa que pudessem ter invocado e que ficam precludidos por efeito do disposto no artigo 573º do CPC (artigo 489º do anterior CPC). Isso mesmo afirma Manuel Domingues de Andrade[6] no seguinte excerto: Se a sentença reconheceu no todo ou em parte o direito do Autor, ficam precludidos todos os meios de defesa do Réu, mesmo os que ele não chegou a deduzir, e até os que ele poderia ter deduzido com base num direito seu…Neste sentido, pelo menos, vale a máxima segundo a qual o caso julgado «cobre o deduzido e o dedutível»…”. No mesmo sentido se pronunciam Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[7], quando afirmam que “…em relação à pretensão formulada pelo autor e eventualmente considerada procedente na sentença, ficam precludidos, quer na acção, quer fora dela, todos os meios de defesa que o réu tenha invocado ou pudesse ter invocado contra ela”, bem como Castro Mendes[8] e, entre outros, o Acórdão do STJ de 29/05/2014 supra citado.

Sustenta, no entanto, o Apelante que os sujeitos em ambas as acções não são os mesmos e que, como tal, não poderá aqui operar o caso julgado.

Não lhe assiste, porém, qualquer razão.

A decisão proferida na anterior acção condenou J (…) e mulher, L (…) a reconhecerem o direito de propriedade de M (…) e dos herdeiros do falecido marido desta, A (…). São esses, portanto, os sujeitos da relação material que foi regulada e definida pela aludida decisão já transitada em julgado. Ora, sendo certo que na presente acção figura como autor J (…) e figuram como réus os herdeiros de A (…)e de M (…), parece não haver dúvidas de que as partes na presente acção também figuravam como partes na anterior acção.

Anote-se, para o efeito, nas palavras de Manual de Andrade[9] quando afirma: “A identidade das partes para tal efeito não é a simples identidade física. Tem lugar quando as partes nos dois processos sejam «as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica»….E sê-lo-ão, fundamentalmente, quando os litigantes no novo processo forem as próprias pessoas que pleitearam no outro, ou sucessores delas (entre vivos ou mortis causa), na relação controvertida: herdeiros, legatários, donatários, compradores, cessionários. As partes no novo processo serão pois idênticas às do anterior quando sejam pessoas que na relação ventilada ocupem a mesma posição que, ao tempo, estas ocupavam”.

No mesmo sentido, afirmam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[10] que “a identidade dos sujeitos relevante para o caso julgado não é tanto a simples identidade física, como a identidade jurídica…Quer isto praticamente significar que o caso julgado não se forma apenas em relação às pessoas singulares ou colectivas (lato sensu) que intervieram como partes no processo, mas também relativamente àquelas que, por sucessão mortis causa ou por transmissão entre vivos (compra, doação, permuta, transacção, etc), assumiram a posição jurídica de quem foi parte no processo, quer a substituição se tenha operado no decurso da acção (…) quer se tenha verificado só depois de proferida a sentença”.

Ora, à luz dessas considerações, é evidente que o caso julgado formado pela aludida decisão vincula e aproveita aos aqui Réus uma vez que figuravam como partes na acção onde a decisão foi proferida ou são sucessores (herdeiros) de quem nela figurava como parte. O mesmo acontece com o aqui Autor que também figurava como parte na anterior acção.

As partes na presente acção estão, portanto, vinculadas aos efeitos do caso julgado emergente da decisão proferida na anterior acção e isso significa, à luz das considerações já efectuadas, que, tendo sido ali decidido que o direito de propriedade sobre a referida parcela de terreno pertencia aos ali Autores (aqui Réus), não poderá voltar a discutir-se nos presentes autos se tal direito pertence ao aqui Autor (ali Réu) com base em factos – alegadamente constitutivos desse direito – que podiam ter sido invocados na anterior acção por já terem então ocorrido.

Para fundamentar a pretensão que aqui veio deduzir, o Autor invoca a presunção decorrente do registo e sustenta ter adquirido a propriedade do prédio por usucapião, alegando deter a posse correspondente a esse direito desde a data em que o adquiriu, ou seja, desde 22/07/1975 (factos que, aliás, também já havia invocado na contestação da anterior acção).

Ora, a presunção decorrente do registo é totalmente inócua para efeitos de apuramento dos limites do prédio e, portanto, além de já ter sido invocada na anterior acção, nunca teria, só por si, qualquer idoneidade para permitir a conclusão de que o prédio (de que o Autor se presume proprietário) tem os limites que aqui pretende ver reconhecidos.

E, tendo em conta a decisão proferida na acção anterior e o efeito vinculativo do caso julgado formado por tal decisão, a aquisição, por parte do Autor, do direito de propriedade sobre a parcela de terreno que ali estava em causa apenas poderia assentar em factos que não poderiam ter sido aí invocados. Daí que, e tendo em conta o disposto nos artigos 326º, 327º e 1292º do CC, a posse que poderia agora relevar para efeitos de reconhecer a aquisição, por parte do Autor, do direito de propriedade sobre essa faixa de terreno apenas poderia ser a posse exercida após o trânsito em julgado daquela decisão e essa posse – ainda que viesse a ficar demonstrada – nunca seria suficiente para aquisição do direito por usucapião (cfr. artigo 1296º do CC), tanto mais que essa posse – nos termos em que vem alegada – dificilmente poderia ser considerada como posse de boa-fé, dada a circunstância de ter corrido acção onde havia sido decidido que o direito de propriedade pertencia aos ali Réus e dada a circunstância de, na sequência dessa decisão, ter persistido o litigio judicial entre as partes com referência à aludida parcela de terreno com a interposição (pelo ali Réu) de recurso extraordinário de revisão e com a interposição (pelos ali Autores) de processo de execução com vista a obter o cumprimento da decisão que havia sido proferida.

É certo, portanto, em face do exposto, que nunca poderia ser reconhecido ao aqui Autor o direito de propriedade sobre a aludida faixa de terreno.

É certo que a invocação da presunção decorrente do registo e a alegação dos factos constitutivos da aquisição poderiam justificar e fundamentar o reconhecimento do direito de propriedade do Autor sobre o prédio inscrito na matriz sob o artigo 2603 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 1329. Mas, como bem se diz na decisão recorrida, o Autor não tem, em relação a essa pretensão, qualquer interesse relevante que esteja carecido de tutela jurisdicional, sendo certo que não há notícia – e nada foi alegado nesse sentido – de que os Réus tenham, de algum modo, questionado, violado ou ameaçado lesar esse direito. Mas, além do mais, pensamos ser claro que não é essa a pretensão do Autor; o que o Autor pede é que lhe seja reconhecido o direito de propriedade sobre o prédio com determinada área, com determinada configuração e com determinados limites (por referência a determinados pontos do levantamento topográfico que juntou aos autos) e tal pretensão – assim formulada – não pode proceder porque essa área, configuração e limites incluem, conforme referimos, uma parcela de terreno relativamente à qual não lhe poderá ser reconhecido o direito de propriedade pelas razões supra apontadas.

Confirma-se, portanto, a decisão recorrida que julgou improcedente a pretensão do Autor/Apelante.

Litigância de má-fé

O Apelante insurge-se também contra a decisão que o condenou por litigância de má-fé, dizendo, em resumo: que não deduziu pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, sendo certo que os factos que alegou são verdadeiros e estão fundamentados em escritura pública, na partilha por divórcio, no facto de o prédio se encontrar registado a seu favor na Conservatória do Registo Predial e nos actos de posse que exerceu sobre o prédio; que se limitou a exercer um direito que se encontra constitucionalmente consagrado, que é a defesa do seu direito de propriedade e que está convicto da sua razão, mas ainda que não se venha a provar a sua razão não haverá razões para concluir que litiga de má-fé.

A sentença recorrida justificou a condenação por litigância de má-fé do Autor dizendo que este, deliberada e conscientemente, instaurou a presente acção deduzindo pretensão cuja falta de fundamento não ignorava, alterado a verdade dos factos e omitido factos relevantes para a decisão da causa e fazendo do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal.

Argumenta, designadamente:

- Que o Autor omitiu deliberadamente qualquer referência à acção que havia corrido termos anteriormente, formulando um pedido que visa contradizer a decisão judicial definitiva que havia sido proferida nessa acção;

- Que, ao descrever a causa de pedir e enunciar um pedido referido a todo o prédio, o Autor dissimula e encobre a sua verdadeira pretensão, que se restringe a ver reconhecido um direito de propriedade sobre uma determinada e definida parcela de terreno (a que foi judicialmente condenado a reconhecer pertencer aos réus);

- Que, ao alegar – com referência a essa parcela – diversos actos de posse que teria praticado, o Autor alega factos falsos e incompatíveis com a circunstância de ter sido condenado a reconhecer o direito de propriedade dos Réus e a abster-se de praticar quaisquer actos sobre a aludida parcela e com a circunstância de ter sido condenado a limpar a parcela de todos os materiais ou objectos que ali tinha colocado e de ter sido condenado a indemnizar os aqui Réus pelos danos sofridos em consequência do corte de pinheiros que efectuou na zona ocupada com a construção e na zona adjacente à mesma do lado da estrada;

- Que é, no mínimo, ofensivo do princípio da cooperação e dos deveres de boa-fé e de lealdade processuais e revelador da litigância de má-fé do Autor vir alegar, para efeito de aquisição de um terreno por usucapião que, de boa-fé e de forma pública e pacífica, aí edificou uma construção, quando, em procedimento cautelar de embargo de obra nova foi determinada a sua imediata suspensão no que se refere à parte que ocupa o terreno dos aqui Réus e foram julgados improcedentes o recurso que interpôs dessa decisão, bem como os embargos ao embargo de obra nova que instaurou e quando é certo que se julgou provado na acção declarativa subsequente que essa construção ocupou uma faixa de terreno pertencente ao prédio dos agora Réus, tendo sido condenado a proceder à sua demolição, demolição que veio a ser efectuada em processo de execução para prestação de facto para cumprimento da sentença.

Analisando a questão, pensamos ser evidente a falta de razão do Apelante por ser (também) evidente a sua litigância de má-fé.

Os comportamentos que relevam para efeitos de litigância de má-fé são aqueles que se encontram previstos no artigo 542º, nº 2, do C.P.C. onde se determina que se considera litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; tiver praticado omissão grave do dever de colaboração ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Refira-se que o que está em causa na litigância de má-fé não é o facto de a parte ter ou não razão ou o facto de conseguir (ou não) fazer prova dos factos que alegou; o que está em causa é um determinado comportamento processual que, correspondendo a um incumprimento doloso ou gravemente negligente dos deveres de cooperação e de boa-fé processual, a que as partes estão submetidas – deveres que se encontravam previstos nos arts. 7º e 8º - , é censurável e reprovável por atentar contra o respeito pelos Tribunais e prejudicar a acção da justiça.

Ora, pensamos ser claro que o Autor/Apelante violou, de forma dolosa ou gravemente diligente, esses deveres, mediante a adopção de comportamento que se inserem no âmbito de previsão do citado artigo 542º, nº 2.

Pensamos não existir qualquer dúvida – tendo em conta as considerações supra efectuadas – que aquilo que o Autor/Apelante pretendia obter com a presente acção era o reconhecimento do seu direito de propriedade relativamente a uma parcela de terreno que havia sido objecto de litígio judicial entre as partes e que veio a culminar com o reconhecimento do direito de propriedade dos aqui Réus sobre essa parcela de terreno; depois de ter tentado, sem sucesso, contrariar aquela decisão por via de recurso ordinário e por via de recurso extraordinário de revisão, o Autor pretendia agora – totalmente ao arrepio das normas jurídicas vigentes – reverter e contrariar aquela decisão já transitada em julgado. Ora, o Autor não podia ignorar que essa pretensão era ilegal e não tinha fundamento na medida em que desrespeitava o caso julgado que se havia formado; na verdade, o Autor estava representado por advogado e ainda que não estivesse, pensamos poder afirmar que é do senso comum e do conhecimento do normal cidadão que as sentenças judiciais transitadas em julgado não são “letra morta” e que, como tal, são vinculativas para as partes nos termos da lei.

É certo, portanto, que o Autor veio formular pretensão que sabia não ter fundamento e, dadas as circunstâncias, se não o fez com dolo, fê-lo pelo menos com negligência grave ou grosseira.  

Mas, além de ter deduzido pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar, o Autor/Apelante também não podia ignorar a falsidade de alguns dos factos que alegou.

O Autor alegou – com referência a toda a área que considerou incluída no seu prédio, onde se inclui a parcela de terreno que já havia sido objecto de litígio e decisão judicial – uma série de actos (designadamente a construção de um armazém e o corte de pinheiros) que teria praticado, de forma ininterrupta, desde a data da aquisição do prédio em 1975 de boa-fé, sem oposição de ninguém e no convencimento de que exerce um direito legítimo. Mas como poderá o Autor afirmar que praticou esses actos sem oposição de ninguém, quando é certo que os Réus reagiram – logo em 1994 – contra esses actos (nomeadamente a construção do armazém e o corte de pinheiros) e quando é certo que veio a ser reconhecido o direito de propriedade dos Réus e o Autor foi condenado a demolir a parte da construção que ocupava aquela parcela de terreno e a limpar e retirar dessa parcela todos os materiais e objectos ali existentes, bem como a indemnizar os Réus (ali Autores) pelos danos sofridos em consequência do corte dos pinheiros? E como poderá o Autor afirmar que, depois de ter sido proferida essa decisão – que, além do mais, também o condenou a abster-se de quaisquer actos susceptíveis de pôr em causa ou perturbar o normal exercício do direito de propriedade dos aqui Réus sobre essa faixa de terreno – e depois de ter sido julgado improcedente o recurso extraordinário de revisão, continuou a praticar aqueles actos de boa-fé e na convicção de que não prejudicava os interesses de ninguém e de que estava a exercer um direito legítimo?

 Diz o Apelante que se limitou a exercer um direito que se encontra constitucionalmente consagrado, que é a defesa do seu direito de propriedade e que está convicto da sua razão.

Mas, salvo o devido respeito, a sua actuação não encontra qualquer apoio na Constituição. O Autor pode até estar convicto da sua razão mas isso não significa que a tenha e não significa que possa defender aquele que julga ser o direito todo o custo e contra a lei, uma vez que a CRP também determina – no seu artigo 205º, nº2 – que as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas. Ora, o litígio entre o Autor e os Réus relativamente ao direito de propriedade sobre a aludida parcela de terreno foi resolvido judicialmente e foi decidido – por sentença transitada em julgado – que esse direito pertencia aos aqui Réus e não ao Autor/Apelante e tal decisão é vinculativa para o Autor, tornando totalmente ilegítima a pretensão que aqui veio exercer em desrespeito pelo caso julgado formado com aquela decisão.

Pensamos, portanto, que o Autor/Apelante litigou, efectivamente, de má-fé e fê-lo, de facto, mediante a adopção de comportamentos especialmente censuráveis e reprováveis, não merecendo qualquer censura a decisão que o condenou por tal litigância.

Alegadas violações da CRP

Diz o Apelante que a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 13º, 20º, 202º, 204º e 205º da Constituição da República Portuguesa.

Fá-lo, no entanto, sem o mínimo fundamento.

O artigo 205º reporta-se à fundamentação das decisões dos tribunais e sobre essa questão já nos pronunciámos, nada mais se impondo acrescentar.

Relativamente ao artigo 204º, diz o Apelante que foi violado pela sentença recorrida “…uma vez que esta norma é tão abrangente, que nem é necessário que os Tribunais apliquem normas que infrinjam a Constituição, basta apenas e tão só, que violem “os princípios nela consignados”, acrescentando que, na verdade, a decisão recorrida viola os princípios consignados na Constituição da República Portuguesa, nomeadamente consignados nos artigos 13º e 20º.

O artigo 13º reporta-se ao princípio da igualdade e dispõe nos seguintes termos:

1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.

2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”.

O artigo 20º reporta-se ao acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e dispõe nos seguintes termos:

1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.

2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.

3. A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça.

4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.

5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos”.

Não vislumbramos, contudo, como e em que termos essas normas e princípios poderiam ter sido violados e o Apelante também não explica.

O Apelante não pretenderá dizer, certamente, que foi prejudicado ou privado de qualquer direito em razão “de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”, porque não há o mais leve indício de uma tal situação e também não poderá dizer que lhe foi negado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses. Na verdade, o Autor interpôs a presente acção (teve, portanto, acesso ao direito para defender aquele que entendia ser o seu direito); sucede que o acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva que são constitucionalmente garantidos não implicavam, obviamente, que tivesse que ser satisfeita a sua pretensão e, no caso, essa pretensão não tinha fundamento.

E, como é evidente, também não assiste razão ao Apelante quando afirma ter sido violado o artigo 202º porque a decisão recorrida não assegurou os seus direitos. Parece, portanto, que, na perspectiva do Apelante, a decisão recorrida, para se conformar com a Constituição, tinha que satisfazer a sua pretensão. Ora, como é evidente não é assim, até porque uma coisa são os direitos e os interesses legalmente protegidos dos cidadãos (que aos tribunais cabe assegurar), outra coisa são os direitos a que as partes se arrogam e que, na verdade, não existem ou não são demonstrados. Ora, no caso, a decisão recorrida limitou-se a concluir que o Autor não tinha o direito a que se arrogava, designadamente, porque já havia sido decidido – por decisão transitada em julgado – que esse direito pertencia aos Réus. Ou seja, a sentença recorrida limitou-se – em conformidade com o citado artigo 202º – a dirimir o conflito entre as partes que era colocado à sua apreciação e decisão e dirimiu esse conflito a favor dos Réus por ter entendido que o Autor não tinha o direito a que se arrogava e a sua pretensão não tinha fundamento. Não vislumbramos como se possa entender que tal decisão violou a citada disposição constitucional.

Não ocorreu, portanto, qualquer violação das normas constitucionais supra citadas.

 

Assim e pelas razões expostas, improcede o recurso e confirma-se a sentença recorrida.


/////

IV.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo do Apelante.
Notifique.

    Coimbra,11 de Junho de 2019.

Catarina Gonçalves ( Relatora)

Ferreira Lopes

Freitas Neto


[1] Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 140.
[2] Neste sentido e entre outros, podem ver-se os Acórdãos do STJ de 18/04/2002 (processo nº 02B737), de 19/12/2006 (processo nº 06B4521), de 21/06/2011 (processo nº 1065/06.7TBESP.P1.S1), de 15/12/2011 (processo nº 2/08.9TTLMG.P1S1) e de 06/07/2017 (processo nº 121/11.4TVLSB.L1.S1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[3] Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 305.
[4] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[5] Vejam-se, entre outros, os Acórdãos do STJ de 29/05/2014 (processo nº 1722/12.9TBBCL.G1.S1), de 07/03/2017 (processo nº 2772/10.5TBGMR-Q.G1.S1) e de 26/02/2019 (processo nº 4043/10.8TBVLG.P1.S1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[6] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 324.
[7] Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 713, nota 2.
[8] Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, págs. 178 a 186.
[9] Ob. cit., págs. 309 e 310.
[10] Ob. cit., pág. 722.