Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3498/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: INDEMNIZAÇÃO CORRESPONDENTE À PRIVAÇÃO DO USO
DE VIATURA AUTOMÓVEL
Data do Acordão: 01/25/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTºS 562º, 563º, 564º E 566º DO C. CIV. .
Sumário: I – A doutrina e a jurisprudência têm vindo a aceitar o reconhecimento de um direito de indemnização autónomo pela privação do uso normal de um veículo .
II – A utilização dos bens faz parte dos interesses patrimoniais inerentes ao próprio bem e a simples possibilidade de utilização ou de não utilização constitui uma vantagem patrimonial que, uma vez afectada, deve ser ressarcida .
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - RELATÓRIO
I.1- «A...» move a presente acção de condenação, com processo ordinário, contra «B...», alegando, em síntese que:
- em Fevereiro de 2001, a autora comprou uma viatura «Audi», modelo A6 Allroad, 2.5 TDI, com a matrícula 29-19-RE, tendo para o efeito celebrado um contrato de locação financeira com a «C...»;
- a autora, através da empresa corretora «Mse Seguros», celebrou com a ré um contrato de seguro titulado pela apólice nº 2502778, o qual garante, para além da responsabilidade civil decorrente da circulação da viatura, os danos próprios e ainda o furto e roubo;
- a viatura estava afecta à utilização da gerência da autora;
- em finais de Agosto de 2001, o gerente da autora, em gozo de férias, deslocou-se ao Sul de Espanha, com a família;
-na noite de 30 para 31 de Agosto, o RE foi furtado do parque de estacionamento do Hotel Rincon Andaluz, em Marbelha;
- ainda no dia 31 de Agosto a corretora enviou para a ré a participação do furto feita junto das autoridades espanholas;
- no dia 4 de Setembro de 2001 a autora comunicou formalmente à corretora o furto da viatura que, no dia seguinte, a envia para a ré;
- no dia 15 de Outubro, a polícia espanhola, por telefone, informou a autora que a viatura se encontrava apreendida pelo Tribunal de Marbelha, no âmbito de um processo de droga;
- no mesmo dia 15 de Outubro, o gerente da autora comunicou à autora o telefonema recebido da polícia espanhola;
- nos termos das condições gerais da apólice de seguro, ocorrendo furto e consequente desaparecimento da viatura que se prolongue por mais de sessenta dias contados da data da participação, a ré obriga-se ao pagamento da indemnização devida;
- apesar das diligências efectuadas junta da ré esta não deu solução ao caso, pelo que em 29 de Outubro de 2001 a autora reclamou um veículo novo ou o respectivo valor, mas a ré, até agora, mantém-se em silêncio;
- tendo a viatura sido adquirida através de locação financeira, a sua dona é a «C...», sendo a autora mera locatária, razão pela qual requererá a intervenção provocada da locadora, para reclamar o seu crédito,
- nos termos do contrato, o valor da indemnização em caso de perda total, corresponderá ao valor seguro à data do sinistro;
- o RE tinha seis meses na data do furto, havia sido comprado por 12.900.000$00 e era este o valor pelo qual se encontrava seguro;
- a autora pagou à locadora onze prestações e propõe-se continuar a pagar as restantes pelo que tem direito a receber da ré a diferença entre o valor seguro – 12.900.000$00 – e o crédito da locadora, à data do julgamento;
- no contrato se seguro foi ainda convencionada uma indemnização pela privação do uso, no máximo de trinta dias e no valor diário de 15.000$00 pelo que, tendo a autora estado privada da viatura durante o mês de Setembro e vinte e oito dias do mês de Outubro, tem direito a receber a quantia de € 2.245;
- como a viatura não foi entregue até sessenta dias após a participação ou seja, até 29 de Outubro de 2001, e a ré não pagou a indemnização devida nos termos do contrato, tem a autora direito a uma outra indemnização diária pela privação do uso, a partir de 30 de Outubro e até à data do pagamento da indemnização;
- os gerentes da ré usavam a viatura nas suas deslocações profissionais ao estrangeiro e ainda nas deslocações pelo país;
- desde o furto, tais viagens, salvo em condições excepcionais, deixaram de fazer tais deslocações, o que limitou a actividade da autora, assim lhe causando prejuízos que atingem o montante diário de € 100, tendo decorrido até ao dia 7 de Janeiro de 2002 setenta e um dias, pelo que a indemnização atinge já a quantia de € 7.100;
- o contrato de seguro cobre ainda a assistência em viagem, cobertura que garante o pagamento sem limite, do valor da bagagem e objectos pessoais em caso de furto;
- com a viatura desapareceram objectos pessoais, acessórios para criança e roupa, no valor de € 1.029,97.
Conclui, pedindo a condenação da ré, no pagamento da quantia correspondente à diferença entre 12.900.000$00 – valor seguro na data do furto – e o crédito da locadora que se apurar ser devido à data do julgamento, e no pagamento da quantia de € 10.374,97 acrescida da indemnização vincenda pela privação do uso a partir de 8 de Janeiro de 2001 à razão diária de € 100, tudo com juros legais desde a citação e até integral pagamento.
Requereu ainda a intervenção provocada da «C....» como sua associada.
I.2- Contestou a ré, alegando, em síntese que:
- a autora apenas tem legitimidade para peticionar a indemnização devida pela paralisação do veículo, a qual aceita, e a indemnização devida pelos objectos subtraídos os quais, todavia, desconhece,
- quanto ao restante pedido, a autora não tem legitimidade para o fazer pois, por um lado, a apólice não contempla a cobertura 007, e por outro lado, os restantes danos tem que ser peticionados pela locadora e a esta pagos, pelo que deve a autora ser considerada parte ilegítima e a ré absolvida da instância,
- tendo o veículo aparecido antes dos sessenta dias, não assiste o direito peticionado pela autora,
- por outro lado, foi convencionado que a actualização do capital objecto do seguro é feito de acordo com o disposto no Dec. Lei nº 214/97,
- quanto à privação do uso, a autora apenas tem direito a trinta dias de privação,
- a ré está ainda obrigada a indemnizar os danos próprios do veículo mas de acordo com o estabelecido na cláusula 9ª, nºs 2, 4 e 5 das condições gerais,
- a ré, após o conhecimento do furto, solicitou à empresa «Aide SA» que diligenciasse pelo seu repatriamento,
- a «Aide» iniciou as diligências adequadas mas o veículo encontra-se apreendido à ordem do Tribunal nº 8 de Marbelha e enquanto este não o libertar, não é possível efectuar a peritagem e só através desta se pode saber se a perda é total ou parcial, a fim de se determinar a indemnização devida à locadora.
Conclui pela procedência da acção relativamente aos montantes provados em audiência, quer em relação à autora, quer em relação aos danos próprios do veículo, mas de acordo com o estipulado na cobertura 850 das condições particulares da apólice e o desconto da franquia de 2%.
I.3- Replicou a autora concluindo ter sido contratada a cobertura furto e roubo, não existir qualquer ilegitimidade, e litigar a ré de má fé, pois não podia ignorar que a cobertura por furto e roubo estava prevista no contrato, pelo que deve ser condenada como litigante de má fé, em multa e indemnização, de valor não inferior a € 2.500.
I.4- Respondeu a ré ao pedido de condenação como litigante de má fé, alegando que esta não existe pois aceitou a cobertura de furto ou roubo e o seu conhecimento, antes tendo alegado que a autora é que a cobertura 007 não está incluída no documento 2 e por isso, não pode beneficiar dela.
I.5- Foi admitida a intervenção principal provocada de «C....».
No seu articulado, alega, em resumo, que:
- a interveniente teve conhecimento do furto em 16 de Outubro de 2001;
- até ao momento, a autora, locatária da viatura, tem pago pontualmente as rendas acordadas, ascendendo os pagamentos, em 24 de Fevereiro de 2003, à quantia de € 36.780,65, com IVA incluído;
- assim, o montante actual do débito da autora é de € 27.563,35, com IVA incluído;
- nos termos do contrato de seguro, os direitos emergentes da respectiva apólice ficaram ressalvados a favor da interveniente que passou a ser a sua beneficiária;
- é prática usual nos casos idênticos ao em apreço nos autos que o segurado participe à seguradora o sinistro e reclame as quantias devidas a título de indemnização, embora o pagamento seja feito directamente à beneficiária do seguro, no caso, a interveniente;
- recebida a indemnização paga pela seguradora, a interveniente apenas se paga do valor do seu crédito e devolve à locatária, no caso, a autora, o excesso do valor recebido;
- a proceder a acção, a ré pagará à interveniente o montante global das quantias peticionadas das quais, após o reembolso do débito da autora, devolverá a esta o excedente, pelo que não faz sentido invocar a ilegitimidade da autora.
I.6- No despacho saneador foi julgada improcedente a excepção da ilegitimidade da autora. Seleccionaram-se os factos assentes e fixou-se a base instrutória, com reclamação atendida.
I.7- Realizado o julgamento, foi então proferida sentença na qual se julgou a acção parcialmente procedente, e em consequência decidiu-se:
1. Condenar a ré no pagamento à autora da quantia de € 2.250 pela privação temporária do uso do veículo, acrescida de juros de mora à taxa de 12%, desde a data da citação e até integral pagamento.
2. Condenar a ré no pagamento à autora da quantia de € 1.029,97 pelos objectos pessoais e bagagens subtraídas, acrescida de juros de mora à taxa de 12% desde a data da citação e até integral pagamento.
3.Absolver a ré do demais peticionado.

I.8- Inconformada, apelou a autora, a qual concluiu assim a respectiva minuta de recurso:
1ª- A ora recorrente já pagou à interveniente «C...» o montante ainda em dívida relativo ao contrato de locação financeira entre elas celebrado para a aquisição da viatura de marca «Audi», matrícula 29-19-RE;
2ª- Não havendo já contrato de locação financeira em vigor, nada impede agora o Tribunal ad quem de julgar procedente o primeiro pedido formulado pela recorrente, sendo agora esse pedido, por força da alteração das circunstâncias, o correspondente ao do valor do veículo 29-19-RE;
3ª- Mas admitindo que seja outro o entendimento do Tribunal, não está a recorrente impedida de alterar o pedido ao abrigo do disposto no art. 272º/C.P.C., com fundamento decorrente do pagamento do crédito da «C...»;
4ª- A desvalorização de 17,5% fixada na sentença para o valor do veículo é excessiva. Para ser equitativa não pode exceder os 16% (15% ao 6º mês + 1% dos 10 dias do 7º mês), pelo que o valor do veículo a considerar para efeitos de indemnização deveria ser no mínimo de 54.049,74 €;
5ª- O incumprimento do contrato por parte da recorrida constitui um acto ilícito gerador da responsabilidade civil nos termos do art.483º/C.C., em consequência do qual ficou esta obrigada a indemnizar a recorrente dos danos que lhe foram causados;
6ª- Nos termos do disposto no art.806º/3 do C.C., pode a recorrente provar que a mora lhe causou um dano superior aos juros devidos nos termos do nº2 desta norma legal, e exigir a indemnização suplementar correspondente quando se trata de responsabilidade por facto ilícito;
7ª- Utilizando os critérios que a jurisprudência utiliza para a privação de uso nas acções emergentes de acidente de viação, parece-nos adequado fixar em 75,00 €/dia o prejuízo diário de um veículo afecto à gerência de uma empresa, prejuízo esse que é muito superior ao juros diário que a recorrente tem a receber pela mora da recorrida.

I.9- Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTOS
II.1 - de facto
A matéria de facto provada e que não vem questionada, é a seguinte:
1- Em Fevereiro de 2001, a autora adquiriu uma viatura marca «Audi», modelo A6, Allroad, 2.5 TDI, com a matrícula 29-19-RE. (A)
2- Para a aquisição de tal viatura, a autora celebrou o contrato de locação financeira nº 51811, com a «C...», em 12 de Fevereiro de 2001. (B)
3- A autora, através da empresa corretora com quem trabalha, «MSE – Seguros», celebrou com a ré um contrato de seguros titulado pela apólice nº 2502778, o qual garante a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo 29-19-RE, os danos próprios e os decorrentes de furto e roubo. (C)
4- Entre as 23 horas do dia 30 de Agosto e as 9 horas do dia 31 do mesmo mês, o veículo 29-19-RE foi furtado do parque de estacionamento do hotel Rincon Andaluz, em Marbelha. (D)
5- No dia 31 de Agosto, a corretora «MSE – Seguros» enviou por fax para a ré, que esta recebeu, a participação do furto do veículo feita junto das autoridades policiais espanholas. (E)
6- No dia 04/09/2001 a autora formalizou junto da referida corretora a comunicação do furto do veículo e esta enviou a comunicação, no dia seguinte, à ré. (F)
7- Através de contacto telefónico feito pela polícia ao gerente da autora, no dia 15 de Outubro, esta informou-o de que o veículo se encontrava retido pelo Tribunal de Marbelha, na sequência de um processo relacionado com droga. (G)
8-Nesse mesmo dia o sócio gerente da autora, comunicou telefonicamente à ré o conteúdo de tal telefonema. (H)
9- No contrato de seguro celebrado entre a autora e a ré, prevê-se também uma indemnização pela privação temporária do uso, sendo o valor fixado de 15.000$00 / dia no montante máximo de trinta dias. (I)
10- Dá-se por integralmente reproduzido o teor da apólice de seguro nº 002502778, junta por cópia a fls. 12 e 66 bem como as respectivas condições juntas a fls. 32 a 65. (J)
11- O contrato de seguro a que se reporta a alínea C) cobre também a assistência em viagem, que garante o pagamento sem limite do valor da bagagem e/ou objectos pessoais em caso de furto. (K)
12- Da relação apresentada na polícia espanhola aquando da participação do furto, constam dois pares de óculos de marca «Ocley» de valor aproximado de € 625; um carrinho de bebé no valor de € 200; um assento para veículo de bebé no valor de € 154,97 e diversas peças de roupa para criança, marca «Zara», no valor de € 50. (L)
13- O veículo referido em A) tinha sido adquirido pela «C...» em Fevereiro de 2001 pelo preço global, incluindo IVA, de € 63.344,93, encontrando-se seguro por tal valor. (M)
14- A autora e a «C...» acordaram que o contrato de locação financeira teria a duração de quarenta e oito meses com início em 20/02/2001 e termo em 20/02/2005, sendo as rendas pagas mensal e antecipadamente, a primeira no valor de 254.390$00, contravalor de € 1.268,89 e as restantes no valor de € 1.268,89, cada uma, ajustadas automaticamente de acordo com a evolução da «Lisbor» mensal. (N)
15- A autora tem procedido atempada e pontualmente ao pagamento das rendas acordadas. (O)
16- Nos termos contratualmente acordados entre a autora e a «C...», aquela obrigou-se a manter em vigor as apólices dos seguros destinados a cobrir riscos de circulação, incêndio, roubos, inundação, explosão, raio, quebra e avaria, bem como a pagar os respectivos prémios ou franquias, apondo a locadora como beneficiária das mesmas. (P)
17- Obrigou-se ainda a autora a manter o bem locado em bom estado de funcionamento, sendo da sua exclusiva responsabilidade e correndo por sua conta todas as despesas de conservação e / ou reparação. (Q)
18- Em 02/02/2001 a ré declarou à interveniente «C...» que o veículo em causa se encontrava seguro e que a sua segurada era a autora, e que tal apólice incluía o risco de furto e roubo até ao montante de 12.900.000$00, e declarou ainda a ré, na mesma data, que os direitos emergentes da apólice ficariam ressalvados a seu favor. (R)
19- O veículo referido em A) estava afecto à utilização da gerência da autora. (1)
20- O furto referido em D) ocorreu quando o sócio gerente da autora, Fausto Tavares, estava no gozo de uns dias de férias, no Sul de Espanha, acompanhado da mulher e de um filho. (2)
21- A cláusula 007, art.3º/2 das «Condições Especiais» da apólice de seguro referida em C) tem o seguinte teor: “Ocorrendo furto, roubo ou furto de uso e querendo o Segurado usar dos direitos que o contrato de seguro lhe confere, deverá apresentar imediatamente queixa às autoridades competentes e promover todas as diligências ao seu alcance conducentes à descoberta do veículo e dos autores do crime. Neste caso, a Seguradora obriga-se ao pagamento da indemnização devida, decorridos que sejam 60 dias sobre a data da participação da ocorrência às autoridades competentes, se ao fim desse período o veículo não tiver sido encontrado.”. (3)
22- Por carta datada de 29 de Outubro de 2001, a autora informou a ré de que se o veículo não fosse entregue nas devidas condições, após decorridos sessenta dias sobre a data do furto, iria exigir um veículo novo ou o respectivo valor. (6)
23- Os gerentes da autora deslocavam-se com frequência a Barcelona em serviço profissional. (8)
24- Em média, duas vezes por mês deslocavam-se pelo país em visitas a clientes. (9)
25- Em todas as grandes viagens dos gerentes da autora era utilizado o veículo 29-19-RE por ser o único veículo da empresa que oferecia condições de segurança e dignidade. (10)
26- Desde que ocorreu o furto do veículo, os gerentes da autora deixaram de fazer algumas deslocações, nomeadamente, a Espanha. (11)
27- Este impedimento causou alguma limitação à actividade dos gerentes da autora. (12)
28- Com a viatura desapareceram dois pares de óculos de marca «Ocley» de valor aproximado de € 625, um carrinho de bebé no valor de € 200; um assento para veículo de bebé no valor de € 154,97 e diversas peças de roupa para criança, marca «Zara», no valor de € 50. (15)
29- Por causa do regresso a Portugal, o gerente da autora teve de comprar uma cadeira de viagem para um dos seus filhos que importou em € 154,97. (16)
30- A viatura não foi entregue à autora até 29 de Outubro de 2001. (17)
31- A ré, após o furto em questão, solicitou à empresa «Aide Asistencia, Seguros Y Reaseguros, SA» que diligenciasse pelo repatriamento do veículo «Audi». (18)
32- A «Aide», logo que tomou conhecimento de que o veículo havia sido localizado em Espanha, solicitou ao seu correspondente neste país que averiguasse juntos das respectivas autoridades quais os documentos necessários para que o mesmo fosse liberado. (19)
33- Apenas poderá ser efectuada a peritagem do veículo depois dele ser liberado pelo Tribunal de Marbelha. (20)
34- Só depois desta peritagem é possível saber se o veículo será recuperável, ou se há perda total ou apenas parcial. (21).
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II.2 - de direito
Antes de apreciarmos o mérito do recurso, há uma questão prévia a decidir, reportada aos documentos juntos pela recorrente.
Uma das questões por ela levantadas, diz respeito ao pagamento da dívida relativa ao contrato de locação financeira. Para tanto juntou fotocópia certificada de um “requerimento/declaração para registo de propriedade” e de um “acordo de resolução total” outorgado pela «C...» e pela «A...» ambos datados de Junho/2004.
Trata-se de documentos produzidos após a prolação da sentença recorrida (25.3.04). É óbvio que a apresentação dos mesmos não poderia ter ocorrido na fase da instrução.
Os documentos mostram-se pertinentes para a decisão deste recurso.
Assim, e nos termos dos art.706º/1 e 524º/1/C.P.C., a sua apresentação é legalmente admissível e isenta da multa cominada no art.523º/2 do mesmo diploma.
Admite-se, por conseguinte, a sua junção.

São três as questões suscitadas nas conclusões acima reproduzidas, delimitadoras do objecto do recurso: 1- desvalorização do veículo a considerar para efeitos de perda total, à data do furto; 2- condenação da ré a pagar à A./recorrente a quantia correspondente ao valor seguro naquela data; 3- indemnização pela privação do uso e fruição de nova viatura em resultado da não disponibilização do montante indemnizatório correspondente ao valor do veículo furtado, a partir de 29.10.01
Vejamos cada uma de per se.

2.1- Considerando estar preenchida a cláusula 007 – art.3º/2, das condições especiais da apólice do ajuizado contrato de seguro, entendeu-se na sentença que a ré está obrigada a pagar à A./recorrente a indemnização devida pelo risco furto ou roubo. Fixou-se o valor da indemnização em 10.642.500$00 (53.084,56 €), tomando-se por base o capital seguro no montante de 12.900.000$00, e a desvalorização de 17,5% do valor em novo da viatura.
Contra esta percentagem se insurge a apelante, contrapondo a de 16%.
De harmonia com a cláusula 851 das condições particulares da mesma apólice, aplica-se ao contrato a tabela de desvalorização do veículo seguro a considerar para efeitos de perda total que segue e dele faz parte integrante.
Percorrendo-a, verifica-se que para os veículos ligeiros de valor superior a 35.000 € como é o caso presente, a desvalorização para um veículo com seis meses de idade é de 15%, sendo de 17,5% ao sétimo mês. O que significa que ao longo de um mês a viatura tem uma desvalorização de 2,5%.
Argumentou-se na sentença que o veículo em causa foi adquirido em Fevereiro de 2001 e subtraído em 30/31 de Agosto do mesmo ano, concluindo-se que na data do sinistro tinha sete meses de idade.
Concordamos com a apelante quando sustenta que quando ocorreu o furto haviam decorrido 6 meses e 10 dias. Aliás, o documento/factura junto pela interveniente «Beslaesing» a fls.124, mostra-nos que a transacção do «Audi» se verificou a 21.2.01, sendo que o contrato de seguro teve início em 20.2.01 (fls.12).
Portanto, à data do sinistro a viatura tinha, para efeitos de desvalorização, 6 meses a que acrescem 10 dias do mês seguinte.
Assim, sendo a desvalorização de 15% ao 6º mês e de 2,5% no espaço de um mês, aceita-se, em termos equitativos, que em 10 dias tenha havido uma desvalorização de 1%. Logo, para determinação do valor indemnizatório no caso concreto, atender-se-á à desvalorização de 16%, e desta forma, aquele valor é de 54.049,74 €, que se fixa, em lugar dos 53.084,56 fixados na sentença.
Neste pronto procede a apelação.

2.2- Pretende a apelante que a ré seja condenada a pagar-lhe aquela indemnização, uma vez que já não está em vigor o contrato de locação financeira.
Também neste aspecto tem a recorrente razão.
Segundo a sentença, à A. assistia o direito de demandar a ré, exigindo que esta pagasse a indemnização contratualmente acordada à interveniente; mas já não lhe assistia o direito de pedir a condenação da ré a pagar-lhe a indemnização devida.
Na verdade, resulta das condições gerais do contrato de locação financeira mobiliária (cláusulas 8ª e 9ª) que à locadora, enquanto beneficiária do seguro a que a locatária se obriga a subscrever, em caso de sinistro dever-lhe-á ser paga directamente pela seguradora a correspondente indemnização; e que ao eventual pagamento por parte da locadora à locatária, após receber da seguradora, serão deduzidas todas as importâncias que sejam devidas pela locadora à locatária.
Significa isto que, neste tipo de contratos cabe ao tomador de seguro/locatário participar à seguradora a ocorrência do sinistro e dela reclamar a indemnização devida, sendo que o correspondente pagamento é efectuado directamente à beneficiária/locadora, a qual se pagará do valor do seu próprio crédito, devolvendo ao locatário o remanescente.
Sucede que na situação vertente, e após a prolação da sentença, a autora e a interveniente «C...» acordaram na resolução total do contrato de locação financeira que as obrigava, com efeitos a partir de 8.6.04 (documentos juntos com a alegação de recurso).
Vale isto por afirmar que não continuando em vigor o aludido contrato, a locadora «C...» deixou de ser a beneficiária da indemnização devida pelo furto da viatura «Audi», passando agora a ser a autora/locadora a pessoa colectiva a favor de quem reverte a prestação da seguradora.
A decisão tomada na sentença estaria, pois, certa, não fora a alteração das circunstâncias que então se verificavam.
Neste contexto, impõe-se a condenação da ré ao pagamento à recorrente da indemnização acima arbitrada.

2.3- Por último, resta saber se à A. assiste o direito à indemnização diária pela privação do uso de viatura, com fundamento, segundo ela, no facto de a viatura sinistrada não lhe ter sido entregue até 29.10.01 – data da participação -, nem a ré ter procedido ao pagamento da indemnização devida nos termos contratuais.
Explicitando o seu raciocínio, diz a apelante que a seguradora, ao não disponibilizar a indemnização correspondente ao valor do veículo furtado a partir daquela data, privou-a de poder adquirir um novo veículo para o utilizar na sua actividade social, ou seja, que o não cumprimento do contrato por parte da ré seguradora privou a apelante de usar e fruir uma viatura que ia adquirir.
A 1ª instância julgou improcedente esta pretensão, essencialmente com base em dois argumentos: a ré não se obrigou a assegurar o gozo da coisa por parte da autora; a cláusula contratada de privação temporária do uso do veículo não cobre estes danos.
Não nos parece que seja assim. O que aqui se discute é tão só a indemnização autónoma correspondente à simples privação do uso de viatura automóvel. É que, se na realidade esta indemnização não está directamente coberta pelo seguro, nem esse prejuízo fica ressarcido pelos juros moratórios no âmbito do incumprimento contratual pela seguradora, o quadro factual mostra-mos que estamos em presença de um dano autónomo – dano da privação do uso – e por isso mesmo indemnizável (item II.1- 22 a 27 e 30).
Em conformidade com o art.3º/2 da cláusula 007 das condições especiais da referida apólice de seguro, a ré obrigou-se ao pagamento da indemnização devida, decorridos que fossem 60 dias sobre a data da participação da ocorrência ás autoridades competentes, se ao fim desse período o veículo não tiver sido encontrado.
Como acertadamente se observou na sentença, “encontrar” o veículo furtado não se satisfaz com o mero conhecimento do local onde ele está, sendo ainda necessário que se verifique a real possibilidade de o dono retomar a sua posse em tempo e circunstâncias razoáveis.
Na hipótese em análise, constata-se que decorridos 60 dias após participação ás autoridades policiais espanholas do furto do «Audi», este não foi entregue à A., continuando apreendido e sem se saber se será ou não recuperável.
Como vimos, o seguro cobre o bem locado (o veículo) pelo seu valor de aquisição contra, entre outros, o risco de furto/roubo.
Desta forma, a A./lesada está impedida de usar e fruir aquela viatura, e a ré ainda não lhe entregou a quantia devida nos termos contratuais, que seria necessária para a compra ou locação de um veículo substitutivo.
A privação do uso de uma viatura substitutiva, necessária ao exercício da actividade da empresa, decorre do incumprimento do dever contratualmente assumido pela ré de pagar uma indemnização ocorrendo furto, furto ou roubo, integrando-se tal prejuízo na categoria de dano concreto.
A doutrina e a jurisprudência têm vindo a aceitar o reconhecimento de um direito de indemnização autónomo pela privação do uso normal de um bem (maxime, veículo). Emergindo as situações mais frequentes de factos ilícitos ligados a sinistros rodoviários, nada obsta a que sejam também tuteladas as situações geradoras de privação decorrentes de incumprimento de contrato.
Como justificação para a solução, defende-se que a utilização dos bens faz parte dos interesses patrimoniais inerentes ao próprio bem e que a simples possibilidade de utilização ou de não utilização constitui uma vantagem patrimonial que, uma vez afectada, deve ser ressarcida. Cfr. António Abrantes Geraldes, «Indemnização do dano da privação do uso», pág.26. Ainda, Menezes Leitão, «Direito da Obrigações», I Vol., pág.297. Ac.STJ de 9.5.96 (CJstj, tomo II/96-61), Ac.R.C. de 9.11.99 (CJ tomoV/99, pág.23), e de 26.11.02 (CJ tomoV/02, pág.19), Ac.R.P. de 29.9.03, CJ tomoIV/03, pág.168).
Entende-se que a autonomização da privação do uso como dano de natureza patrimonial a integrar através de indemnização, encontra expressão na previsão das disposições conjugadas dos arts.562º, 563º, 564º e 566º, todos do C.C.. O art.562º estabelece o princípio da reposição natural quanto à indemnização. Revelando-se inviável a reconstrução natural, terá lugar a indemnização em dinheiro, equivalente à diferença entre a situação presente e a provavelmente existiria se não ocorresse o evento danoso (art.566º/2). A par dos benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão – lucros cessantes (art.563º), consignou-se no art.564º o dano emergente.
Perante o quadro factual, há que precisar que o «Audi» estava afecto à utilização da gerência da autora que com ele se deslocava frequentemente a Barcelona, deslocações que escassearam desde que ocorreu o furto, o que causou limitação à actividade dos gerentes.
É, pois, incontestável, que a A. necessita de ter à sua disposição uma viatura para facilidade de desempenho das suas actividades empresariais. Privada da mesma, e sem que ela tenha sido substituída por outra com semelhantes utilidades, ou tivesse sido colmatada com a atribuição de um quantitativo destinado a suprir a sua falta, o que naturalmente afectará a actividade lucrativa, isto constitui um prejuízo com reflexos no património da A.(art.564º/1).
Como se pondera na obra primeiramente citada (pág.39), “é incontornável a percepção de que entre a situação que existiria se não houvesse o sinistro e aquela que se verifica na pendência da privação existe um desequilíbrio que, na falta de outra alternativa, deve ser compensado através da única forma possível, ou seja, mediante a atribuição de uma quantia adequada”.
Em suma, a privação do uso de um bem patrimonial implica, por si, um dano que deve ser indemnizado.
Privada da utilização de uma viatura automóvel desde 31.10.01, altura em que a ré, em cumprimento do clausulado na apólice de seguro, deveria ter procedido ao pagamento da indemnização devida pelo furto, é de admitir a indemnização autónoma correspondente a tal privação, independentemente da verificação da mora nos termos dos arts.804º, 805º/1 e 806º/1 e 2, C.C..
O incumprimento da prestação a cargo da ré da referida cláusula 0007 (art.3º/2) é, pois, a causa adequada do prejuízo material (dano emergente) que a A. vem suportando. Os prejuízos não deixam de ser representados pelo desequilíbrio de natureza material correspondente à diferença entre a situação que existiria e aquela que é possível verificar depois de se constatar a efectiva privação do uso de um bem (art.566º/2). Isto é o bastante para determinar o ressarcimento mediante a atribuição de uma compensação pecuniária, se necessário recorrendo à equidade (art.566º/3). Cfr. A. Geraldes, ob.cit., pág.47
No caso concreto, para efeitos da quantificação da indemnização aceita-se como razoável o cálculo apresentado pela recorrente, ou seja, tomando por referência a quantia de 75 €/diários constante da mesma apólice para a privação temporária de uso do veículo seguro (item II.1-9).
Mas a nosso ver essa importância é devida, não a partir de 29.10.01, mas antes desde 30.10.01, isto é, 60 dias sobre a data da participação do furto do veículo (item II.1-4, 5 e 21).
Procede, consequentemente, o recurso.
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III - DECISÃO
Acorda-se, pelo exposto, em julgar procedente a apelação e, alterando-se a sentença recorrida, condena-se a ré «B...» a pagar à autora «A...», a quantia de 54.049,74 € acrescida de juros de mora à taxa anual de 12% desde a citação até efectivo pagamento, e ainda a pagar a indemnização devida pela privação do uso de veículo automóvel, desde 30.10.01 até integral pagamento, à taxa diária de 75 €.
No demais mantém-se a sentença recorrida.
Custas da apelação pela ré.
Na 1ª instância as custas ficam a cargo da A. e da ré na proporção do decaimento.
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COIMBRA,