Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1922/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. OLIVEIRA MENDES
Descritores: CAUÇÃO ECONÓMICA - PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 09/15/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA MEALHADA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO ORDINÁRIO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: ARTIGOS 227º E 228º, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: São pressupostos do decretamento da caução económica:
a) A ocorrência de receio objectivo, justificado e claro relativamente à capacidade das garantias de pagamento;
b) A ocorrência de uma substancial e significativa diminuição daquelas;
c) A indicação por parte do requerente dos termos em que a caução deve ser prestada, isto é, a indicação dos valores ou quantitativos cujo pagamento aquela visa garantir.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra.
No processo de inquérito n.º 490/03, a correr termos nos serviços do Ministério Público na comarca da Mealhada, o assistente A..., devidamente identificado, requereu fosse fixada ao arguido B..., com os sinais dos autos, caução económica, alegando o receio de este vir a dissipar bens susceptíveis de serem a única garantia de pagamento da indemnização que ao mesmo irá exigir mediante a oportuna dedução do respectivo pedido cível.
No requerimento apresentado não apresentou qualquer prova.
Mediante despacho judicial foi indeferida a pretensão do assistente, com os seguintes fundamentos:
a) Não indicação por parte do assistente dos termos e modalidades da prestação da caução, com omissão dos valores, modo de prestação e outros elementos;
b) Inexistência de prova do receio de falta ou diminuição de garantia patrimonial do pagamento da indemnização, aliado ao facto de do exame dos autos resultar prima facie ser o arguido proprietário de bens mais do que suficientes para garantir o pagamento de indemnização que venha a ser pedida e não resultar a ocorrência de qualquer diminuição daquele património.
Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o assistente, sendo do seguinte teor a parte conclusiva da motivação apresentada:
1. O recorrente é ofendido em consequência de conduta criminalmente punível por parte do denunciado, constituído arguido, do que lhe advém direito a ser ressarcido por este em termos de indemnização civil.
2. Atenta a sua qualidade de lesado tem legitimidade para requerer que o mesmo, civilmente responsável, preste caução económica, ainda na fase de inquérito.
3. Os motivos em que sustentou o seu fundado receio de perda de garantia patrimonial não foram apreciados na decisão recorrida.
4. Para além das declarações do arguido, não constarão dos autos elementos suficientes e concretos que permitam concluir pela suficiência do seu património à garantia do pagamento de qualquer indemnização, nem quanto ao aumento deste em função do invocado prejuízo do estabelecimento entretanto encerrado ou de uma qualquer perspectiva de o mesmo vir a beneficiar de uma pensão de reforma.
5. O recorrente, atenta a sua qualidade, limitou-se a exercer um direito que lhe assiste, deixando ao critério do tribunal a sua verificação e fixação do montante da referida caução.
6. Independentemente do seu indeferimento, não traduz tal requerimento qualquer ocorrência estranha ao desenrolar normal do processo que possa ser qualificado como incidente, enquadrável para efeito de condenação e custas no artigo 520º a) do CPP e 84º, do CCJ.
7. Durante o inquérito e especialmente para o acto em causa, não é obrigatória a assistência de defensor ao arguido, já que não estava minimamente em causa a sua liberdade ou de qualquer outra medida de natureza coactiva pessoal, mas tão-só uma medida de garantia patrimonial, o que não justifica qualquer enquadramento na alínea b) ou no n.º 2 do artigo 64º do CPP.
O recurso foi admitido.
Ministério Público e arguido responderam.
Na sua contra-motivação a Digna Magistrada do Ministério Público conclui:
1. O lesado não indiciou, como lhe incumbia, os termos e as modalidades em que a caução deveria ser prestada, pelo que o seu pedido teria de ser indeferido;
2. Constituindo o seu requerimento um incidente e tendo o lesado ficado vencido, teria de ser condenado em custas, como foi.
São do seguinte teor as conclusões formuladas pelo arguido na contra-motivação que apresentou:
1. No requerimento do ora recorrente onde foi peticionada a prestação de caução económica, não foram invocados quaisquer motivos sérios e verdadeiros que justificassem a fixação ao arguido da prestação de caução económica, porque estes não existiam. O que é diferente de tais motivos não serem apreciados na decisão recorrida.
2. O recorrente, não mencionou no seu requerimento, como lhe competia nos termos do artigo 227º, n.º1, do Código de Processo Penal, quais os concretos termos e modalidades da prestação, isto é, omitiu valores, modo de prestação e quaisquer outros elementos.
3. O ora recorrente não apresentou qualquer prova, que demonstrasse o fundado receio de que faltassem ou diminuíssem as garantias de pagamento de indemnização que possa vir a ser peticionada, porque este não existia, pelo contrário existiu um aumento.
4. O requerido/arguido, provou como consta da douta decisão recorrida que:
- é proprietário de bens que se afiguram mais que suficientes para garantir o pagamento de qualquer indemnização que possa vir a ser peticionada;
- o seu património não sofreu qualquer diminuição, mas um aumento, porquanto o estabelecimento estava a dar prejuízo e mostrava-se encerrado;
- tem a perspectiva do arguido vir a beneficiar de uma pensão de reforma.
5. São estes, fundamentos mais que suficientes, para o indeferimento da prestação de caução económica pelo arguido, carecendo assim de falta de fundamento as razões alegadas pelo recorrente.
6. Como não havia fundado receio de falta de diminuição das garantias de pagamento de uma possível indemnização, foi considerado um incidente, uma vez que foi uma ocorrência estranha ao desenvolvimento normal do processo e que deve ser tributada segundo os princípios que regem a condenação nos termos do disposto no artigo 84º, do Código das Custas Judiciais.
7. Cabe à parte civil o pagamento de custas, isto é, ao ora recorrente, como dispõe o artigo 520º, al.a), do Código de Processo Penal, uma vez que foi aquele que requereu a prestação da caução, que se provou não ter fundamento para ser deferida, e por isso deu causa infundada ao incidente e por conseguinte às custas.
8. Um dos principais direitos processuais do arguido nos termos da al.e) do artigo 61º, do Código de Processo Penal, é o de ser assistido por defensor em todos os actos processuais em que participar.
9. A decisão que impõe ao arguido a prestação de uma garantia patrimonial do pagamento de uma indemnização ao lesado é um acto que afecta directa e pessoalmente o arguido.
10. Não foi violado o disposto no artigo 64º, n.º 2, do Código de Processo Penal, como afirma o recorrente, mas sim verificou-se o seu estrito cumprimento por parte do Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo, dado que não tinha o arguido/recorrido defensor constituído, pelo que o Meritíssimo Juiz oficiosamente nomeou defensor oficioso, na medida em que a situação e a lei assim o exigiam, havendo necessidade e conveniência de o arguido ser assistido.
Foi proferido despacho de sustentação.
O Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se pronuncia no sentido da improcedência do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre agora decidir.
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Começando por delimitar o objecto do recurso, verifica-se serem submetidas à nossa apreciação e julgamento três questões:
a) Ilegalidade da decisão que indeferiu o pedido do assistente em que requereu fosse fixada ao arguido caução económica;
b) Incorrecta condenação do assistente em custas na sequência daquela decisão de indeferimento;
c) Inutilidade da nomeação ao arguido de defensor oficioso para a sua assistência no pedido de fixação da referida caução.
Como decorre da hermenêutica do artigo 227º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, a caução económica, medida que visa garantir o cumprimento de obrigações de natureza patrimonial emergentes do processo por parte do arguido (pena pecuniária e custas) ou o pagamento da indemnização ou de outras obrigações civis resultantes da prática do crime, só pode ser decretada desde que haja fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento, devendo, para tanto, o requerente indicar os termos e modalidades em que deve ser prestada.
Deste modo, certo é que a caução económica só pode ser decretada perante a ocorrência de receio objectivo, justificado e claro relativamente à capacidade das garantias e face a uma substancial e significativa diminuição daquelas ( - Cf. Simas Santos/Leal Henriques, Código de Processo Penal (1999), I, 1096.).
Por outro lado, estando a fixação da caução económica, isto é, do seu montante, dependente dos valores ou quantitativos cujo pagamento visa garantir, é evidente que para a sua decretação é indispensável a indicação clara e precisa das respectivas importâncias, o que significa que, no caso de caução/garantia do pagamento de indemnização que ainda não foi pedida ou peticionada, sobre o requerente recai a obrigação de indicar o valor daquela.
É este o claro sentido do texto legal ao estatuir (artigo 227º, n.º 1 in fine): «… O requerimento indica os termos e modalidades em que deve ser prestada» ( - Bold nosso.).
No caso vertente verifica-se que o recorrente ao requerer que o arguido prestasse caução económica (requerimento de fls.23/24), limitou-se a manifestar o propósito de oportuna dedução de pedido de indemnização civil contra o arguido e a alegar a ocorrência de receio de que o mesmo dissipe os bens que possui, para além de asserção atinente à existência de indícios do crime objecto do processo e da sua autoria por parte daquele.
Assim sendo, não tendo o recorrente indicado os termos em que a caução deveria ser prestada, nem apresentado qualquer meio de prova sobre o alegado receio de o arguido poder vir a dissipar os seus bens, é evidente que bem andou o Mm.º Juiz a quo ao indeferir o pedido de prestação de caução.
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Em matéria de custas estabelece o artigo 524º, do Código de Processo Penal, que é subsidiariamente aplicável o disposto no Código das Custas Judiciais.
Ora, de acordo com o artigo 84º, do Código das Custas Judiciais, nos incidentes de recusa, de anulação do processado, de apoio judiciário, de habeas corpus e de reclamação para a conferência, bem como noutras questões legalmente configuradas como incidentes e nas ocorrências estranhas ao desenvolvimento normal do processo que devam ser tributadas segundo os princípios que regem a condenação, é devida taxa de justiça entre 1 UC e 5 UC ( - Bold nosso.).
O pedido ou requerimento apresentado pelo recorrente para que o arguido prestasse caução económica e os demais actos processuais praticados na sequência daquele pedido não podem deixar de ser configurados como um incidente nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 84º, do Código das Custas Judiciais.
Destarte, carece de qualquer fundamento a posição do recorrente ao pretender não ser tributável a actividade processual a que deu causa em virtude e na sequência do pedido de prestação de caução económica que formulou.
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Resta apreciar a questão atinente à nomeação ao arguido de defensor oficioso.
Primeira observação que nos merece a impugnação da decisão que nomeou ao arguido defensor é a de que o recorrente carece de legitimidade para daquela recorrer, posto que não se trata de decisão contra si proferida ou susceptível de o afectar – artigos 69º, n.º 2, alínea c) e 401º, n.º1 alínea b), do Código de Processo Penal.
Segunda observação é a de em qualquer Estado de direito o arguido, em processo criminal, tem o direito de ser assistido por defensor em todos os actos processuais em que participe, o que a nossa lei adjectiva obviamente contempla – artigo 61º, n.º1, alínea e).
Deste modo, nesta parte há que rejeitar o recurso interposto – artigos 420º, n.º1 e 414º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
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Termos em que se acorda rejeitar o recurso na parte em vem impugnada a nomeação ao arguido de defensor oficioso e negar-lhe provimento quanto ao mais.
Custas pelo recorrente – 10 UC de taxa de justiça.