Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
293/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VITOR
Descritores: QUESTÃO DE DIREITO
QUESTÃO DE FACTO
Data do Acordão: 09/28/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GOUVEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVODADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTSº 610º E SEGUINTES DO C. CIVIL; ART. 456.º, N.º 1 E 2, AL. A) E B), DO CÓD. PROC. CIVIL,
Sumário: 1. O Direito tem que ser intencionado essencial-mente à protecção de interesses axiologicamente legiti-mados da vida em sociedade cuja realização transvaza bastas vezes o apertado esquema silogístico tradicio-nal.
2. A realização de uma verdadeira justiça material passando sempre pela aplicação da lei mediada pelo Juiz terá que, para além do elemento literal da norma encon-trar os valores que num dado momento lhe estão subja-centes e extrair os princípios reguladores adequados a uma correcta solução normativa.
3. E o que se passa em matéria de interpretação da lei sucede de igual forma quanto às situações factuais esbatendo-se a rígida dicotomia entre facto e direito enfeudada à lógica tradicional.
4. Nesta medida não tem sido estranho o enriqueci-mento que o pensamento jurídico tem registado nomeada-mente pelo contributo das modernas ciências da lingua-gem e em particular pela investigação e pro-gresso no domínio da hermenêutica que acentuadamente se tem feito sentir na metodologia e ciência do Direito.
5. Em matéria de destrinça entre "questão de facto" e "questão de direito" é hoje um dado adquirido que mui-tos conceitos tidos como puros, estão já imbuí-dos de um sentido e não se prende isoladamente a mero facto ou ao direito antes se apresentado como uma sim-biose entre ambos.
6. São precisamente os casos em que o facto e o direito estão tão próximos na linguagem corrente que é muito difícil indagar desses factos sem qualquer cono-tação jurídica prévia;
7. Por outro lado também ao nível dos leigos a expressão jurídica extravasou de há muito o campo téc-nico-jurídico para se publicizar, tornando-se do domí-nio comum.
8. Não é pois de estranhar que no início do pro-cesso cognitivo de uma expressão se surpreenda pois já "uma pré-comprennsão, reportando-se à coisa de que o texto fala e à linguagem em que se fala dela". Essa pré-compreensão que é fenómeno de natureza cultural, não impede todavia o Juiz de apreender a especificidade do caso; só que na sua análise e tratamento a questão de facto é inseparável da questão de direito .
9. Estão não condições supra-referidas v.g. as expressões "enganar terceiro", "consciência do prejuízo que as vendas causavam ao credor".
10. Os efeitos da simulação são mais gravosos do que os da impugnação pauliana; ali declarada procedente a acção, o negócio é declarado nulo; na impugnação pau-liana o negócio permanece válido e unicamente é inefi-caz em relação ao impugnante.
11. O instituto da litigância de má-fé visa apenas punir as partes pelo seu comportamento processual doloso ou gravemente negligente e nenhum destes casos se veri-fica se a parte não interveio no processo. O instituto da litigância de má-fé não vai além da puni-ção das par-tes pelo seu comportamento processual inade-quado e este não existe, como é óbvio quando a condena-ção não é pre-cedida de qualquer acto no processo.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra.
A… vem propor acção com processo Ordinário com o nº 55/01 contra B,C,D,E
Conclui pedindo que:
- A presente acção seja julgada procedente por pro-vada, e, em consequência, seja declarada a nulidade do con-trato de compra e venda celebrado em 13/05/98 no Cartó-rio Notarial de Seia, e em consequên-cia determi-nado o cancelamento da inscrição de pro-priedade nº G-2, Ap. 07/981020 que incide sobre o pré-dio.
Seja dada por impugnada paulianamente a venda do prédio supra referido, nos termos e fundamentos dos artsº 610º e seguintes do C. Civil, pelo que, em conse-quência, a alienação do referido bem não produz efeitos em relação à A., devendo ser decretada a ineficácia da transmissão do imóvel em causa nesta acção, podendo a A. obter a satisfação do seu crédito à custa da penhora e venda de tal bem, declarando-se também ineficaz perante a A. o registo de aquisição a favor dos segun-dos RR.
Alegou para tanto e em resumo, que no exercício da sua actividade creditícia, a A. celebrou um contrato de mútuo até 30.000.000$00, com a empresa Carvalho & Irmão, Ldª, conforme contrato dado como perfeito em 23/12/97.
O citado contrato venceria juros à taxa anual de 11,5%, alterável em função da variação da mesma, acres-cendo em caso de mora a sobretaxa legal, tendo o refe-rido empréstimo sido destinado ao apoio à implementação de um projecto de investimento da já citada empresa Carvalho & Irmão, Lda.
Os primeiros RR. responsabilizaram-se solidaria-mente como fiadores e principais pagadores por tudo quanto viesse a ser devido à Caixa, em consequência do contrato.
Devido a incumprimento contratual por parte da mutuária e fiadores, a A. em 03/03/00, moveu uma acção executiva contra os fiadores e outros pelo valor de 29.178.976$00 e juros vincendos.
Nesse processo a A. somente conseguiu penhorar 1/3 da pensão de reforma do primeiro Réu marido, e ao pro-curar identificar outros bens aos executados fiadores, aqui primeiros RR., verificou que já haviam sido alie-nados e que assim não poderiam ser penhorados.
Por escritura de 13/05/98, os primeiros RR. aliena-ram um bem imóvel à segunda Ré, pelo valor de esc. 8.500.000$00, mas apesar da escritura, são os pri-meiros RR. que continuam a residir na casa de habitação que pretensamente venderam, tendo sido este um negócio simulado.
Por causa da referida venda, que é posterior à constituição do crédito da ora A., ficou esta impossi-bilitada, ou pelo menos, viu agravado ou diminuída a possibilidade de penhorar aos ora primeiros RR., bens suficientes para liquidar a totalidade dos seus crédi-tos.
Citados os Réus a fls. 29 a 32, pelos primeiros RR. foi apresentada a respectiva contestação alegando em síntese o seguinte:
Os primeiros RR. venderam à segunda Ré o prédio urbano pelo preço de (8.500.000$00), e estes nem sequer tiveram pressa em providenciar pelo seu registo, já que estavam tranquilos quanto à honestidade e seriedade do negócio.
O R. solicitou aqueles diversos empréstimos em dinheiro para realizar fundos de maneio para a firma “Carvalho & Irmãos Ldª”, verbas essas que se encon-tram devidamente contabilizadas e quando a dívida já ia em 8.500.000$00, o R. solicitou novamente aqueles novos empréstimos e foi então que os segundos RR. propuseram a venda da sua casa, pelo montante correspondente ao valor da divida, ao que este acedeu.
Não houve intenção de ocultar tal venda, por fictí-cia, nem engendraram qualquer plano que envolvesse terceiros.
A firma “Carvalho & Irmão, Lda.”’, de que o contes-tante era sócio-gerente, dispunha de um patrimó-nio imo-biliário avaliado em mais de 140 mil contos, para garantir o pagamento do débito à A., e possuía viatura e máquinas avaliadas em mais de 20 000 000$00.
Os RR. não agiram com o objectivo de lesar a A. ou qualquer outro credor, e também não pretenderam escon-der, com quaisquer subterfúgios, o negócio celebrado, já que agiram sempre com lisura e boa fé.
Concluem que deve a presente acção ser julgada impro-cedente, por não provada e, em consequência, ser o R. absolvido dos pedidos formulados, com as demais conse-quências legais.
Procedeu-se a julgamento acabando por ser profe-rida sentença que:
a) Julgou procedente a acção, e, em consequência, condenou os Réus a verem declarada a nulidade do con-trato de compra e venda celebrado pela escritura de 13/05/1998, no Cartório Notarial de Seia, referente à casa de habitação com r/c 1º e 2º andar e logradouro inscrita na respectiva matriz sob o artº 938 da fregue-sia de S. Pedro de Gouveia, concelho e comarca de Gou-veia, referido no doc. de fls. 18 a 20 dos autos, cujo teor aqui damos por reproduzido.
b) Em consequência da nulidade do negócio cele-brado, determina-se o cancelamento da inscrição de pro-priedade n.º G-2, Ap. 07/981020, a favor de Maria Fer-nanda Ferreira de Carvalho Fontes, casada com José Simões Fontes.
c) Uma vez que os Réus, deduziram oposição, cuja falta de fundamento não ignoravam e alteraram a verdade dos factos, de forma consciente, nos termos do art. 456.º, n.º 1 e 2, al. a) e b), do Cód. Proc. Civil, condenam-se, como litigantes de má fé, os primeiros e segundos Réus, na multa de 1000 Euros (mil Euros).
Daí os recursos de apelação interpostos pelos RR. tendo pedido:
- José Simões Fontes e mulher Maria Fernanda Fer-reira de Carvalho Fontes que seja revogada a sentença e substituída por outra que julgue a acção improcedente absolvendo os RR. da condenação como litigantes de má-fé.
- António Ferreira Saraiva de Carvalho e mulher que se revogue a sentença proferindo-se decisão que conclua pela improcedência da acção.
Foram para tanto apresentadas as seguintes,

Conclusões.

Apelação de José Simões Fontes e mulher.

1) Os ora recorrentes não litigaram na acção, daí que não pudessem ter sido condenados com litigantes de má fé.
2) Da matéria de facto provada não resulta que ao celebrarem a escritura de venda do imóvel os RR. tenham divergido da sua vontade real por acordo entre ambos ou que tenham querido enganar ou prejudicar a A.
3) Não se verifica, por isso, nenhum dos requisi-tos da simulação previstos no artº 240º do C. Civil.
4) Os quesitos 3, 4 e 5 contêm matéria de direito ou conclusiva, pelo que as respostas que aos mesmos foram dadas se devem considerar como não escritas.
5) Além disso, a resposta a quesito 3 contraria a que foi dada aos quesitos 6 e 7, das quais resulta que os RR. compradores haviam emprestado dinheiro aos RR. vendedores, o que torna legitima e não simulada uma venda que, se outro objectivo não tivesse, garantiu o dinheiro emprestado.
6) Não foi alegado nem está provado que quando celebrou o mútuo e exigiu a fiança, a A. soubesse da existência do imóvel no património do RR. vendedores e que com ele tenha contado para reforçar as garantias de boa cobrança do seu crédito, donde resulta que a poste-rior venda de uma casa que não conhecia não a pode ter enganado na sua decisão anterior de emprestar dinheiro à Carvalho e Irmão Lda.
7) Por outro lado, à data da alienação (13 de Maio de 1998), a A. não era titular de qualquer crédito ven-cido sobre a empresa Carvalho e Irmão Lda. ou sobre a pessoa dos RR, o que tornava desnecessário e incom-preensível qualquer atitude maliciosa ou expediente enganoso contra si.
8) Mais importante que isso é que não foi demons-trado que os ora recorrentes, como compradores, conhe-cessem o crédito da A.(nem parece que pudessem conhe-cer, por ainda não existir) e a qualidade de fiadores que tinha sido assumida pelos RR. vendedores, questão decisiva para se apurar se agiram ou não com o intuito de enganar ou prejudicar quem quer que fosse.
9) Os recorrentes só registaram a aquisição da casa a seu favor mais de 5 meses após a escritura e começaram a obter os documentos que a instruíram cerca de 3 meses antes, o que denota a sua total tranquili-dade, certeza e boa fé no negócio. (cfr. certidão de registo junta aos autos).
10) Não agiram com dolo na realização do acto impugnado nem consta dos factos provados que tivessem usado qualquer artifício para impedir ou satisfazer um crédito que não existia e que não conheciam, evidência esta que não é destruída pelo facto de saberem que os RR. tinham dificuldades financeiras, porque lhes emprestaram dinheiro.
11) Como se provou que à data da escritura a Carva-lho e Irmão Lda. era titular de um património de cerca de 120 mil contos e sendo o crédito futuro da A. inferior a 30 mil contos, não há dúvida que a satisfa-ção desse crédito não ficou impossibilitada nem difi-cultada com a venda da casa dos RR. fiadores.
12) A resposta ao quesito 5º contradiz de forma insanável a que foi dada ao quesito 13º e, como tal, deve ser modificada ao abrigo do disposto no artº 712º nº 1 al. b) do C.P.C.
13) Dos factos provados também é possível concluir que não se verificam os requisitos que a lei faz depen-der o êxito da acção pauliana.
14) O Tribunal recorrido violou o disposto nos artsº 456º (ao condenar os ora recorrentes como litigan-tes de má fé) e 646º, nº 4 do C.P.C (por respon-der a questões de direito como se fossem de facto) e inter-pretou incorrectamente as normas dos artsº 240º, 241º, 610º, 612º (por julgar verificados os requisitos aí exi-gidos para a procedência da acção), 762º (por igno-rar que à data da escritura inexistia qualquer cré-dito ven-cido da A.) do C. Civil.
15) Foi incorrectamente julgada a matéria dos pon-tos 3, 4 e 5 da base instrutória, que jamais poderá merecer resposta afirmativa.

Apelação de António Ferreira Saraiva de Carvalho e mulher.

1) A escritura de Compra e Venda celebrada em 13 de Maio de 1998, no Cartório Notarial de Seia, através da qual os 1sº RR. venderam à 2ª Ré o imóvel melhor identificado supra correspondeu a um negócio real efec-tivo e verdadeiro.
2) Na data da celebração da escritura não existia qualquer situação de incumprimento contratual entre os 1sº RR. e a Autora.
3) Os 2sº RR. desconheciam em absoluto que podiam estar a causar qualquer prejuízo à Autora;
4) Até porque o devedor principal das obrigações contraídas junto da A. a Caixa Geral de Depósitos, era a firma “Carvalho & Irmão, Lda.” e não os 1ºs RR. ora Recorrentes.
5) Não se encontram provados factos que permitam concluir pela absoluta inexistência de qualquer negó-cio, de forma a permitir a declaração da sua nulidade, por ter havido simulação.
6) Não está preenchido, também, o requisito da má-fé previsto no Artº 612º, nsº 1 e 2 do C.C.
7) Não se encontra provado que o acto em questão (contrato de compra e venda) tenha sido realizado dolo-samente com o intuito de impedir a satisfação do cré-dito da Autora;
8) Tanto mais que aquela “Carvalho & Irmão, Lda.” dispunha, à altura de tal escritura, de património suficiente a garantir a cobrança de tais obrigações;
9) Não está provado que tal alienação tenha dimi-nuído a garantia patrimonial que o crédito da Autora gozava até tal data, tanto mais que por tal contrato (cujo duplicado se encontra nos autos) foi constituída uma Hipoteca sobre o prédio inscrito na matriz sob o Artº 857 e descrito na Conservatória do Reg. Predial de Gouveia sob a nº 33269 (Cláusula 24.2), de forma a garantir tais obrigações;
10) A fundamentação do acórdão recorrido não está de acordo com a matéria de facto dado como pro-vada.
11) Foram violadas, por tal decisão, as disposi-ções dos Artsº 240, nºs 1 e 2, 610º, 611º e 612º do C.C. e 646º, nº 4, 668º, nº 4 e 712 do C.P.C..
Contra-alegou a apelada pugnando pela confirmação da sentença.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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2. FUNDAMENTOS.
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O Tribunal deu como provados os seguintes

2.1. Factos.
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2.1.1. No exercício da sua actividade creditícia, a Autora celebrou um contrato de mútuo, até PTE 30.000.000$00 = € 149.639,37, com a empresa "Carvalho & Irmão, Ldª", contrato dado como perfeito em 23 de Dezembro de 1997, tendo-se clausulado que o capital mutuado venceria juros à taxa anual de 11,5%, alterável em função da variação da mesma, acrescendo, em caso de mora, a sobretaxa legal – (Al. A).
2.1.2. O referido empréstimo destinou-se ao apoio à implementação de um projecto de investimento da já citada empresa – (Al. B).
2.1.3. Conforme a cláusula 24ª do contrato, os 1ºs Réus, António Ferreira Saraiva Carvalho e mulher Irene Santos de Jesus Viseu Carvalho, responsabilizaram-se solidariamente como fiadores e principais pagadores por tudo quanto viesse a ser devido à Autora, em consequên-cia do contrato – (Al. C).
2.1.4. Devido a incumprimento contratual por parte da mutuária e fiadores, a Autora, em 3 de Março de 2000, moveu acção executiva contra os referidos fiado-res e outros, pelo valor de PTE 29.178.976$00 = € 145.544,12, e juros vincendos diários de PTE 11.484$00 = € 57,28, processo judicial que corre os seus termos sob o nº 57/00 deste Tribunal – (Al. D).
2.1.5. Nesse processo, não logrou a ora Autora penhorar mais do que parte da pensão de reformado do 1º Réu – (Al. E).
2.1.6. Ao procurar identificar bens dos executados fiadores, aqui 1sº Réus, para serem nomeados à penhora, a Autora verificou que já haviam sido aliena-dos – (Al. F).
2.1.7. Os 1sº Réus eram proprietários do seguinte bem imóvel: "Prédio urbano, composto de casa de habita-ção, de rés-do-chão, primeiro e segundo andares, com 90 m 2 e logradouro com 210 m 2, a confrontar do norte com Teófilo Luciano Tavares de Carvalho, do sul com estrada pública, do nascente com António Agostinho Daniel Luís, e do poente com rua projectada, sito no Jardim Lopes da Costa, freguesia de S. Pedro, concelho de Gouveia, ins-crito na matriz sob o art. 938º e des-crito na Conserva-tória do Registo Predial de Gouveia sob o nº 00640/050398" – (Al. G).
2.1.8. Por escritura pública, de 13 de Maio de 1998, os 1ºs Réus alienaram à 2ª Ré, irmã do 1º Réu, o referido imóvel, pelo preço de PTE 8.500.000$00 = € 42.397,82, tendo a respectiva transmissão sido regis-tada na Conservatória do Registo Predial de Gouveia sob a inscrição G-2, Ap. 07/981020 – (Al. H).
2.1.9. Os contratos de fornecimento de água e elec-tricidade para o referido imóvel continuam titula-dos em nome dos 1ºs Réus – (Al. I).
2.1.10. Após a transmissão, os 1ºs Réus continuam a residir na casa de habitação – (Quesito 1º).
2.1.11. O prédio valia, à data da alienação, não menos de PTE 20.000.000$00 = € 99.759,58 – (Quesito 2º).
2.1.12. Nem os 1ºs Réus quiseram vender, nem a 2ª Ré quis comprar o prédio objecto da escritura – (Que-sito 3º).
2.1.13. Com tal contrato, visavam os 1ºs Réus e a 2ª Ré, de acordo entre si, enganar os credores daque-les, designadamente para não solver o débito para com a Autora – (Quesito 4º).
2.1.14. O citado negócio impossibilitou a A. de ser paga do seu crédito – (Quesito 5º).
2.1.15. O 1º Réu solicitou aos 2sº Réus diversos empréstimos em dinheiro, para realizar fundos de maneio para a firma "Carvalho & Irmão, Ldª” – (Quesito 6º).
2.1.16. Verbas essas que foram entregues pelos 2sº Réus – (Quesito 7º).
2.1.17. Os 1ºs RR. declararam vender à 2ª Ré a sua casa, pelo montante de 8.500.000$00, conforme escritura de fls. 19 e 20, que aqui damos reproduzida – (Quesito 10º).
2.1.18. Os 1ºs RR. declararam vender e a 1ª Ré decla-rou comprar por 8.500.000$00, apesar de ciente que a casa valia pelo menos 20.000.000$00 – (Quesito 11º).
2.1.19. À data do negócio referido na al. H), o 1º Réu necessitava de fundos para a empresa “Carvalho & Irmão, Ldª”, como já vinha necessitando desde 1996, ano em que já se debatia com dificuldades financeiras – (Quesito 12º).
2.1.20. A “Carvalho & Irmão, Ldª”, dispunha, na altura do negócio, de património com o valor de cerca de 120.000.000$00 – (Quesito 13º).
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2.2. O Direito.
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Nos termos do precei-tuado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Pro-cesso Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso deli-mitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformi-dade e conside-rando também a natureza jurídica da maté-ria versada, cumpre focar os seguintes pontos:
- As respostas a alguns quesitos são de natureza conclusiva contendo matéria de direito?
- Dos requisitos da simulação e da impugnação pau-liana.
- Da solução da causa face à factualidade provada e admissível.
- Da litigância de má-fé.
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2.2.1. As respostas a alguns quesitos são de natu-reza conclusiva contendo matéria de direito?
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Para a procedência da acção a sentença a quo fun-damentou-se nas respostas aos quesitos, sendo certo que na tese dos RR. alguns deles são de natureza conclusiva incorporando matéria de direito, o que é vedado fazer face ao disposto no artigo 646º nº 4 do Código de Pro-cesso Civil; "4 – Têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das par-tes".
Na tese dos RR. é o que sucedeu com as respostas positivas aos quesitos 3º, 4º e 5º.
Perguntava-se nos aludidos quesitos respectiva-mente se:
- Nem os 1sº RR. e a 2ª Ré quiseram vender nem a 2ª Ré quis comprar o prédio objecto da escritura?
- Com tal contrato visavam os 1sº RR. e a 2ª Ré de acordo entre si enganar os credores daqueles, designa-damente para não solver o débito para com a Autora?
- O citado negócio impossibilitou, ou pelo menos agravou a possibilidade de a Autora ser paga do seu crédito?
Face tais quesitos e para um pensamento enfeudado na doutrina tradicional lógico-subsuntiva do direito concluir-se-ia na verdade que os mesmos se reportam a matéria conclusiva cujas respostas decidiriam por si a acção. Na verdade saber se os 1sº RR. e a 2ª R não pre-tenderam comprar nem ven-der o prédio, se o negócio visou retirar a garantia de cumprimento à Autora impe-dindo ou agravando a possibi-lidade de a mesma ser paga do seu crédito, são tudo questões que o Tribunal - na linha daquela orientação e que os apelantes se louvam - teria de apurar mas através de factos materiais alega-dos cuja resposta não implicasse de per si um juízo de valor sobre os mesmos Acs. desta Relação de 18-3-2003 (R. 3959/02) in Col. de Jur., 2003, II, 23. Este Acórdão é precisamente o que se encontra junto a fls. 193 em que as partes são idênticas só diferindo a acção quanto ao pedido e o de fls. 200 ss em que a problemática é semelhante.. Sucede porém que o Direito, nomeadamente nos últimos 30 anos tem sofrido a influên-cia dos mais variados sectores do pensamento em ordem a procurar torná-lo mais abrangente, maleabilizando-o com vista a melhor poder alcançar a justiça material do caso concreto, ainda que com o sacrifício de formalida-des que não sirvam para alcançar aquele escopo. O Direito tem que ser intencionado essencialmente à pro-tecção de interesses axiologicamente legitimados da vida em sociedade cuja realização transvaza bastas vezes o apertado esquema silogístico tradicional. A realização de uma verdadeira justiça material passando sempre pela aplicação da lei mediada pelo Juiz terá, para além do elemento literal da norma encontrar os valores que num dado momento lhe estão subjacentes e extrair os princípios reguladores adequados a uma ade-quada solução normativa.
E o que se passa em matéria de interpretação da lei sucede de igual forma quanto às situações factuais tendo vindo a esbater-se a rígida dicotomia entre facto e direito enfeudada à lógica formal Cfr. Karl Larenz "Metodologia da Ciência do Direito", 3ª Edição, Gulbenkian pags. 433 ss.. A esta orientação não tem sido estranho o enriquecimento que o pensamento jurí-dico tem registado nomeadamente pelo contributo das modernas "ciências da linguagem" e em particular pela investigação e progresso no domínio da "hermenêutica" que acentuadamente se tem feito sentir na metodologia e ciência do Direito.
Em matéria de destrinça entre questão de facto e questão de direito, é hoje um dado adquirido que muitos conceitos tidos como puros estão já imbuídos de um sen-tido que não se prende isoladamente a meros factos ou ao direito antes se apresentado como uma simbiose entre ambos. São precisamente os casos em que o facto e o direito estão tão próximos na linguagem corrente que é muito difícil indagar desses factos sem qualquer cono-tação jurídica prévia; e por outro lado também ao nível dos leigos a expressão jurídica extravasou de há muito o campo técnico-jurídico para se publicizar tornando-se do domínio comum. Não é pois de estranhar que no início do processo cognitivo de uma expressão se surpreenda pois já "uma pré-compreensão, reportando-se à coisa de que o texto fala e à linguagem em que se fala dela" Cfr. Karl Larenz Ob Cit, pags. 288. No mesmo sentido Chaïm Perelman "Ética e Direito" Piaget Lisboa, 2003, pags. 512 ss. Hans Georg Gadamer "Warheit und Methode; Grundzüge einer philosophichen Hermeneutik", 4ª ed, 1975 pags. 250 ss.. Essa pré-compreensão, que é um fenómeno de natureza cultu-ral, não impede todavia o Juiz de apreender a especifi-cidade do caso; só que na sua análise e trata-mento a questão de facto é inseparável da questão de direito. Estamos assim em face daquilo a que é usual chamar "o círculo hermenêutico", patente nomeadamente na obra de Heidegger e Gadamer, no primeiro todavia versado como "estrutura circular da compreensão". Esta figura tem como subjacente a ideia de que uma parte de um texto, nomea-damente jurídico só pode ser compreen-dido a partir do significado de outros elementos ou do texto completo; contudo a compreensão deste pressupõe, por seu turno, o conhecimento do elemento original Poderão encontrar-se mais esclarecimentos em José Lamego "Hermenêutica e Jurisprudência" pags. 134 ss; A. Kaufmann e W Hassemer "Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito Contemporâneas" Gulbenkian Lisboa 2002 pags. 189 ss.. Poderá hoje entender-se assim com Heiddeger que a com-preensão pertence à constituição ôntica essencial do ser-aí o Dasein da existência. É para o que noutras palavras alerta Antunes Varela quando aludindo à viabi-lidade de quesitos contendo juízos de valor e matéria de facto refere que "nesse aspecto há incontestável semelhança entre as questões de direito (a que o julga-dor só pode as mais das vezes responder com segurança depois de conhecer toda a matéria de facto que inte-ressa à sua resolução e as apreciações e juízos de valor relativos à matéria de facto que só é possível emitir com o necessário conhecimento de causa, após o conhecimento das ocorrências reais, concretas, que lhes respeitam".
Orientada por estes princípios, tem vindo a Juris-prudência mais recente a aperceber-se destas interrela-ções e a pressupor como um dado adquirido a incindibi-lidade de certas situações complexas no seu plurisigni-ficado e simultaneamente também divulgação ao nível extra-jurídico. Desta realidade nos dá conta entre nós o recente estudo do Cons. Simões Freire "Matéria de Facto Matéria de Direito" in CJ Ano XI Tomo III /2003 pags. 6 ss. E abordando especificamente o tema que ora tratamos, escreve-se no Ac. do S.T.J. de 03-05-2000 (P. 315/2000) "Constitui matéria de facto a afirmação de que «todos os réus tinham consciência do prejuízo que as vendas» causavam ao autor, já que não é necessário formular qualquer raciocínio de ordem jurídica ou ape-lar essencialmente para a formação especializada do julgador" In Bol. do Min. da Just., 497, 315.
Revertendo ao caso vertente, as considerações expostas têm cabimento na análise da bondade da decisão que respondeu aos quesitos em análise – aliás elementos fundamentais para a procedência ou improcedência desta acção.
Qualquer dos três quesitos acima referidos contêm matéria simultaneamente de facto e de direito; todavia a respectiva compreensão está perfeitamente ao alcance de um homem médio, padrão do sistema jurídico.
Ao perguntar-se se "nem os 1sº RR. e a 2ª Ré qui-seram vender, nem a 2ª Ré quis comprar o prédio objecto da escritura", uma testemunha pode perfeitamente res-ponder com base em conhecimentos pessoais que tenha obtido. O mesmo se passa no que toca ao "intuito de enganar os credores" a que se alude no quesito 4º; e também no que toca ao quesito 5º cujo esclarecimento passa perfeitamente pela elucidação ao Tribunal que os alienantes ficaram praticamente sem bens penhoráveis.
Ora da análise da fundamentação das respostas aos quesitos da BI, os apontados quesitos contaram com prova que ia precisamente no sentido apontado.
Assim José Camilo Freitas dos Santos, empregado da Ré refere que o 1º Réu lhe disse em Novembro "que a casa é dele", dizendo-lhe ainda que "a venda foi feita para fugir com o bem para não ser penhorada pela CGD". Raul António Martins Rodrigues, Gerente Bancário da CGD em Gouveia referiu igual-mente os factos aludidos. Idên-tica conversa foi ouvida por António Pereira de Oli-veira na mesma ocasião. Esta testemunha foi também abundante em pormenores quanto ao facto de resultar da venda a impossibilidade de ser satisfeito o débito à Autora. De qualquer maneira não nos cabe aqui reapre-ciar nesta sede a matéria de facto, já que não tendo sido requerida a gravação da prova, não constam dos autos, como é óbvio, todos os elementos susceptíveis de conduzir a uma alteração que aliás nem vem pedida; se fazemos referência é apenas para fundamentar o decidido quanto à admissibilidade dos quesitos em causa. Aliás a acção contestada pelos RR. vendedores – que compreende-ram perfeitamente o alcance da PI e como tal não levan-taram qualquer problema quanto à insuficiência de fac-tos de subsunção. Por outro lado os RR. compradores, mau grado não terem contestado a acção, na sua alegação de recurso não se queixaram de carência de outros fac-tos que impedissem a sua cabal defesa limitando-se a manifestar a sua discordância perante a resposta aos citados quesitos, que aliás em sede de recurso tão bem souberam impugnar. Perante tudo isto seria inaceitável que um expediente de índole exclusivamente formal pudesse impedir a realização da justiça.
Nada há pois que obste à aceitação das respostas aos aludidos quesitos 3º, 4º e 5º.
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No entanto os RR. objectam também às respostas aos quesitos 3º, 6º e 7º, porque na sua tese há contradição entre as mesmas.
Essas respostas têm respectivamente a seguinte redacção:
- Nem os 1ºs Réus quiseram vender, nem a 2ª Ré quis comprar o prédio objecto da escritura – (Que-sito 3º).
- O 1º Réu solicitou aos 2sº Réus diversos emprés-timos em dinheiro, para realizar fundos de maneio para a firma "Carvalho & Irmão, Ldª” – (Quesito 6º).
- Verbas essas que foram entregues pelos 2sº Réus – (Quesito 7º).
Não há contradição nas respostas aos quesitos; na verdade, o facto de ter havido um empréstimo dos 2sº aos 1ºs RR. não obsta a que este negócio visasse no caso concreto a subtracção do prédio à garantia da dívida. Quando muito poderá dizer-se que havendo uma dívida emergente de um empréstimo seria natural que a venda que se pretende impugnar, pudesse servir para a solver; no entanto trata-se de uma valoração feita na 1ª instância que como deixámos dito não podemos contro-lar.
Igualmente contradição pretendem os RR. verificar-se entre a resposta ao quesito 5º e 13º a que se res-pondeu respectivamente:
- O citado negócio impossibilitou a A. de ser paga do seu crédito – (Quesito 5º).
- A “Carvalho & Irmão, Ldª”, dispunha, na altura do negócio, de património com o valor de cerca de 120.000.000$00 – (Quesito 13º).
Também não se verifica qualquer contradição nas respostas aos quesitos em causa; isto porque seria necessário que se provasse – e esse ónus cabia aos RR. – que os bens estivavam desembaraçados em ordem a satisfazer cabalmente a dívida e isso os RR. não conse-guiram, tanto mais que o Tribunal deu como provada a matéria do quesito 5º.
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2.2.2. Dos requisitos da simulação e da impugnação pauliana.
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Pretende a Autora que seja declarado nulo o con-trato de compra e venda de um bem imóvel identificado no ponto 2.1.7. dos factos provados, celebrado em 13 de Maio de 1998 em que foram outorgantes vendedores os primeiros RR. António Fer-reira Saraiva de Carvalho e mulher Irene Santos Jesus Viseu de Carvalho e comprado-res Maria Fernanda Ferreira de Carvalho Fontes e marido José Simões Pontes.
A declaração de nulidade, baseia-se, na tese da Autora, na simulação no negócio jurídico, nos termos do artigo 240º do Código Civil – Diploma a que doravante pertencerão os restantes normativos citados sem menção de origem – e também subsidiariamente na impugnação pauliana a que se reportam os artigos 610º ss.
O negócio diz-se simulado " 1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enga-nar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante (…) 2. O negó-cio simulado é nulo.
A simulação assenta pois em três pressupostos: divergência entre a vontade real e a vontade declarada; intuito de enganar terceiros e o acordo simulatório.
A nulidade em causa pode ser arguida, nomeadamente por qualquer interessado, nos termos do artigo 286º, pelos próprios simuladores ou ser declarada oficiosa-mente pelo Tribunal – artigos 242º nº 1 e 246º; não pode todavia ser arguida pelo simulador contra terceiro de boa-fé, consistindo esta na ignorância da simulação ao tempo em que foram constituídos os respectivos direitos – artigo 243º nº 1 do Código Civil.
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A impugnação pauliana inscreve-se no contexto da garantia geral das obrigações e visa obstar aos actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do cré-dito e não sejam de natureza pessoal; aqueles actos podem, à face do artigo 610º do Código Civil, ser impug-nados pelo credor se concorrerem as circunstâncias seguintes:
a) Ser o crédito anterior ao acto ou, sendo pos-terior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
b) Resultar do acto a impossibilidade, para o cre-dor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade.
Não está aqui em causa a validade do negócio jurí-dico, antes assumindo a impugnação a natureza de uma acção pessoal, onde o Autor faz valer apenas o exercí-cio de um direito de crédito, sendo certo que os bens apenas são afecta-dos na exacta medida da satisfação do crédito do impug-nante; apenas contra este há uma inefi-cácia relativa, o que distingue do instituto da simula-ção, a qual decre-tada tem eficácia erga omnes Cfr. Pedro Romano Martínez e Pedro Fuzeta da Ponte "Garantias de Cumprimento", Almedina, Coimbra, 3ª Edição, 2002, pags. 20 ss e Henrique de Mesquita Comentário ao Ac. desta Relação de 17 de Janeiro de 1995 in CJ ano 128, pags. 210 ss..
O artigo 611º estabelece o regime do ónus da prova, incumbindo "ao credor a prova do montante da dívida e ao devedor ou a terceiros interessados na manu-tenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor". Há ainda que atender ao requisito da má-fé a que se reporta o artigo 612º estatuindo que "1. O acto oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé; se o acto for gratuito, a impugnação procede, ainda que um e outro agissem de boa fé.
2. Entende-se por má fé a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor".
A sentença apelada concluiu pelo preenchimento dos requisitos legais de ambas as figuras acima aludi-das e julgou a acção procedente.
Cabe-nos pois indagar do acerto da decisão em crise.
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2.2.3. Da solução da causa face à factualidade provada.
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Os factos aceites por este Tribunal são susceptí-veis de conduzir à procedência da acção considerando os institutos invocados como causa de pedir, a simulação e a impugnação pauliana?
Quanto à simulação – cujos elementos constitutivos deixámos expostos em 2.1.1. – diremos desde já, de acordo com os factos dados como provados, encontrarem-se preenchidos; começando pelo "acordo simulatório", conatural à mesma, sabemos que os 1sº RR. outorgaram na escritura pública referida em H) dos factos provados a venda do prédio aos 2sº RR. pelo preço de esc. 8.500.000$00 e que o prédio valia à data da alienação não menos do que esc. 20.000.000$00. Só que de acordo com o entendimento unânime na Doutrina e Jurisprudên-cia, o intuito de enga-nar terceiros animus decipiendi, supõe uma intenciona-lidade dirigida àquele fim Cfr. Manuel de Andrade Teoria Geral da Relação Jurídica II, 1992 Reimpressão, pags. 172 s; Mota Pinto "Teoria Geral do Direito Civil", Coimbra Editora 3ª Edição, pags 472; Pedro Pais de Vasconcelos "Teoria Geral do Direito Civil", Almedina, Coimbra 3ª Edição, 2003, pags. 519 ss. Galvão Telles "Manual dos Contratos em Geral" Refundido e Actualizado Coimbra Editora, 2002, pags. 166 ss. Na Jurisprudência cfr. Acs. do S.T.J. de 30-5-1995 (P. 86 766) in Col. de Jur., 1995, 2, 118; pronunciando-se num caso idêntico ao que ora apreciamos no sentido de não ser indiciador por si de desproporção entre o valor real e o preço da venda de uma quota Cfr. Ac. desta Relação de 11-6-1986 (R. 15 266) in Col. de Jur., 1986, 3, 67. ; mas essa prova-se abundantemente pelas respostas aos quesi-tos 3º, 4º e 5º da BI; o instrumento de compra e venda mais não foi do que um expediente para enganar os cre-dores do 1º Réu e assim obstar a que o mesmo viesse a solver o seu crédito para com a Autora, tendo o citado negócio impossibilitado aquela de satisfazer o seu cré-dito.
Perante esta prova fica clarificada a razão que estive na base da outorga da escritura sendo por isso afastadas as outras razões a que aludem os RR. na sua contestação, nomeadamente a necessidade de realizar fundos da empresa Carvalho e Irmão Lda. ou a solvência de uma dívida em face dos RR. compradores.
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Mas os factos provados também são idóneos para integrar os requisitos da impugnação pauliana, tal como vem pedido pela Autora
Não vem impugnada a existência do crédito aliás dado como provado, já que tem origem num contrato de mútuo, cujos termos – cláusula 24ª – responsabilizam os primeiros outorgantes como fiadores e principais paga-dores por tudo quanto viesse a ser devido à Autora em consequência do contrato. (alíneas A) e B) dos factos assentes). De igual forma, que a quantia pedida se mos-tra em dívida, emerge das alíneas D), E), F) e resposta ao quesito 5º da BI.
A transmissão do prédio para os 2º RR. que ora se pretende impugnar, ocorreu através de um acto oneroso, um contrato de compra e venda datado de 13 de Maio de 1998. É bem certo que a esta data o crédito ainda se não encontrava vencido… todavia tal não obstaria à pro-cedência da presente acção, já que esta problemática, que se discutia na vigência do Código anterior, foi superada expressamente pelo artigo 614º nº 1 do Código Civil, de harmonia com o qual "não obsta ao exercício da impugnação o facto de o direito do credor não ser ainda exigível" Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela "Código Civil Anotado" I, Coimbra Editora 4ª edição pags. 631. Almeida Costa "Direito das Obrigações" 8ª Edição Revista e Aumentada, pags. 791 ss. Cfr. na jurisprudência Acs. RE, 22-10-1998 in Col. de Jur., 1998, IV, 261. RP 1-4-1997 in Col. de Jur., 1997, II, 200. . A razão de ser deste dispositivo é clara; o direito do credor existe, sendo certo, e aquele pode ter indiscutível interesse em impugná-lo antes do vencimento, para evitar que o mesmo se perca ou se diluam as provas Neste sentido Pires de Lima e A. Varela Ob. cit. pags. 631 e Vaz Serra BMJ nº 49 .
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O problema quando à procedência da acção poderia colocar-se em relação aos outros dois requisitos, a saber, 1) resultar do acto impugnado a impossibilidade ou o agravamento da impossibilidade da satisfação inte-gral do crédito e 2) a má-fé que aqui sempre aqui teria que provar-se, uma vez que estamos em face de um acto oneroso – artigo 612º nº 1 do Código Civil.
No que toca ao primeiro requisito foi dado como provado pela resposta ao ponto 5 da BI.
No que concerne ao segundo requisito, há a notar que o nº 2 do artigo 612º refere entender-se por má-fé "a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor".
Não existe na Doutrina e Jurisprudência unanimi-dade quanto ao alcance deste requisito. Enten-demos con-tudo estar próximo do espírito da lei o enten-dimento que não se confinando tão só à exigência do dolo por parte de qualquer dos intervenientes, abrange ainda a negligência consciente, no sentido de se aceitar preen-chido o Tatbestand legal supracitado, quando um ou ambos os intervenientes prevêm o prejuízo do credor lesado mau grado encarem porém o facto lesivo como um conse-quência possível da sua conduta. É também esta o enten-dimento do Supremo Tribunal de Justiça ao qual aderi-mos Cfr. Ac. do S.T.J. de 03-05-2000 (P. 315/2000) in Bol. do Min. da Just., 497, 315; de 11-01-2000 (P. 923/99) in Bol. do Min. da Just., 493, 351; de 10-11-1998 (P. 1006/98) in Bol. do Min. da Just., 481, 449. de 11-12-1996 (P. 29 719) in Bol. do Min. da Just., 462, 421. Para mais desenvolvimentos Almeida Costa Anotação ao Ac. STJ de 23-1-1992 in RLJ Ano 127, pags. 270 ss.. De igual forma tem a má-fé que reportar-se ao momento em que o acto é praticado, sendo certo que a mesma terá que ser bilateral, i.e. verificar-se da parte do alie-nante e adquirente, não se exigindo con-tudo concertação entre ambos os intervenientes, ao con-trário do que sucede na simulação. Sendo evidente a ratio da exigên-cia da má-fé por parte do alienante, idêntico requisito da parte do adquirente compreende-se por motivos de segurança no negócio jurídico, já que se assim não fosse correria sério risco a segurança do tráfico jurí-dico, podendo os legítimos interesses deste último ficar à mercê dos negócios/dívidas do alienante.
Revertendo ao caso concreto, constatamos também, que pela resposta ao quesito 4º, entendida nos termos acima apontados a existência da má-fé, uma vez que se entendeu que ao outorgarem o contrato visavam os 2sº RR. e a 2ª Ré, de acordo entre si, enganar os credores daqueles, designadamente para não solver o débito para com a Autora.
Resta por último encarar a questão de saber se à data da alienação impugnada se verificava impossibili-dade de satisfação do direito de crédito; estamos perante um dos requisitos da impugnação pauliana, sendo certo que considerando a dificuldade de prova a lei dividiu o respectivo ónus, fazendo-o – artigo 611º – recair sobre credor quanto à prova do montante das dívidas e sobre o devedor ou terceiro interessado na manutenção do acto, no que concerne à prova de que o alienante possui bens penhoráveis de igual ou maior valor do que está em dívida, em ordem a poder solvê-la. Ora no caso concreto, mau grado se tivesse apurado que à data do negócio a empresa Carvalho & Irmão tinha bens imóveis no valor de esc. 120 000 000$00, certo é que não sabemos se os mesmos estavam desembaraçados; assim independente-mente de outras considerações sempre seria ao Réu que caberia provar que aqueles bens estavam em condições de cobrir a dívida.
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Do exposto concluímos que para além dos requisitos da impugnação Pauliana também se mostram reunidos os pressupostos que fundamentam a simulação do contrato de compra e venda que os RR. declararam celebrar entre si já que os mesmos declararam celebrar um negócio que na realidade não existiu. E sendo a declaração de nulidade com base na simulação o pedido principal, bem se andou em primeira instância ao proferir-se a sentença nesta base.
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2.2.4. Da litigância de má-fé.
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Por último insurgem-se os RR. José Simões Fontes e mulher Maria Fernanda de Carvalho Fontes contra a sen-tença apelada na parte em que decidiu condená-los como litigantes de má-fé.
Nos termos do preceituado no artigo 456º nº 2 alí-nea a) do Código de Processo Civil Diz litigante de má-fé o que:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a des-coberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão".
Da análise do citado preceito legal constata-se o alargamento das situações a que poderá caber a litigân-cia de má fé aos casos de negligência grave. Trata-se de um postulado do "princípio da cooperação" previsto no-meadamente no artº 266º-A do Código de Processo Civil onde se lê que "as partes devem agir de boa fé e obser-var os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo ante-rior". É que o direito de acção, consti-tucionalmente consagrado no artº 20º da CRP, tem como contrapolo o dever de as partes no respectivo exercí-cio, se respon-sabilizarem nomeadamente pelas suas de-clarações, acau-telando-se não apenas contra factos ex-pendidos que sabem não ser verdadeiros como ainda abs-terem-se de emitir declarações comprometedoras sem minimamente se assegurarem da sua veracidade. Este úl-timo comporta-mento, que integra o conceito de negli-gên-cia grosseira não era sancionado antes da reforma do processo civil e passou a sê-lo após o Dec-Lei nº 329-A/95 de 12 de Dezembro.
A litigância de má-fé supõe assim a alegação de de-terminados factos reconhecidamente inverídicos e que tal seja feito com dolo ou negligência grave. Assim não integra uma coisa nem outra a mera improcedência das razões expendidas pela parte devido unicamente ao facto de a mesma não ter logrado prova daquelas.
Revertendo ao caso concreto verificamos que os RR. Maria Fernanda Ferreira de Carvalho Fontes e marido José Simões Fontes se insurgem contra a condenação como litigantes de má-fé de que foram alvo i.e. esc. 200 000$00; isto porque não tendo contestado a acção não se pode concluir haverem sequer litigado.
Decidindo, diremos que lhes assiste, neste particu-lar, razão total. O instituto da litigância de má-fé não vai além da punição das partes pelo seu com-porta-mento processual inadequado e este não existe, como é óbvio, quando a condenação não é precedida de qualquer acto no processo. Haverá pois que revogar a sentença apelada nesta parte, sendo certo que estamos em crer até que a citada condenação daqueles RR. se fica a dever a um lapso.
No que toca à condenação dos RR. António Ferreira Saraiva de Carvalho e mulher Irene Santos Jesus, como litigantes de má-fé, não vem expressamente impugnada havendo que a manter considerando também os factos como provados.

Pelo exposto pode concluir-se o seguinte:

1) O Direito tem que ser intencionado essencial-mente à protecção de interesses axiologicamente legiti-mados da vida em sociedade cuja realização transvaza bastas vezes o apertado esquema silogístico tradicio-nal.
2) A realização de uma verdadeira justiça material passando sempre pela aplicação da lei mediada pelo Juiz terá que, para além do elemento literal da norma encon-trar os valores que num dado momento lhe estão subja-centes e extrair os princípios reguladores adequados a uma correcta solução normativa.
3) E o que se passa em matéria de interpretação da lei sucede de igual forma quanto às situações factuais esbatendo-se a rígida dicotomia entre facto e direito enfeudada à lógica tradicional.
4) Nesta medida não tem sido estranho o enriqueci-mento que o pensamento jurídico tem registado nomeada-mente pelo contributo das modernas ciências da lingua-gem e em particular pela investigação e pro-gresso no domínio da hermenêutica que acentuadamente se tem feito sentir na metodologia e ciência do Direito.
4) Em matéria de destrinça entre "questão de facto" e "questão de direito" é hoje um dado adquirido que mui-tos conceitos tidos como puros, estão já imbuí-dos de um sentido e não se prende isoladamente a mero facto ou ao direito antes se apresentado como uma sim-biose entre ambos.
5) São precisamente os casos em que o facto e o direito estão tão próximos na linguagem corrente que é muito difícil indagar desses factos sem qualquer cono-tação jurídica prévia;
6) Por outro lado também ao nível dos leigos a expressão jurídica extravasou de há muito o campo téc-nico-jurídico para se publicizar, tornando-se do domí-nio comum.
7) Não é pois de estranhar que no início do pro-cesso cognitivo de uma expressão se surpreenda pois já "uma pré-comprennsão, reportando-se à coisa de que o texto fala e à linguagem em que se fala dela". Essa pré-compreensão que é fenómeno de natureza cultural, não impede todavia o Juiz de apreender a especificidade do caso; só que na sua análise e tratamento a questão de facto é inseparável da questão de direito .
8) Estão não condições supra-referidas v.g. as expressões "enganar terceiro", "consciência do prejuízo que as vendas causavam ao credor".
9) Os efeitos da simulação são mais gravosos do que os da impugnação pauliana; ali declarada procedente a acção, o negócio é declarado nulo; na impugnação pau-liana o negócio permanece válido e unicamente é inefi-caz em relação ao impugnante.
10) O instituto da litigância de má-fé visa apenas punir as partes pelo seu comportamento processual doloso ou gravemente negligente e nenhum destes casos se veri-fica se a parte não interveio no processo. O instituto da litigância de má-fé não vai além da puni-ção das par-tes pelo seu comportamento processual inade-quado e este não existe, como é óbvio quando a condena-ção não é pre-cedida de qualquer acto no processo.
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3. DECISÃO.
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Pelo exposto decide-se o seguinte:
- Julga-se a apelação RR. José Simões Fontes e mulher Maria Fernanda de Carvalho Fontes parcialmente procedente e assim revoga-se a sentença em crise na medida em que os condenou como litigantes de má-fé.
- Julga-se em tudo mais as apelações improceden-tes, confirmando-se pois nessa parte a sentença ape-lada.
Custas da apelação dos RR. José Simões Fontes de Carvalho e mulher pelos próprios e pela Autora Caixa Geral de Depósitos S.A. na proporção do vencimento.
Custas da apelação dos RR. António Ferreira Saraiva de Carvalho e mulher por estes últimos.