Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
76/18.4PBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
AGRAVAÇÃO
RELAÇÃO FAMILIAR ENTRE A VÍTIMA E O AGENTE DO CRIME ABUSO SEXUAL DE MENORES DEPENDENTES
VÍTIMA CONFIADA AO AGENTE PARA EDUCAÇÃO OU ASSISTÊNCIA
VIOLAÇÃO
CONSTRANGIMENTO
Data do Acordão: 03/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA, PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS. 171.º, 172.º, N.º 1, 164.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEA B), E 177.º, N.º 1, ALÍNEA B), DO CP
Sumário: I – Com a circunstância agravativa de a vítima “se encontrar numa relação familiar” com o agente, prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 177.º do CP (redacção da Lei 59/2007, de 04-09), constitui pretensão do legislador alargar o âmbito da agravação às situações em que entre ambos exista uma proximidade ou intimidade semelhante às dos parentes, retirando o segundo partido da natureza da relação, não obstante por via dela lhe ser mais exigível uma conduta adequada ao direito, condição que aumenta o desvalor da acção, justificando, deste modo, a agravação.

II – Consequentemente, ocorre a dita agravação quando o arguido, casado com a mãe da sua vítima, comete o crime de abuso sexual de crianças p. e p. no artigo 171.º do CP.

III – O elemento típico objectivo, previsto no n.º 1 do artigo 172.º do CP, traduzido em a vítima ter sido confiada ao agente para educação ou assistência, inclui a “relação de facto”, ou seja, aquela que não deriva imediatamente da lei, de decisão judicial e/ou administrativa.

IV – Integram-se nessa relação, inter alia, os casos, com o verificado no caso concreto dos autos, em que o padrasto da vítima lhe prestava, aos mais diversos níveis, assistência, concretizada, nomeadamente, no facto de a tratar como se sua filha fosse, representando-o a menor como sua única referência paternal.

V – O simples dissentimento da vítima, dependendo das vicissitudes de cada caso, pode integrar o tipo objectivo do crime de violação p. e p. no artigo 164.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do CP (versão anterior à da Lei n.º 101/2019, de 06-09), posição que garante apoio na actual redacção do n.º 3 daquele diploma.

VI – Deste modo, ocorre “constrangimento” quando existe manipulação da menor pelo agente, a partir da idade de seis anos de idade da primeira, que se desenvolveu e sedimentou ao longo de um período muito alargado de tempo, até a mesma, já com vinte e um anos, sair de casa. Trata-se de um constrangimento passado e presente, explicável por via da proximidade familiar, própria da filiação e da dependência económica, do cerco que o arguido lhe montou em termos de condicionar o relacionamento próprio de uma criança, de uma adolescente e, por fim, após atingir a maioridade, de uma jovem mulher, originando, continuadamente, na ofendida, consequências físicas e psíquicas determinantes do desenvolvimento de raciocínios “deprimentes”, adensado com o decorrer dos anos.

Decisão Texto Integral:










Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo comum coletivo n.º 76/18.4PBCBR do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Coimbra – JC Criminal – Juiz 3, mediante acusação pública, foram os arguidos A. e B., submetidos a julgamento, sendo então imputada ao primeiro, em autoria material singular e em concurso efetivo, nos termos do disposto nos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 30.º, n.º 1 e 77.º, todos do Código Penal, a prática de 84 (oitenta e quatro) crimes de abuso sexual de crianças agravados, p. e p. pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal; 416 (quatrocentos e dezasseis) crimes de abuso sexual de menor dependente agravados, p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, com referência ao disposto no artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma legal; 312 (trezentos e doze) crimes de coação sexual agravados, p. e p. pelos artigos 163.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal; 1 (um) crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal; à segunda, como autora, por comissão por omissão, de acordo com o artigo 10.º do Código Penal, artigo 36.º, n.º 5, da CRP, artigos 1877.º, 1878.º, 1882.º, todos do Código Civil, e em concurso efetivo, nos termos do disposto nos artigos 26.º, 30.º, n.º 1 e 77.º, todos do Código Penal, a prática de 60 (sessenta) crimes de abuso sexual de crianças agravados, p. e p. pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal e de 416 (quatrocentos e dezasseis) crimes de abuso sexual de menor dependentes agravados, p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, com referência ao disposto no artigo 171.º, n.º 1 e 2, do mesmo diploma legal.

2. No decurso da audiência de discussão e julgamento foi homologada a desistência de queixa quanto ao crime de ofensa à integridade física e, em consequência, no que ao mesmo concerne, declarado extinto o procedimento criminal [cf. ata de fls. 349-350], bem assim comunicada a alteração da qualificação jurídica dos factos nos seguintes termos: “Do teor da acusação resulta que são imputados aos arguidos por ação e por omissão, a prática de crimes sexuais tendo sempre por base que entre os 6 anos e os 21 anos houve introdução de dedos na vagina da há data menor C..

Nessa medida, entende o Tribunal que nunca poderia a mesma ser acusada de um crime de coação sexual agravado, ou melhor, 312 crimes de coação sexual agravado, uma vez que não estamos perante um ato sexual de relevo, antes estamos, efetivamente, perante uma situação tipificada como crime de violação do art.º 164.º, n.º 2, al. b) do C. Penal.

Nestes termos, entende o Tribunal que não alterando qualquer facto da acusação, estamos perante uma diversa alteração da qualificação jurídica, mantendo-se no demais toda a acusação, e por isso, nos termos do art.º 358.º, n.º 1 e 3 do C. P. Penal, o Tribunal comunica a presente alteração, para efeitos, de querendo se pronunciarem ou defenderem nos termos da lei.” – [cf. ata de fls. 382].

3. Realizada a audiência de discussão e julgamento, deliberou o Coletivo de juízes:

1. Condenam o arguido A. pela prática em autoria material e em concurso real efetivo de:

- 72 (setenta e dois) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um dos crimes;

- 12 (doze) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um dos crimes;

- 48 (quarenta e oito) crimes de abusos sexuais de menores dependentes, p. e p. pelo art. 172.º, n.º 1 do Código Penal, agravado nos termos do disposto no art.º 177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, por cada um dos crimes;

- 12 (doze) crimes de violação [praticados entre agosto de 2014 e agosto 2015, estando em vigor o regime legal introduzido pela Lei n.º 59/2007], p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 2, al. b) do Código Penal, na pena de 20 (vinte) meses de prisão, por cada um dos crimes;

- 26 (vinte e seis) crimes de violação [praticados entre setembro de 2015 e novembro de 2017, estando em vigor o regime legal introduzido pela Lei n.º 83/2015], p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 2, al. b) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um dos crimes;

EM CÚMULO JURÍDICO de PENAS na PENA ÚNICA de 12 (doze) anos de prisão;

Absolvendo-o dos demais crimes imputados na acusação.

2. Condenam a arguida B. pela prática em autoria material, por comissão por omissão, e em concurso real efetivo de:

- 48 (quarenta e oito) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, por cada um dos crimes;

- 12 (doze) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 2 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão, por cada um dos crimes;

- 48 (quarenta e oito) crimes de abusos sexuais de menores dependentes, p. e p. pelo art.º 172.º, n.º 1 do Código Penal, agravado nos termos do disposto no art.º 177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, por cada um dos crimes;

EM CÚMULO JURÍDICO de PENAS na PENA ÚNICA de 7 (sete) anos de prisão;

Absolvendo-a dos demais crimes imputados na acusação.

3. Condenam solidariamente os arguidos A, e B. no pagamento à ofendida C. de uma indemnização no valor de 50.000,00 Euros por danos não patrimoniais, a que acresce juros de mora à taxa legal desde a presente decisão até integral pagamento.

(…).

4. Inconformados com o assim deliberado recorrem ambos os arguidos, formulando as seguintes conclusões:

A.:

A. Contando sempre com o mui douto suprimento de V/Exas. atento o supra exposto, por razões substanciais e formais atinentes aos vícios decisórios (desde logo, contradição insanável entre a fundamentação e decisão bem como errónea subsunção jurídica, insuficiência para a decisão, erro notório na apreciação da prova), entende o recorrente que em obediência aos mais elementares princípios constitucionais e comandos interpretativos que presidem a um Direito penal que se queira justo e processualmente conforme, por essencial para correta subsunção dos factos ao Direito, não poderá deixar de dar provimento ao recurso.

B. Conjugando as declarações do arguido prestadas em audiência de julgamento e as prestadas em interrogatório judicial (reproduzido em audiência de julgamento), é essencial a prova de que o arguido não é Pai da C., nascida em 15 de Agosto de 1996, não é progenitor, é padrasto, admite factualidade descrita na acusação, com a ressalva dos períodos em que as mesmas se iniciaram.

C. No Acórdão recorrido, a fls. 13 último parágrafo e fls. 14, aí se refere: Com efeito, o mesmo referiu em síntese que: Abusou da ofendida desde os 11 anos, desde ter visto a mesma nua a tomar banho no rio (...) ; Nunca usou a violência; Nunca introduziu o pénis;

D. Releva limites temporais: o Tribunal recorrido não fez uma correta apreciação da prova, que foi produzida em audiência de discussão e julgamento em virtude de terem sido dados como provados factos sem prova concludente e base de suporte para tal, alteração do facto do Recorrente ter admitido que as práticas se iniciaram quando a C. tinha 11 anos e com uma periodicidade de pelo menos uma vez por mês (artigos 1.º a 11.º, 12.º a 21.º, 23.º a 43.º da Fundamentação de Facto, com a limitação da periodicidade e o início das práticas).

E. Afirmando o Douto Acórdão a fls. 17 5.º parágrafo, A periodicidade de 2 vezes por semana foi apenas referida pela C. uma vez que nas declarações por memória futura a resposta a uma pergunta da Magistrada do Ministério Público, ficando o tribunal convencido que houve aqui mais uma adesão a uma possibilidade levantada pela Magistrada do Ministério Público, levantando-se sérias dúvidas sobre tal periodicidade e a data em que a mesma passou a ocorrer. Tal dúvida implica, no entender do tribunal, que não possa ser feita tal fixação nos termos que constam da acusação. Já quanto à factualidade não admitida pelos arguidos, a convicção do tribunal assentou essencialmente nas declarações da C..

F. A forma como a criança ou jovem acede às suas memórias não é exata; rememorar experiências, factos e emoções é complexa e inconsistente; palavras que ficam por dizer, as emoções que se tentam aprisionar, acabam quase sempre por se manifestar de outras formas, criando confusões, minando relações ou até alimentando patologias.

G. Em face do que foi provado, e ponderando os factos na sua globalidade, salvo o devido respeito, afigura-se que o arguido apenas iniciou a prática dos factos quando a C. tinha 11 anos, no ano de 2007.

H. Ademais, existe verdadeira insuficiência da matéria de facto provada para que o recorrente possa ser condenado pela prática de 72 (setenta e dois) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1 al. b) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um dos crimes;

I. Errada apreciação da prova: Lê-se a fls. 4 último parágrafo e fls. 5 – Factos praticados pelo arguido A.: Durante um período de tempo não concretamente determinado, mas, pelo menos desde o ano de 2002, altura em que a ofendida C. tinha 6 anos de idade, até Novembro de 2017, quando tinha 21 anos, com regularidade de pelo menos 1 vez por mês, o arguido A. levava a ofendida a praticar consigo atos sexuais, designadamente de masturbação, e de simulação de sexo vaginal, deitando-se em cima da mesma quando ambos se encontravam nus, friccionando o seu pénis na vagina daquela, tocando-lhe nos peitos e, desde os 13 anos da C., introduzindo-lhe os dedos na vagina; Entre os 6 anos e até a mesma perfazer 13 anos de idade da ofendida (7 anos) ininterruptamente, o arguido repetiu várias vezes estas condutas pelo menos uma vez por mês (12 vezes por ano); a partir dos 13 anos da C., o arguido começou a praticar os atos descritos, com a introdução dos seus dedos na vagina da C., sendo que até a mesma perfazer os 13 anos sem introdução dos dedos na vagina da menor; Todos os atos descritos perpetuaram-se até ao dia em que a ofendida, já com 21 anos, saiu da residência supra indicada, em final de Novembro de 2017.

J. Entre os 9 anos e os 14 anos da ofendida, (5 anos), ininterruptamente, pelo menos uma vez por mês (12 vezes por ano), ou seja, 60 vezes;

L. Entre os 14 anos e os 18 anos da ofendida (4 anos), pelo menos 48 vezes.

M. Ademais, o arguido, gozando da situação de proximidade familiar, bem como de dependência económica que a mesma tinha consigo, manipulava a ofendida de forma a constrange-la a ter consigo os atos de natureza sexual supra descritos.

N. A arguida, na qualidade de mãe, sabia do dever inalienável que sobre si impendia e impende de velar pela segurança e saúde das suas filhas até estas atingirem a maioridade ou a emancipação.

O. Lê-se fls. 23, FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO: vem o arguido A. em autoria material singular e em concurso efetivo, nos termos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 30.º, n.º 1, e 77.º, todos do Código Penal: - 84 (oitenta e quatro) crimes de abuso sexual de criança agravados, previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal; - 416 (quatrocentos e dezasseis) crimes de abuso sexual de menor dependente agravados, previstos e punidos pelos artigos 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, com referência ao disposto ni artigo 171.º, n.º 1 e 2, do mesmo diploma legal;

P. A fls. 33 do Acórdão recorrido, para efeitos das incriminações previstas na acusação, entende o tribunal a quo, que o arguido A. tinha relativamente à C. não só uma relação de autoridade, como a mesma resultava de estar-lhe de facto confiada para educação e assistência em conjunto com a Arguida B., de que se discorda: A “confiança para educação ou assistência”, a que alude o art. 172.º, n.º 1, do CP, abrange as situações jurídicas pelas quais o jovem entre os 14 e 18 anos está confiado aos cuidados do agente do crime.

Q. Ora, a C., nascida em 15 de Agosto de 1996, não é filha do arguido, está confiada aos Cuidados, educação e assistência da Mãe, a Arguida, quem cuida da C.. O arguido não detém o poder paternal, não tinha nenhum poder/dever jurídico de educação ou assistência da C.. O casal tem uma filha (…). O arguido distingue conscientemente ser PAI. Seguramente, que a C. está sim, confiada aos cuidados da Mãe.

R. Sempre salvaguardando melhor e mais avalizada opinião, não se pode considerar assente como faz o Tribunal a quo a fls. 33, que resulta assente que durante um período de tempo não concretamente determinado, mas, pelo menos desde o ano de 2002, altura em que a ofendida C. tinha 6 anos de idade, até Novembro de 2017, quando tinha 21 anos, o arguido A. levava a ofendida a praticar consigo atos sexuais, e durante todos estes anos, a ofendida se opôs à prática desses atos.

S. Razão pela qual em nosso entender, padece o douto acórdão do vício de contradição insanável entre matéria de facto provada e decisão ao nível de subsunção jurídica, vício esse que a inquina decisivamente.

T. A fls. 34, lê-se: Nestes termos, atenta a periodicidade de 1 mês em que as mesmas ocorreram, o arguido com a sua conduta praticou 72 crimes de abuso sexual, p. e p. pelo art.º 171.º, n.º 1do Código Penal e 12 crimes de abuso sexual, p. e p. pelo art.º 171.º, n.º 2 do Código Penal, agravados todos nos termos do disposto no art.º 177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal; A partir dos 14 anos da C. e até aos seus 18 anos o arguido aproveitando-se do facto de aquela lhe estar de facto confiada para educação e assistência, juntamente com a sua mãe, manteve tais práticas com a periodicidade de 1 mês, pelo que cometeu 48 crimes de abusos sexuais de menores dependentes, p. e p. pelo art.º 172.º, n.º 1 do Código Penal, agravado nos termos do disposto no art.º 177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal.

U. O conceito Coabitação previsto no n.º 1 alínea b) do art. 177.º do Código Penal foi introduzido na redação da Lei n.º 113/2015, de 24 de Agosto, com início de vigência a 23 de Setembro de 2015, então tinha a C. 19 anos de idade.

V. Em 2010, não há imaturidade numa jovem de 14 anos, inserida no contexto social e no mundo global a que os jovens nesta idade têm conhecimento e acesso; não houve aproveitamento de inexperiência. A C. na verdade tinha discernimento; Ao perfazer 16 anos alcança a maioridade Penal e a idade núbil, está completamente desenvolvida no contexto social, moral, com liberdade e autodeterminação sexual; O adolescente, além de ser fisiologicamente um adulto também o é intelectualmente.

X. Consta a fls. 18, 3.º parágrafo … é totalmente credível e compreensível a justificação dada pela C. para aceitar tais comportamentos do arguido após a maioridade, sem nunca os denunciar, demonstrando em todas as suas declarações um forte sentimento para com o arguido – não obstante os factos por este praticados – e a importância que tinha para si o facto de o mesmo a tratar como filha nos mesmos moldes que fazia com a sua filha biológica.

Y. Após 18 anos da C., a fls. 39, entende o Tribunal a quo, que é manifesto que tal conduta não consubstancia a prática do crime de coação sexual – que apenas remete para a prática de atos sexuais de relevo – mas o crime de violação, p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 2, al. b) do Código Penal, encontrando-se preenchidos os elementos típicos objetivos e subjetivos do crime de violação p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 2, al. b) do Código Penal, e tendo tais práticas ocorrido seguramente por 38 vezes, terá o arguido que ser condenado por 38 crimes de violação, p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 2, al. b) do Código Penal.

Z. A violação é um crime de dano, cujo “tipo objetivo consiste no constrangimento da vítima a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, um ou mais atos sexuais de especial relevo: cópula, coito anal ou coito oral, ou a sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos. Estamos perante um crime de violação (Art.º 164.º do Código Penal) sempre que, através de um ato de violência (física ou psíquica), ameaça grave, ou, porque tornada inconsciente e incapacitada de resistir, a vítima é forçada a praticar cópula, coito anal ou oral com o agente ou outrem, ou a sofrer a introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos sendo que a pena de prisão se situa entre os 3 e os 10 anos. O preceito legal impõe a utilização de meios de constrangimento, à semelhança do que acontece no crime de coação sexual. Na redação anterior do atual artigo 164.º do Código Penal, o crime previsto poderia ser praticado pelos meios não compreendidos no número anterior, no entanto, era necessário que fosse praticado abusando de uma relação de autoridade nele prevista.

AA. Ora o Recorrente não tinha esta relação com a vítima, nem ficou demonstrado ter abusado duma relação de autoridade, pelo que salvo o devido respeito não se podem considerar preenchidos todos os elementos da norma, pelo que não poderia ser aplicada a decisão de condenar o Arguido/Recorrente em 12 (doze) crimes de violação – Praticados entre Agosto de 2014 e Agosto de 2015, estando em vigor o regime legal introduzido pela Lei n.º 59/2007; - p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 2, al. b) do Código Penal, na pena de 20 (vinte) meses de prisão, por cada um dos crimes;

BB. “Com a alteração de 2015 introduzida pela Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto, passou a subsumir-se no tipo legal, artigo 164.º Código Penal, nomeadamente no n.º 2, todo o ato que não comporte violência, ameaça grave ou tenha tornado inconsciente a vítima ou colocado na impossibilidade de resistir, mas que seja apto a constranger a vítima a sofrer ou praticar ato sexual de relevo, alargando-se o âmbito incriminatório; A expressão “sem o consentimento” não se encontra ainda plasmada na norma; As expressões contidas na Lei revelam-se ambíguas; A vítima pode consentir constrangidamente num relacionamento com o agressor, não configurando prática de crime, não é uma certeza absoluta; Resta-nos então o constrangimento por meios não tipificados expressamente. Este ato de constrangimento, e “do qual resulte a prática de ato sexual de relevo, é assim o elemento típico indispensável para que se concretize o crime.

CC. Por fim, em 5 de agosto de 2015, com a Lei 83/2015, o n.º 2 do artigo 164.º desligou-se por completo dos moldes em que estava formulado; Deixou, assim, de se fazer referência aos casos de abuso de autoridade e relações hierárquicas, familiares, económicas ou de trabalho e passou apenas a exigir para o seu preenchimento o constrangimento por “meios não compreendidos no número anterior”, deixando a formulação anterior apenas para os casos de agravação, presentes na alínea b) do número 1 do artigo 177.º do CP.

DD. Avaliadas as concretas circunstâncias narradas pelo Tribunal a quo, não se compreende a forma como o tribunal, aborda a matéria e consubstancia o tipo legal de violação previsto no Artigo 164.º n.º 2 al. b), condenando o Recorrente em 26 (vinte e seis) crimes de violação, p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 2, al. b) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um dos crimes.

EE. Não está assim, relativamente ao arguido e ora recorrente, preenchido o tipo de ilícito violação pelo qual se mostra condenado, devendo em consequência ser absolvido.

FF. Para a determinação da pena concreta aplicável ao arguido, pesam as orientações fornecidas pelo art.º 71.º do C. Penal, nomeadamente as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra ele; não vemos assim justificação à luz das precedentes considerações e da factualidade apurada, para a condenação em cúmulo jurídico de penas na pena única de 12 (doze) anos de prisão elevada e demasiado dura.

GG. O arguido é primário; O princípio do in dúbio pro reo sendo emanação do princípio da presunção de inocência surge como resposta ao problema da incerteza em processo penal, impondo a absolvição do acusado quando a produção de prova não permita resolver a dúvida inicial que está na base do processo. Se, a final, persiste uma dúvida razoável e insanável acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da atuação do acusado, esse non liquet na questão da prova tem de ser resolvido a seu favor, sob pena de preterição do mandamento consagrado no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa. O Código Penal traça um sistema punitivo que arranca do pensamento fundamental de que as penas devem ser sempre executadas com um sentido pedagógico e ressocializador, seno que a prisão compromete tal objetivo, é um mal que deve reduzir-se ao mínimo necessário.

HH. A fls. 58 condenam solidariamente os arguidos A. e B. no pagamento à ofendida C. de uma indemnização no valor de 50.000,00 Euros por danos não patrimoniais, a que acresce juros de mora à taxa legal desde a presente decisão até integral pagamento.

II. Afigura-se, insuficiência para a decisão do valor arbitrado.

JJ. Resultam assim tais condenações em sede cível manifestamente injustas, razão pela qual, na esteira da redução e absolvição em sede penal, também deve ser reduzido em sede cível, o valor arbitrado!

LL. Normas jurídicas violadas: artigos 40.º e 71.º do Código Penal, arts. 483.º n.º 1 Código Civil, Artigos 410.º n.º 2, 127.º do Código de Processo Penal.

MM. Princípios violados e erroneamente aplicados: máxime da legalidade, da culpa, da proporcionalidade e adequação, da tipicidade, da igualdade e da reparação em sede cível.

Termos que e nos demais de direito, sempre com o mui douto suprimento de V/Exas., atento o supra exposto, por razões substanciais e formais atinentes aos vícios decisórios (desde logo, contradição insanável entre fundamentação e decisão bem como errónea subsunção jurídica!), entende o recorrente que em obediência aos mais elementares princípios constitucionais e comandos interpretativos que presidem a um Direito penal que se queira justo e processualmente conforme, por essencial para correta subsunção dos factos ao Direito, não poderá deixar de ser dado provimento ao presente recurso;

Em consequência alterada a douta decisão recorrida, e proferido acórdão que revogue a sentença proferida pelo tribunal a quo, por outra devendo na parte criminal serem reduzidos o n.º de crimes de abuso sexual de crianças em que foi condenado o recorrente e ser absolvido dos crimes de abusos sexuais de menores dependentes e dos crimes de violação, em razão da ausência de preenchimento do tipo de ilícito e de igual sorte na parte cível, reduzido o valor arbitrado por insuficiência para tal decisão;

V/Exas., pensarão e decidirão necessariamente de forma justa, alcançando a costumada e almejada justiça, na medida em que, citando Montesquieu e Milo Sweetman, a injustiça feita a um é uma ameaça dirigida a todos, devendo a justiça, tal como o relâmpago, causar a ruína de poucos homens mas o receio de todos! Todavia, nunca esquecendo que, acompanhando Emma Andievska.

A justiça é a bondade medida ao milímetro!

B:

1. O presente recurso visa impugnar a douta decisão proferida sobre a matéria de facto considerada assente pelo Exmo. Tribunal a quo.

2. O objeto do presente recurso circunscreve-se aos seguintes elementos:
· Alteração do facto identificado sob o ponto 44.º da factualidade tida como provada, por errada apreciação da prova;

3. Impõem-se ainda efetuar face à prova efetivamente produzida Revisão da medida de pena.

4. Decidiu o Tribunal a quo:

- “2. Condenam a arguida B. pela prática em autoria material, por comissão por omissão, e em concurso real efetivo de:

- 48 (quarenta e oito) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, por cada um dos crimes;

- 12 (doze) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 2 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão, por cada um dos crimes;

- 48 (quarenta e oito) crimes de abusos sexuais de menores dependentes, p. e p. pelo art.º 172.º, n.º 1 do Código Penal, agravado nos termos do disposto no art.º 177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, por cada um dos crimes;

Em cúmulo jurídico de penas na pena única de 7 (sete) anos de prisão;

5. O Tribunal a quo foi demasiado excessivo na aplicação da pena constante do douto acórdão, por força de uma factualidade que não corresponde à verdade.

6. A integração dos factos tidos como provados não obedeceu a critérios jurídico-penais norteadores e garantes dos mais elementares direitos constitucionais que assistem o Arguido, nomeadamente o princípio basilar do in dúbio pro reo.

7. O Tribunal a quo para dar como provados os factos que sustentam a condenação indica como essencial as declarações da ofendida e a confissão da arguida, ainda que parcial.

8. Da prova produzida em audiência de julgamento, não se poderia dar como provados os factos contantes da Fundamentação de facto, máxime, a que se refere o n.º 44 com o qual não concordamos.

9. O Tribunal recorrido não fez uma correta apreciação da prova que foi produzida em audiência de julgamento.

10. A convicção do douto Tribunal assentou essencialmente nas declarações da ofendida e nos extratos de conversas SMS mantidas entre a C. e a aqui Recorrente, na parte considerada pertinente para a fundamentação da decisão.

11. As declarações da arguida foram desconsideradas e desvalorizadas bem como o teor do SMS enviadas por esta para a ofendida, na parte em que aproveitam a Recorrente.

12. A recorrente sempre afirmou que a situação de (...) terá acontecido em Outubro de 2012, por outro “(…) a mesma foi perentória em dizer que naquela altura relacionou tal facto a uma altura ocorrida quando a C. tinha 11 ou 12 anos em que o arguido A. viu esta nua a tomar banho no rio.”

13. A análise dos factos por parte do douto Tribunal a quo é manifestamente desigual.

14. É tido em consideração o teor das mensagens SMS para fundamentar a conduta omissiva da arguida.

15. Mas não foi considerado na determinação da data dos acontecimentos.

16. O Tribunal a quo deveria ter concluído que o momento temporal em que a arguida toma conhecimento das práticas do arguido A. se consolidou quando a ofendida C. tinha 12 ou 13 anos, respeitando o princípio in dubio pro reo, o que não veio a acontecer.

17. Face ao vertido e aqui defendido, a arguida B. deveria ter sido condenada pela prática em autoria material, por comissão por omissão, e em concurso real efetivo de:

- 12 (doze) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 do Código Penal, e não em 48 (quarenta e oito) como foi!

18. Deveria ter sido considerada a idade de 13 anos da ofendida quando a aqui arguida tomou conhecimento dos factos praticados pelo arguido A. e não os 9 anos.

19. Perante esta factualidade, a arguida não poderá em cúmulo jurídico ser condenada em pena superior a 5 anos, pois passamos a considerar, porque assim se impõe a matéria de facto que deve ser dada como provada não a

20. Prática de 48 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo 171.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, por cada um dos crimes mas apenas 12 crimes previstos e punidos pelo mesmo inciso.

21. A pena que vier a ser aplicada agora em sede de recurso à arguida, e que, repita-se, entendemos não pode ser superior a 5 (cinco) anos, deverá ser suspensa por igual período de tempo, pois que exercerá e cumprirá de forma natural a função repressora e ressocializante que a condenação e a pena tem no nosso sistema jurídico- penal.

22. O tribunal a quo violou assim os artigos 40.º e 71.º do Código Penal, 410.º n.º 2 alínea a) e c), artigo 127.º e 412.º do Código de Processo Penal.

Termos que e nos demais de direito consentidos, por Vos, Venerandos Juízes desembargadores, muito doutamente suprireis se requer seja O presente recurso julgado procedente nos exatos termos supra expostos, e proferido acórdão que revogue a sentença proferida pelo tribunal a quo, por outra que condena a arguida na pena máxima em cumulo jurídico de 5 (cinco) anos, suspendendo a execução da mesma por igual período, pois só assim se fará a acostumada justiça.

5. Foi proferido despacho de admissão dos recursos.

6. Em resposta ao recurso o Ministério Público concluiu:

1 – Na discordância que manifestaram, quanto ao decidido em matéria de facto, os recorrentes, limitam-se a alegar a existência de dúvidas, a realçar a respetiva confissão e a desconsiderar depoimentos da menor ofendida, de modo a justificar uma interpretação que, sendo diversa daquela a que o tribunal chegou, corresponderia àquela por ambos pretendida. Fazem-no, porém, de forma não integrada, descontextualizada de uma análise de cada meio probatório no seu todo e de uma apreciação concertada de todos eles, apenas de modo a fundamentar uma opinião diferenciada e que mais lhes conviria.

2 – No entanto, a impugnação da decisão de facto resultou de uma livre e fundamentada apreciação da prova, privilegiada pela oralidade e imediação na sua produção e aferida pelas regras da experiência, constituindo o julgamento de facto uma das possíveis soluções, segundo essas regras da experiência comum.

3 – A essa apreciação da prova veio a corresponder uma acertada enumeração da factualidade provada e não provada, devidamente fundamentada, e um subsequente e correto enquadramento dos factos no direito.

4 – Tendo presentes as finalidades da punição, a culpa da arguida B. e as exigências de prevenção, sem haver deixado de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depunham a favor e contra aquela, o Tribunal determinou, com bondade, quer as penas parcelares concretamente a aplicar, quer, decorrente do cúmulo jurídico operado, a respetiva pena única imposta à arguida.

5 – Pena única essa que, desde logo pela sua medida, não poderia ser declarada suspensa na execução, mas que, ainda que assim legalmente inviável, nunca essa suspensão poderia ter lugar, por a tal se oporem intensíssimas exigências de prevenção criminal.

6 – O douto acórdão recorrido fez correta interpretação dos preceitos legais que havia a aplicar, não se mostrando ofendido qualquer normativo, apontado na motivação do recorrente.

Nestes termos e pelo mais que, Vossas Excelências, Senhores Juízes Desembargadores, segura e sabiamente não deixarão de suprir, negando-se provimento ao recurso interposto e, consequentemente, confirmando-se o acórdão condenatório proferido, far-se-á Justiça.

7. Na Relação o Exmo. Procurador da República emitiu parecer no sentido da improcedência dos recursos.

8. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP, nenhum dos sujeitos processuais interessados reagiu.

9. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto dos recursos

Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de eventuais questões de natureza oficiosa, no presente caso importa decidir (se):

Recurso de A.:

(i) Ocorre erro de julgamento e/ou os vícios do n.º 2 do artigo 410.º do CPP e/ou violação do principio in dubio pro reo;

(ii) A relação entre o arguido e a ofendida não é passível de ser caracterizada como de “familiar”;

(iii) Foi indevida a consideração de a menor se encontrar confiada para educação e assistência ao arguido;

(iv) Não estão reunidos os elementos típicos do crime de violação;

(v) A pena única aplicada se revela excessiva;

(vi) O montante arbitrado a título de compensação por danos não patrimoniais é desproporcionado.

Recurso de B.:

(i) Ocorre erro de julgamento e/ou os vícios do n.º 2 do artigo 410.º do CPP e/ou violação do principio in dubio pro reo;

 (ii) A pena única aplicada se revela excessiva;

(iii) Deve a pena única ser suspensa na sua execução.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar do acórdão em crise [transcrição parcial]:

Factos Provados da Acusação Pública:

1.º O arguido A. (…) nasceu em 15 de Maio de 1964. 

2.º A ofendida C. (…) nasceu em 15 de Agosto de 1996, pelo que tem atualmente 22 anos.

3.º É filha de (…) e da arguida B. (…).

4.º A ofendida cresceu afastada do seu pai.

5.º Quando a ofendida tinha cerca de 3 anos, a arguida B. contraiu matrimónio com o arguido A.

6.º Aqueles fixaram domicílio comum, conjuntamente com a ofendida, na Rua (…) , nesta cidade.

7.º Posteriormente, nasceu, daquela relação, a filha (…), atualmente com 15 anos.

8.º O arguido manteve inicialmente um relacionamento com a ofendida C. como se de uma filha se tratasse.

9.º Para a ofendida C., o arguido representava a sua única referência paternal, sendo como pai que o tratava.

10.º Era ao arguido que a ofendida recorria quando tinha algum tipo de problema, muito mais do que à sua mãe.

11.º Ademais, o arguido era o grande suporte económico daquele agregado familiar, uma vez que a arguida encontra-se reformada.


*

Factos praticados pelo arguido A.

12.º Durante um período de tempo não concretamente determinado, mas, pelo menos desde o ano de 2002, altura em que a ofendida C. tinha 6 anos de idade, até Novembro de 2017, quando tinha 21 anos, com regularidade de pelo menos 1 vez por mês, o arguido A. levava a ofendida a praticar consigo atos sexuais, designadamente de masturbação, e de simulação de sexo vaginal, deitando-se em cima da mesma quando ambos se encontravam nus, friccionando o seu pénis na vagina daquela, tocando-lhe nos peitos e, desde os 13 anos da C., introduzindo-lhe os dedos na vagina.

13.º Com efeito, o arguido A. aproveitava, especialmente, os momentos em que se encontrava sozinho com a ofendida e abeirava-se desta, dizendo-lhe “vamos brincar”.

14.º Seguidamente o arguido levava-a para o seu quarto e dizia à ofendida para se deitar, na cama, ao lado dele.

15.º Ali, tocava com a sua mão nos seios e na vagina daquela, quer por cima, quer por dentro da roupa.

16.º Após, o arguido A. pedia à ofendida para lhe tocar no pénis, pegando-lhe na mão e colocando-a no mesmo.

17.º Depois, explicava à ofendida como pretendia que ela o segurasse, indicando-lhe que devia agarrá-lo e movimentá-lo de cima para baixo e de baixo para cima, o que a mesma fazia.

18.º Nessas ocasiões, a partir dos 13 anos da C., também introduzia os dedos na vagina da ofendida.

19.º Por vezes, o arguido despia-se, bem como à ofendida, e colocava-se nu em cima desta, movimentando-se, como supra se referiu, para trás e para a frente, de forma a friccionar o seu pénis nos lábios vaginais externos daquela.

20.º Durante estes momentos o arguido beijava a ofendida nos seios e no pescoço.

21.º Quando se encontrava na iminência de ejacular, o arguido deslocava-se para a casa de banho, nunca o tendo feito no corpo da ofendida.

22.º Além disso, durante esses momentos, o arguido colocava em exibição, perante a ofendida, vídeos pornográficos.

23.º Numa das vezes, em dia não concretamente apurado, o arguido tentou introduzir o pénis na vagina da ofendida, magoando-a.

24.º Entre os 6 anos e até a mesma perfazer 13 anos de idade da ofendida, (7 anos) ininterruptamente, o arguido repetiu várias vezes estas condutas pelo menos uma vez por mês (12 vezes por ano).

25.º Ou seja, durante aquele período, pelo menos 84 vezes o arguido levava a ofendida para o quarto, despia-a, dizia-lhe para agarrar no seu pénis e fazer movimentos descentes e ascendentes, enquanto lhe colocava a mão na vagina.

26.º Também nesses momentos, o arguido deitava-se sobre a ofendida, movimentando-se para trás e para a frente, até ao momento em que se encontrava prestes a ejacular.

27.º À medida que os anos foram passando, sobretudo a partir dos 13 anos da C., o arguido começou a praticar os atos descritos, com a introdução dos seus dedos na vagina da C.

28.º Pelo menos, desde os 6 anos da ofendida até Novembro de 2017, quando aquela já tinha 21 anos, o arguido praticava tais atos com aquela uma vez por mês,

29.º sendo que até a mesma perfazer os 13 anos sem introdução dos dedos na vagina da menor,

30.º após perfazer os 13 anos e até a mesma sair de casa com a introdução de dedos na vagina.

31.º Para além daqueles atos, o arguido constantemente beijava a ofendida na boca, não obstante aquela tentar esquivar-se.

32.º De igual modo, tocava a ofendida, por cima da roupa, nas nádegas e nos seios.

33.º Por diversas vezes o arguido quis também manter relações sexuais de cópula inteira com a ofendida, as quais só não se concretizaram porque aquela se queixava de muitas dores com a penetração.

34.º Todos os atos descritos perpetuaram-se até ao dia em que a ofendida, já com 21 anos, saiu da residência supra indicada, em final de Novembro de 2017.

35.º A ofendida nunca havia tido, até aos 21 anos, qualquer experiência sexual com outra pessoa que não fosse com o arguido.

36.º Durante todos estes anos, a ofendida sempre se opôs à prática dos referidos atos sexuais.

37.º Face a tal oposição por parte da ofendida, o arguido mostrava-se aborrecido com aquela, tratando-a de maneira diversa da sua filha (…), quer em particular, quer à frente da mãe daquela.

38.º O arguido constantemente telefonava e mandava mensagens à ofendida, dizendo que a amava e pedindo-lhe para estar com ela, mantendo com esta uma relação não de pai preocupado, mas sim de namorado ciumento.

39.º Além disso, procurava saber com quem a mesma se ia encontrar, quando saía de casa, nomeadamente se iria ao encontro de algum rapaz.

40.º Em virtude de todos os factos descritos, a ofendida, durante vários anos e até sair de casa, vomitava todos os dias, apresentando um défice vitamínico.

41.º A ofendida C. desenvolveu, durante aquele período, o raciocínio de que “a minha mãe é gorda e tu gostas dela, eu sou gorda e tocas em mim e a minha irmã é magra e tu não lhe tocas”, considerando que se emagrecesse, o arguido deixaria de praticar os factos supra descritos.

42.º Além disso, a ofendida constantemente tinha dores de cabeça e de estômago.

43.º A ofendida C., desde Novembro de 2017, é seguida nas consultas de psiquiatria, de psicologia e de distúrbios alimentares, todas no Centro Hospitalar e Universitário (...)


*

Factos praticados pela arguida B:

44.º Em data não concretamente apurada, mas quando a ofendida tinha cerca de oito anos, a mesma encontrava-se na casa da sua avó, em (…), (…), juntamente com os arguidos.

45.º A arguida B. havia saído de casa, pelo que o arguido foi ao quarto da ofendida e, ali, iniciou atos de masturbação, tocando-lhe na vagina e pedindo-lhe para que a mesma tocasse o seu pénis.

46.º Ao ouvir a porta a abrir, o arguido vestiu-se rapidamente, assim como à ofendida.

47.º A arguida, ao entrar em casa, foi ao quarto da ofendida, tendo-se ali deparado com o arguido.

48.º De imediato, dirigiu-se a ambos e auscultou-lhes os corações, que se mostravam muito acelerados.

49º O arguido confessou, então, o que estava a fazer com a ofendida.

50.º Nessa sequência, gerou-se uma discussão entre ambos, tendo a arguida dito ao arguido: “papas a mãe e papas a filha”.

51.º O arguido, chorando, prometeu que não voltaria a praticar tais atos com a ofendida, pelo que a arguida manteve a sua relação com o mesmo.

52.º A arguida posteriormente e por várias vezes questionou a ofendida sobre se o arguido continuava a praticar atos sexuais com ela.

53º Apesar de a ofendida nunca lhe ter confessado diretamente, dizia-lhe, de forma clara, que não queria ficar sozinha com o arguido, nomeadamente quando a arguida propunha que saíssem os dois sozinhos.

54.º A arguida sempre soube que o arguido praticava os atos supra descritos com a ofendida, tendo-lhe dito, em data não concretamente apurada, mas após aquela ter saído de casa: “Ele está chateado contigo, mas nós as duas sabemos porquê! Tens de lhe dizer que tu não és mulher dele e que tens de fazer queixa à polícia, se não ele não vai parar!”.

55.º No período compreendido entre a data em que a arguida B. tomou conhecimento dos atos que o arguido praticava com a ofendida C. e o período em que esta atingiu a maioridade, o arguido A. praticou os factos supra descritos:

- Entre os 9 anos e os 14 anos da ofendida, (5 anos), ininterruptamente, pelo menos uma vez por mês (12 vezes por ano), ou seja, 60 vezes;

- Entre os 14 anos e os 18 anos da ofendida (4 anos), pelo menos 48 vezes.


*

56.º O arguido A. sabia a idade da ofendida C. quando praticou os atos sexuais supra descritos, uma vez que a conhecia desde a mais tenra idade, tendo estabelecido com ela uma relação própria da filiação.

57.º Não obstante, aproveitou-se da relação estreita que tinha com a ofendida e do facto de residir com a mesma, para reiteradamente praticar tais atos.

58.º Ao atuar como atuou, o arguido bem sabia que atentava contra o livre desenvolvimento da personalidade e sexualidade da ofendida, não se demovendo, contudo, de assim agir, tão só para satisfazer os seus desejos libidinosos.

59.º Ademais, o arguido, gozando da situação de proximidade familiar, bem como de dependência económica que a mesma tinha consigo, manipulava a ofendida de forma a constrangê-la a ter consigo os atos de natureza sexual supra descritos.

60.º A arguida, na qualidade de mãe, sabia do dever inalienável que sobre si impendia e impende de velar pela segurança e saúde das suas filhas até estas atingirem a maioridade ou a emancipação.

61.º Ademais, sabia dos atos praticados pelo seu marido contra a ofendida C. e que, como mãe, tinha o dever de os impedir e proteger a sua filha, contudo nada fez.

62.º Se a arguida tivesse agido, afastando a ofendida e sua filha C. do arguido, o mesmo não teria praticado tais atos contra aquela, o que podia, era capaz, e tinha obrigação, como mãe, de o fazer.

63.º Pelo contrário, limitou-se a ficar inerte, quando as ações por si omitidas teriam certamente evitado o resultado que se veio a operar pelos atos praticados pelo arguido.

64.º O arguido A. e a arguida B. atuaram sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas descritas condutas eram censuradas, proibidas e punidas por lei penal.


*

Outros Factos Provados:

(…)

 Os arguidos não tem antecedentes criminais.


*

Factos Não Provados:

Pelo menos, desde os 14 anos da ofendida até Novembro de 2017, quando aquela já tinha 21 anos, o arguido praticava tais atos com aquela duas vezes por semana.


*

CONVICÇÃO DO TRIBUNAL:

(…).

3. Apreciação

Suscitando as conclusões algumas questões que se apresentam transversais aos dois recursos, com vista a evitar repetições desnecessárias, abordaremos em conjunto os aspetos comuns a ambos, tratando-os em separado se e na medida em que os “problemas” colocados reclamem uma “resposta” individualizada.

§1. Da impugnação da matéria de facto [recurso de A.; recurso de B.].

É possível apreender a reação dos recorrentes contra a matéria de facto provada, com a qual – veremos em que termos – não se conformam.

Dissentindo do acervo factual, considerado provado e/ou não provado, pelo tribunal a quo, cabe ao recorrente esclarecer nas respetivas conclusões, enquanto síntese da motivação, onde são resumidas “as razões do pedido” [artigo 412.º, n.º 1 do CPP], os fundamentos em que faz assentar a sua discordância: se no “erro de julgamento”; se nos “vícios” do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, nestes se incluindo, concretamente no de “erro notório na apreciação da prova”, a violação do in dubio pro reo.

Enquanto nos últimos – ademais de conhecimento oficioso – bastará a alegação, e tanto quanto possível a concretização, da existência de omissão relevante, de contradição não ultrapassável entre factos provados, entre estes e os não provados, entre qualquer deles e a decisão, de uma apreciação ilógica, determinante de erro ostensivo, de tal modo grosseiro que não escapa ao cidadão médio, em todos os casos, apreensíveis a partir do seu texto, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, logo não entrando em linha de conta com todo um manancial de elementos ao mesmo externos, já na designada sindicância ampla mostra-se o recorrente vinculado à observância de um procedimento detalhado na lei, impondo-lhe o cumprimento de ónus, os quais se não obedecidos comprometem definitivamente a indagação do “erro de julgamento” – [cf. os n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP].

No presente caso, problema que se coloca com grande frequência, a primeira questão que importa dilucidar é assentar no “tipo” de sindicância que vem requerida.

Perscrutadas as respetivas conclusões, malgrado a ausência de ordenação lógica na alegação, no âmbito da qual se confundem questões de facto e de direito, sem que se detete a mínima preocupação em estabelecer um nexo de precedência entre ambas, com início, naturalmente, na decisão de facto, ainda assim é possível identificar, como não merecendo a aquiescência do arguido/recorrente o marco temporal, com referência à idade da ofendida, então com 6 anos, em que se iniciaram as condutas abusivas, pretendendo o mesmo que tal tenha ocorrido quando a C. já havia completado os 11 anos de idade – [cf. pontos B, C, D e G]; nas mesmas águas se move a arguida/recorrente, agora quanto ao “momento” em que tomou conhecimento dos abusos perpetrados pelo arguido contra a vítima, sua filha, querendo situá-lo numa altura em que esta “tinha 12 ou 13 anos” e não em data anterior, como assente pelo Coletivo de juízes sob item 44 dos factos provados – [cf. pontos 2, 8, 12, 13, 14 e 15].

Afigura-se-nos, pois, quanto aos sobreditos marcos temporais, tanto mais que fazem alusão às respetivas declarações, e/ou ao teor dos SMS, [objeto de apreciação crítica] e/ou ao depoimento da ofendida, constituir seu propósito provocar a sindicância ampla da matéria de facto, com base no erro de julgamento.

Contudo, resulta inequívoco, quer das conclusões, quer da correspondente motivação, não haverem os recorrentes observado, na dimensão legalmente exigível, os ónus de impugnação, que sobre eles impediam – [cf. os n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP]. Assim é, pelo menos, enquanto não especificam, a concreta prova que imporia decisão diversa da recorrida e, sobretudo, a razão pela qual, na sua perspetiva, o imporia, sendo, para o efeito, insuficiente, aludir às respetivas declarações com referência ao que, a propósito, ficou a constar – em sede de fundamentação da decisão de facto – do acórdão em crise, bem assim ao conteúdo dos SMS, objeto de apreciação crítica no aresto e, por fim, ao depoimento – em sentido contrário à pretensão dos recorrentes – da ofendida.

Admitimos, porém, por via da falta de clareza das conclusões, e uma vez que por ambos vem invocada a violação do pro reo e, de modo expresso ou implícito, os vícios do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, que nestes resida o fundamento dos recursos, tanto mais que se limitam os recorrentes a convocar os mesmos meios de prova que, analisados e criticamente apreciados, conduziram à formação da convicção do Coletivo.

Seja como for, incumpridos que se mostram os ónus reportados nos n.ºs 3 e 4, do artigo 412.º do CPP – realidade transversal quer às conclusões, quer à motivação – inviabilizada resulta a sindicância ampla da matéria de facto, o que conduz, nesta parte, à rejeição dos recursos – [cf., a propósito, os acórdãos do STJ de 17.02.2005 (proc. n.º 05P058), 09.03.2006 (proc. n.º 06P461), de 28.06.2006 (proc. n.º 06P1940), de 04.10.2006 (proc. n.º 812/06-3.ª), de 04.01.2007 (proc. n.º 4093/06 – 3.ª) e de 10.01.2007 (proc. n.º 3518/06 -3.ª), solução que o Tribunal Constitucional já considerou não violar o direito ao recurso, como decidiu no acórdão n.º 259/02, de 18.06.2002 [DR II Série, de 13.12.2002], posição retomada no acórdão n.º 140/04 [DR II Série, de 17.04.2004].


*

Como já acima referido a sindicância da matéria de facto pode ainda ter como fundamento qualquer dos vícios respeitantes à confeção técnica da decisão, os quais terão de resultar do seu texto, por si ou conjugado com as regras da experiência comum.

Nesta sede refere o arguido/recorrente padecer o acórdão de “insuficiência da matéria de facto provada para que (…) possa ser condenado pela prática de 72 (setenta e dois) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1 al. b), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um dos crimes” – [cf. ponto H. das conclusões]; “… de contradição insanável entre matéria de facto provada e a decisão ao nível de subsunção jurídica …” em consequência – diz – de não se poder “considerar assente como faz o Tribunal a quo a fls. 33, que resulta assente que durante um período de tempo não concretamente determinado, mas, pelo menos desde o ano de 2002, altura em que a ofendida C. tinha 6 anos de idade, até Novembro de 2017, quando tinha 21 anos, o arguido A. levava a ofendida a praticar consigo atos sexuais, e durante todos estes anos, a ofendida se opôs à prática dessas atos” – [cf. pontos R. e S. das conclusões], enquanto a arguida/recorrente, sem qualquer concretização se limita a indicar, entre outras, como disposições violadas as alíneas a) e c), do n.º 2, do artigo 410.º, do CPP.

No que concerne ao vício previsto na alínea a), como refere Pereira Madeira, inCódigo de Processo Penal Comentado”, 2016, Almedina, pág. 1273-1274, refira-se que “Tem causado alguma dificuldade de perceção o alcance e a precisão do que deva ser «insuficiência da matéria de facto para a decisão». Deve notar-se antes de mais, que a fórmula não se refere ou específica o tipo de decisão «decisão condenatória» ou «decisão absolutória». A formulação legal é abrangente «para a decisão» e compreende toda e qualquer que seja a natureza da decisão. Assim, para ser «insuficiente para a decisão» a matéria de facto apurada no seu conjunto (abarcando factos (…), há-de ser incapaz de a suportar em abstrato, isto é, seja ela condenatória ou absolutória. Quando se afirma apenas que a matéria de facto provada é insuficiente para a condenação proferida, não se está a proceder à invocação deste vício, antes, em suma, a afirmar que o tribunal errou na aplicação do direito aos factos provados, o que nada tem a ver com os vícios da matéria de facto. Na verdade, sob esta perspetiva, a matéria de facto seria sempre «insuficiente»: pois, em caso de absolvição ela seria «insuficiente» para a condenação …e, em caso de condenação, sê-lo-ia para a absolvição …”.

Retomando a alegação é bom de ver que, convocando, embora, o vício, o que o arguido/recorrente questiona é a dita decisão condenatória, para a qual a matéria de facto provada se revelaria insuficiente, rectius incapaz de justificá-la. Mas, a ser assim a questão releva ao nível do erro de direito e não já da confeção técnica da decisão de facto.

Também no que respeita ao invocado vício de contradição insanável, se constata não visar o arguido/recorrente evidenciar a incompatibilidade entre factos provados, entre factos não provados, ou entre aqueles e estes [os quais se hão-de contradizer entre si ou excluir-se mutuamente], tão pouco a contradição entre os fundamentos e a decisão, isto é entre o que resultou provado e o que vem referido como fundamento da decisão; antes, sim, colocar em crise o modo como o Coletivo valorou a prova que conduziu à formação da convicção.

Improcedendo, nesta parte, o recurso do arguido, desfecho diferente não merece o recurso da arguida, a qual sequer cuidou de esclarecer em que medida o acórdão enfermaria dos ditos vícios, não os identificando este tribunal.


*

Comum a ambos os recursos surge a alegada violação do in dubio pro reo,regra de decisão na falta de uma convicção para além da dúvida razoável sobre os factos (FIGUEIREDO DIAS, 1974:215, CLAUS ROXIN, 1988:75 e 106; ULRICH EISENBERG, 1999:97, e COSTA PINTO, 2010:1070)”, cuja “força expansiva” se estende “às decisões essenciais sobre a própria subsistência do processo …” – [cf. Pinto de Albuquerque, inComentário do Código de Processo Penal”, 4.ª edição, Universidade Católica Editora]. Como a propósito escreve Castanheira Neves, in “Processo Criminal”, 1968, 55-60, “Não adquirindo o tribunal a “certeza” (a convicção positiva ou negativa da verdade prática) sobre os factos (…), a decisão tem de ser, por virtude do princípio in dúbio pro reo, a da absolvição”. Significa que conditio sine qua non para fazer funcionar o princípio é a existência de “uma dúvida racional que ilida a certeza contrária”, pois só esta limita a liberdade de apreciação do juiz, impedindo-o “de decidir com o seu critério pelo menos (…) os factos duvidosos desfavoráveis ao arguido”. De tal modo que, reproduzindo as palavras de Cristina Líbano Monteiro, “O universo fáctico – de acordo com o «pro reo» - passa a compor-se de dois hemisférios que receberão tratamento distinto no momento da emissão do juízo: o dos factos favoráveis ao arguido e o dos que lhe são desfavoráveis. Diz o princípio que os primeiros devem dar-se como provados desde que certos ou duvidosos, ao passo que para a prova dos segundos se exige certeza” – [cf. “PERIGOSIDADE DE INIMPUTÁVEIS E «IN DUBIO PRO REO», in Boletim da Faculdade de Direito, STYDIA IVRIDICA, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, pág. 50-53].

Retornando ao caso concreto extraísse das respetivas conclusões defenderem os recorrentes que, perante a divergência, verificada quanto ao marco temporal relativo ao início dos abusos sexuais, resultante do depoimento da ofendida e as suas declarações, na parte em que o primeiro o teria situado apenas desde os 11 anos da vítima e a segunda tão só admitido haver tomado conhecimento das ditas práticas abusivas quando a filha (…) tinha 11 ou 12 anos, deveria o Coletivo de juízes, na dúvida, ter acolhido a sua versão em detrimento da apresentada pela C., enquanto referiu ter sido vítima dos abusos [por parte do arguido] desde os seus 6 anos de idade, identificando o episódio em que a mãe os “surpreendeu” [na casa da sua avó, em (…)], ocasião em que tinha cerca de 8 anos de idade.

Da leitura do acórdão, concretamente na parte reservada à “CONVICÇÃO DO TRIBUNAL”, decorre com clareza tratar-se de “questão” pela qual os julgadores não passaram de ânimo leve; pelo contrário, nela se detiveram, decidindo-a, sem que se veja hajam sido perturbados pela dúvida. Neste sentido, atente-se nas seguintes passagens:

“Conjugando as declarações do arguido prestadas em audiência de julgamento e as prestadas em interrogatório judicial (reproduzido em audiência de julgamento), resulta no essencial admitida toda a factualidade descrita na acusação, com a ressalva dos períodos em que as mesmas se iniciaram. Com efeito, o mesmo referiu em síntese que:

- Abusou da ofendida desde os 11 anos, desde ter visto a mesma nua a tomar banho no rio em (...)

- Apalpava-lhe os seios e na vagina.

- Pedia para agarrar-lhe o pénis e friccionar, o que ela fazia.

- Introduzia os dedos na sua vagina.

- Nunca usou a violência.

- Nunca introduziu o pénis.

- Admite que tais atividades ocorreram seguramente 1 a 2 vezes pelo mês.

- Admite que estavam em (…) e foi surpreendida pela mulher – teria a ofendida cerca de 16 anos – nas férias do Verão. Na altura a C. tinha as cuecas para baixo.

- Colocava-se em cima dela, friccionando nela.

- Nunca viu filmes pornográficos com ela.

- Ia buscar mensagens à internet para lhe enviar.

- É mentira a agressão e a troca de palavras imputadas.

Em síntese o mesmo admitiu toda a factualidade constante da acusação relativamente à sua pessoa, apenas com a ressalva que tais práticas iniciaram-se quando a C. tinha 11 anos e com uma periodicidade de pelo menos uma vez por mês (artigos 1.º a 11.º,12.º a 21.º, 23.º a 43.º da Fundamentação de Facto, com a limitação da periodicidade e o início das práticas).

A arguida admitiu os factos constantes dos artigos 44.º a 52.º da Fundamentação de Facto, ainda que refira que os mesmos ocorreram quando a filha tinha cerca de 16 anos, referindo que nada fez porque os mesmos sempre negaram que tal se tivesse repetido, ainda que por vezes suspeitasse dos comportamentos do marido para com a filha C..

A admissão dos factos pelos arguidos – sendo que a arguida no essencial apenas admite a factualidade supra descrita, não admitindo todos os demais factos imputados na acusação – não logrou convencer o tribunal quanto ao início de tais práticas e ao seu conhecimento por parte da arguida [negrito nosso]

Quanto à factualidade não admitida pelos arguidos, a convicção do tribunal assentou essencialmente nas declarações da C..

No caso em apreço, há que atender ao facto de a prova da verificação dos factos nos crimes de natureza sexual, por força das circunstâncias, ser particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova direta, e regra geral só têm conhecimento da maioria dos factos o arguido e a vítima. Daí que assuma especial relevância o depoimento da vítima, desde que, como é evidente, o mesmo seja credível e esteja em sintonia com as regras da experiência comum, pois só nesse caso é suscetível de formar a convicção do julgador.

 […]

Quanto às suas declarações o tribunal convenceu-se da sua veracidade uma vez que delas transparece o perfil psicológico das vítimas de crimes sexuais, e em nenhum momento das suas declarações se evidencia qualquer sentimento de vingança, ou qualquer incoerência que não seja justificável pelas condicionantes psicológicas e emocionais da mesma.

Para a compreensão desta realidade é expressiva a passagem constante do Acórdão da Relação de Coimbra de 25.3.2014, aonde se lê «Como se afirma no estudo que constitui a tese de Mestrado em Ciências Forenses da Dr.ª Lígia Alexandra da Silva Carvalho, [«A Valoração do Testemunho da Criança Vítima de Abuso Sexual Intra-familiar no Contexto da Avaliação Forense»] o abuso sexual das crianças encerra complexas dinâmicas que remetem ao silêncio as crianças que dele são vítimas. Diz ainda a referida autora que o silêncio que caracteriza a situação abusiva decorre, igualmente, do que Summit (1983) designa de síndroma de acomodação ao abuso. Este síndroma explica as razões que conduzem as crianças a manter-se na situação abusiva, não revelando o abuso que as vitima. De acordo com Summit, a situação de impotência em que a criança se encontra contribui de forma decisiva para o seu silêncio. Importa não esquecer que a criança vivencia uma situação que não compreende e que é imposta por alguém que, de alguma forma, pelo estatuto ou pelo papel que desempenha na sua vida ou pela coação que utiliza, exerce poder sobre ela. Às crianças vítimas de abuso sexual, resta apenas, perante a impotência que sentem para por fim à experiência abusiva, o desenvolvimento de um esforço de adaptação e acomodação ao abuso. Esta necessidade de acomodação é reforçada face a processos de revelação que, para além de serem, logo à partida, complicados e difíceis para a criança, são, frequentemente, mal sucedido. (…) O síndroma da acomodação constitui, assim, um esforço adaptativo que a criança faz, de forma a garantir a sua sobrevivência ao abuso sexual. Todavia, salienta-se que este processo de acomodação acentua o sentimento de culpabilidade da criança e torna mais difícil o caminho para a saída da situação abusiva (Machado, 2003).» (in www.dgsi.pt).

No caso em apreço, é expressivo que a atuação da C. se enquadre perfeitamente neste quadro psicológico e que o mesmo tivesse sido aproveitado quer pelo arguido A., quer pela arguida B..

Concretizando, resulta das suas declarações não só a confirmação da factualidade já admitida pelos arguidos, como concretizou a data do início de tais práticas e a data em que a mãe os surpreendeu.

Neste plano a mesma foi perentória ao referir que os factos iniciaram-se quando a mesma tinha 6 anos, tendo mantido uma regularidade de pelo menos uma vez por mês. Se é certo que no início não havia qualquer introdução de dedos na sua vagina a mesma refere que, seguramente, a partir dos seus 13 anos o mesmo começou a introduzir os dedos na sua vagina. Tais práticas apenas terminaram em Novembro de 2017 quando a mesma saiu de casa. [negrito nosso].

[…]

Questionada sobre o arguido exerceu violência aquando destes atos, a C. negou taxativamente (…)

[…]

Este quadro psicológico que transparece em todas as declarações da C. reforça a credibilidade de todo o seu depoimento, demonstrando claramente que a mesma ao descrever os factos como o fez não se conduziu por qualquer sentimento de vingança que pudesse justificar o relato de factos falsos, mas por um forte sentimento de perda e dor pelo facto de constatar que durante aqueles anos foi sujeita aquelas práticas por ação e omissão das duas pessoas que lhe eram mais próximas e pelas quais nutria os mais profundos sentimentos.

Sintomático desta realidade, ouvida a testemunha (…) - a amiga da C. a quem esta lhe contou em Novembro de 2017 o que o arguido A. lhe fez desde os seus 6 anos – a mesma referiu que mesmo nessa altura a C. demonstrava preocupação em relação à mãe e um forte sentimento para com ambos os arguidos.

Quanto à situação em que a mãe os surpreendeu, a C. é perentória ao referir que tal ocorreu quando a mesma tinha cerca de 8 anos na casa da sua avó em (…), (…). Se é certo que não é possível datar com mais precisão tal data, ficou o tribunal convencido que seguramente desde os 9 anos de idade da menor a arguida B. tinha conhecimento de tais práticas e nada fez. [negrito nosso]

Com efeito, nessa situação, a C. refere que a arguida B. não teve qualquer dúvida sobre a natureza de tais práticas (como a própria de algum modo admitiu), tendo inclusive dito ao arguido “Papas a mãe e papas a filha”, tendo oscultado os corações de ambos e discutido com o arguido.

De semelhante apreciação destaca-se a credibilidade conferida pelo Coletivo de juízes ao depoimento da vítima, sustentada não só no facto de ter sido perentória quanto aos marcos temporais em referência, como na circunstância de não lhe haver sido detetado qualquer sentimento de vingança; bem pelo contrário! Assim foi, por exemplo, enquanto “taxativamente” afastou, perante o tribunal, o uso de violência, por parte do arguido, por ocasião da prática dos ditos atos; quando ao transmitir os abusos a uma sua amiga demonstrou preocupação em relação à mãe e um forte sentimento para com ambos os arguidos, aspetos que o teor do SMS convocado pela arguida/recorrente [reproduzido na fundamentação da convicção] na parte em que reporta um episódio em que tomaram banho nus no rio, situando então a idade da ofendida em 12/13 anos, é insuscetível de abalar. Para tanto, bastará recordar, a divergência [apreensível do texto da decisão] entre a ocasião em que a arguida, em sede de julgamento, referiu ter tomado conhecimento dos abusos e aquela outra que, agora [no recurso], pretende ver considerada. Por outro lado, importa salientar que quando o Coletivo ficou na dúvida sobre a “precisão” de alguns factos, relatados pela vítima, não deixou de acolher a versão que mais beneficiava o(s) arguido(s) - [cf. as seguintes passagens: Ainda que a mesma refira que a periodicidade de tais práticas foi aumentando, não conseguiu concretizar mais do que a referida periodicidade de 1 vez por mês (periodicidade também referida pelo arguido), tanto mais que questionada em audiência de julgamento apenas conseguiu seguramente referir a periodicidade de 1 mês.

A periodicidade de 2 vezes por semana foi apenas referida pela C. uma vez nas declarações por memória futura a resposta a uma pergunta da Magistrada do Ministério Público, ficando o tribunal convencido que houve aqui mais uma adesão a uma possibilidade levantada pela Magistrada do Ministério Público, levantando-se sérias dúvidas sobre tal periodicidade e a data em que a mesma passou a ocorrer. Tal dúvida implica, no entender do tribunal, que não possa ser feita tal fixação nos termos que constam da acusação.

Nestes termos, não se pode dar como provada que em dado momento a periodicidade fosse de duas vezes por semana como imputado na acusação.

Quanto à situação em que a mãe os surpreendeu, a C. é perentória ao referir que tal ocorreu quando a mesma tinha cerca de 8 anos na casa da sua avó em (…), (…). Se é certo que não é possível datar com mais precisão tal data, ficou o tribunal convencido que seguramente desde os 9 anos de idade da menor a arguida B. tinha conhecimento de tais práticas e nada fez], o que revela uma apreciação critica, cuidada, do depoimento da ofendida, longe, por conseguinte, de consubstanciar um puro ato de fé.

Em suma, não ressumando da fundamentação da convicção que aos julgadores se haja suscitado uma dúvida razoável sobre os marcos temporais que os ora recorrentes querem ver contrariados, tão pouco, à luz dos fundamentos expostos na decisão, vendo este tribunal motivo para que assim tivesse sido, só resta concluir, também nesta parte, pela improcedência dos recursos.

Em suma, prejudicada que “saiu” a sindicância do “erro de julgamento”; contrariada que foi a verificação dos vícios relativos à confeção técnica da decisão, apreensíveis a partir do seu texto, por si ou conjugados com as regras da experiência comum, a denunciar omissões relevantes, factos e/ou juízos contraditórios, uma apreciação ostensivamente ilógica, de afronta ao normal acontecer das coisas da vida; não resultando que o tribunal perante uma dúvida razoável tenha decidido contra os arguidos; não se detetando a valoração de prova proibida, a violação de prova vinculada, ou outra causa geradora de invalidade de conhecimento oficioso, considera-se, tal como assente em primeira instância, definitivamente fixada a matéria de facto.

§2. Dos crimes de abuso sexual de crianças [recurso de A.; recurso de B.].

No acórdão em crise foi o arguido/recorrente condenado pela prática, como autor material em concurso real efetivo, de 72 (setenta e dois) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b) e de 12 (doze) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), todos do Código Penal; tendo a arguida/recorrente sofrido condenação pela prática, por comissão por omissão, e concurso real efetivo, de 48 (quarenta e oito) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 e de 12 (doze) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 2, todos do mesmo diploma legal.

Contra o assim decidido insurgem-se ambos os recorrentes, dissentindo do marco temporal, correspondente ao início dos abusos sexuais, circunstância que operaria uma redução do número de crimes considerado. Contudo, a rejeição, por um lado, e a improcedência, por outro lado, dos recursos – em sede de matéria de facto -, conforme supra decidido, torna-os, nesta parte, infundados.

Vejamos em pormenor.

Centrando a atenção na matéria de facto provada resulta que, pelo menos desde o ano de 2002, altura em que a C. tinha 6 anos de idade, e até novembro de 2017, com a regularidade de uma vez por mês, o arguido, ora recorrente, “levava a ofendida a praticar consigo atos sexuais, designadamente de masturbação, e de simulação de sexo vaginal, deitando-se em cima da mesma quando ambos se encontravam nus, friccionando o seu pénis na vagina daquela, tocando-lhe os peitos e, desde os 13 anos da C., introduzindo-lhe os dedos na vagina” - [cf. o item 12.º, melhor concretizado nos itens 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 20.º, 21.º, 23.º, 24.º, 25.º, 26.º, 27.º, 29.º, 30.º, 31.º, 32.º, 33.º e 34.º]. Já quanto à arguida/recorrente decorre do acervo factual haver tomado conhecimento dos concretos atos de abuso sexual, praticados pelo arguido, seu marido, na menor, quando esta tinha cerca de oito anos, tendo, contudo, o tribunal - na impossibilidade de maior precisão na data - acabado por considerar como marco inicial os 9 anos de idade da (…) [desde os 9 anos de idade da menor], conhecimento esse que sempre manteve ao longo dos anos até novembro de 2017, quando a ofendida já tinha 21 anos de idade [cf. os itens 44.º a 55.º].

Ora, analisadas as conclusões, nenhum dos recorrentes, exceção feita à divergência manifestada pelo arguido quanto ao momento temporal em que se iniciaram os abusos sexuais e ao dissidio por parte da arguida em relação à altura em que dos mesmos tomou conhecimento – aspetos que – enfatiza-se – não lograram vingar, contrapõe algo capaz de infirmar, nesta parte, a decisão. Assim é no que respeita à natureza dos atos praticados; à respetiva periodicidade; ao facto de desde os 13 anos da C. os abusos terem passado também a compreender a introdução dos dedos do arguido na vagina da menor; às circunstâncias de modo e lugar em que os mesmos ocorreram; à integração desta no seio do agregado familiar constituído pelos arguidos e pela meia-irmã, revelando-se o acervo factual (apurado) esclarecedor sobre o tipo de relacionamento existente entre a ofendida e o padrasto [cf. v.g. os itens 4.º a 11.º, 56.º a 59.º], figurando este como o suporte económico do agregado.

O crime de abuso sexual de crianças na sua atual redação, artigo 171.º do Código Penal, que na parte que ora releva não se distingue no essencial das versões do D.L. n.º 48/95, de 15.03 (artigo 172.º) e da Lei n.º 59/2007, de 04.09 (artigo 171.º), dispõe no n.º 1 “Quem praticar ato sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos”. Já não assim em relação ao seu n.º 2, enquanto estabelece que “Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos”, pois só com a Lei n.º 59/2007, de 04.09 o tipo passou a contemplar a “introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos”.

Trata-se de crime contra a autodeterminação sexual direcionado à proteção do livre desenvolvimento do menor na esfera sexual, considerando que a vítima, em função da idade, não está em condições de se autodeterminar sexualmente, encarando-se, assim, as práticas sexuais que a envolvem prejudiciais ao seu crescimento harmonioso.

Como escreve Figueiredo Dias, reportando-se aos crimes compreendidos nas secções I e II do capítulo V do Código Penal, o motivo da distinção reside na circunstância de na primeira se proteger a “liberdade de todas as pessoas sem fazer aceção de idade; enquanto a segunda estende essa proteção a casos que ou não seriam crime se praticados entre adultos, ou o seriam dentro de limites menos amplos, ou assumiriam em todo o caso uma menor gravidade; e estende-a porque a vítima é uma criança ou um menor de certa idade” – [cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 711]. Já para Teresa Beleza o bem jurídico protegido “será em qualquer caso, a liberdade sexual. Liberdade de se relacionar sexualmente ou não e com quem para os adultos; liberdade de crescer na relativa inocência até à adolescência” – [cf. Sem sombra de pecado: o repensar dos crimes sexuais na revisão do código penal, Separata de Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, Revista do Centro de Estudos Judiciários, 1996, pág. 11].

De acordo com a doutrina, é um crime de perigo abstrato, “na medida em que a possibilidade de um perigo concreto para o desenvolvimento livre, físico ou psíquico do menor ou o dano correspondente podem vir a não ter lugar, sem que com isto a integração da conduta do tipo objetivo de ilícito fique afastada” – [cf. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 835; no mesmo sentido vide Maia Gonçalves, in Código Penal Português Comentado e Anotado, pág. 567; Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Portuguesa, pág. 473].

Voltando à situação em apreço, de tão evidente que resulta da matéria de facto, é indiscutível a integração na categoria de ato sexual de relevo – entendido como todo aquele comportamento que, de um ponto de vista essencialmente objetivo pode ser reconhecido por um observador comum despido de análises subjetivas ou moralistas como possuindo caráter sexual, e que em face da espécie, intensidade ou duração ofende de forma séria, grave e em elevado grau a intimidade e liberdade de determinação sexual da vítima, no caso dos adultos, ou a liberdade e autodeterminação sexual, no caso de menores [cf. acórdão do TRC, de 13.01.2016 (proc. n.º 53/13.1GESRT.C1)] - das práticas a que o arguido, reiteradamente, submeteu a ofendida. Estão em causa atos de conteúdo sexual, embora a modalidade da ação e a respetiva intensidade ofensiva nem sempre coincida, aspetos que encontram reflexo nas diferentes punições reveladas no tipo.

Como, a propósito do artigo 171.º do Código Penal, escreve Paulo Pinto de Albuquerque, “A disposição prevê quatro crimes distintos: o crime de prática de ato sexual de relevo; o crime de cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos; o crime de importunação; e o crime de atuação por meio de conversa, escrito, espetáculo ou objetos pornográficos” – [cf. ob. cit., pág. 473].

Tendo presente os marcos temporais fixados, bem como a respetiva periodicidade e modalidade da ação, relembrando que a incriminação visa proteger a liberdade de autodeterminação sexual de criança, isto é, do menor de 14 anos de idade, mostrando-se perfetibilizados os elementos objetivo e subjetivo – este compatível com qualquer forma do dolo - do tipo impõe-se concluir terem os arguidos [recorrentes] incorrido na prática dos crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 e, bem assim, dos crimes da mesma natureza, p. e p. pelo n.º 2 do mesmo preceito legal, neste caso correspondentes aos atos sexuais, traduzidos nos abusos levados a efeito com “introdução vaginal de partes do corpo”, modo de execução resultante das alterações introduzidas pela Lei n.º 59/2007, de 04.09 [enquanto igualou à cópula, coito anal ou coito oral a introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos], regime em vigor desde 15.09.2007, logo em plena vigência à data em que tal prática se iniciou, e que, nesta parte, permaneceu inalterado nas subsequentes revisões do Código Penal.

Por outro lado, também a consideração da agravante da alínea b), do n.º 1, do artigo 177.º do Código Penal no que ao arguido respeita não nos merece reparo. Na verdade, percorrendo os regimes que se foram sucedendo, a saber: o decorrente do D.L. n.º 48/95, de 15.03 [em vigor desde 01.10.1995], da Lei n.º 59/2007, de 04.09 [vigente desde 23.09.2007], da Lei n.º 103/2015, de 24.08 [em vigor desde 23.09.2015] e finalmente da Lei n.º 101/2019, de 06.09 é uma constante a agravação resultante da “dependência económica do agente” por parte da vítima – relação de dependência essa que, como refere Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 444, “não supõe a existência de uma prestação económica fundada em lei ou contrato, podendo ser uma dependência de facto. Condição essencial é a de que a subsistência da vítima esteja dependente, ao menos em parte, de uma prestação económica (em dinheiro ou em géneros) do agente” – situação que sempre se verificou e que, tal como outras, foi aproveitada pelo arguido para a prática dos crimes – [cf. v.g. os itens 11.º, 57.ºe 59.º da matéria de facto apurada].

Com a Lei n.º 59/2007 o preceito em causa assumiu a seguinte redação: “1- As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima: (…) b) Se encontrar numa relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação” - a qual, na versão da Lei n.º 103/2015, de 24.8, veio a ser objeto de ampliação, comportando, agora, igualmente, a relação de coabitação, mantida na redação da Lei n.º 101/2019, de 06.09. Ora, tal como defendido no acórdão do TRL de 12.05.2016 (proc. n.º 155/15.0JDLSB.L1-9), reportando-se à utilização do conceitorelação familiar”, também se nos afigura constituir pretensão do legislador alargar o âmbito da agravação às situações em que entre o agente e a vítima - como é o caso dos presentes autos - exista uma proximidade ou intimidade semelhante à dos parentes, retirando o primeiro partido da natureza da relação, não obstante por via dela lhe ser mais exigível uma conduta adequada ao direito, circunstância que aumenta o desvalor da ação, justificando, desse modo, a agravação – [cf. no mesmo sentido o acórdão do STJ de 13.02.2019 (proc. n.º 3922/17.6JAPRT.S1)]. E ainda que assim não fosse sempre a agravação decorrente da relação de afinidade [o arguido é casado com a mãe da vítima], contemplada na alínea a) do n.º 1, do artigo 177.º do Código Penal, a qual já encontrava tradução nas anteriores redações do preceito, resultaria verificada. A este propósito, por elucidativo, transcreve-se o sumário do acórdão do STJ de 15.02.2007 (proc. n.º 07P027), do seguinte teor: ”I – Sendo o arguido casado com a avó das vítimas, embora não sendo «avô», é afim delas no mesmo grau da linha reta ascendente, partindo das menores, ou descendente, partindo do progenitor. II – Se fosse avô, como exigiu o tribunal recorrido, esquecendo a afinidade e que também esta é fonte de relações jurídicas familiares – art.º 1576.º do Código Civil – o arguido não seria afim, mas parente no mesmo grau das crianças ofendidas. III – Consequentemente, o arguido casado com a avó das suas vítimas de abuso sexual de menores cometeu o crime agravado pelo artigo 177.º, n.º 1, a), do Código Penal, e não o crime simples p. e p. no artigo 172.º do mesmo diploma”.

Pelas razões expostas, importa concluir pelo bem fundado do acórdão enquanto considerou verificada, no que concerne ao recorrente, a agravação prevista no n.º 1 do artigo 177.º do Código Penal.

Não terminamos sem que se anote uma divergência entre o número de vezes reportado nos factos provados que o arguido praticou com a ofendida atos sexuais de relevo [84] – entre os 6 anos e até esta perfazer os 13 anos de idade [cf. os itens 24.º e 25.º dos factos provados] e o número de crimes pelo qual o mesmo veio a sofrer condenação pelo crime de abuso sexual de crianças agravado [72], circunstância que, conduzindo necessariamente a um maior número de penas parcelares do que as consideradas pelo tribunal a quo e, logo, em consequência do agravamento do correspondente somatório, a uma pena conjunta mais elevada do que a cominada no acórdão em crise, por força da proibição da reformatio in pejus [artigo 409.º, n.º 1 do CPP], não pode ser revertida por este tribunal, razão pela qual no julgamento do recurso apenas nos podemos ater às penas parcelares e conjunta cominadas no acórdão.

Em suma, improcedem nesta parte os recursos.

§3. Dos crimes de abuso sexual de menor dependente [recurso de A.]

Também a condenação sofrida pelo arguido em 48 (quarenta e oito) crimes de abuso sexual de menores dependentes agravado, p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, mereceu a sua reação.

Não obstante, como já se referiu, a falta de sistematização e, nesse medida, de clareza das conclusões, parece o recorrente fazer assentar o dissídio na – sua perspetiva - “indevida” consideração de a C. também se lhe encontrar à data dos factos “confiada para educação e assistência”, aduzindo, para o efeito, não ser a menor sua filha e estar “confiada aos cuidados, educação e assistência da mãe, a arguida”, pessoa que dela cuidava, não detendo ele o “poder paternal”, tão pouco lhe cabendo o poder/dever jurídico de edução ou assistência da mesma – [cf. v.g. os itens P. e Q. das conclusões].

No que ao caso importa, quer no domínio da Lei n.º 59/2007, quer na versão introduzida ao Código Penal pela Lei n.º 103/2015, dispõe o artigo 172.º:

1 - Quem praticar ou levar a praticar ato descrito nos n.ºs 1 ou 2 do artigo anterior, relativamente a menor entre os 14 e os 18 anos que lhe tenha sido confiado para educação ou assistência, é punido com pena de prisão de um a oito anos”

Através da incriminação tutela-se, uma vez mais, a autodeterminação sexual e o livre desenvolvimento da personalidade do menor entre os 14 e 18 anos no contexto de uma específica relação de confiança. Como escrevem M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio, in Código Penal, Parte Geral e especial, 2014, Almedina, pág. 723-724, “Estamos perante a transposição das capacidades respeitantes às crianças para os adolescentes e dependentes, acompanhada de exigência especiais, Figueiredo Dias, ATAS, 1993, p. 263. A punibilidade assenta na suposição de que ao jovem ou adolescente falta o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento para práticas sexuais, não em geral, mas com pessoa a quem tenha sido confiado para educação e assistência, circunstância geradora de uma dependência pessoal […] a) Educar significa assumir a direção e supervisão da condução da vida, promovendo o desenvolvimento físico e mental. Sob a designação de assistência temos a colaboração na formação e no bem-estar do menor nos aspetos físicos e mentais. É especial dever do agente atender ao direito e ao dever de condução e assistência do menor que lhe está confiado”.

Defende o recorrente que entre si e a menor - filha da sua mulher, a arguida - não se estabeleceu qualquer relação de confiança para educação ou assistência; contudo, sem razão, bastando atentar no que consignado vem sob os itens 4.º, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 56.º e 59.º do acervo factual para concluir que partilhava de facto – até com maior preponderância – a educação da C., a quem prestava, aos mais diversos níveis, assistência, assim se justificando a circunstância de a tratar como se sua filha fosse, por um lado, e para a menor representar “a sua única referência paternal” sendo como pai que o encarava, por outro lado.

Pelo interesse que reveste no caso, transcreve-se o que a propósito do crime em apreço se mostra consignado no recente acórdão do STJ de 27.11.2019 (proc. n.º 1257/18.6SFLSB.L1.S1): “O bem jurídico protegido é o livre desenvolvimento da personalidade (…), ligado aqui à ideia de que a liberdade e autodeterminação sexual de menores entre os 14 e 18 anos, confiados a outrem para educação ou assistência, se encontra carecida de uma proteção especial, não tanto pela falta de madurez para anuir como sobretudo pela viciação da liberdade de decisão ou de resistência derivada da relação de dependência para com o agente. Este prevalece-se dessa relação para obter da/o menor o consentimento ou anuência à prática de atos sexuais de relevo, sem necessidade de recorrer à força ou à coação. Porém, esse consentimento ou anuência está viciado por uma causa externa – a relação de superioridade determinada por causas legais, contratuais ou de facto -, que condiciona psiquicamente a liberdade de autodeterminação da criança e que a induz a aceitar a vitimização.

A relação de confiança para educação ou assistência gera um desnível notório entre as posições do agente e a da/o menor, na qual esta se situa em manifesta posição de inferioridade que restringe relevantemente a sua capacidade de se autodeterminar e, consequentemente, de se opor, de recusar a relação sexual que lhe é proposta ou requerida. Relação que o agente conscientemente aproveita para satisfazer os seus instintos libidinosos”. E prosseguindo, num caso em que se discutia a presença da dita relação para educação ou assistência por parte de pessoa que vivia em união de facto em relação a filho menor da sua companheira, refere o acórdão: “A união de facto (…), confere às pessoas que a formam direitos mas também obrigações. Os filhos menores de qualquer progenitor que vive em união de facto com outra pessoa têm os mesmos direitos e devem ser igualmente tratados, educados e assistidos que os filhos de ambos. (…) Identicamente ao que sucede com as pessoas casadas, aqueles que vivem em união de facto têm o dever cívico e moral e, consequentemente, de facto de coeducar os filhos menores de qualquer deles ou de ambos que vivem no mesmo agregado «familiar de facto», de lhes prestar apoio e assistência, de garantir a sua segurança e saúde, de contribuir para a economia comum e deste modo, também para o sustento dos menores que integram o agregado, independentemente dos laços de consanguinidade que possam ou não existir.

A/o criança filha/o da outra/o pessoa de uma união de facto não é um simples hóspede do agregado dessa «família afetiva». É um menor que, em igualdade de direitos com os filhos de ambos, integra e depende do respetivo “agregado de facto”. Os pais/mães, os padrastos/madrastas, no âmbito da relação matrimonial, mas também a outra pessoa de uma união de facto, em razão desse vinculo assumem corresponsabilidades parentais, de direito, mas também de facto relativamente aos próprios filhos, e igualmente assim em relação aos descendentes menores do outro cônjuge ou da/o companheira/o. A/o mãe/pai que estabelece uma relação de facto com outra pessoa levando filhas/filhos próprias/os para o seio do agregado da sua “família afetiva”, confia-as/os para a educação e/ou também para assistência ao companheiro, esperando e podendo exigir-lhe corresponsabilidade pela educação, formação, proteção, assistência e encargos”.

Isto dito, é manifesto o equivoco do recorrente enquanto exclui da relação suposta no tipo – confiado para educação ou assistência – o caso da “confiança de facto”, ou seja aquela que não deriva imediatamente da lei, de decisão judicial e/ou administrativa, quando maioritariamente a doutrina [cf. v.g. Maria João Antunes, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, 1999, I, Coimbra Editora, pág. 556; Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 478], mas também a jurisprudência vão em sentido contrário - [cf. v.g. o já identificado acórdão do STJ de 13.02.2019].

Em síntese, considerando os factos apurados, particularmente os acima referidos, nenhuma reserva nos suscita a imputação ao arguido dos crimes de abuso sexual de menor dependente, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal, em relação aos quais aos quais se mostram presentes os respetivos elementos típicos.

No que à agravação respeita, dado o lapso temporal por que os abusos perduraram, havendo que atender ao período que mediou entre os 14 e os 18 anos da vítima importa atentar na redação do artigo 177.º, na versão da Lei n.º 59/2007, não podendo, assim, relevar – como nota o recorrente – a relação de coabitação, introduzida pela Lei n.º 103/2015, cuja entrada em vigor ocorreu quando a ofendida já tinha atingido a maioridade, ou seja quando se encontrava para além do limite máximo de idade que cai dentro do âmbito de proteção da norma (artigo 172.º do Código Penal).

Não sendo a “relação familiar” e/ou de “dependência económica” elemento constitutivo do tipo de “abuso sexual de menores dependentes”, residindo, antes, o respetivo elemento objetivo na “relação de confiança para educação ou assistência”, tendo resultado apurado que o arguido, aproveitando-se daquelas relações (familiar e de dependência económica), praticou os “atos sexuais de relevo”, previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 171.º, do Código Penal, não nos suscita reserva o funcionamento da agravante em questão e, assim, o acórdão em crise enquanto condenou o ora recorrente pelo(s) crime(s) de abuso sexual de menor dependente agravado(s).

§4. Dos crimes de violação [recurso de A.]

 

Vem ainda o recorrente condenado pela prática de 12 (doze) crimes de violação, ocorridos entre agosto de 2014 e agosto de 2015, e de 26 crimes de crimes igualmente de violação, levados a efeito entre setembro de 2015 e novembro de 2017, em ambos os casos p. e p. pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal, os primeiros (12) cometidos na vigência do regime legal introduzido pela Lei n.º 59/2007 e os segundos (26) ocorridos quando já vigorava a redação da Lei n.º 83/2015.

Questiona o recorrente o acerto da decisão, já porque não seria de caracterizar como relação de autoridade a que mantinha com a ofendida, tão pouco tendo resultado demonstrado haver abusado dessa relação – isto relativamente aos crimes praticados entre agosto de 2014 e agosto de 2015 -, já em função - depreende-se – de não se mostrar presente o “ato de constrangimento” determinante da prática do “ato sexual de relevo” – agora com referência aos crimes praticados entre setembro de 2015 e novembro de 2017 – [cf. os pontos AA., BB., CC., DD. e EE. das conclusões].

A propósito lê-se no acórdão:

Vem ainda o arguido (…) acusado da prática em autoria material singular e em concurso efetivo, nos termos do disposto nos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 30.º, n.º 1, e 77.º, todos do Código Penal de:

- 312 (trezentos e doze) crimes de coação sexual agravados, previstos e punidos pelos artigos 163.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal;

Em conformidade com a previsão contida no referido preceito incriminador,

[transcrição do artigo 163.º nas versões após a entrada em vigor das Leis n.º 59/2007 e 83/2015, respetivamente].

O bem jurídico protegido neste normativo é o da autoconformação da vida e práticas sexuais (cf. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, Tomo II, 2.ª ed., p. 715).

Quanto ao crime de coação sexual, p. e p. pelo art.º 163.º, n.º 2, 1.ª parte do Código Penal, estamos perante um crime específico impróprio, uma vez que pressupõe uma especial relação com a vítima.

O tipo objetivo da coação sexual consiste no constrangimento de outra pessoa a sofrer (posição sexual passiva) ou praticar (posição sexual ativa) com o agente ou com outrem ato sexual de relevo, excluindo-se os atos sexuais praticados diante da vítima, que constituem “atos exibicionistas” (…). O cerne da ilicitude reside na forma vinculada do cometimento do crime (…).

Relativamente à incriminação do n.º 2 na versão dada Lei n.º 59/2007 estamos perante um crime específico impróprio uma vez que exige que o agente tenha uma qualidade especial: uma posição de autoridade em relação à vítima resultante de uma relação familiar (como ocorre no caso em apreço relativamente ao arguido A., que de facto exercia as funções de pai da C.). Por outro lado, o crime pode ser cometido por omissão, pela pessoa sobre quem recai o dever de garante (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, p. 444).

Já na versão introduzida pela Lei n.º 83/2015, o preenchimento do tipo não carece que o agente abuse da autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho.

Como refere Figueiredo Dias, «Para o preenchimento do tipo deste crime apenas é necessária a vontade contrária ao ato, isto é, a sua oposição íntima séria ao ato sexual até à consumação (…) a resistência não é condição da verificação do tipo» (cf. in Comentário Conimbricense, Tomo II, 2.ª ed., p. 724).

O legislador ao mencionar outro “meio não compreendido no número anterior” visa todas aquelas situações que não consubstanciando violência ou ameaça grave tem a capacidade de anular a resistência de quem sofre tais atos contra a sua vontade.

Entendemos que no caso em apreço, tal situação típica ocorre. Com efeito, se é certo que a C. após ter feito 18 anos podia conduzir a sua vida de forma autónoma em relação aos pais, a verdade é que, por um lado, ainda se mantinha em casa na dependência económica dos arguidos e sob a autoridade destes e, por outro lado, a sua atuação estava limitada por cerca de 12 anos de condicionamento psicológico do arguido (…).

Com efeito, se é certo que todas estas práticas ocorreram contra a sua vontade, o facto de a mesma durante mais de 12 anos sentir que caso não aceitasse as mesmas o arguido – a quem chamava pai e assim o considerava – ficaria aborrecido com a mesma e passaria a trata-la de forma diferente em comparação com a sua filha biológica, criou nela um tal condicionalismo psicológico que mesmo depois de fazer 18 anos a mesma não se sentia livre para ir contra a vontade daquele a quem reconhecia ser a autoridade no seio familiar e de quem todos dependiam economicamente, uma vez que a consequência que daí adviria seria, para ela, mais grave que a manutenção da sua sujeição a tais práticas.

Já com 18 anos ainda assim a C. não conseguiu reafirmar perante o arguido A. a sua vontade de não praticar tais atos sexuais, mantendo-se na mesma situação de sujeição que outrora existia, ainda que por razões e motivações distintas. Se até aos 18 anos seria relevante a sua idade e o facto de estar confiada aos arguidos enquanto pais, após tal data é este condicionamento psicológico construído pelo arguido A. durante anos abusando da autoridade que este exercia sobre aquela que se manifestou após os 18 anos na sua plenitude e que justifica a sua conduta. Com efeito, entre a C. e o arguido A. existia uma situação efetiva de dependência (de submissão, por afeto) daquela em relação ao arguido, o que configura uma situação de abuso de autoridade resultante de uma relação familiar (cf. Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense, Tomo I, 2.ª ed., p. 739).

Este requisito despareceu com a entrada em vigor da lei n.º 83/2015 bastando-se com o constrangimento por qualquer meio idóneo para o efeito.

No caso em apreço, pelas razões já supra expostas tal ocorreu no caso em apreço.

Deste modo, entende o tribunal que a situação em apreço, preenche os elementos objetivos do crime imputado com a exceção relevantíssima da natureza do ato sexual praticado.

Com efeito, resulta da matéria assente que o arguido após os 18 anos da C. e até à sua saída de casa, ocorrida em novembro de 2017, com a periodicidade de pelo menos uma vez por mês, manteve as mesmas práticas sexuais, as quais incluíam a introdução de dedos na vagina daquela. O arguido, gozando da situação de proximidade familiar, bem como de dependência económica que a mesma tinha consigo, manipulava a ofendida de forma a constrangê-la a ter consigo os atos de natureza sexual supra descritos, atuando sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas descritas condutas eram censuradas, proibidas e punidas por lei penal.

Ora, é manifesto que tal conduta não consubstancia a prática do crime de coação sexual – que apenas remete para a prática de atos sexuais de relevo – mas para o crime de violação, p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 2, al. b) do Código Penal.

Estamos perante um crime que apenas difere do de coação pela natureza do ato sexual a que foi sujeita a vítima.

Nestes termos, encontrando-se preenchidos os elementos típicos objetivos e subjetivos do crime de violação p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 2, al. b) do Código Penal, e tendo tais práticas ocorrido seguramente por 38 vezes, terá o arguido que ser condenado por 38 crimes de violação, p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 2, al. b) do Código Penal.

Nesta situação sufragamos o entendimento plasmado por Paulo Pinto de Albuquerque que entende que a relação familiar inclui também a pessoa casada com o progenitor, pelo que não poderá haver lugar à agravação prevista no art.º 177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal (cf. in Comentário ao Código Penal, p. 444, 445, 449 e 452).

Quanto aos demais crimes de coação sexual imputados ao arguido, que pressupõem uma periodicidade das práticas diversa da provada, terá o arguido que ser absolvido dos mesmos.».

Isto dito.

Atendendo ao lapso temporal considerado quanto à prática dos crimes de violação, entre agosto de 2014 e novembro de 2017, necessário se torna centrar a atenção no artigo 164.º, n.º 2 na redação quer da Lei n.º 59/2007 [em relação aos atos sexuais praticados entre agosto de 2014 e agosto de 2015], quer da Lei n.º 83/2015 [relativamente aos atos sexuais levados a efeito entre setembro de 2015 e novembro de 2017].

Nos termos introduzidos pela primeira [Lei n.º 59/2007]:

“2 – Quem, por meio não compreendido no número anterior e abusando de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, ou aproveitando-se de temor que causou, constranger outra pessoa:

a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou

b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos;

é punido com pena de prisão até três anos”,

preceito este que, com a Lei n.º 83/2015, assumiu a seguinte redação:

“2 – Quem, por meio não compreendido no número anterior, constranger outra pessoa:

a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou

b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos;

é punido com pena de prisão de 1 a 6 anos”, regime que não sofreu alteração com a redação introduzida ao Código Penal pela Lei n.º 101/2019, de 06.09.

De facto se com a revisão de 2007, para o efeito do crime em questão, se equiparou à copula, coito anal ou coito oral a “introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos”, aditando, de outro passo, às situações anteriormente previstas o abuso de autoridade dependente de relação familiar, de tutela, ou curatela e o aproveitamento do temor causado, por qualquer meio não contemplado no n.º 1, a Lei n.º 83/2015 [intimamente ligada à Convenção de Istambul, ratificada por Portugal em 21.01.2013, e que passou a vigorar em 01.08.2014] deixando de fazer referência aos casos de abuso de autoridade ou ao aproveitamento do temor causado, passou tão só a exigir o constrangimento “por meio não compreendido no número anterior”.

No caso concreto, a matéria de facto provada não consente dúvida no sentido de que o arguido/recorrente por via da “relação familiar” [já anteriormente nos pronunciamos sobre a respetiva abrangência], de facto ou de direito, aqui com fonte na afinidade, que desde a infância da C. [a partir dos seus três anos de idade] com ela estabeleceu, mas também da dependência económica desta relativamente à sua pessoa, relações que inequivocamente o investiram num poder de autoridade face à ofendida, se aproveitou para a constrangeu a “sofrer introdução vaginal de partes do corpo” – [cf. v.g. os itens 5.º, 6.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º, 36.º, 37.º, 38.º, 39.º, 40.º, 41.º, 42.º, 56.º, 57.º e 59.º dos factos provados]. Tal como considerou o tribunal a quo, entendemos que o constrangimento, sempre exigível, na situação em presença se traduziu na manipulação da ofendida, que o arguido iniciou quando esta tinha apenas 6 anos de idade, desenvolveu e foi sedimentando ao longo de um período muito alargado de tempo até a mesma, já com 21 anos, sair de casa. Estamo-nos a reportar a um constrangimento passado e presente, explicável por via da proximidade familiar, própria da filiação, que remonta aos três anos de idade da vítima, da dependência económica, do desejo, mais do que compreensível, por parte desta de ser tratada da mesma forma que a sua meia-irmã, procurando, assim, evitar um tratamento de discriminação negativa [cf. o item 37.º], do cerco que o arguido lhe montou em termos de condicionar o relacionamento próprio de uma criança, de uma adolescente e, por fim, após atingir a maioridade, de uma jovem mulher [cf. v.g. itens 38.º e 39.º], originando na mesma consequências físicas e psíquicas, que conduziram ao desenvolvimento de raciocínios “deprimentes”, como o que se mostra ilustrado sob o item 41.º dos factos provados, que se adensou com o decorrer dos anos, condicionando irremediavelmente a vontade da vítima, a qual sempre se opôs à prática dos referidos atos sexuais [cf. item 36º dos factos provados], oposição essa que, não exigindo a verificação por parte da mesma de uma reação física – isto é que se debata com o agressor –, dependendo do contexto, pode mesmo dispensar a exteriorização por palavras. Neste sentido é significativo o teor do artigo 36.º, n.º 1 da Convenção de Istambul enquanto estipula que cabe aos Estados adotar as medidas legislativas ou outras que se mostrem necessárias para assegurar a criminalização de quem intencionalmente (i) praticar a penetração vaginal, anal ou oral, de natureza sexual, de quaisquer partes do corpo ou objetos no corpo de outra pessoa, sem consentimento desta última; (ii) praticar outros atos de natureza sexual não consentidos com uma pessoa; (iii) levar outra pessoa a praticar atos de natureza sexual não consentidos com terceiro, acrescentando no n.º 2 que o consentimento deve ser dado voluntariamente, por vontade livre da pessoa, avaliado no contexto das circunstâncias envolventes.

Tendemos, assim, a considerar que o simples dissentimento [não consentimento] da vítima, dependendo das circunstâncias do caso, pode integrar o elemento objetivo do ilícito típico em questão, posição que que não deixa de colher apoio na atual redação do n.º 3 artigo 164.º do Código Penal, introduzido pela Lei n.º 101/2019, de 06.09, enquanto dispõe: “Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática dos atos referidos nas respetivas alíneas a) e b) contra a vontade cognoscível da vítima” – [negrito nosso], norma que julgamos traduzir, sem equívocos, a real dimensão do artigo 36.º da Convenção de Istambul.

Concluindo, também nesta parte não merece censura o acórdão recorrido.

§5. Da pena única aplicada [recurso de A.; recurso de B.]

Não se conformam os recorrentes com a pena única de prisão em que foram condenados, qualificando-a como demasiado dura e excessiva, pugnando a recorrente pela aplicação de uma pena que não ultrapasse os cinco anos de prisão, suspensa na sua execução.

Ao arguido/recorrente A. pela prática de cada um (i) dos 72 (setenta e dois) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, foi aplicada a pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão; (ii) dos 12 (doze) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, foi aplicada a pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão; (iii) dos 48 (quarenta e oito) crimes de abuso sexual de menores dependentes, p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 1, agravado nos termos do artigo 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, foi aplicada a pena de 3 (três) anos de prisão; (iv) dos 12 (doze) crimes de violação, p. e p. pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal foi aplicada a pena de 20 (vinte) meses de prisão; (v) dos 26 (vinte e seis) crimes de violação, p. e p. pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal, foi aplicada a pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.

À arguida/recorrente B. pela prática de cada um (i) dos 48 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 do Código Penal, foi aplicada a pena de 2 (dois) anos de prisão; (ii) dos 12 (doze) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 2 do Código Penal, foi aplicada a pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão; (iii) dos 48 (quarenta e oito) crimes de abuso sexual de menores dependentes, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal, foi aplicada a pena de 2 (dois) anos de prisão.

Na concretização da regra estabelecida no nº 1 in fine, do artigo 77º do Código Penal, de acordo com o qual na medida da pena - no que à punição do concurso concerne - são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, tem sido pacífico, designadamente ao nível da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que essencial na formação da pena conjunta é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação desse bocado de vida criminosa com a personalidade, de tal forma que a pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares - [cf. acórdão do STJ de 05.07.2012 (proc. n.º 145/06.SPBBRG.S1)], o que, contudo, não dispensa o recurso às exigências de prevenção geral e especial, encontrando, também, a pena conjunta o seu limite na medida da culpa.

À luz do n.º 2 do artigo 77.º do Código Penal a moldura penal abstrata a atender para efeitos do concurso de crimes, no seio da qual há-de ser encontrada a pena conjunta, situa-se no caso do arguido/recorrente entre um limite mínimo de 5 [cinco] anos e 6 [seis] meses de prisão [correspondente à mais elevada das penas parcelares aplicadas aos vários crimes em concurso] e um limite máximo de 25 anos de prisão [decorrente da limitação legal imposta pelo artigo 77.º, n.º 2]; no que concerne à arguida/recorrente a dita moldura tem como limite mínimo 3 [três] anos e 10 [dez] meses de prisão, quedando-se, pelas mesmas razões, o limite máximo nos 25 anos de prisão.

A propósito reporta o acórdão “Na fixação da pena única há que atender à imagem global dos factos. Neste plano, é entendimento do tribunal que a conduta do arguido A. é de tal modo grave que a pena única terá de refletir tal gravidade. Ainda assim, há que atender à homogeneidade dos atos praticados, levando a uma compressão significativa das penas parcelares (…), sendo que a pena única a fixar a este arguido terá de ser significativamente superior à pena única aplicada à arguida B. não só porque os atos praticados são mais graves e em maior número.

Assim, atendendo ao conjunto das circunstâncias já anteriormente consideradas na determinação da medida da pena e ainda ao facto de os crimes terem entre si uma certa homogeneidade, tendo sido praticados perante vítima especialmente vulnerável e por um período de pelo menos 10 a 15 anos, entende-se adequadas, justas e proporcionais as seguintes penas únicas:

Arguido A., a pena única de 12 (doze) anos de prisão;

Arguida B. (…), a pena única de 7 (sete) anos de prisão.

A gravidade dos crimes, o período temporal do respetivo cometimento (10/15 anos), o qual atravessou a infância, a adolescência e se arrastou para além da maioridade da vítima, com o que tal representou – basta recordar os traumas, os raciocínios, as reações psicossomáticas desenvolvidas, até a privação, através do controlo exercido, do convívio com aqueles que na sua idade seriam naturalmente os seus pares, aspetos reportados nos factos - e vai continuar a representar ao nível psicológico, de desestruturação de toda uma fase da vida, cujas consequências para o futuro, desde logo ao nível da organização de uma relação afetiva, sendo imagináveis, não deixam de ser incomensuráveis, constituem uma realidade que se impõe com grande crueza.

A interligação dos factos por resoluções e meios de atuação idênticos, em que, sobretudo, o arguido revelou uma conduta particularmente desvaliosa da sua personalidade na medida em que ao adotar as condutas descritas atuou com a intenção de satisfazer os seus desejos sexuais, enquanto a arguida foi desvalorizando os abusos sexuais e de certa forma corresponsabilizando a vítima, sua filha, pelo que se estava a passar, denota uma formação muito duvidosa.

As exigências de prevenção geral são muito expressivas neste tipo de crimes, face à necessidade de proteção da defesa da autodeterminação e liberdade sexual, bem como do desenvolvimento e crescimento harmonioso das crianças e menores. Também as exigências de prevenção especial, não obstante a delinquência primária de ambos os arguidos, perante as circunstâncias dos crimes, o tempo pelo qual se arrastaram – por mais de uma década – e a necessidade de dissuasão da reincidência se apresentam consideráveis.

A culpa assumiu sempre a modalidade mais gravosa do dolo, revelando-se em ambos os casos intensa.

O arguido mostra-se profissionalmente inserido, vive com a arguida, encontrando-se a filha menor do casal – situação decorrente do presente processo – institucionalizada. A vítima vive em agregado autónomo.

A arguida encontra-se reformada por invalidez.

Valorando em conjunto o ilícito global perpetrado sobre uma única pessoa, a homogeneidade das condutas, praticadas contra pessoa especialmente vulnerável, tratando-se de uma atuação pluriocasional, pese embora se haja arrastado por muitos anos, entende-se encontrar maior adequação e proporcionalidade a pena única de 10 (dez) anos de prisão para o arguido e de 6 (seis) anos de prisão para a arguida.


*

Não se mostrando presente os pressupostos, desde logo formais, de que o legislador faz depender a suspensão da execução da pena de prisão – cf. o artigo 50.º do Código Penal – não há lugar à ponderação da dita pena de substituição, tal como preconizado pela recorrente.

§6. Do montante indemnizatório arbitrado [recurso de A.]

Não se conforma o recorrente com o montante indemnizatório fixado à vítima a título de danos não patrimoniais.

A indemnização foi arbitrada com base no artigo 16.º da Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro, prevista para vítimas especialmente vulneráveis, tendo o tribunal a quo considerado – e bem – ser de integrar nessa categoria a ofendida nos presentes autos porquanto “vítima de abusos sexuais desde os 6 anos até aos 21 anos em meio familiar”.

Nesta sede refere o acórdão: “No caso em apreço, a conduta dos arguidos – por ação e por omissão – comprometeu e compromete seriamente o desenvolvimento da vítima, uma vez que contende com o núcleo mais essencial para o desenvolvimento harmonioso de uma pessoa: a sua intimidade, a disposição do seu corpo, o estabelecimento saudável de relações de proximidade com terceiros, a criação de laços familiares com os mais próximos.

Acresce que a conduta dos arguidos foi em conjunto um facto decisivo para a total desproteção da vítima.

Atentas as considerações já supra expostas quando da determinação concreta das penas aplicáveis aos arguidos, entende o tribunal que não há que distinguir cada uma das condutas ou omissões dos arguidos, antes a reparação a atribuir à C. deverá obrigar solidariamente os arguidos porquanto é na conjugação das condutas de ambos que se percebe a dimensão das consequências das mesmas na pessoa da C..

Nestes termos, atento todos os factos já supra expostos, entende o tribunal justo, adequado e proporcional fixar a quantia de 50.000,00 Euros a título de dano não patrimonial, sendo os arguidos solidariamente obrigados no seu pagamento”.

Está em causa a compensação pelos danos não patrimoniais de que foi vítima a C., em consequência dos inúmeros atos de abuso sexual contra si, por ação e omissão, praticados [conforme resulta dos factos provados], atribuída por força do Estatuto da Vítima, aprovado pela citada Lei n.º 130/2015, a calcular de acordo com a equidade [artigo 496.º do CC]. “… vale dizer que o quantitativo monetário da reparação ou compensação se deve encontrar à luz do que se apresente como equitativo, sem ter de obedecer ao regime jurídico da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos [...] Para o arbitramento da reparação, essenciais são a idade […] e o tipo, o grau e a duração da vitimização com consequências psíquicas e sociais – [cf. o acórdão do STJ de 27.11.2019 (proc. n.º 1257/18.6SFLSB.L1.S1)].

A ilicitude revelada nos factos, dado o número de abusos sexuais praticados, o longo período de tempo por que se arrastaram – sendo que se iniciaram quando a ofendida tinha apenas 6 anos de idade, prolongaram-se por toda a adolescência e apenas findaram quando a mesma saiu de casa, já com 21 anos -, a respetiva periodicidade e intensidade das ações, é muito elevada; A culpa, na modalidade mais gravosa, de dolo direto, é intensa; a dimensão dos danos, físicos e psicológicos, revelados nos factos [os síndromas, os raciocínios desenvolvidos, a necessidade de apoio psiquiátrico e psicológico, as reações psicossomáticas], decorrentes para a vítima das práticas delituosas a que foi submetida durante longos anos é devastadora não só porque foi privada de um desenvolvimento e crescimento harmonioso, como da vivência de etapas relevantíssimas da vida de uma pessoa, precisamente aquelas em que a formação da personalidade assume um papel primordial. A projeção negativa dos danos na vida futura, designadamente na capacidade de desenvolver de forma saudável uma relação afetiva, constitui uma evidência.

Tudo ponderado, mas sem perder de vista a modesta condição sócio -económica dos arguidos, bem como a natureza de compensação do arbitramento de uma indemnização às vítimas especialmente vulneráveis - como é o caso - imposto pelo Estatuto da Vítima, aprovado pela citada Lei n.º 130/2015, considera-se mais equitativo fixar o montante compensatório em € 35.000,00 [trinta e cinco mil euros], acrescida de juros de mora conforme decidido pelo tribunal recorrido.

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar parcialmente procedentes os recursos interpostos pelos arguidos A. e B. e em consequência:

a) Em cúmulo jurídico das penas parcelares cominadas em 1.ª instância, condenar o arguido A. na pena única de 10 (dez) anos de prisão;

b) Em cúmulo jurídico das penas parcelares cominadas em 1.ª instância, condenar a arguida B. na pena única de 6 (seis) anos de prisão;

c) Condenar solidariamente os arguidos A. no pagamento à ofendida C. de uma indemnização, a título de danos não patrimoniais, no valor de 35.000,00 € (trinta e cinco mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal desde o presente até integral pagamento;

d) Revogar em correspondência com o supra decidido o acórdão recorrido, o qual em tudo o mais se mantém.

Sem tributação.

Coimbra, 4 de Março de 2020

[Texto processado e revisto pela relatora]

Maria José Nogueira (relatora)

Isabel Valongo (adjunta)