Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
320/03.2TBCLB-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO PIÇARRA
Descritores: RECLAMAÇÃO
RECURSO
REQUISITOS
SUCUMBÊNCIA
EXECUÇÃO
Data do Acordão: 03/12/2007
Tribunal Recurso: COMARCA DE CELORICO DA BEIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: INDEFERIDA
Legislação Nacional: ARTIGO 678º, N.º 1 DO CÓD. PROC. CIVIL, 24º, N.º 1 DA LEI 3/99, DE 13 DE JANEIRO, E DL 323/01, DE 17 DE DEZEMBRO
Sumário: I- A admissibilidade do recurso depende da verificação cumulativa de um duplo requisito: a) que a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre; b) que a decisão impugnada seja desfavorável para o respectivo recorrente (sucumbência) em valor superior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão de que se recorre.

II- O primeiro dos apontados requisitos não se questiona, atento o valor da execução, restando somente a apreciação do segundo, o atinente à sucumbência da reclamante. E, quanto a este, parece óbvio que não se verifica.

III- Na verdade, o valor da alçada do tribunal recorrido é de 3.740,98 €uros e no despacho que a reclamante pretende impugnar está apenas em causa o valor dos juros moratórios que é inferior a metade da alçada do tribunal da comarca (1.870,49 €uros), não cabendo, assim, recurso do referido despacho.

Decisão Texto Integral: Reclamação n.º 320/03.2TBCLB-C.C1
Tribunal da Comarca da Celorico da Beira

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I – Na acção executiva para pagamento de quantia certa que a A... instaurou contra B... , a correr termos no Tribunal da Comarca de Celorico da beira sob o n.º 320/03, a exequente interpôs recurso do despacho, proferido pelo Mm.º Juiz a folhas 12, em que, na sequência de requerimento apresentado pela executada comunicando o pagamento da quantia exequenda, pagamento comprovado pela junção de fotocópia do respectivo cheque, com menção do seu levantamento no extracto da conta sacada, decidiu o seguinte:«Fls.Visto. A levar em conta quando da elaboração da conta. Oportunamente, arquive os autos».
O Mm.º Juiz não admitiu o recurso, por entender que o referido despacho é de mero expediente, dado que apenas se limitou a tomar conhecimento do pagamento da quantia exequenda e a ordem de arquivamento, envio dos autos ao arquivo, apresentar eficácia meramente interna, na medida em que se dirige à secretaria, sendo, por isso, irrecorrível.
Irresignada, apresentou a presente reclamação, visando obter o recebimento daquele recurso.
Não foi oferecida resposta à reclamação e o Mm.º Juiz manteve o despacho reclamado.

II – Além do que antes consta, interessam ainda à apreciação da reclamação os elementos seguintes:
1. A executada foi citada para a acção declarativa no dia 27 de Junho de 2003.
2. O requerimento executivo deu entrada a 7 de Setembro de 2006.
3. A exequente recebeu, no dia 8 de Setembro de 2006, o cheque no montante de 12.248,91 €uros enviado pela executada.
4. No dia 11 de Setembro de 2006, foi aquele montante debitado na respectiva conta da executada.


III - Perante estes elementos há, agora, que apreciar da bondade da decisão de não admitir o recurso.
Como se sabe, o princípio geral da recorribilidade das decisões judiciais, estabelecido no art.º 676º do Cód. Proc. Civil, tem excepções, entre elas figurando os despachos de mero expediente (art.º 679º do Cód. Proc. Civil). E bem se compreende que assim seja, pois, destinando-se estes apenas a prover ao regular andamento do processo, é patente que não interferem no conflito de interesses entre as partes (art.º 156º, n.º 4 do Cód. Proc. Civil), nem definem os direitos que a cada uma delas cabe.
No caso vertente, o despacho de que a reclamante pretende recorrer respeita à ordem de remessa do processo de execução para o arquivo, na sequência da comprovação do pagamento à mesma da quantia de 12.248,91 €uros, através de cheque remetido pela executada. À primeira vista, parece tratar-se, na verdade, de um despacho de mero expediente, na medida em que se limita a dar uma ordem dirigida à secretaria no sentido de arquivar a execução. Contudo, se bem vejo e interpreto, o conteúdo e alcance daquele despacho são bem mais vastos.
Com efeito, a remessa do processo de execução para o arquivo tem subjacente a ideia de que a execução chegou ao fim, por ter sido já paga a quantia exequenda. E sobre isso existe uma profunda divergência entre a reclamante e a executada, pois que, enquanto a primeira entende que a quantia exequenda é constituída não só pelo montante constante do cheque que lhe foi entregue, mas também pelos juros moratórios desde a citação, a segunda considera que estes não constam da sentença que serve de título à execução e não são por ela devidos.
Ora, perante tal divergência, ordenar o arquivamento da execução na sequência da comprovação do pagamento da quantia constante do cheque, creio que o despacho do Mm.º Juiz não configura só uma mera ordem de eficácia interna, na medida em que decide igualmente, ainda que de forma implícita, a temática dos juros moratórios, cujo pagamento a reclamante considera ser também devido.
O processo executivo baseia-se, como se sabe, num título executivo, cuja apresentação é suficiente para iniciar a execução. O título executivo consiste num documento que faz prova documental simples de um acto ou de um negócio jurídico constitutivo ou certificativo de uma relação jurídica de natureza real ou obrigacional e que, só por si, permite que o credor desencadeie a actividade jurisdicional visando a realização coactiva da prestação que lhe é devida. Pode dizer-se que «é o meio legal de demonstração da existência do direito do exequente, ou que estabelece, de forma ilidível, a existência daquele direito, cujo lastro corpóreo ou material é um documento (v.g. sentença, documento particular), que a lei permite que sirva de base à execução» [1] .. O título executivo constitui, assim, a base da execução, por ele se determinando, como decorre do art.º 45º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil, o fim e os limites da acção executiva.
No caso, o título em que se funda a execução é a sentença proferida na acção declarativa e parece resultar da mesma, que são devidos juros moratórios desde a citação, ainda que se coloque também o problema de saber se os mesmos podem ser cobrados nesta execução, uma vez que não foram liquidados pela reclamante no requerimento inicial da execução (art.º 805º, n.º 2 do CPC). Tais questões não podem, porém, ser dilucidadas nesta sede, reservada somente à temática da admissibilidade do recurso (art.º 688º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC). E, se isto é verdade, não deixa de ser menos verdadeiro que o despacho que a reclamante pretende pôr em crise decidiu essas questões, na medida em que mandou arquivar a execução, sem o pagamento dos juros estar assegurado.
Nesta perspectiva, atento não só o contexto em que aquele despacho foi proferido como ainda o seu conteúdo e implicações, creio que, contrariamente ao que entendeu o Mm.º Juiz, o mesmo não configura somente uma indicação à secretaria, constituindo também a definição do direito que é susceptível de obter cobrança coerciva no âmbito da execução. Tais motivos levam-me a considerar que não se trata de despacho de mero expediente.
Assim sendo, afigura-se-me que, sem quebra do devido respeito, o Mm.º Juiz a quo não terá equacionado devidamente a situação em apreço e não terá feito correcta leitura, interpretação e aplicação dos art.ºs 156º, n.º 4 e 679º do CPC.
Não obstante isso, não se pense que o recurso é admissível.
É consabido que a admissibilidade de recurso está condicionada, através de limites objectivos fixados na lei derivados, nomeadamente, da natureza dos interesses envolvidos, da menor relevância das causas ou da repercussão económica para a parte vencida (art.º 678º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil) [2] .
Na verdade, a garantia decorrente do acesso ao direito e aos tribunais, consagrada no art.º 20º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, não implica a generalização do duplo grau de jurisdição, dispondo o legislador ordinário de ampla liberdade de conformação no estabelecimento de requisitos de admissibilidade dos recursos [3] . Esta depende, segundo o art.º 678º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil, da verificação cumulativa de um duplo requisito: a) que a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre; b) que a decisão impugnada seja desfavorável para o respectivo recorrente (sucumbência) em valor superior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão de que se recorre.
O primeiro dos apontados requisitos não se questiona, atento o valor da execução, restando somente a apreciação do segundo, o atinente à sucumbência da reclamante. E, quanto a este, parece-me óbvio que não se verifica.
Na verdade, o valor da alçada do tribunal recorrido é de 3.740,98 €uros (art.º 24º, n.º 1 da Lei 3/99, de 13 de Janeiro, e DL 323/01, de 17 de Dezembro) e no despacho que a reclamante pretende impugnar está apenas em causa o valor dos juros moratórios entre 27 de Junho de 2003, data da citação para a acção declarativa em que foi proferida a sentença exequenda, e 11 de Setembro de 2006, data em que a reclamante recebeu a quantia relativa ao cheque que a executada lhe enviou. Durante esse período, venceram-se juros no montante de 1.510,77 €uros (12.248,91x4% [4}] .x3 [5] ).+140,91 [6] ), cujo pagamento constitui a apontada divergência entre as partes e que, no fundo, corresponde à sucumbência da reclamante. Atento esse valor, que é inferior a metade da alçada do tribunal da comarca (1.870,49 €uros), considero que do referido despacho não cabe recurso, o que implica o naufrágio da reclamação.

IV – Decisão
Nos termos expostos, decido indeferir a reclamação, ainda que por razões totalmente diversas das apontadas pelo Mm.º Juiz no despacho reclamado, e condenar a reclamante em 4 unidades de conta de taxa de justiça.
Notifique.
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Coimbra, 12 de Março de 2007

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[1] Cfr., a este propósito, J.P. Remédio Marques, in Curso de Processo Executivo Comum, à face do código revisto, 1ª edição, págs. 55/56, e José Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da Reforma, 4ª edição, pág. 33
[2] Cfr. Carlos Lopes do Rego, Acesso ao direito e aos tribunais, in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, 1993, pág. 83.
[3] Cfr. ac. do Tribunal Constitucional n.º 496/96, in DR, II Série, de 17/7/96, págs. 9761 e ss.
[4] Cfr. Portaria 291/03, de 8 de Abril
[5] Anos devidos (27 de Junho de 2003 a 27 Junho de 2006
[6] Este montante decorrente de 105 dias (28 de Junho de 2006 a 11 de Setembro de 2006) a igual taxa moratória.